A DESCIDA AO INFERNO
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Continuo a viajar pelo espaço e pelo tempo
já cansado, retiro a seringa e a borracha do braço
e deixo-me adormecer
acordo num absoluto deserto de areia vermelha,
debaixo de um sol abrasador
devagar levanto-me, visto-me, calço-me, coloco os
óculos de sol e ajusto o relógio ao pulso
estou pronto para percorrer os túneis basálticos
que me esperam sob a areia vermelha
sinto a florescência a aumentar… ao avançar…
a temperatura desce…
mais luz e menos calor perturba-me os sentidos
sento-me numa poltrona de pedra preta
duas sereias aproximam-se para me satisfazerem
desejos íntimos
secretos segredos que possuo há muito…
uma acende-me o cohiba e a outra gela-me o vodka…
muitos séculos depois ergo-me, para me voltar a
sentar e agora disposto a ouvir conselhos
mas só sinto um cobertor, um cachecol e um empurrão
para baixo
assim desço por lisas escadas de pedra… até ao
inferno…
aqui o café é sempre quente e os cigarros não se
pagam nem se apagam
as doenças venéreas não são sexualmente
transmissíveis,
aqui não se veem crianças com fome ou velhos sem
teto,
nem sequer animais abandonados…
é só o frio…
só o frio…
por isso, as sereias, antes de me empurrarem
cobriram-me com um cobertor e ofereceram-me um cachecol
sou um só espírito, mas muitos pecados
acompanham-me
o purgatório era uma macia poltrona de basalto,
aonde eu fumava e bebia, com sereias
mas o inferno não é, nem escuro nem quente
é tão claro que cega todos os sentidos
totalmente branco e completamente gelado…
o vazio é tão grande que só recordo o desejo de
esquecer
e jamais me lembro de o fazer.. .
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M.PIPER