sexta-feira, 6 de maio de 2022
Contos do Sábado na Usina: Humberto de Campos: O Caldo III:
Contos do Sábado na Usina: Machado de Assis: A mulher de Preto II:
Estêvão era o tipo
do rapaz sério. Tinha talento, ambição e vontade de saber, três armas poderosas
nas mãos de um homem que tenha consciência de si. Desde os dezesseis anos a sua
vida foi um estudo constante, aturado e profundo. Destinado ao curso médico,
Estêvão entrou na academia um pouco forçado; não queria desobedecer ao pai. A
sua vocação era toda para as matemáticas. Que importa? disse ele ao saber da
resolução paterna; estudarei a medicina e a matemática. Com efeito teve tempo
para uma e outra coisa; teve tempo ainda para estudar a literatura, e as
principais obras da antigüidade e contemporâneas eram-lhe tão familiares como
os tratados de operações e de higiene.
Para estudar tanto,
foi-lhe preciso sacrificar uma parte da saúde. Estêvão aos vinte e quatro anos
adquirira uma magreza, que não era a dos dezesseis; tinha a tez pálida e a
cabeça pendia-lhe um pouco para a frente pelo longo hábito da leitura. Mas
esses vestígios de uma longa aplicação intelectual não lhe alteraram a
regularidade e harmonia das feições, nem os olhos perderam nos livros o brilho
e a expressão. Era além disso naturalmente elegante, não digo enfeitado, que é
coisa diferente: era elegante nas maneiras, na atitude, no sorriso, no trajo,
tudo mesclado de uma certa severidade que era o cunho do seu caráter. Podia-se
notar-lhe muitas infrações ao código da moda; ninguém poderia dizer que ele
faltasse nunca às boas regras do gentleman.
Perdera os pais aos
vinte anos, mas ficara-lhe bastante juízo para continuar sozinho a viagem do
mundo. O estudo serviu-lhe de refúgio e bordão. Não sabia nada do que era o
amor. Ocupara-se tanto com a cabeça que esquecera-se de que tinha um coração
dentro do peito. Não se infira daqui que Estêvão fosse puramente um
positivista. Pelo contrário, a alma dele possuía ainda em toda a plenitude da
graça e da força, as duas asas que a natureza lhe dera. Não raras vezes rompia
ela do cárcere da carne para ir correr os espaços do céu, em busca de não sei
que ideal mal definido, obscuro, incerto. Quando voltava desses êxtases,
Estêvão curava-se deles enterrando-se nos volumes à cata de uma verdade
científica. Newton era-lhe o antídoto de Goethe.
Além disso, Estêvão
tinha idéias singulares. Havia um padre, amigo dele, rapaz de trinta anos, da
escola de Fénelon, que entrava com Telêmaco na ilha de Calipso. Ora, o padre
dizia muitas vezes a Estêvão, que só uma coisa lhe faltava para ser completo:
era casar-se.
-
Quando você tiver, dizia-lhe, uma mulher amada e
amante ao pé de si, será um homem feliz e completo. Dividirá então o tempo entre
as duas coisas mais elevadas
que a natureza deu ao homem,
a inteligência e o coração. Nesse dia quero eu mesmo casá-lo...
-
Padre Luiz, respondia
Estêvão, faça-me então o serviço
completo: traga-me a mulher e a bênção. O padre sorria-se ao ouvir a
resposta do médico, e como o sorriso parecia a Estêvão uma nova pergunta, o
médico continuava:
-
Se encontrar uma mulher tão completa como eu exijo,
afirmo-lhe que me casarei. Dirá que as obras humanas são imperfeitas, e eu não
contestarei, padre Luiz; mas nesse caso deixe-me caminhar só com as minhas imperfeições.
Daqui engendrava-se sempre uma discussão, que se animava
e crescia até o ponto
em que Estêvão concluía por este modo:
-
Padre Luiz, uma menina que deixa as bonecas para ir
decorar mecanicamente alguns livros mal escolhidos; que interrompe uma lição
para ouvir contar uma cena de namoro; que em matéria de arte só conhece os
figurinos parisienses; que deixa as calças para entrar no baile, e que antes de
suspirar por um homem, examina-lhe a correção da gravata, e o apertado
do botim; padre Luiz, esta menina pode vir a ser um esplêndido
ornamento de salão e até uma fecunda mãe de família, mas nunca será uma mulher.
Esta sentença de
Estêvão tinha o defeito de certas regras absolutas. Por isso, o padre dizia-lhe
sempre:
-
Tem você razão;
mas eu não lhe digo que case com a regra; procure
a exceção que há de encontrar
e leve-a ao altar, onde eu estarei para os unir.
Tais eram os
sentimentos de Estêvão em relação ao amor e à mulher. A natureza dera-lhe em
parte esses sentimentos; mas em parte adquiriu-os ele nos livros. Exigia a
perfeição intelectual e moral de uma Heloísa; e partia da exceção para
estabelecer uma regra. Era intolerante para os erros veniais. Não os reconhecia
como tais. Não há erro venial, dizia ele, em matéria de costumes e de amor.
Contribuíra para
esta rigidez de ânimo o espetáculo da própria família de Estêvão. Até aos vinte
anos foi ele testemunha do que era a santidade do amor mantido pela virtude
doméstica. Sua mãe, que morrera com trinta e oito anos, amou o marido até os
últimos dias, e poucos meses lhe sobreviveu. Estêvão soube que fora ardente e
entusiástico o amor de seus pais, na estação do noivado, durante a manhã
conjugal: conheceu-o assim por tradição; mas na tarde conjugal a que ele
assistiu viu o amor calmo, solícito e confiante, cheio de dedicação e respeito,
praticado como um culto; sem recriminações nem pesares, e tão profundo como no
primeiro dia. Os pais de Estêvão morreram amados e felizes, na tranqüila serenidade
do dever.
No ânimo de
Estêvão, o amor que funda a família devia ser aquilo ou não seria nada. Era
justiça; mas a intolerância de Estêvão começava na convicção que ele tinha de
que com a dele morrera a última família, e fora com ela a derradeira tradição
do amor. Que era preciso para derrubar todo este sistema, ainda que momentâneo?
Uma coisa pequeníssima: um sorriso e dois olhos.
Mas como esses dois
olhos não apareciam, Estêvão entregava-se na mor parte do tempo aos seus
estudos científicos, empregando as horas vagas em algumas distrações que o não
prendiam por muito tempo.
Morava só; tinha um escravo, da mesma idade que ele, e cria da casa do pai, - mais irmão do que
escravo, na dedicação e no afeto. Recebia
alguns amigos, a quem visitava
de quando em quando,
entre os quais incluímos o jovem padre Luiz, a quem Estêvão chamava - Platão de sotaina.
Naturalmente bom e
afetuoso, generoso e cavalheiresco, sem ódios nem rancores, entusiasta por
todas as coisas boas e verdadeiras, tal era o Dr. Estêvão Soares, aos vinte e
quatro anos de idade. Do seu retrato físico já dissemos alguma coisa. Bastará
acrescentar que tinha uma bela cabeça, coberta de bastos cabelos castanhos,
dois olhos da mesma cor, vivos e observadores; a palidez do rosto fazia realçar
o bigode naturalmente encaracolado. Era alto e tinha mãos admiráveis.
Contos do Sábado na Usina: Humberto de Campos: O Caldo II: