sexta-feira, 29 de julho de 2022

Revista Internacional e Interativa The Bard :


 

Participe da 13ª edição da Revista Internacional e Interativa The Bard – MAIO & JUNHO 2022

 Se você gosta de poesia, arte e música, este espaço é seu para expressar e divulgar a sua arte.

A Revista será em 3 modalidades: Revista em 3D, Revista Eletrônica e em PDF interativo com botões (links) direcionáveis para seu site, sua fanpage, perfil, blog e etc…

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Contos do Sábado na Usina: Carlos Sussekind: O anti-Natal de 1951:





No documento emitido pelo Juizado de Menores lê-se o seguinte: "Requisito-vos" (ao agente da Estação D. Pedro II, no Rio de Janeiro) "duas passagens de ida e volta em 1ª classe dessa estação até a Estação Presidente Franklin Roosevelt, em São Paulo, para o Dr. Lourenço Laurentis, 
Curador de Menores do Distrito Federal, e um menor, que viajam a serviço deste Juízo". 
Muito atencioso, o agente-ajudante que me atende na Central. Não me faz esperar. Mas, depois de carimbar a requisição, objeta-me que só amanhã poderá dar as passagens, pois o regulamento ferroviário exige antecedência de três dias, não de quatro. Adiantei-me, pois. Evito discutir, para que não surjam obstáculos futuros. A idéia de fazer essa viagem na companhia unicamente de meu filho, tendo eu me comprometido a não desviá-lo de suas leituras nem durante o percurso nem durante o dia inteiro (25 de dezembro) que passaremos em São Paulo, corresponde satisfatoriamente à nossa concepção (minha e dele) do anti-Natal. Atravessaremos a véspera natalina dentro do trem, sem desejar mal nem bem a quem quer que seja, ele lendo, eu nos meus devaneios. Dia 26 estaremos de volta. Não daremos nem receberemos presentes. O único presente tolerado é essa viagem de graça, que, a bem dizer, não é um presente, é um direito que me dá o cargo de Curador de menores. Doutor Lourenço e o filósofo Lourencinho estarão na deles, numa boa. 
Verifico que, se fosse de noturno, com leito de luxo, no "Santa Cruz", em cabine individual de dois passageiros, a viagem de ida e volta custaria ao Estado o triplo do preço desse trajeto feito em poltrona comum. Sairíamos do Rio às 22:30 do dia 24 e chegaríamos a São Paulo às 9 da manhã de 25. Magnífico, sem dúvida. Mas repugna à minha consciência abusar da requisição, proporcionando-nos esse luxo nababesco que ficaria documentado 
para sempre. Basta a fraude de dizer que eu e o Lourencinho vamos "a serviço do Juizo Tentarei, em todo caso, combinar ida em noturno e volta em diurno, numa última homenagem ao meu escrúpulo. O abuso já não será tanto, nem deixarei de proporcionar a meu filho uma viagem repousada. Se tiver de ir e vir de diurno - o que seria a hipótese mais econômica -, a consciência ficará mais leve, mas não sei como se comportariam o fígado dele e os meus rins. Enfim, veremos. 
Precipitado no meu otimismo, faço, depois do jantar, uma descrição para a família toda reunida de como é o trem encantado em que viajaremos os dois. Vagões de aço inoxidável. As poltronas forradas de camurça. 
Giratórias. Ninguém em pé, todos acomodados, de fisionomias risonhas. A composição move-se deslizando, sem nenhuma trepidação, nenhum ruído, não entra pó, o ar que circula é como o do cinema Metro, trem de cinema, primeiro você pensa que é por causa do dia chuvoso, mas deixe chegar uma estação, abrir-se a porta e verá que é como se se abrisse uma fornalha. É a temperatura que faz lá fora. Dentro do carro, no entanto, a mesma inalterável 
e suavíssima ambiência! Moças e rapazes falam-se aos beijos. Quando não se beijam, cantam. Um sonho! 
Diante da minha expansão, Lourencinho tem o comentário desalentador de que só vai a São Paulo para me acompanhar, e que não sabe, afinal, se isso de anti-Natal funcionará mesmo. Se nem o anti-Natal o seduz, meu Deus, que se pode esperar desse rapaz? Deve ser a perspectiva da viagem fatigante. Mas não é só isso, não. Quando lhe falo no que faremos para conhecer a cidade, onde não piso desde 1920 - há mais de 30 anos, portanto -, adverte logo: - Desista disso de querer mostrar parques e avenidas e monumentos e pessoas! Iremos cada qual para seu lado. 
Vou buscar as passagens na estação. Outro subagente. Atencioso, como o de ontem. Entretanto, fez-me esperar 25 minutos para verificar se a assinatura era mesmo do juiz de menores, um desaforo. Conclui dizendo, amabilíssimo, que só amanhã, 22, poderá me dar os bilhetes, pois o regulamento fala em "três dias antes da viagem": sendo esta no dia 24, os três dias contam-se 22, 23 e 24. Considera 24 como sendo ao mesmo tempo o dia da viagem e a véspera! Evito discutir etc. 
Risadas do homenzinho quando lhe falo em "noturno" e "Santa Cruz A requisição menciona apenas "passagem de 1ª". Sem especificar "noturno só se pode subentender "diurno". A fim de não dificultar a interpretação favorável em São Paulo, para a volta, escreve "tarifa noturna", o que permitirá que eu cogite de noturno de lá para cá. Mas, noturno em "trem de madeira", sem leito de qualquer espécie. Nem, sequer, poltrona. A poltrona, mesmo para o diurno, tem de ser paga à parte. São 60 para a ida e outros 60 para a volta. Quer dizer que a requisição do Juízo de Menores só me deu o direito de andar dentro do trem até São Paulo e de São Paulo aqui. Custará isso ao Estado 568 cruzeiros redondos. Acho infinita graça, agora, na minha ingenuidade de falar em "escrúpulo" de pleitear coisa melhor... O Governo sabe com quem lida. As bandalheiras não se fazem assim, com recibo. Elas se aninham noutras dobras. 
Volto no dia seguinte, o guichê das passagens está se abrindo, sou o primeiro passageiro atendido. Entretanto, não posso ter os assentos que peço, na sombra. "Nós aqui desconhecemos os lugares que são no sol e os que ficam na sombra. As ordens são para destacá-los automaticamente, sem intervenção de quem quer que seja." Conformo-me. Ele lê a requisição. O outro funcionário, ao datá-la, pôs certo 21.12.1951; mas, quando se referiu ao dia da viagem, escreveu, sabe-se lá por que, 24.12.1952, equívoco palpável, evidente. Mas S. Exa. o bilheteiro do guichê nº 1 acha que deve ser retificado. Atendo-o, ainda nisto. No guichê nº 5 já está outro funcionário, diverso do "amabilíssimo" com quem falei ontem. Objeta-me que a retificação não é da sua competência, e que o funcionário que poderia fazê-la só começará a trabalhar às 4 da tarde. Não posso tolerar semelhante absurdo. Volto então ao agente substituto. Ouve-me em silêncio. Manda chamar o bilheteiro. Fala-lhe. E se volta para mim, austeramente: - O funcionário tem razão. Ele não pode retificar um erro que não cometeu. Mas o senhor, também, não vai pagar pelo que se fez sem sua culpa. Atenda-o, portanto, Sr. Freitas. Se o algarismo puder ser modificado, modifique-o. Se não puder, extraia outro passe. 
E dá-me as costas. O algarismo não pôde ser modificado. Depois de ajustar pachorrentamente os carbonos e de "experimentar" noutro papel, de rascunho, Freitas pega solenemente o lápis, calca-o, descobre o carbono e diz: 
- Não deu certo. - Espero, pois, 15 minutos para que ele extraia novo passe. 
Seria justo que minha odisséia terminasse aí. Mas não terminou. Vou 
para o bilheteiro do guichê nº 1. Examina os novos passes, pede-me a carteira funcional e me diz secamente: 60 cruzeiros pelas duas poltronas. Dou-lhe o dinheiro, mas pergunto: 
- Que é que essas poltronas têm de mais? Ele não demora na resposta: 
- Nada. 
- Então por que se paga à parte? Se eu não pagasse, iria em pé? 
O homem ajusta os óculos ao nariz, fita-me serenamente, reflete no que vai dizer. Responde-me: 
- Iria. 
Quer dizer: um funcionário, viajando a serviço do Estado, tendo sua passagem requisitada pelo Juízo de Menores, em nome do Ministro da Justiça, não tem direito sequer a viajar sentado nas 11 horas do percurso. Mas ainda há mais. Pergunto, delicadamente, ao ditador que tenho pela frente, se as poltronas 37 e 38 do carro "B" ficam, ou não, na sombra. Com uma irritação mal disfarçada em calma "superior", responde-me: 
- Meu caro senhor, quer um conselho? Peça a Deus que sejam na sombra, porque só Ele pode decidir. 
Ali a justiça divina já está feita de antemão. Qualquer dos lugares é igual nos benefícios e nas desvantagens. Em 11 horas de viagem, de 7:25 às 18:25, quem tiver sol pela manhã não o terá mais à tarde, e quem, pela manhã, gozar da sombra, escaldará com o sol de depois do meio-dia. 
Rimo-nos, ambos, para descarregar os nervos, evidentemente tensos, tensíssimos. Desejo-lhe Feliz Natal com toda a sinceridade. Posso respirar, enfim. As providências que tinha de tomar para garantir nosso anti-Natal, meu e do meu filho, já estão tomadas.

Contos do Sábado na Usina: Camilo Castelo Branco:

 


IV

Do Alto Minho continuavam as noticias alegremente agitadoras. O Cristóvão Bezerra, ex-capitão-mor de Santa Marta de Bouro, escreveu ao seu parente de Barrimau. Dizia-lhe que constava que o Sr. D. Miguel estava no seu reino, e – o que mais era – muito perto dali. Que não se podia explicar mais pelo claro sem ter a certeza de que seu primo entendia a cifra de comunicação entre os membros da Ordem de S. Miguel da Ala, instituída pelo Sr. D. Afonso Henriques e renovada ultimamente pelo monarca legitimo – explicava. O major Bezerra era comendador da ordem e conhecia a cifra: – que escrevesse francamente. E, desconfiando do correio, mandou a Santa Marta de Bouro o afilhado, o filho do alferes Gaspar, com uma carta muito importante. O pedreiro, a impar de soberba por tal mensagem, posto que não participasse do segredo do padrinho, que era discreto, disse ao pai:
– Ou eu me engano, ou o Sr. D. Miguel está por aí, não tarda...
O alferes sentiu uma descarga eléctrica na coluna vertebral e convulsionou-se extraordinariamente. Fazia lembrar fenómenos que se contam de movimento galvânico nos paralíticos, colhidos de improviso pelo terror ou pela exultação; mas o Gaspar, como só tinha o esófago desimpedido, bebeu, com a escorrência absorvente de um olhomarinho, muita aguardente, e desatou a berrar o Rei-chegou.
O filho, com a discrição própria de um agente secreto da restauração realista, zangou-se com o berreiro cívico do pai e perguntou-lhe se estava bêbedo. O velho entusiasta, ferido no seu coração de vassalo e de progenitor. teve um honrado intervalo lúcido, quando lhe replicou:
– Se eu não estivesse aqui tolhido, respondia-te, malandro!
Deitou o albardão à égua e partiu para terras de Bouro o Zeferino. Quando passava defronte da casa do Simeão, em Prazins, olhou de esguelha, por debaixo da aba do chapéu, para o lavrador que estava apondo os bois ao carro, e regougou um arrastado pigarro de goelas encatarroadas; e, dando de espora à andadeira, deixou cair o pau ferrado ao longo da perna. , azia de si consigo, ladeando a besta em corcovos chibantes. O Simeão, quando o perdeu de vista, murmurou: – Valha-te o Diabo, banabóia!
O ex-capitão-mor de Santa Marta respondeu às perguntas do primo de Barrimau; e, como o portador se recomendou na qualidade de afilhado do fidalgo e filho de um alferes que comandara o ataque de 1838 sobre Santo urso, o Cristóvão Bezerra tratou-o muito bem e pediu-lhe notícias desse ataque a Santo Tirso que ele não conhecia.
O pedreiro contou a façanha do pai, a nadar, com a espada nos dentes; e o fidalgo, quando soube que ele estava entrevado, disse pungidamente: Mal empregado! – que um general romano fizera o mesmo e que o levasse às Caldas de Vizela à bomba quente.
Como estava conversando com o filho de tamanho realista, fez-lhe confidências: – que D. Miguel estava perto dali; mas não recebia ninguém porque os malhados já o espreitavam em Portugal. Que a aclamação havia de começar em terras de Bouro, e estender-se até Lisboa; e que estivesse certo que el-rei nosso senhor lhe daria a patente do pai ou talvez mais. O pedreiro esfregava os joelhos com as mãos e bamboava-se hilariante na cadeira como um idiota. Tirou da algibeira da véstia uma saquita de missanga, onde tinha três peças e sete pintos. Pôs o dinheiro com estrondo diante do Bezerra – que o mandasse a el-rei para as suas despesas; que eu, acrescentou, há quatro anos que lhe dou uma moeda de ouro por ano; ele há-de saber pelo rol quem é o Zeferino das Lamelas, porque o padre Luís de Sousa Couto, do Porto, disse-me que el-rei conhece de nome todos os que lhe mandam dinheiro. O fidalgo recusou: – que não estava autorizado a receber donativos, nem os julgava por enquanto necessários, porque em poder do Dr. Cândido, de Anelhe, estavam cinquenta contos, dados pela Senhora Infanta D. Isabel Maria, para pôr a procissão na rua.
A carta de que Zeferino foi o ditoso portador era mais explícita. Contava que D. Miguel estava escondido na residência do abade de São Gens de Calvos, no concelho da Póvoa de Lanhoso, o reverendo Marcos António de Faria Rebelo2. Que pouquíssimas pessoas o tinham visto, porque Sua Majestade só se mostraria aos seus amigos fiéis quando entrassem pela Galiza os generais estrangeiros que se esperavam, uns do antigo exército carlista, outros de Inglaterra.
Esta notícia dos generais estranhos beliscou a vaidade nacional do major Zeferino Bezerra. Parecia-lhe impossível que o príncipe proscrito não confiasse na perícia e lealdade do Santa Marta, do Vitorino, do Póvoas e Bernardino. Era uma ingratidão, dizia ele ao mano frade, que acrescentou: – e uma bestialidade. El-rei deve saber o que lhe valeram o Bourmont e o Pussieux e o MacDonnell, no fim da campanha. Sabes tu? – rematou o morgado – aqui anda marosca. O que tratam é de se abotoarem com os cinquenta contos da Infanta D. Isabel Maria, e o primo Cristóvão é um asno chapado.
– Escreve-se ao Póvoas e ao Bernardino – aconselhou o egresso – que digam alguma coisa.
Os militares realistas responderam que sem dúvida estava a levedar alguma tentativa de restauração; que o Ribeiro Saraiva trabalhava deveras; que o Sr. D. Miguel era esperado em Londres; mas que não estava no reino, nem cá viria senão para se sentar de vez no seu trono usurpado.
– Deixa-te de asneiras, Zeferino – dizia o fidalgo ao afilhado com as cartas na mão –, el-rei há-de vir; mas não veio. Meu primo foi codilhado pelo abade de Calvos, e eu vou-lhe escrever que não seja palerma, nem caia com uma de X para o levantamento que é uma comedela.
O pedreiro, não obstante, apostava dobrado contra singelo que D. Miguel estava em Calvos, e puxava pela saquita de missanga com gestos de troquilha de burros em feira:
– Aposto! Aqui está dinheiro! O fidalgo de Quadros, o Sr. Tenente-Coronel Cerveira Lobo também diz que el-rei já por cá anda.
– O Cerveira Lobo! olha que borrachão! – disse o frade.
– Quem cá está é o rei dos bêbedos no corpo dele – acrescentou o morgado.
– Mas diz que o Sr. D. Miguel I gostava muito dele – objectou o pedreiro. – Ouvilho eu.
– Não duvido... – explicou o frade – que o Sr. D. Miguel gostava de grandes patifes...
O primo Cristóvão redarguiu, magoado na sua esperteza, que era tão certo estar elrei em Calvos como era certo ter-me beijado a régia mão em casa do abade, na noite sempre memorável de 16 de Abril de 1845. Que só o tinha visto de relance em Braga em 32, mas que o conhecera pelo retrato; que até manquejava um pouco, tal e qual,
2Como seria de mau gosto inventar este episódio, imponho-me o dever de afirmar que estas notícias me foram transmitidas por um ilustrado cavalheiro da Póvoa de Lanhoso, o Sr. José Joaquim Ferreira de Meio e Andrade, da casa nobilíssima das Argas, falecido, com mais de oitenta anos de idade, em 1881. Conquanto a imprensa contemporânea, que eu saiba, não falasse no pseudo D. Miguel, as revelações do ancião de Lenhoso merecem-me e são dignas de toda a confiança.
Além disso, consultei o reverendo Casimiro José Vieira, tão celebrado quando dirigia com mão armada a revolução do Minho, que se chamou Maria da Fonte. Hoje, com 66 anos de idade, vive na sua casa da Alegria, no concelho de Pelgueiras, ao sopé do monte de Santa Quitéria, preparando as suas Memórias, que devem esclarecer as obscuridades originais da insurreição de duas províncias. Este padre que, aos trinta anos, foi conclamado general pelo povo, e parlamentou face a face com o conde das Antas, respondeu assim à minha consulta: Eu apenas posso dizer a você que foi verdade ter estado o tal impostor oculto em casa do abade, porque ele mesmo me disse; mas nada lhe perguntei a tal respeito, por me lembrar que ele teria vergonha de se deixar enganar, depois de lhe ter beijado a mão muitas vezes, no tempo de estudante e seminarista, quando o Sr. D. Miguel esteve em Braga, a ponto de se ter tornado saliente para o mesmo Sr. D. Miguel, como o mesmo abade me contou também, mas por isso mesmo nada mais posso acrescentar... (Carta de 11 de Novembro de 1882).
como se sabe, depois que Sua Majestade quebrou a perna em 28. Que el-rei nomeara o abade de Calvos seu capelão- mor, que dera a mitra de Coimbra ao abade de Priscos, e fizera chantre o padre Manuel das Agras, e a ele lhe fizera a mercê de duas comendas e o título de barão de Bouro, afora outras graças a diversos clérigos e leigos.
– Que te parece isto? – perguntou o morgado ao frade.
– Parece-me a notória estupidez do primo Bezerra e mais dos padres; mas, se o homem que lá está é o D. Miguel, então o estúpido é ele, e que me perdoe Sua Majestade fidelíssima...
Escreveu-se novamente ao Póvoas, ao Tavares de Fagilde e ao Pontes, um colaborador da Nação. Responderam -lhe que não havia tal D. Miguel em Calvos; mas que deixasse correr o marfim, porque era necessário uma agitação preparatória, um simulacro, uma apalpadela...
– Quer dizer – reflexionou o frade – que o tal impostor é um Baptista, o precursor do verdadeiro Messias. Pois deixemos correr o marfim, e mais o simulacro... que palpem – e, pondo as duas mãos engalfinhadas sobre o umbigo proeminente, fazia girar um dedo polegar à volta do outro. Que o que fosse soaria, e não caísse o mano Zeferino na estultícia de se comprometer sem que os generais portugueses saíssem à rua.
Na correnteza destas coisas, o Zeferino das Lamelas não trabalhava de pedreiro; abandonou as obras de alvenaria aos oficiais, e andava numa dobadoira de casa do padrinho para casa do tenente-coronel realista, o Vasco Cerveira Leite, morgado de Quadros, um homem nascido ilustremente, que, desde Évora Monte, não cortara as barbas nem saíra das ruínas da casa-solar em Vermoim.
Como a sua paixão era inconsolável com o destino, deu-se à distracção do álcool; e, porque tinha a consciência da sua miséria de bêbedo, fechava-se no seu quarto, onde às vezes caía amodorrado sobre o vómito. Imbecilizara-se. Cerveira tinha sofrido um ataque cerebral, quando o brigadeiro José Urbano de Carvalho infamemente se passara com alguns esquadrões de cavalaria para o centro da divisão do duque da Terceira, na Chamusca. Ele vira o seu coronel António Cardoso de Albuquerque dar vivas à carta constitucional e a D. Maria II. Achou-se arrastado, ilaqueado e prisioneiro, quando procurava abrir com a espada uma sepultura honrosa. Ali se extinguira coberto de opróbrio, naquela hora, o bravo e leal regimento de Chaves, que nunca dera um desertor para as fileiras do inimigo. O tenente-coronel, desde esse dia, foi um desgraçado incompreendido que se embriagava para esquecer o reviramento súbito da sua carreira. Depois, a corrente travada das misérias. Tinha filhos que se emborrachavam como ele, e filhas que se namoravam dos engenheiros das estradas, e andavam pelas romarias de roupinhas escarlates, com botinas de ponteira de verniz e chapéus desabados de seda preta com borlas e plumas. Sua mãe tinha sido açafata da apostólica D. Carlota Joaquina, fizera-se mulher do Ramalhão, e gabava-se de ter sido amada do conde de Vila Flor. Quando entrou no vasto e velho casarão de Quadros, teve histerismos formidáveis e acordava os ecos das montanhas com gritos que punham terrores sobrenaturais na vizinhança. O Cerveira Leite poderia viver abundantemente na corte, porque os seus rendimentos e foros eram muito importantes: é o que D. Honorata lhe pedia com lágrimas; mas ele, colérico: – que não podia encarar os malhados, e não sairia mais de casa sem as suas divisas de tenente-coronel de dragões. E, apontando-lhe para os cinco filhos:
– Sê boa mãe, trata dessas crianças que andam aí porcas que fazem nojo! – Tinha estas equidades em jejum. E ela:
– Mais nojo me fazem as borracheiras de você!
E o fidalgo então disciplinava-a militarmente. Quando lhe não dava alguns pontapés, desfechava-lhe um tiroteio de palavradas de tarimba, e perguntava-lhe se tinha saudades dos bordéis do Ramalhão, aqueles pagodes reais. Desta procacidade esquálida, derivou a um mutismo estúpido. Não lhe respondia. Fechava-se no seu quarto, contíguo à garrafeira.
D. Honorata Guião teria vinte e oito anos, quando saiu de Lisboa para o Minho em 34. Era formosa das finas graças aristocráticas. Urna elegância nervosa, inquieta, mordiscada de desejos como uma flor branca muito picada das abelhas. Aceitara o major Cerveira, porque era rico e estadeava na corte as suas librés. Tinha trinta anos, e dizia-se que aos quarenta seria general, porque D. Miguel gostava muito dele. Rosnavase que o Cerveira tinha sido um dos assassinos do marquês de Loulé.
Este rapaz de corte e da intimidade do rei e das infantas, disputado pelas damas da rainha, era aquele ébrio encanecido que, debruçado na janela do seu quarto, fortemente fincado no peitoril de ferro da sacada, revessava ao caminho público golfos aziumados de vinhaça, e dizia garotices de lacaio às raparigas que passavam medrosas e o saudavam: – Guarde Deus V. Sª senhor fidalgo! – Tenha V. Sª muito boas tardes, senhor morgado! – E ele, almofaçando as barbas conspurcadas de vómito: – Li brejeira, deixa lá ver o patriotismo; que tal é a anca? Não respondes, catraia? Olha como aquela rebola os quadris, o grande coldre! – As cachopas não respondiam; safavam- se com um grande medo, porque eram suas caseiras; mas comentavam: – Que levasse o Diabo o piteireiro do fidalgo! – que a fidalga fizera bem em se pisgar com o doutor dos Pombais. – Quer não – contrariava uma lavradeira idosa – foi má mulher que deixou assim os filhos, cinco crianças! uma desgraça! Nem as cadelas faziam isso. Os mais velhos já se emborracham, e as meninas estão quase mulheres e ainda não foram ao confesso nem sabem a doutrina. Que uma delas, a Teresinha, já se enfeitava para o estudante das Quintãs que andava por lá feito caçador, e que o morgadinho, o Sr. Heitor, namorava a filha do José Alho, e até se dizia que lhe falara em casamento. Vede vós que desgraça, ó moças! Um menino tão rico e tão fidalgo, vi-o aqui há tempos na taverna de Vilaverde que se não lambia, a pagar vinho ao Alho e mais à cróia da filha, e a comerem todos iscas de bacalhau com as mãos! Ao que eu vi chegar um senhor dos fidalgos de Quadros! Quando eu era rapariguita, aqueles senhores nunca saíam sem os seus mochilas fardados e tinham liteiras com as armas reais pintadas. Faziam mesmo um respeito! O Sr. Rodrigo, pai
deste morgado velho, era disto dos governos lá de Lisboa, e quando vinha ver as suas quintas, ó senhores, caía ai o poder do mundo de Braga e Guimarães a visitá-lo! E as fidalgas? isso então a gente, quando as via, corria logo a beijar-lhes a mão, e elas no dia de Páscoa mandavam às cachopas lenços para a cabeça e regueifas de pão podre. Aquela casa estava sempre cheia de frades de ordens ricas...
– Isso, isso.., eu logo vi que essas fidalgas haviam de estar cheias de frades de ordens ricas – dizia o José Dias de Vilalva. – Muito cheias de frades aquelas fidalgas, hem?
– Aí vens tu com as tuas alicantinas – retrucava, prognóstica e solene, a tia Rosa de Carude. – É o que tu estudas, meu valdevinos. Agora é melhor que então, pois não foste? As fidalgas de hoje em dia presentemente fogem com os doutores e deixam os filhos... Isto agora é que é bom às direitas, pois não é? No tempo antigo, valha- me Deus, as fidalgas eram umas desavergonhadas que conheciam frades e criavam os seus filhos.
– Os filhos dos frades? – perguntava o Dias.
– Cala-te aí, boca danada! Olha que padre havia de sair de ti! Ainda bem que a Marta de Prazins te fez mudar de rumo.
A fuga da Honorata Guião com o Silveira dos Pombais não amotinara a opinião pública escandalizada. A excepção da austera Rosa de Carude. toda a gente deu razão à fidalga. O Cerveira tinha amigas da ralé, que metia em casa – uma diversão à embriaguez, quando não exercia as duas distracções numa promiscuidade desaforada. D. Honorata visitava-se unicamente com a D. Andresa da Silveira, da casa dos Pombais, irmã de um bacharel delegado em Amarante. Chorava muito com ela e pedia-lhe que perguntasse ao mano doutor se poderia separar-se por justiça, antes de se atirar a uma cisterna. D. Andresa pediu ao irmão que viesse ouvir as tristes alegações da sua desgraçada amiga.
Estava Honorata nos trinta e três anos, quando Silveira a encontrou nos Pombais. O delegado era um romântico. Emigrara em 28, sendo estudante, quando alguns membros da sociedade dos Divodignos padeceram o suplício da forca pelo homicídio dos lentes. Completara a formatura em 38 e fora despachado. Muito lido em Schiller e Arlincourt. Fazia solaus em que havia abencerragens e infantas cristãs apaixonadas que tocavam arrabis, banhadas de lua nos revelins dos castelos roqueiros. Também fazia prosa na Gazeta Literária do Porto – cenas dramáticas em que se jurava pela gorja e havia homens de prol que arrastavam mantos negros, cravavam lâminas de Toledo às portas de D. Fuas, e, cruzando os braços, rugiam cavernosamente: E depois, os arrepios de uma casquinada seca, de um estridente grasnido de gaivotas que se espicaçam por sobre o mar banzeiro.
A Honorata, esposa deplorativa, dama da rainha, esbeltamente magra, de uma elegância de raça afinada nos salões da Bemposta, palidez ebúrnea, esmaecida, airs évaporés, um sorriso nobre de ironia rebelde à desgraça, com a dupla poesia do martírio e da beleza, ultrapassou a encarnação viva dos ideais do bacharel. Ela tinha pejo de lhe contar os seus infortúnios, a vida crapulosa do marido, a libertinagem de portas adentro com as jornaleiras, e o abandono da educação dos filhos. Andresa é que contava tudo ao mano Adolfo na presença da mártir. Que o Cerveira se embriagava todas as tardes e tinha amásias da última gentalha que punham e dispunham em casa. Que os meninos eram criados brutamente; que o mais velho, o Heitor, nem ler sabia; porque o pai também fazia mal o seu nome. Que tiveram um padre de dentro para os ensinar, mas que o padre, em vez de lhes dar lição, trabalhava de carpinteiro em remendar os sobrados, e quando era a hora do estudo largava a enxó e vinha em mangas de camisa, sem gravata e de socos para a sala. Que os meninos não lhe tinham respeito nenhum, por isso o Heitor, quando ele o ameaçou com a palmatória, respondeu que lhe dava uma navalhada. O pai achou-lhe graça, e o padre foi-se embora. Depois, entrou um velho que dava escola em Guimarães, e os quisera ensinar com muita paciência; mas o Heitor e mais o Egas tais arrelias lhe faziam que o pobre homem fugiu. Que D. Honorata sofria aquele flagelo desde a queda da realeza, como se fosse a culpada da vitória de D. Pedro. Era da família dos Guiões, muito íntimos do Sr. D. Miguel e do conde de Basto; mas todos os seus parentes foram perseguidos, roubados, de modo que ela, ainda que quisesse fugir ao marido, não tinha em Lisboa família que a pudesse sustentar; – que, se não fosse isso, já teria acabado o seu suplício, e que muitas vezes pensara em se matar, mas...
– Os filhinhos... – atalhou Adolfo sentimentalmente.
– Não, senhor – acudiu a dama de Carlota Joaquina –, não são os filhos. O coração de mãe só se enche do amor aos filhos quando se evapora o amor aos pais. Eu nunca amei este homem. Impuseram-me o casamento, aproveitaram-se do despeito que eu sentia pelas ingratidões de um conde que eu amava, e casaram-me à pressa. O carácter deste homem não piorou com a desgraça da política; ele é o que sempre foi, com a diferença de que na corte embriagava-se com os fidalgos, no Alfeite e em Queluz, e por lá dormia. As mulheres que corrompia ou o corrompiam não eram minhas criadas nem minhas conhecidas; e, se o eram, eu apenas tinha a convicção de que ele era um devasso. Tenho cinco filhos deste homem; mas basta que eu lhe diga, Sr. Dr. Adolfo, que são dele, são os produtos amaldiçoados de uma obrigação estúpida – a aviltadora obrigação de ser mãe quando se é esposa.
Tinha dito. O bacharel nunca ouvira coisa assim, nem se lembrava de ter achado nos romances uma razão tão filosófica e concludente da justiça com que a mãe pode aborrecer os filhos.
– Sentia vontade de me ajoelhar diante dela! – dizia Adolfo à irmã. – Que formosura e que talento, Andresa! O mana, eu viajei cinco anos, vi as mulheres mais encantadoras da Europa, estive no Pardo, no Bois de Boulogne, no Hyde-Park, e nunca vi mulher que tanto me penetrasse os íntimos seios de alma! Nunca, por estranha fatalidade, nunca! Como é que eu sinto aos vinte e oito anos as palpitações de um coração que nasce? Que faísca de amor é esta que me lavra um incêndio devastador das alegrias de alma que ainda ontem me doiravam a existência?
Era o estilo hidrópico de Arlincourt; mas é de crer que exprimisse garrafalmente a singela e natural comoção que lhe fez a gentileza, a poesia elegíaca, a majestade inflexa daquela mulher a quem a desgraça dera uma crítica moderna e revolucionária na religião das mães.
D. Andresa, escandalizada, cortava-lhe os voadoiros perguntando-lhe se a separação judicial poderia dar meios de subsistência a Honorata. O bacharel, muito abstracto, parecia esquecido do código. O estado da sua alma não lhe consentia folhear a infame prosa com mão jurisperita.
Que havia de estudar a questão; mas que lhe parecia que ela, requerendo o divórcio, apenas tinha alimentos por não ter trazido nada ao casal. – Estas frases eram mastigadas com um tédio, um engulho, como se, depois de declamar uma Contemplação de Lamartine, tivesse de recitar dois parágrafos da lei da enfiteuse.
D. Andresa era senhora ajuizada, muito séria, educada no convento de Vairão; tinha missa em casa, e escrevia cartas a diversas freiras, pondo sempre no alto do papel: Jesus, Maria, José. Andava nos trinta e cinco anos, muito linfática e um grande horror aos vícios da carne. O mano Adolfo conhecia-lhe a índole. Não podia esperar dela aplauso, nem sequer condescendência, e muito menos auxílio à sua afeição a mulher casada. Andresa concordava com o irmão na formosura de Honorata; mas observava com um risinho malicioso que o não chamara para saber se a sua amiga era bonita ou feia; mas sim para aconselhá-la e dirigi-la na separação do marido por justiça.
O Dr. Adolfo absteve-se de entusiasmos, e pôs-se a estudar a questão, em conferências com o Bento Cardoso, de Guimarães, e o Torres e Almeida, o Rasqueja de Braga, dois chavões. Mas o que ele queria era corar as delongas nos pombais, ganhar tempo, a salvo das suspeitas da mana e do seu capelão, um realista finório que sabia da poda, e trazia a pedra no sapato, dizia, cacarejando uma risada velhaca – e conhecia até onde podia chegar a fragilidade de um homem sem sólidos princípios de religião, estragado por essas nações.
D. Andresa andava assustada, porque o mano nem ia para Amarante nem dava começo ao processo. A Honorata aparecia-lhe radiosa, com um grande esmero no trajar, vestidos fora da moda, mas elegantes, ricos, de mangas perdidas, com uns decotes que punham nos olhos do capelão luzernas esquisitas, escrúpulos. Adolfo era discreto na presença da mana. Contava as suas viagens, durante a emigração, citava nomes de literatos desconhecidos à fidalga, seus amigos íntimos em Paris; ai! Paris! – exclamava. – Se eu então me passaria pela mente que havia de vir de Paris para Amarante!
– Ele porta-se muito sério – dizia D. Andresa ao padre Rocha. – Ela é que me parece mais levantada, muito azevieira, não acha?
– Acho, acho... – confirmava o capelão. – Daqui rebenta coisa, minha senhora; rebenta, V. Exª verá...
E, com efeito, estava a rebentar, na frase explosiva do padre Rocha. O delegado tinha correspondência diária com Honorata, mediante uma caseira de sua mana, irmã de uma criada do Cerveira Lobo. Cartas incendiárias escritas durante a noite trocavam-se de manhã, quando o Adolfo saía a respirar os bálsamos das ribanceiras orvalhadas. Às vezes, subia a encosta até à crista do monte do castelo de Vermoim. Daqui, avistava-se por sobre as selvas verdes de carvalheiras e pinhais a vasta casaria pardacenta de Quadros, com dois torreões denticulados. No andaime de um dos torreões via-se um vulto branco, com o braço amparado numa das ameias, e a cabeça encostada à mão como nas baladas de Baour Lormian. Era Honorata, com o binóculo assestado na fraga onde estava Adolfo, alaranjado pela primeira resplandecência do Sol nascente.
Ao cabo de duas semanas, saíram dos domínios da balada. Uma noite, partiram de Guimarães, caminho do Porto, dois cavalos do Gaitas, e pararam na Ponte de Brito. Um dos cavalos era arreado com selim de senhora. Por volta da meia-noite, Adolfo e Honorata, num passo miúdo, com uma ansiedade, misto de exultação e de susto, chegaram à Ponte de Brito. Ele ajudou-a a sentar-se na sela; cavalgou, disse aos dois arneiros o seu destino, e partiram a trote largo.

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo:


 



O CONTRABANDO 
A Valentim Magalhães 

Quando a vitória de Tavares se pôs em movimento, conduzindo Laura e Geraldo, este bafejado pelo ar fresco da noite, foi pouco a pouco recuperando a consciência nítida dos seus atos, e medindo toda a extensão dos excessos a que se entregara. 
Sinceramente arrependido de ter aceitado o convite do Tavares, comparecendo a um jantar que degenerara em orgia, achava agora um incômodo trambolho a infeliz rapariga que ali ia atirada no fundo daquele carro, com as pálpebras cerradas, ignobilmente vendida à concupiscência. 
Perdera de súbito aquele desejo que à mesa lhe despertara os sentidos; achava-se paternal junto dessa mulher, e velho demais para ela, que era quase uma criança. 
E lembrava das histórias que Laura lhe contara durante o jantar: o seu casamento, a sua fuga, a sua desgraça; e o coração enchia-se de piedade e azedume. Tudo aquilo devia ser verdade; ela não tinha ainda o feitio da cocotte, era ainda noviça na profissão: não devia saber mentir. 
E Geraldo perguntava aos seus botões: 
— Que vou eu agora fazer desta pequena?... 
Depois, lembrou-se da última vez em que andara de carro. Havia já alguns meses. Foi uma noite em que levara a filha aos Huguenotes e teve que restitui-la ao colégio depois do espetáculo. Como ameaçava chover, tomaram um carro no largo da Carioca. Margarida ia assim, como Laura, atirada para o fundo do carro, com as pálpebras cerradas... 
— Valha-me Deus! que vou eu agora fazer desta pequena?...


Contos do Sábado na Usina: Humberto de Campos:

 





RETIRANTES 
Os últimos habitantes da vila deviam abandoná-la naquela noite. Desde que, com a continuação das ventanias doidas após o dia de São José, se perdera a esperança de inverno, os lavradores, deixando os roçados e a casa, haviam iniciado a descida para o litoral. Pelas várzeas combustas, onde a lama rachara ao sol, partindo-se em escamas escuras como a carapaça de uma tartaruga monstruosa, branqueavam, aqui ali, os esqueletos do gado morto de sede e fome. Não se ouvia o pipilo de um pássaro ou o rumorejo de uma fronde. Apenas, de e em longe, quebrando a monotonia da solidão, um cardo abria as folhas sobre uma pedra, estendendo as mãos espinhentas e verdes, como se amaldiçoasse, mudo, as radículas que o acorrentavam. E nas caatingas mortas, o vento a investir contra os galhos secos, contra as flechas negras em que se haviam transformado os arbustos sem vida, como se, reconhecendo a sua culpa na extensão da calamidade, quisesse castigar-se, chicotear-se, flagelar-se com ele. E castigando-se, chicoteando-se, flagelando-se, corria, gemia, gania, levantando redemoinhos de poeira com os seus furiosos pés invisíveis. 
Enferma em casa, nos arrabaldes da vila, a velha Raimunda acompanhava sem surpresa nem revolta a marcha da Inimiga. Vira morrer no terreiro, estorcendo- se, o genro, como assistira à agonia do marido, vinte anos antes, na seca de 88. Dias depois, morreu-lhe também a filha. Homens piedosos levaram os dois corpos ao cemitério, deixando-a sozinha na choça, estirada, com febre, sobre uma suja esteira de carnaúba. 
À tarde, quando procurava raízes selvagens para comer, soubera, por umas mulheres retirantes, que a vila estava quase deserta. Os moradores mais resistentes e teimosos preparavam-se para fugir naquela noite, à primeira claridade da lua. Se ela não os acompanhasse na fuga, seria, em breve, magra e velha, o último pasto dos urubus esfomeados. 
Como lhe seria possível, porém, fugir, se não existia na palhoça um único pedaço de pano com que velasse a nudez? Como poderia aliar- se à caravana dos últimos fugitivos se vivia, há duas semanas, sem um molambo sequer, sobre a pele engelhada? Que amigos lhe suportariam a companhia incômoda se ela os envergonharia pelas estradas com o triste espetáculo da sua miséria? 
Um pensamento macabro iluminou-lhe, num clarão de relâmpago, o espírito brutalizado pela fome. Cadavérica e horrenda, com as falripas da cabeleira falha a tombar, grisalhas, sobre os ombros e as espáduas, onde os ossos furavam a pele suja, a velha encaminhou-se, cambaleando, para o casebre, levantou a custo a enxada de roça que pertencera ao genro, e tomou o caminho da várzea, onde os grilos trilavam aflitamente, anunciando a eclosão aérea das estrelas. 
Anoitecia, quando a velha, afastando com esforço duas estacas da cerca, penetrou no cemitério. Olhou em torno, com os olhos em febre. Aves agoureiras, espantadas, fugiram num vôo rasteiro. No Cruzeiro tosco, emergindo de um tumulto de montes de areia recentes, e de cruzes apressadas e rústicas, gargarejavam o seu canto noturno, saudando a treva, precursora silenciosa da Morte. 
Um frio súbito percorreu o corpo da megera, arrepiando-lhe os cabelos, que o suor empastava. Tomou, porém, da enxada, e parou, corajosa, diante de uma das sepulturas mais frescas, junto à porta da casa dos mortos. E pôs-se a cavar com fúria, num apelo desesperado às forças que lhe restavam. Ao balanço do seu corpo esguio, impelindo a enxada, os seios flácidos e compridos fustigavam- lhe as costelas e o ventre magro, oscilando, doidos, à semelhança de dois badalos sem eco de uma velha torre desmoronada. Os pés enfiavam-se pela areia frouxa, que o sol amornara. Os braços agitavam-se-lhe descompassados, secos, sem ritmo, precipitando os movimentos, num trabalho mecânico e diabólico. 
De repente, a enxada, soou, surda. Um cheiro de carniça desprendeu-se da terra, subiu, empestou o ambiente. A virago abaixou-se sobre a cova rasa, e puxou para cima, a custo, o leve cadáver que ali dormia. A noite havia caído, trevosa e lúgubre, impedindo que ela reconhecesse o defunto. Viu, apenas, que era corpo de mulher. Com os dedos trêmulos, percorreu-lhe, tateando, a cintura frágil, encharcada de uma umidade repugnante, 
desapertou-lhe a saia, que lhe puxou pelos pés, desabotoou-lhe o casaco frouxo, arrancou-o em dois safanões, e, amassando as duas peças de roupa, sem olhar para trás, passou, de novo, a cerca, e saiu, nua e suja de terra, a correr desesperadamente para a várzea, rumo da estrada por onde desciam, dia e noite, as levas de retirantes. 
Fatigada, tropeçou no esqueleto de uma alimária, e rolou por terra, a pequena distância do caminho. Desfaleceu. Quando recuperou os sentidos, por milagre das suas energias de ferro, era dia alto. Sentou-se na terra frouxa, e quente. Olhou em torno. E, os olhos fora das órbitas, escancarou a boca num grito que não teve forças para emitir. 
Ao seu lado, amarfanhados e fétidos, estavam embolados, em trouxa, a saia e o casaco da filha...

Contos do Sábado na Usina: Humberto de Campos:


O JURAMENTO 
- Nunca mais, meu prezado senhor, tive tranqüilidade na minha vida; e vinte séculos que viva, vinte existências que tenha na terra, serão para pagar com o remorso de cada dia, ou, antes, de cada noite, o horror daquela vingança! 
~ "Cap Finisterre" havia deixado, na véspera, o porto do Havre, quando travamos relações, eu e aquele cavalheiro, no "bar" do navio. Era um homem velho, magro, de grande ossatura, tipo de Quixote dos Pampas, a que não faltava, sequer, a barbicha comprida e rala, suja como a dos bodes. Não obstante os meses passados no clima suave da Europa, a sua pele conservava aquela tonalidade escura e áspera das feias do vento e do sol. Os olhos, miúdos, vivos, desconfiados, escondiam-se órbitas fundas, sob as sobrancelhas pesadas, como duas onças em duas furnas, mascaradas de erva grosseira. Chamava-se Ramon Gonzalez y Gonzalez, e era, dizia ele, industrial à margem do rio Bermejo, no extremo norte da Argentina. Possuía, ali, serrarias de madeira, além de algumas fazendas de gado, no sul, onde vivia ultimamente, em luta, sempre, com a natureza bravia. 
- O caso, porém, que me atormenta a vida, meu caro senhor, ocorreu no norte, há trinta anos. Eu tinha, então, quarenta. 
A noite estava linda, como, em geral, as noites de estio, ao largo da costa francesa, à entrada do Atlântico. Uma lasca de lua, fina e loura, tomava posse do céu, em nome de Maomé, dando-lhe, com as suas estrelas, a feição de grande pavilhão turco. De baixo, do bojo do navio, subia o ronco fatigado das máquinas, no esforço esclerótico das caldeiras. E, de quando em quando, o ruído fresco de uma vaga arrebentada no costado de ferro, e caindo de novo, em forma de chuva grossa, sobre as espumas de outra onda nascida para morrer. 
- Foi em Corrientes que eu a conheci, - começou o ancião, enquanto virava o seu terceiro "whisky and soda". - Filha de um velho amigo meu, era quase menina, quando a vi, na visita que fiz ao pai, meu antigo companheiro de colégio. E, ao regressar a Concepción dei Bermejo, onde ficavam as minhas propriedades, levava-a nos olhos, na alma, no coração. Chamava-se Consuelo, era cândida e fugitiva como as espumas deste oceano que rebenta lá fora. Tamanha foi, em suma, a impressão que me deixou, que, um mês depois, eu regressava a Corrientes, para pedir-lhe a mão, em casamento. 
- Casou... 
- Não; não casei. Consuelo não quis, e o pai, vendo-a vinte e quatro anos mais moça do que eu - ela andava pelos dezesseis - não a contrariou. Conformei-me com isso, mas pedi-lhes que se conservassem meus amigos; que me não esquecessem; que me olhassem como um parente; que me fossem, enfim, visitar em Concepción, para que não ficasse, de tudo aquilo, o menor ressentimento. Dentro em mim, porém, rugia o jaguar do egoísmo, o despeito do leão velho, que não pudera devorar, como sonhara, a corça tenra que vira na campina. Aquele coração havia de, um dia, pertencer-me. Era o meu juramento de morte. 
Bateu na mesa, com a sua grande mão de esqueleto, e pediu: 
- Garçon, outro "whisky" 
Limpou a boca com as costas das mãos, como quem está habituado a beber nas tavernas ou no campo, às pressas, sobre o dorso de um cavalo. E reatou: 
- No fim do ano, em Dezembro, foram a Concepción, visitar-me, o pai e a filha. Cerquei-os de gentilezas, de festas, de carinho. Fazíamos passeios longos, os três. E foi em um destes que se deu a desgraça. 
- A desgraça? 
- Sim, senhor. Tínhamos planejado uma visita ao alto Soledade, onde eu havia adquirido uma grande extensão de terras, para extração de madeiras. O senhor não conhece o alto Bermejo... Conhece? Era floresta virgem, soturna, impenetrada. Desembarcamos em Guahija, pequeno porto para exportação de lenha, e entramos pela mata, viajando a manhã toda. O senhor não imagina o que são aquelas matas! Eu tenho a impressão de que as selvas do seu Amazonas são assim. Árvores que dois homens não abarcam, cerram fileiras, uma ao lado da outra, numa extensão de centenas de quilômetros. E lá em cima, sobre esses milagres de colunas poderosas, é o toldo verde e fechado, que não deixa passar gota de chuva e que o sol só atravessa, ao meio-dia, em forma de claridade... E começava a entardecer, quando fomos assaltados pelos índios xurupinás, que são os mais terríveis toda a região. 
- E então? 
- Então, foi o infortúnio. Presos, manietados com cipós, fomos conduzidos ao acampamento dos indígenas, sete léguas diante, mato a dentro... E como me recordo, ainda, dessa travessia pela floresta, tarde toda, e depois, noite fechada! Olhos arregalados de terror, os pulsos arroxeados pelos cipós, Consuelo não tinha uma lágrima, e caminhava mais arrastada do que pelos seus próprios pés. Os cabelos, os seus lindos cabelos negros e fartos, libertos da opressão do chapéu de feltro, rolavam-lhe pelos ombros, pelo colo, pela testa, cobrindo-lhe, às vezes, o rosto todo. 
E abrindo um parêntese na narração: 
- O senhor já viu coisa que mais excite um homem, despertando-lhe toda a bestialidade, do que o corpo da mulher martirizada? Semi-nua, com os lindos seios morenos pulando quase da camisa esfarrapada, o colo arranhado, o rosto porejando sangue, pelo esforço físico e pelo pudor, Consuelo acordava-me na alma de namorado sem esperança um pensamento diabólico. Eu marchava para a morte, mas marchava calmo, resignado, feliz. Talvez não trocasse, naquele momento, aquele caminho, recoberto de espinhos dilacerantes, pelo mais florido da terra! 
Outra incidência: 
- Porque, o senhor sabe, acaso, o que é amar uma criatura, sabendo que nunca a possuirá? Já imaginou, porventura, o que é ver, saber, conhecer que a mulher que se ama, que se adora, e que nos despreza, vai cair nos braços de outro homem, dando a outrem, com o seu beijo, com a flor do seu corpo moço, a felicidade que sonhamos para nós? Se sabe, se imagina isso, pode compreender a minha serenidade, ao ver na iminência de ser destruída, sem crime da minha parte, e para sempre, a taça em que eu pretendia beber... Consuelo não seria minha, não me daria o seu beijo, o seu corpo, mas também, não pertenceria, nunca mais, a ninguém... 
Mergulhou as mãos, nervosamente, nos magros cabelos grisalhos, arrepiados no crânio, como penas da crista de um pavão, e reatou: 
- Antropófagos, os xurupinás devoraram, nesse mesmo dia, os dois homens da condução. No dia seguinte, pela manhã, comeram o meu amigo. Restávamos eu e Consuelo. 
Uma pausa, e tornou: 
- A mim, eu sabia que me não devorariam tão cedo. Eu estava abatido, cadavérico. A paixão vinha-me devorando, há meses, secretamente, como o fogo ao algodão. Estava quase ossificado. E eu sabia que o índio não come, nunca, a presa nessas condições. Prefere engordá-la, cevá-la, tratando-a durante semanas, durante um ano inteiro. 
- E a moça? 
- Consuelo era linda e forte. Vi quando a mataram, com uma pancada vigorosa no crânio... 
Como são feios os miolos, aparecendo, ensangüentados, entre a pasta dos cabelos!... Vi 
quando um dos seus seios, tão redondo, tão rígido, tombado do jirau, rolou na areia do chão, onde um velho cachorro o tomou nos dentes, indo devorá-lo escondido... Vi quando a esquartejaram, quando a retalharam, quando a distribuíram, em pedaços sangrentos. Impassível, como num sonho, eu via tudo. E Só despertei do meu pasmo, quando um dos índios, o chefe, que tostava o seu pedaço na fogueira fumarenta de gordura, me veio perguntar, em um gesto, que pedaço eu queria. Olhei as postas de carne fria, sobre as quais as moscas zumbiam, com fúria: a mão miúda, de dedos contraídos, em um dos quais estava, ainda, um anel que eu lhe dera; um dos pés, meio devorado e com as cartilagens penduradas; as entranhas, a cabeça quase esfacelada, pendurada a um esteio pelos cabelos; a sua perna; a sua coxa; um dos seus braços, o mais lindo que eu tenho visto... Indiquei um pedaço de carne roxa, que aparecia, repugnante, entre as vísceras, o qual me foi trazido, e que eu comecei, também, a devorar. 
Estremeceu todo, e concluiu, enquanto um arrepio de horror me sacudia: 
- Era o coração. Havia cumprido o meu juramento... 
E batendo, com força, na mesa
- "Garçon", outro duplo! 



Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo:


 

A “RÉCLAME’ III 

Para encurtar razões: Passos Nogueira e Laura foram por muito tempo, e não sei se continuam a ser, os amantes mais apaixonados que ainda houve. 
Ela nunca perdoou ao marido o mau passo que deu. Seria ainda hoje o modelo das esposas, se o comendador não se lembrasse de fazer réclame ao poeta. 
Este, por expressa recomendação da amante, nunca mais apareceu no caramanchão fatídico. Isto fez com que o marido tornasse às boas. Uma tarde perguntou: 
— Ó menina, então o poeta já ali não mora? 
— Não sei, respondeu Laura com uma deliciosa indiferença. Se se mudou, melhor! Um libertino daqueles! 
— Deixa-o lá, coitado! Muitas vezes são mais as vozes do que as nozes; 
— Que diabo! foi você mesmo quem falou da filha do despachante, da mulher do negociante e da viúva do coronel!... 
— Disseram-me. Este Rio de Janeiro, menina, é a terra da maledicência. Deus me livre de que alguém se lembre de espalhar por aí que eu roubei o sino de São Francisco.