(Entressonho: fragmento do monólogo do "Diário de Paris", escrito por D.J. e descoberto pela testemunha nº 2, um jovem repórter que, ao ser perguntado pelo promotor público sobre os manuscritos de D.J., respondeu: "prefiro não revelar minhas fontes de informação". Estranhos fatos começaram a acontecer ao repórter e uma moça que era a feia mais linda do mundo esperou e esperou por ele num barzinho e soube que ele havia sido internado numa clínica, com um esgotamento nervoso.) Toda manhã, lá no seu país, você acordava e ah! como você procurava alguma coisa dela no canto da cama; podia ser um calor a mais deixado no travesseiro, um fio de cabelo, quem sabe o pé de sapato esquecido. Nada: dela, só um gosto de solidão na garganta. E, no entanto, ainda agora, ela
estava ali: você sentiu
o pé dela no seu. Ela chegou
de azul como numa noite em que prendeu o sapato na falha de
um passeio. Por que será que, ultimamente, ela sempre aparecia de azul? Sem saber
por quê, você saía da cama, deixava para amanhã meia hora de ginástica, e repetia: "Se
eu não for a Paris mês que vem, não quero me chamar D. J.".
Você
descia a escada para tomar o café. Sua irmã Maria
Mariana ou
Marimá,
que jamais casou, fazia sonhos e os adoçava com açúcar para o café da manhã. Você comia sonhos, D. J.,
e tomava leite de vaca pensando no leite de cabra
que vendiam no Quartier Latin.
E, às 6 e 25 em ponto,
andando a pé com seu sapato precisando de meia-sola, você ia dar aula no Colégio Dom Bosco. Como
toda manhã, passava por um jardim que te
fazia pensar
no
Jardin du Luxembourg. Alguém gritava: "Quer uma carona, D. J. ?"
"Não, obrigado", você respondia. E andava com seu sapato precisando de
meia-sola,
sentindo o asfalto fazer cócega na planta do
seu pé, e pensava: sou
o único
professor que ainda não está motorizado. Consolava-se um pouco por ter lido nem
sabia onde que andar a pé era antienfarte. E uma voz de frevo tocando dizia:
"Você precisa pedir um aumento..." Você via "le petit fleuve" que cortava sua
cidade e que não era o Sena, atravessava
uma ponte que não era a Pont Neuf e
nem a Pont de l'Alma, e um barulho
como de
uma
metralhadora soltando foguete vinha andando atrás
de você. Duas vozes gritavam: "D. J., tudo oká?" Era Fernando Paulo
na motocicleta, com Vera Sílvia na garupa:
ele de cabelos na ventania, ela de minissaia. Você
acenava pros dois e sentia que estava acenando
e sorrindo para seus verdes anos que
passavam com Fernando Paulo e Vera Sílvia.
Um
fogo de palha de mocidade acendia em você e você andava mais
depressa
com seu sapato precisando de meia-sola, decidia: "Hoje vou pedir
aumento". Imaginava a conversa com o Senhor Diretor do Colégio Dom
Bosco que tinha voz de locutor ou de galã de radionovela. Você: - "Sabe o que eu quero, Senhor Diretor?" Senhor Diretor: - "Suponho que sim, mas...
Você:
- "Não tem mas: quero um aumento, quase todos ganharam, só eu e mais dois
que não, exijo um aumento...
Senhor
Diretor - "Calma, D. J., você se esquece que está substituindo
o professor Valle na cadeira
de geografia, esquece
que está ganhando
o salário dele...
Você:
- "Perdão, Senhor Diretor, mas o professor Valle foi a Guarujá
e daqui a cinco ou seis dias está de volta, exijo o aumento, senão vou para Paris e...
Senhor
Diretor: - "Paris, Paris é ilusão, D. J., um pedaço de papel colorido,
puro pedaço de papel..."
E, assim, com
seu sapato precisando de meia-sola, você entrava
no gabinete de ar refrigerado do Senhor Diretor do Colégio Dom Bosco.
"Bom
dia, Senhor Diretor", você dizia e olhava para os outros professores. "Olá, pessoal..."
"Quando
a sirene tocar o início das aulas", você dizia
a você, "fico só com o Senhor Diretor e exijo meu aumento".
Enquanto esperava, você discutia futebol, todas as manhãs vocês discutiam
futebol: o novo rei está nascendo,
quem é?, ainda pergunta?: o Tostão, deixa de sonho, professor Rui: igual
ao Pelé não nasce outro
em cem anos, é? e o Garrincha?, Garrincha foi melhor que o Pelé, nunca, jamais, em tempo algum, voz da professora Magda: Pelé é o
único, o rei dos reis, espera pra ver, Magda,
o Tostão vai fazer 90 milhões de brasileiros esquecerem o Pelé, duvido,
só vendo: o Pelé
é gênio, e o Tostão?,
não é gênio?, não ouviu o que o Saldanha
falou na TV, ssssss, o Senhor Diretor parece que
vai falar: silêncio: sssssss- voz de
ocutor
ou galã de radionovela: vocês discutem sobre Pelé e Tostão porque não viram El Tigre jogar, quem era El Tigre?,
lastimo, professora Maria Rita, que a senhora não saiba: El Tigre era
Friedenreich, filho de um alemão e de uma mulata brasileira, o soberbo, melhor
que Pelé e Tostão - Senhor Diretor:
Friedenreich é aquele que matou um goleiro com um chute?, quando eu era menino
contavam a história - ele mesmo, professor Souza,
El Tigre, o soberbo - e um a um vocês iam concordando que igual a El
Tigre nunca houve nem haverá, e você sentia que era melhor deixar o pedido de aumento para amanhã,
vingava-se imaginando o Senhor Diretor lendo anúncios, com sua voz de locutor,
na Rádio Nacional: "Olá, como se sente:
clima quente, rim doente? Tome Urodonal e viva contente!" E vocês saíam do
gabinete do Senhor Diretor, dizendo:
"Como ele gosta de futebol,
hein?, é uma excelente
pessoa o Senhor Diretor..."
Tocava a sirene: a sirene era a sua música, confesse, D. J., agora que você está em Paris: a sirene chamava
para a aula e era a sua música por causa de Vera
Sílvia
que mordia a boca como menina, com uns dentinhos separados e ficava vermelha quando você, sim, você, a olhava muito: você olhava a minissaia de Vera Sílvia, as pernas morenas de Vera Sílvia,
pensava em outras pernas morenas,
olhava os joelhos de Vera Sílvia,
pensava nuns outros joelhos, e não era no
fundo
dos olhos de Vera Sílvia que olhava para dentro que você se perdia: você se
perdia
nuns outros olhos, no limite do Brasil com Paris. (Confissão que você fez a Vera Sílvia e a Fernando Paulo na cantina do Colégio Dom Bosco:
"Vocês
não sabem o que é ter estudado interno cinco anos num colégio
de padres
jesuítas: chegava a Semana Santa
e a gente se sentia culpado
pela morte de Jesus Cristo...")
E, de noite, você ia ao bar "Flor de Minas", e os trens apitavam e você falava na "femme bleue", depois ia para casa, virava na cama, com a "femme bleue" engasgada na garganta. Até que você transformou o sótão do sobrado onde morava numa Paris de papel. Deixou aberta uma janela no teto, para as estrelas de Paris, e foi pregando cartazes turísticos e posters do Quartier Latin. Num biombo que fazia curvas, o Sena veio andando, trazia num "bateau-mouche" um casal de namorados acenando numa página dupla do "Paris Match", e o Sena foi cortando sua Paris ao meio: aqui o Quai D'Orsay, ali o Quai du Louvre, dividindo sua Paris em Rive Gauche e Rive Droitc. na Rive Gauche, que é a do meu coração, que eu vou morar... Depois nasceu um Jardin du Luxembourg, com estudantes conversando, surgiu mais para lá a Sorbonne tão sonhada, o café Les Deux Magots apareceu na parede: você escutava as conversas dos que bebiam. E quando
os
pombos começaram a voar na tle de St. Louis e a primavera pulou na capa do "Paris Match", você
abraçou amigos, anotou as encomendas de cada um num caderninho de capa azul,
fechou a porta de Paris e, de lá,
começou a mandar cartas para o Brasil.
Vive
Paris! Vive la vie!
Aqui
estou, Antoine: depois de adiar minha vinda nem
lembro quantos anos, aqui estou, em Paris! Quando o Boeing em que eu
viajava desceu em Orly, e eu vi
Paris, pensei que fosse sonho: mas meu Gauloises
me queimou o dedo e eu senti que era verdade. Aluguei um quarto num simpatico. hotelzinho, o Saint Michel, no BoulMich, a dois
quarteirões da Sorbonne. A lamentar, só que peguei a Febre da Primavera, fiquei dois dias de cama e ainda não vi a
"femme bleue"...
Etc.,
etc., etc.
Nenhum comentário:
Postar um comentário