sexta-feira, 18 de junho de 2021

Contos Do Sábado Na Usina: Roberto Drummond: ATO Nº 2 :


(Entressonho: fragmento do monólogo do "Diário de Paris", escrito por D.J. e descoberto pela testemunha nº 2, um jovem repórter que, ao ser perguntado pelo promotor público sobre os manuscritos de D.J., respondeu: "prefiro não revelar minhas fontes de informação". Estranhos fatos começaram a acontecer ao repórter e uma moça que era a feia mais linda do mundo esperou e esperou por ele num barzinho e soube que ele havia sido internado numa clínica, com um esgotamento nervoso.) Toda manhã, lá no seu país, você acordava e ah! como você procurava alguma coisa dela no canto da cama; podia ser um calor a mais deixado no travesseiro, um fio de cabelo, quem sabe o pé de sapato esquecido. Nada: dela, só um gosto de solidão na garganta. E, no entanto, ainda agora, ela

estava ali: você sentiu o dela no seu. Ela chegou de azul como numa noite em que prendeu o sapato na falha de um passeio. Por que será que, ultimamente, ela sempre aparecia de azul? Sem saber por quê, você saía da cama, deixava para amanhã meia hora de ginástica, e repetia: "Se eu não for a Paris mês que vem, não quero me chamar D. J.".

Você descia a escada para tomar o café. Sua irmã Maria Mariana ou

Marimá, que jamais casou, fazia sonhos e os adoçava com açúcar para o café da manhã. Você comia sonhos, D. J., e tomava leite de vaca pensando no leite de cabra que vendiam no Quartier Latin. E, às 6 e 25 em ponto, andando a pé com seu sapato precisando de meia-sola, você ia dar aula no Colégio Dom Bosco. Como toda manhã, passava por um jardim que te fazia pensar

no Jardin du Luxembourg. Alguém gritava: "Quer uma carona, D. J. ?" "Não, obrigado", você respondia. E andava com seu sapato precisando de

meia-sola, sentindo o asfalto fazer cócega na planta do seu pé, e pensava: sou

o   único professor que ainda não está motorizado. Consolava-se um pouco por ter lido nem sabia onde que andar a pé era antienfarte. E uma voz de frevo tocando dizia: "Você precisa pedir um aumento..." Você via "le petit fleuve" que cortava sua cidade e que não era o Sena, atravessava uma ponte que não era a Pont Neuf e nem a Pont de l'Alma, e um barulho como de

uma metralhadora soltando foguete vinha andando atrás de você. Duas vozes gritavam: "D. J., tudo oká?" Era Fernando Paulo na motocicleta, com Vera Sílvia na garupa: ele de cabelos na ventania, ela de minissaia. Você acenava pros dois e sentia que estava acenando e sorrindo para seus verdes anos que passavam com Fernando Paulo e Vera Sílvia.

Um fogo de palha de mocidade acendia em você e você andava mais

depressa com seu sapato precisando de meia-sola, decidia: "Hoje vou pedir aumento". Imaginava a conversa com o Senhor Diretor do Colégio Dom

Bosco que tinha voz de locutor ou de galã de radionovela. Você: - "Sabe o que eu quero, Senhor Diretor?" Senhor Diretor: - "Suponho que sim, mas...

Você: - "Não tem mas: quero um aumento, quase todos ganharam, só eu e mais dois que não, exijo um aumento...

Senhor Diretor - "Calma, D. J., você se esquece que está substituindo

o professor Valle na cadeira de geografia, esquece que está ganhando o salário dele...

Você: - "Perdão, Senhor Diretor, mas o professor Valle foi a Guarujá

e daqui a cinco ou seis dias está de volta, exijo o aumento, senão vou para Paris e...

Senhor Diretor: - "Paris, Paris é ilusão, D. J., um pedaço de papel colorido, puro pedaço de papel..."

E, assim, com seu sapato precisando de meia-sola, você entrava no gabinete de ar refrigerado do Senhor Diretor do Colégio Dom Bosco.

"Bom dia, Senhor Diretor", você dizia e olhava para os outros professores. "Olá, pessoal..."

"Quando a sirene tocar o início das aulas", você dizia a você, "fico só com o Senhor Diretor e exijo meu aumento". Enquanto esperava, você discutia futebol, todas as manhãs vocês discutiam futebol: o novo rei está nascendo, quem é?, ainda pergunta?: o Tostão, deixa de sonho, professor Rui: igual ao Pelé não nasce outro em cem anos, é? e o Garrincha?, Garrincha foi melhor que o Pelé, nunca, jamais, em tempo algum, voz da professora Magda: Pelé é o único, o rei dos reis, espera pra ver, Magda, o Tostão vai fazer 90 milhões de brasileiros esquecerem o Pelé, duvido, vendo: o Pelé é gênio, e o Tostão?, não é gênio?, não ouviu o que o Saldanha falou na TV, ssssss, o Senhor Diretor parece que vai falar: silêncio: sssssss- voz de ocutor

ou galã de radionovela: vocês discutem sobre Pelé e Tostão porque não viram El Tigre jogar, quem era El Tigre?, lastimo, professora Maria Rita, que a senhora não saiba: El Tigre era Friedenreich, filho de um alemão e de uma mulata brasileira, o soberbo, melhor que Pelé e Tostão - Senhor Diretor: Friedenreich é aquele que matou um goleiro com um chute?, quando eu era menino contavam a história - ele mesmo, professor Souza, El Tigre, o soberbo - e um a um vocês iam concordando que igual a El Tigre nunca houve nem haverá, e você sentia que era melhor deixar o pedido de aumento para amanhã, vingava-se imaginando o Senhor Diretor lendo anúncios, com sua voz de locutor, na Rádio Nacional: "Olá, como se sente: clima quente, rim doente? Tome Urodonal e viva contente!" E vocês saíam do gabinete do Senhor Diretor, dizendo: "Como ele gosta de futebol, hein?, é uma excelente pessoa o Senhor Diretor..."

Tocava a sirene: a sirene era a sua música, confesse, D. J., agora que você está em Paris: a sirene chamava para a aula e era a sua música por causa de Vera

Sílvia que mordia a boca como menina, com uns dentinhos separados e ficava vermelha quando você, sim, você, a olhava muito: você olhava a minissaia de Vera Sílvia, as pernas morenas de Vera Sílvia, pensava em outras pernas morenas,

olhava os joelhos de Vera Sílvia, pensava nuns outros joelhos, e não era no fundo

dos olhos de Vera Sílvia que olhava para dentro que você se perdia: você se perdia

nuns outros olhos, no limite do Brasil com Paris. (Confissão que você fez a Vera Sílvia e a Fernando Paulo na cantina do Colégio Dom Bosco:

"Vocês não sabem o que é ter estudado interno cinco anos num colégio

de padres jesuítas: chegava a Semana Santa e a gente se sentia culpado pela morte de Jesus Cristo...")

E, de noite, você ia ao bar "Flor de Minas", e os trens apitavam e você falava na "femme bleue", depois ia para casa, virava na cama, com a "femme bleue" engasgada na garganta. Até que você transformou o sótão do sobrado onde morava numa Paris de papel. Deixou aberta uma janela no teto, para as estrelas de Paris, e foi pregando cartazes turísticos e posters do Quartier Latin. Num biombo que fazia curvas, o Sena veio andando, trazia num "bateau-mouche" um casal de namorados acenando numa página dupla do "Paris Match", e o Sena foi cortando sua Paris ao meio: aqui o Quai D'Orsay, ali o Quai du Louvre, dividindo sua Paris em Rive Gauche e Rive Droitc. na Rive Gauche, que é a do meu coração, que eu vou morar... Depois nasceu um Jardin du Luxembourg, com estudantes conversando, surgiu mais para lá a Sorbonne tão sonhada, o café Les Deux Magots apareceu na parede: você escutava as conversas dos que bebiam. E quando

os pombos começaram a voar na tle de St. Louis e a primavera pulou na capa do "Paris Match", você abraçou amigos, anotou as encomendas de cada um num caderninho de capa azul, fechou a porta de Paris e, de lá, começou a mandar cartas para o Brasil.

 "Paris, coeur du monde, 29 de abril de 1969. Antoine, mon cher:

Vive Paris! Vive la vie!

Aqui estou, Antoine: depois de adiar minha vinda nem lembro quantos anos, aqui estou, em Paris! Quando o Boeing em que eu viajava desceu em Orly, e eu vi Paris, pensei que fosse sonho: mas meu Gauloises me queimou o dedo e eu senti que era verdade. Aluguei um quarto num simpatico. hotelzinho, o Saint Michel, no BoulMich, a dois quarteirões da Sorbonne. A lamentar, só que peguei a Febre da Primavera, fiquei dois dias de cama e ainda não vi a "femme bleue"...

Etc., etc., etc.


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