Desde
muito, ela sabia que o aniversário, este ano, seria num domingo. Mas só quando
faltavam quatro ou seis semanas, começara a ver na
coincidência
uma promessa de alegrias incomuns e convidara o esposo a tirarem um retrato.
Acreditava que este haveria de apreender seu júbilo, do mesmo modo que o da
Primeira Comunhão retivera para sempre os cânticos.
- Ora... Temos tantos... - respondera o
homem. Se tivéssemos filhos... Aí, bem. Mas nós dois! Para que retratos? Dois
velhos!
A
mão esquerda, erguida, com o indicador e o médio afastados, parecia fazer da
solidão uma coisa tangível - e ela se reconhecera com tristeza no dedo menor,
mais fino e recurvo. Prendera grampos aos cabelos negros, lisos, partidos ao
meio, e levantara-se.
- Está bem. Você não quer...
(A
voz nasalada, contida, era um velho sinal de desgosto.)
- Suas tolices, Matilde... Quando é
isso?
Como
se a idéia a envergonhasse, ela inclinara a cabeça:
- Em setembro - dissera. No dia vinte e
quatro. Cai num domingo e eu...
- Ah! Uma comemoração - interrompera o
esposo. Vinte anos de casamento... Um retrato ameno e primaveril. Como nós.
Na
véspera do aniversário, ao deitar-se, ela ainda lembrara essas palavras; mas
purificara-se da ironia e as repetira em segredo, sentindo-se reconduzida ao
estado de espírito que lhe advinha na infância, em noites semelhantes: um
oscilar entre a espera de alegrias e o receio de não as obter. Agora, ali
estava o domingo, claro e tépido, com réstias de sol no mosaico, no leito, nas
paredes, mas não com as alegrias sonhadas, sem o que tudo o mais se tornava inexpressivo.
- Se você não quiser, eu não faço
questão do retrato - disse ela. Foi tolice.
- O fotógrafo já deve estar esperando.
Por que não muda o penteado? Ainda há tempo.
- Não. Vou assim mesmo.
Abriu
a porta, saíram. Flutuavam raras nuvens brancas; as folhas das aglaias tinham
um brilho fosco. Ela deu o braço ao marido e sentiu, com espanto, uma
anunciação de alegrias no ar, como se algo em seu íntimo aguardasse aquele
gesto.
Seguiram.
Soprou um vento brusco, uma janela se abriu, o sol flamejou nos vidros. Uma voz
forte de mulher principiou a cantar, extinguiu-se, a música de um acordeão
despontou indecisa, cresceu. E quando o sino da Matriz começou a vibrar, com
uma paz inabalável e sóbria, ela verificou,
exultante,
que o retrato não ficaria vazio: a insubstancial riqueza daqueles minutos o
animaria para sempre.
- Manhã linda! - murmurou. Hoje eu
queria ser menina.
- Você é.
A
afirmativa podia ser uma censura, mas foi como um descobrimento
que
Matilde a aceitou. Seu coração bateu forte, ela sentiu-se capaz de rir muito,
de extensas caminhadas, e lamentou que o marido, circunspecto, mudo, estivesse
alheio à sua exultação. Guardaria, assim, através dos anos, uma alegria
solitária, da qual Antônio para sempre estaria ausente.
Mas
quem poderia assegurar, refletiu, que ele era, não um participante
de
seu júbilo, mas a causa mesma de tudo o que naquele instante sentia; e que, sem
ele, o mundo e suas belezas não teriam sentido?
Estas
perguntas tinham o peso de afirmativas e ela exclamou que se sentia feliz.
- Aproveite - aconselhou ele. Isso
passa.
- Passa. Mas qualquer coisa disto
ficará no retrato. Eu sei.
As
duas sombras, juntas, resvalavam no muro e na calçada, sobre a qual ressoavam
seus passos.
- Não é possível guardar a mínima
alegria - disse ele. Em coisa alguma. Nenhum vitral retém a claridade.
Cinco
meninas apareceram na esquina, os vestidos de cambraia
parecendo-lhes
comunicar sua leveza, ruidosas, perseguindo-se, entregues à infância e ao
domingo, que fluíam com força através delas. Atravessaram a rua, abriram um
portão, desapareceram.
Ela
apertou o braço do marido e sorriu, a sentir que um júbilo quase angustioso
jorrava de seu íntimo. Compreendera que tudo aquilo era inapreensível:
enganara-se ou subestimara o instante ao julgar que poderia guardá-lo.
"Que este momento me possua, me ilumine e desapareça - pensava. Eu o vivi.
Eu o estou vivendo."
Sentia
que a luz do sol a trespassava, como a um vitral.
***
Um
cinturão Graciliano Ramos
As
minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda
impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de
réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas ninguém me dera
a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me
porque
podiam bater-me, e isto era natural.
Os
golpes que recebi antes do caso do cinturão, puramente físicos, desapareciam
quando findava a dor. Certa vez minha mãe surrou-me com uma corda nodosa que me
pintou as costas de manchas sangrentas. Moído,
virando
a cabeça com dificuldade, eu distinguia nas costelas grandes lanhos vermelhos.
Deitaram-me, enrolaram-me em panos molhados com água de
sal
e houve uma discussão na família. Minha avó, que nos visitava, condenou o
procedimento da filha e esta afligiu-se. Irritada, ferira-me à toa, sem querer.
Não guardei ódio a minha mãe: o culpado era o nó. Se não fosse ele, a
flagelação me haveria causado menor estrago. E estaria esquecida. A história do
cinturão, que veio pouco depois, avivou-a.
Meu
pai dormia na rede, armada na sala enorme. Tudo é nebuloso.
Paredes
extraordinariamente afastadas, rede infinita, os armadores longe, e meu pai
acordando, levantando-se de mau humor, batendo com os chinelos
no
chão, a cara enferrujada. Naturalmente não me lembro da ferrugem, das rugas, da
voz áspera, do tempo que ele consumiu rosnando uma exigencia. Sei que estava
bastante zangado, e isto me trouxe a covardia habitual. Desejei vê-lo
dirigir-se a minha mãe e a José Baía, pessoas grandes, que não levavam pancada.
Tentei ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil. A força de meu pai
encontraria resistência e gastar-se-ia em palavras.
Débil
e ignorante, incapaz de conversa ou defesa, fui encolher-me num canto, para lá
dos caixões verdes. Se o pavor não me segurasse, tentaria escapulir-me: pela
porta da frente chegaria ao açude, pela do corredor acharia o pé de turco. Devo
ter pensado nisso, imóvel, atrás dos caixões. Só queria que minha mãe, sinhá
Leopoldina, Amaro e José Baía surgissem de repente, me livrassem daquele
perigo.
- Ninguém veio, meu pai me descobriu
acocorado e sem fôlego, colado
ao
muro, e arrancou-me dali violentamente, reclamando um cinturão. Onde estava o
cinturão? Eu não sabia, mas era difícil explicar-me: atrapalhava-me, gaguejava,
embrutecido, sem atinar com o motivo da raiva. Os modos brutais, coléricos,
atavam-me; os sons duros morriam, desprovidos de significação.
Não
consigo reproduzir toda a cena. Juntando vagas lembranças dela
a
fatos que se deram depois, imagino os berros de meu pai, a zanga terrível, a minha
tremura infeliz. Provavelmente fui sacudido. O assombro gelava-me o sangue,
escancarava-me os olhos.
Onde
estava o cinturão? Impossível responder. Ainda que tivesse
escondido
o infame objeto, emudeceria, tão apavorado me achava. Situações deste gênero
constituíram as maiores torturas da minha infância, e as conseqüências delas me
acompanharam.
O
homem não me perguntava se eu tinha guardado a miserável correia: ordenava que
a entregasse imediatamente. Os seus gritos me entravam na cabeça, nunca ninguém
se esgoelou de semelhante maneira.
Onde
estava o cinturão? Hoje não posso ouvir uma pessoa falar alto.
O
coração bate-me forte, desanima, como se fosse parar, a voz emperra, a vista
escurece, uma cólera doida agita coisas adormecidas cá dentro. A horrível
sensação de que me furam os tímpanos com pontas de ferro.
Onde
estava o cinturão? A pergunta repisada ficou-me na lembrança: parece que foi
pregada a martelo.
A
fúria louca ia aumentar, causar-me sério desgosto. Conservar-me-ia ali
desmaiado, encolhido, movendo os dedos frios, os beiços trêmulos e
silenciosos.
Se o moleque José ou um cachorro entrasse na sala, talvez as pancadas se
transferissem. O moleque e os cachorros eram inocentes, mas não se tratava
disto. Responsabilizando qualquer deles, meu pai me esqueceria, deixar-me-ia
fugir, esconder-me na beira do açude ou no quintal.
Minha
mãe, José Baía, Amaro, sinhá Leopoldina, o moleque e os
cachorros
da fazenda abandonaram-me. Aperto na garganta, a casa a girar, o meu corpo a
cair lento, voando, abelhas de todos os cortiços enchendo-me os ouvidos - e,
nesse zunzum, a pergunta medonha. Náusea, sono. Onde estava o cinturão? Dormir
muito, atrás dos caixões, livre do martírio.
Havia
uma neblina, e não percebi direito os movimentos de meu pai.
Não
o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me,
arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas.
Uivos,
alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber que rogos e adulações
exasperavam o algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu amigo, era um
pobre-diabo.
Achava-me
num deserto. A casa escura, triste; as pessoas tristes. Penso com horror nesse
ermo, recordo-me de cemitérios e de ruínas mal-assombradas.
Cerravam-se
as portas e as janelas, do teto negro pendiam teias
de
aranha. Nos quartos lúgubres minha irmãzinha engatinhava, começava a
aprendizagem dolorosa.
Junto
de mim, um homem furioso, segurando-me um braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas
não fossem muito fortes: comparadas ao que
senti
depois, quando me ensinaram a carta de A B C, valiam pouco. Certamente o meu
choro, os saltos, as tentativas para rodopiar na sala como carrapeta, eram
menos um sinal de dor que a explosão do medo reprimido.
Estivera
sem bulir, quase sem respirar. Agora esvaziava os pulmões, movia-me, num
desespero.
O
suplício durou bastante, mas, por muito prolongado que tenha sido, não igualava
a mortificação da fase preparatória: o olho duro a magnetizar-me, os
gestos
ameaçadores, a voz rouca a mastigar uma interrogação incompreensível. Solto,
fui enroscar-me perto dos caixões, coçar as pisaduras, engolir soluços, gemer
baixinho e embalar-me com os gemidos. Antes de adormecer, cansado, vi meu pai
dirigir-se à rede, afastar as varandas, sentar-se e logo se
levantar,
agarrando uma tira de sola, o maldito cinturão, a que desprendera a fivela
quando se deitara. Resmungou e entrou a passear agitado. Tive a impressão de
que ia falar-me: baixou a cabeça, a cara enrugada serenou, os olhos
esmoreceram, procuraram o refúgio onde me abatia, aniquilado.
Pareceu-me
que a figura imponente minguava - e a minha desgraça diminuiu. Se meu pai se
tivesse chegado a mim, eu o teria recebido sem o
arrepio
que a presença dele sempre me deu. Não se aproximou: conservou-se
longe,
rondando, inquieto. Depois se afastou.
Sozinho,
vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo,
insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na
telha negra.
Foi
esse o primeiro contato que tive com a justiça. O pirotécnico Zacarias
Murilo
Rubião
"E
se levantará pela tarde sobre ti uma luz como a do meio-dia; e quando te
julgares consumido, nascerás como a estrela-d'alva."
(Jó,
XI, 17)
Raras
são as vezes que, nas conversas de amigos meus, ou de pessoas das minhas
relações, não surja esta pergunta. Teria morrido o pirotécnico Zacarias?
A
esse respeito as opiniões são divergentes. Uns acham que estou vivo
- o morto tinha apenas alguma
semelhança comigo. Outros, mais supersticiosos, acreditam que a minha morte
pertence ao rol dos fatos consumados
e
o indivíduo a quem andam chamando Zacarias não passa de uma alma penada,
envolvida por um pobre invólucro humano. Ainda há os que afirmam de maneira
categórica o meu falecimento e não aceitam o cidadão existente como sendo
Zacarias, o artista pirotécnico, mas alguém muito parecido com o finado.
Uma
coisa ninguém discute: se Zacarias morreu, o seu corpo não foi enterrado.
A
única pessoa que poderia dar informações certas sobre o assunto sou eu. Porém
estou impedido de fazê-lo porque os meus companheiros fogem de mim, tão logo me
avistam pela frente. Quando apanhados de surpresa, ficam estarrecidos e não
conseguem articular uma palavra.
Em
verdade morri, o que vem de encontro à versão dos que crêem na minha morte. Por
outro lado, também não estou morto, pois faço tudo o que antes fazia e, devo
dizer, com mais agrado do que anteriormente.
A
princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de
listras vermelhas, de um vermelho compacto, semelhante a densas fitas de
sangue. Sangue pastoso com pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado,
tênue, quase sem cor.
Quando
tudo começava a ficar branco, veio um automóvel e me matou.
- Simplício Santana de Alvarenga!
- Presente!
Senti
rodar-me a cabeça, o corpo balançar, como se me faltasse o apoio
do
solo. Em seguida fui arrastado por uma força poderosa, irresistível. Tentei
agarrar-me às árvores, cujas ramagens retorcidas, puxadas para cima, escapavam
aos meus dedos. Alcancei mais adiante, com as mãos, uma roda de fogo,
que
se pôs a girar com grande velocidade por entre elas, sem queimá-las, todavia.
- "Meus senhores: na luta vence o
mais forte e o momento é de decisões supremas. Os que desejarem sobreviver ao
tempo tirem os seus chapéus!"
(Ao
meu lado dançavam fogos de artifício, logo devorados pelo arco-íris.)
- Simplício Santana de Alvarenga!
- Não está?
- Tire a mão da boca, Zacarias!
- Quantos são os continentes?
- E a Oceania?
Dos
mares da China não mais virão as quinquilharias.
A
professora magra, esquelética, os olhos vidrados, empunhava na mão direita uma
dúzia de foguetes. As varetas eram compridas, tão longas que obrigavam D.
Josefina a ter os pés distanciados uns dois metros do assoalho e a cabeça,
coberta por fios de barbante, quase encostada no teto.
- Simplício Santana de Alvarenga!
- Meninos, amai a verdade!
A
noite estava escura. Melhor, negra. Os filamentos brancos não tardariam a
cobrir o céu.
Caminhava
pela estrada. Estrada do Acaba Mundo: algumas curvas, silêncio, mais sombras
que silêncio.
O
automóvel não buzinou de longe. E nem quando já se encontrava
perto
de mim, enxerguei os seus faróis. Simplesmente porque não seria naquela noite
que o branco desceria até a terra.
As
moças que vinham no carro deram gritos histéricos e não se
demoraram
a desmaiar. Os rapazes falaram baixo, curaram-se instantaneamente da bebedeira
e se puseram a discutir qual o melhor destino a
ser
dado ao cadáver.
A
princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de
listras vermelhas, de um vermelho compacto, semelhante a densas fitas de
sangue. Sangue pastoso com pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado,
quase sem cor. Sem cor jamais quis viver. Viver, cansar bem os músculos,
andando pelas ruas cheias de gente, ausentes de homens.
Havia
silêncio, mais sombras que silêncio, porque os rapazes não mais discutiam
baixinho. Falavam com naturalidade, dosando a gíria.
Também
o ambiente repousava na mesma calma e o cadáver - o meu ensangüentado cadáver -
não protestava contra o fim que os moços lhe desejavam dar.
A
idéia inicial, logo rejeitada, consistia em me transportar para a cidade, onde
me deixariam no necrotério. Após breve discussão, todos os argumentos
analisados com frieza, prevaleceu a opinião de que meu corpo poderia sujar o
carro. E havia ainda o inconveniente das moças não se conformarem em viajar ao
lado de um defunto. (Neste ponto eles estavam redondamente enganados, como
explicarei mais tarde.)
Um
dos moços, rapazola forte e imberbe - o único que se impressionara com o
acidente e permanecera calado e aflito no decorrer dos
acontecimentos
-, propôs que se deixassem as garotas na estrada e me levassem para o
cemitério. Os companheiros não deram importância à proposta. Limitaram-se a
condenar o mau gosto de Jorginho - assim lhe chamavam - e a sua insensatez em
interessar-se mais pelo destino do cadáver do que pelas lindas pequenas que os
acompanhavam.
O
rapazola notou a bobagem que acabara de proferir e, sem encarar de frente os
componentes da roda, pôs-se a assoviar, visivelmente encabulado. Não pude
evitar a minha imediata simpatia por ele, em virtude da sua razoável sugestão,
debilmente formulada aos que decidiam a minha sorte.
Afinal,
as longas caminhadas cansam indistintamente defuntos e vivos. (Este argumento
não me ocorreu no momento.)
discutiram
em seguida outras soluções e, por fim, consideraram que
me
lançar ao precipício, um fundo precipício, que margeava a estrada, limpar o
chão manchado de sangue, lavar cuidadosamente o carro, quando chegassem a casa,
seria o alvitre mais adequado ao caso e o que melhor conviria a possíveis
complicações com a polícia, sempre ávida de achar mistério onde
nada
existe de misterioso.
Mas
aquele seria um dos poucos desfechos que não me interessavam.
Ficar
jogado em um buraco, no meio de pedras e ervas, tornava-se para mim uma idéia
insuportável. E ainda: o meu corpo poderia, ao rolar pelo barranco abaixo,
ficar escondido entre a vegetação, terra e pedregulhos. Se tal acontecesse,
jamais seria descoberto no seu improvisado túmulo e o meu nome não
ocuparia
as manchetes dos Jornais.
Não,
eles não podiam roubar-me nem que fosse um pequeno necrológio no principal
matutino da cidade. Precisava agir rápido e decidido:
-
Alto lá! Também quero ser ouvido!
Jorginho
empalideceu, soltou um grito surdo, tombando desmaiado, enquanto os seus
amigos, algo admirados por verem um cadáver falar, se dispunham a ouvir-me.
Sempre
tive confiança na minha faculdade de convencer os adversários, em meio às
discussões. Não sei se pela força da lógica ou se por um dom
natural,
a verdade é que, em vida, eu vencia qualquer disputa dependente de argumentação
segura e irretorquível.
A
morte não extinguira essa faculdade. E a ela os meus matadores fizeram justiça.
Após curto debate, no qual expus com clareza os meus argumentos, os rapazes
ficaram indecisos, sem encontrar uma saida que
atendesse,
a contento, às minhas razões e ao programa da noite, a exigir prosseguimento.
Para tornar mais confusa a situação, sentiam a impossibilidade de dar rumo a um
defunto que não perdera nenhum dos predicados geralmente atribuidos aos vivos.
Se
a um deles não ocorresse uma sugestão, imediatamente aprovada, teríamos
permanecido no impasse. Propunha incluir-me no grupo e, juntos, terminarmos a
farra, interrompida com o meu atropelamento.
Entretanto,
outro obstáculo nos conteve: as moças eram somente três,
isto
é, em número igual ao de rapazes. Faltava uma para mim e eu não aceitava fazer
parte da turma desacompanhado. O mesmo rapaz que aconselhara a minha inclusão
no grupo encontrou a fórmula conciliatória, sugerindo que abandonassem o colega
desmaiado na estrada. Para melhorar o meu aspecto, concluiu, bastaria trocar as
minhas roupas pelas de Jorginho, que me prontifiquei a fazer rapidamente.
Depois
de certa relutância em abandonar o companheiro, concordaram
todos
(homens e mulheres, estas já restabelecidas do primitivo desmaio) que ele fora
fraco e não soubera enfrentar com dignidade a situação. Portanto, era pouco
razoável que se perdesse tempo fazendo considerações sentimentais em torno da
sua pessoa.
Do
que aconteceu em seguida não guardo recordações muito nítidas.
A
bebida que antes da minha morte pouco me afetava, teve sobre o meu corpo
defunto uma ação surpreendente. Pelos meus olhos entravam estrelas, luzes cujas
cores ignorava, triângulos absurdos, cones e esferas de marfim, rosas negras,
cravos em forma de lírios, lírios transformados em mãos. E a ruiva, que me fora
destinada, enlaçando-me o pescoço com o corpo transmudado em longo braço
metálico.
Ao
clarear o dia saí da semiletargia em que me encontrava. Alguém me perguntava
onde eu desejava ficar. Recordo-me que insisti em descer no cemitério, ao que
me responderam ser impossível, pois àquela hora ele se encontrava fechado.
Repeti diversas vezes a palavra cemitério. (Quem sabe nem chegasse a repeti-la,
mas somente movesse os lábios, procurando ligar as palavras às sensações
longínquas do meu delírio policrômico.)
Por
muito tempo se prolongou em mim o desequilíbrio entre o mundo exterior e os
meus olhos, que não se acomodavam ao colorido das paisagens estendidas na minha
frente. Havia ainda o medo que sentia, desde aquela
madrugada,
quando constatei que a morte penetrara no meu corpo.
Não
fosse o ceticismo dos homens, recusando-se aceitar-me vivo ou morto, eu poderia
abrigar a ambição de construir uma nova existência.
Tinha
ainda que lutar contra o desatino que, às vezes, se tornava senhor dos meus
atos e obrigava-me a buscar, ansioso, nos jornais, qualquer notícia que
elucidasse o mistério que cercava o meu falecimento.
Fiz
várias tentativas para estabelecer contato com meus companheiros
da
noite fatal e o resultado foi desencorajador. E eles eram a esperança que me
restava para provar quão real fora a minha morte.
No
passar dos meses, tornou-se menos intenso o meu sofrimento e
menor
a minha frustração ante a dificuldade de convencer os amigos que Zacarias que
anda pelas ruas da cidade é o mesmo artista pirotécnico de outros tempos, com a
diferença que aquele era vivo e este, um defunto.
Só
um pensamento me oprime: que acontecimentos o destino reservará
a
um morto se os vivos respiram uma vida agonizante? E a minha angústia cresce ao
sentir, na sua plenitude, que a minha capacidade de amar, discernir as coisas,
é bem superior à dos seres que por mim passam assustados.
Amanhã
o dia poderá nascer claro, o sol brilhando como nunca brilhou. Nessa hora os
homens compreenderão que, mesmo à margem da vida, ainda vivo, porque a minha
existência se transmudou em cores e o branco já se aproxima da terra para
exclusiva ternura dos meus olhos.