domingo, 11 de novembro de 2012

Poema: Ultima Folha: Fernando Pessoa.



Musa, desce do alto da montanha
Onde aspiraste o aroma da poesia,
E deixa ao eco dos sagrados ermos
A última harmonia.
Dos teus cabelos de ouro, que beijavam
Na amena tarde as virações perdidas,
Deixa cair ao chão as alvas rosas
E as alvas margaridas.
Vês? Não é noite, não, este ar sombrio
Que nos esconde o céu. Inda no poente
Não quebra os raios pálidos e frios
O sol resplandecente.
Vês? Lá ao fundo o vale árido e seco
Abre-se, como um leito mortuário;
Espera-te o silêncio da planície,
Como um frio sudário.
Desce. Virá um dia em que mais bela,
Mais alegre, mais cheia de harmonias,
Voltes a procurar a voz cadente
Dos teus primeiros dias.
Então coroarás a ingênua fronte
Das flores da manhã, — e ao monte agreste,
Como a noiva fantástica dos ermos,
Irás, musa celeste!
Então, nas horas solenes
Em que o místico himeneu
Une em abraço divino
Verde a terra, azul o céu;
Quando, já finda a tormenta
Que a natureza enlutou,
Bafeja a brisa suave
Cedros que o vento abalou;
E o rio, a árvore e o campo,
A areia, a face do mar,
Parecem, como um concerto,
Palpitar, sorrir, orar;
Então sim, alma de poeta,
Nos teus sonhos cantarás
A glória da natureza
A ventura, o amor e a paz!
Ah! mas então será mais alto ainda;
Lá onde a alma do vate
Possa escutar os anjos,
E onde não chegue o vão rumor dos homens;
Lá onde, abrindo as asas ambiciosas,
Possa adejar no espaço luminoso,
Viver de luz mais viva e de ar mais puro,
Fartar-se do infinito!
Musa, desce do alto da montanha
Onde aspiraste o aroma da poesia,
E deixa ao eco dos sagrados ermos
A última harmonia.

sábado, 3 de novembro de 2012

Poema: Fui, sou ou serei.


Sendo o que sou
Diante do que me poderia ser
Mas não sendo.

E ao mesmo tempo sendo o que fui
Mas que talvez não pudesse ter sido.

Traz-me o desejo de saber
O que seria se eu não fosse.

Assim sendo, serei sempre o que fui o Que sou e o que poderei ser.
Com a certeza do ontem, o viver do hoje e a possibilidade do amanhã.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Machado de Assis, poema: Erro.

Erro é teu. Amei-te um dia
Com esse amor passageiro
Que nasce na fantasia
E não chega ao coração;
Não foi amor, foi apenas
Uma ligeira impressão;
Um querer indiferente,
Em tua presença, vivo,
Morto, se estavas ausente,
E se ora me vês esquivo,
Se, como outrora, não vês
Meus incensos de poeta
Ir eu queimar a teus pés,
É que, — como obra de um dia,
Passou-me essa fantasia.
Para eu amar-te devias
Outra ser e não como eras.
Tuas frívolas quimeras,
Teu vão amor de ti mesma,
Essa pêndula gelada
Que chamavas coração,
Eram bem fracos liames
Para que a alma enamorada
Me conseguissem prender;
Foram baldados tentames,
Saiu contra ti o azar,
E embora pouca, perdeste
A glória de me arrastar
Ao teu carro... Vãs quimeras!
Para eu amar-te devias
Outra ser e não como eras...

Fonte: www.dominiopublico.com.br


quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Poema:Navegar no mar de verdades.



Navegar no mar de pensamentos
Fluir nos ventos,
No mar que não se vê
Que não se perde
Que não se morre
Que não se move
Um mar de alegria e de felicidade.

Um dia para a saudade
Um mar de ventos leves
Um mar de tristezas de ventos
Que roça nas mesas
De um mar revolto de ventos cortantes
Amores errantes.

Que tristeza é estar num mar de maldade sem felicidade
Num mar de saudade, mas com vontade
De estar de verdade num mar de solidão.
Mas poder pegar tua mão e rolar no chão

Num mar de paixão.
Flutuar no mar de verdades
E sem maldade ou razão de finalmente voltar ao chão.
Chão que demora ou mesmo devora uma paixão de outrora.

Navegar de verdade, mas com saudade
De um mar de amizade
Navegar talvez num mar de saudade
Ou mesmo a verdade seria

Navegar todo dia
Nas ondas deste corpo quente

Neste mar de serpente
Que nem mesmo a gente sente.
Navegar num mar de outrora
Que nem mesmo agora seria
Igual navegar no céu
Neste leito de mel.

Navegar neste corpo suado
Até ficar cansado de te ver
Murmurar, ou talvez navegar novamente
Mesmo somente para te saciar de ternura nesta margem Escura de paixão.

Navegar sem morrer
Pra viver intensamente
Esta grande loucura.
Navegar nos teus seios
Ou talvez em outros meios
Sem nenhum pudor.

Saciar nos teus beijos
Um grande desejo de te navegar
Todo dia, como uma poesia
Que não vai terminar.
Ou talvez navegar outra vez
Nos teus pensamentos intensos,
Ou lentos.

Seria cruel provar do fel
Da solidão que devora
Mesmo sem demora e
Quem sabe navegar
Nos teus sonhos com desejos estranhos
E finalmente navegar a gente.

Este amor ardente ou quem sabe talvez
Navegar nos desejos de outrora.
Que assim nos devora
Mesmo sem demora
E nos faz transpirar de paixão.

Rolar na lama
Como se fosse a mais bela cama,
E assim esperar em poder navegar
Neste mar de verdades
Seria maldade não te navegar.

Fonte: "O Grito da Alma" Poesias e pensamentos" D'Araujo.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Traduções; Fernando Pessoa: Annabel Lee.

Annabel Lee:

(de Edgar Allan Poe).

Foi há muitos e muitos anos já,
Num reino de ao pé do mar.
Como sabeis todos, vivia lá
Aquela que eu soube amar;
E vivia sem outro pensamento
Que amar-me e eu a adorar.
Eu era criança e ela era criança,
Neste reino ao pé do mar;
Mas o nosso amor era mais que amor -
O meu e o dela a amar;
Um amor que os anjos do céu vieram
a ambos nós invejar.
E foi esta a razão por que, há muitos anos,
Neste reino ao pé do mar,
Um vento saiu duma nuvem, gelando
A linda que eu soube amar;
E o seu parente fidalgo veio
De longe a me a tirar,
Para a fechar num sepulcro
Neste reino ao pé do mar.
E os anjos, menos felizes no céu,
Ainda a nos invejar...
Sim, foi essa a razão (como sabem todos,
Neste reino ao pé do mar)
Que o vento saiu da nuvem de noite
Gelando e matando a que eu soube amar.
Mas o nosso amor era mais que o amor
De muitos mais velhos a amar,
De muitos de mais meditar,
E nem os anjos do céu lá em cima,
Nem demônios debaixo do mar
Poderão separar a minha alma da alma
Da linda que eu soube amar.
Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Da linda que eu soube amar;
E as estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda que eu soube amar;
E assim 'stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar.

Fonte: www.dominiopublico.com.br

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Machado de Assis: Conto:O CASO DA VARA.

O CASO DA VARA:


Damião fugiu do seminário às onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto.
Não sei bem o ano; foi antes de 1850. Passados alguns minutos parou vexado;
não contava com o efeito que produzia nos olhos da outra gente aquele
seminarista que ia espantado, medroso, fugitivo. Desconhecia as ruas, andava e
desandava; finalmente parou. Para onde iria? Para casa, não; lá estava o pai que
o devolveria ao seminário, depois de um bom castigo. Não assentara no ponto de
refúgio, porque a saída estava determinada para mais tarde; uma circunstância
fortuita a apressou. Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, João Carneiro, mas o
padrinho era um moleirão sem vontade, que por si só não faria coisa útil. Foi ele
que o levou ao seminário e o apresentou ao reitor:
— Trago-lhe o grande homem que há de ser, disse ele ao reitor.
— Venha, acudiu este, venha o grande homem, contanto que seja também
humilde e bom. A verdadeira grandeza é chã. Moço...
Tal foi a entrada. Pouco tempo depois fugiu o rapaz ao seminário. Aqui o vemos
agora na rua, espantado, incerto, sem atinar com refúgio nem conselho; percorreu
de memória as casas de parentes e amigos, sem se fixar em nenhuma. De
repente, exclamou:
— Vou pegar-me com Sinhá Rita! Ela manda chamar meu padrinho, diz-lhe que
quer que eu saia do seminário... Talvez assim...
Sinhá Rita era uma viúva, querida de João Carneiro; Damião tinha umas idéias
vagas dessa situação e tratou de a aproveitar. Onde morava? Estava tão
atordoado, que só daí a alguns minutos é que lhe acudiu a casa; era no Largo do
Capim.
— Santo nome de Jesus! Que é isto? bradou Sinhá Rita, sentando-se na
marquesa, onde estava reclinada.
Damião acabava de entrar espavorido; no momento de chegar à casa, vira passar
um padre, e deu um empurrão à porta, que por fortuna não estava fechada a
chave nem ferrolho. Depois de entrar espiou pela rótula, a ver o padre. Este não
deu por ele e ia andando.
— Mas que é isto, Sr. Damião? bradou novamente a dona da casa, que só agora o
conhecera. Que vem fazer aqui?
Damião, trêmulo, mal podendo falar, disse que não tivesse medo, não era nada; ia
explicar tudo.
— Descanse; e explique-se.
— Já lhe digo; não pratiquei nenhum crime, isso juro; mas espere.
Sinhá Rita olhava para ele espantada, e todas as crias, de casa, e de fora, que
estavam sentadas em volta da sala, diante das suas almofadas de renda, todas
fizeram parar os bilros e as mãos. Sinhá Rita vivia principalmente de ensinar a
fazer renda, crivo e bordado. Enquanto o rapaz tomava fôlego, ordenou às
pequenas que trabalhassem, e esperou. Afinal, Damião contou tudo, o desgosto
que lhe dava o seminário; estava certo de que não podia ser bom padre; falou
com paixão, pediu-lhe que o salvasse.
— Como assim? Não posso nada.
— Pode, querendo.
— Não, replicou ela abanando a cabeça; não me meto em negócios de sua família,
que mal conheço; e então seu pai, que dizem que é zangado!
Damião viu-se perdido. Ajoelhou-se-lhe aos pés, beijou-lhe as mãos, desesperado.
— Pode muito, Sinhá Rita; peço-lhe pelo amor de Deus, pelo que a senhora tiver
de mais sagrado, por alma de seu marido, salve-me da morte, porque eu matome,
se voltar para aquela casa.
Sinhá Rita, lisonjeada com as súplicas do moço, tentou chamá-lo a outros
sentimentos. A vida de padre era santa e bonita, disse-lhe ela; o tempo lhe
mostraria que era melhor vencer as repugnâncias e um dia... Não, nada, nunca!
redargüia Damião, abanando a cabeça e beijando-lhe as mãos; e repetia que era a
sua morte. Sinhá Rita hesitou ainda muito tempo; afinal perguntou-lhe por que
não ia ter com o padrinho.
— Meu padrinho? Esse é ainda pior que papai; não me atende, duvido que atenda
a ninguém...
— Não atende? interrompeu Sinhá Rita ferida em seus brios. Ora, eu lhe mostro se
atende ou não...
Chamou um moleque e bradou-lhe que fosse à casa do Sr. João Carneiro chamálo,
já e já; e se não estivesse em casa, perguntasse onde podia ser encontrado, e
corresse a dizer-lhe que precisava muito de lhe falar imediatamente.
— Anda, moleque.
Damião suspirou alto e triste. Ela, para mascarar a autoridade com que dera
aquelas ordens, explicou ao moço que o Sr. João Carneiro fora amigo do marido e
arranjara-lhe algumas crias para ensinar. Depois, como ele continuasse triste,
encostado a um portal, puxou-lhe o nariz, rindo:
— Ande lá, seu padreco, descanse que tudo se há de arranjar.
Sinhá Rita tinha quarenta anos na certidão de batismo, e vinte e sete nos olhos.
Era apessoada, viva, patusca, amiga de rir; mas, quando convinha, brava como
diabo. Quis alegrar o rapaz, e, apesar da situação, não lhe custou muito. Dentro
de pouco, ambos eles riam, ela contava-lhe anedotas, e pedia-lhe outras, que ele
referia com singular graça. Uma destas, estúrdia, obrigada a trejeitos, fez rir a
uma das crias de Sinhá Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar o
moço. Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé da marquesa, e ameaçoua:
— Lucrécia, olha a vara!
A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era uma
advertência; se à noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia receberia o
castigo do costume. Damião olhou para a pequena; era uma negrinha, magricela,
um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão
esquerda. Contava onze anos. Damião reparou que tossia, mas para dentro,
surdamente, a fim de não interromper a conversação. Teve pena da negrinha, e
resolveu apadrinhá-la, se não acabasse a tarefa. Sinhá Rita não lhe negaria o
perdão... Demais, ela rira por achar-lhe graça; a culpa era sua, se há culpa em ter
chiste.
Nisto, chegou João Carneiro. Empalideceu quando viu ali o afilhado, e olhou para
Sinhá Rita, que não gastou tempo com preâmbulos. Disse-lhe que era preciso tirar
o moço do seminário, que ele não tinha vocação para a vida eclesiástica, e antes
um padre de menos que um padre ruim. Cá fora também se podia amar e servir a
Nosso Senhor. João Carneiro, assombrado, não achou que replicar durante os
primeiros minutos; afinal, abriu a boca e repreendeu o afilhado por ter vindo
incomodar "pessoas estranhas", e em seguida afirmou que o castigaria.
— Qual castigar, qual nada! interrompeu Sinhá Rita. Castigar por quê? Vá, vá falar
a seu compadre.
— Não afianço nada, não creio que seja possível...
— Há de ser possível, afianço eu. Se o senhor quiser, continuou ela com certo tom
insinuativo, tudo se há de arranjar. Peça-lhe muito, que ele cede. Ande, Senhor
João Carneiro, seu afilhado não volta para o seminário; digo-lhe que não volta...
— Mas, minha senhora...
— Vá, vá.
João Carneiro não se animava a sair, nem podia ficar. Estava entre um puxar de
forças opostas. Não lhe importava, em suma, que o rapaz acabasse clérigo,
advogado ou médico, ou outra qualquer coisa, vadio que fosse; mas o pior é que
lhe cometiam uma luta ingente com os sentimentos mais íntimos do compadre,
sem certeza do resultado; e, se este fosse negativo, outra luta com Sinhá Rita,
cuja última palavra era ameaçadora: "digo-lhe que ele não volta". Tinha de haver
por força um escândalo. João Carneiro estava com a pupila desvairada, a pálpebra
trêmula, o peito ofegante. Os olhares que deitava a Sinhá Rita eram de súplica,
mesclados de um tênue raio de censura. Por que lhe não pedia outra coisa? Por
que lhe não ordenava que fosse a pé, debaixo de chuva, à Tijuca, ou Jacarepaguá?
Mas logo persuadir ao compadre que mudasse a carreira do filho... Conhecia o
velho; era capaz de lhe quebrar uma jarra na cara. Ah! se o rapaz caísse ali, de
repente, apoplético, morto! Era uma solução — cruel, é certo, mas definitiva.
— Então? insistiu Sinhá Rita.
Ele fez-lhe um gesto de mão que esperasse. Coçava a barba, procurando um
recurso. Deus do céu! um decreto do papa dissolvendo a Igreja, ou, pelo menos,
extinguindo os seminários, faria acabar tudo em bem. João Carneiro voltaria para
casa e ia jogar os três-setes. Imaginai que o barbeiro de Napoleão era
encarregado de comandar a batalha de Austerlitz... Mas a Igreja continuava, os
seminários continuavam, o afilhado continuava cosido à parede, olhos baixos,
esperando, sem solução apoplética.
— Vá, vá, disse Sinhá Rita dando-lhe o chapéu e a bengala.
Não teve remédio. O barbeiro meteu a navalha no estojo, travou da espada e saiu
à campanha. Damião respirou; exteriormente deixou-se estar na mesma, olhos
fincados no chão, acabrunhado. Sinhá Rita puxou-lhe desta vez o queixo.
— Ande jantar, deixe-se de melancolias.
— A senhora crê que ele alcance alguma coisa?
— Há de alcançar tudo, redargüiu Sinhá Rita cheia de si. Ande, que a sopa está
esfriando.
Apesar do gênio galhofeiro de Sinhá Rita e do seu próprio espírito leve, Damião
esteve menos alegre ao jantar que na primeira parte do dia. Não fiava do caráter
mole do padrinho. Contudo, jantou bem; e, para o fim, voltou às pilhérias da
manhã. À sobremesa, ouviu um rumor de gente na sala, e perguntou se o vinham
prender.
— Hão de ser as moças.
Levantaram-se e passaram à sala. As moças eram cinco vizinhas que iam todas as
tardes tomar café com Sinhá Rita, e ali ficavam até o cair da noite.
As discípulas, findo o jantar delas, tornaram às almofadas do trabalho. Sinhá Rita
presidia a todo esse mulherio de casa e de fora. O sussurro dos bilros e o
palavrear das moças eram ecos tão mundanos, tão alheios à teologia e ao latim,
que o rapaz deixou-se ir por eles e esqueceu o resto. Durante os primeiros
minutos, ainda houve da parte das vizinhas certo acanhamento, mas passou
depressa. Uma delas cantou uma modinha, ao som da guitarra, tangida por Sinhá
Rita, e a tarde foi passando depressa. Antes do fim, Sinhá Rita pediu a Damião
que contasse certa anedota que lhe agradara muito. Era a tal que fizera rir
Lucrécia.
— Ande, senhor Damião, não se faça de rogado, que as moças querem ir embora.
Vocês vão gostar muito.
Damião não teve remédio senão obedecer. Malgrado o anúncio e a expectação,
que serviam a diminuir o chiste e o efeito, a anedota acabou entre risadas das
moças. Damião, contente de si, não esqueceu Lucrécia e olhou para ela, a ver se
rira também. Viu-a com a cabeça metida na almofada para acabar a tarefa. Não
ria; ou teria rido para dentro, como tossia.
Saíram as vizinhas, e a tarde caiu de todo. A alma de Damião foi-se fazendo
tenebrosa, antes da noite. Que estaria acontecendo? De instante a instante, ia
espiar pela rótula, e voltava cada vez mais desanimado. Nem sombra do padrinho.
Com certeza, o pai fê-lo calar, mandou chamar dois negros, foi à polícia pedir um
pedestre, e aí vinha pegá-lo à força e levá-lo ao seminário. Damião perguntou a
Sinhá Rita se a casa não teria saída pelos fundos; correu ao quintal, e calculou que
podia saltar o muro. Quis ainda saber se haveria modo de fugir para a Rua da
Vala, ou se era melhor falar a algum vizinho que fizesse o favor de o receber. O
pior era a batina; se Sinhá Rita lhe pudesse arranjar um rodaque, uma
sobrecasaca velha... Sinhá Rita dispunha justamente de um rodaque, lembrança
ou esquecimento de João Carneiro.
— Tenho um rodaque do meu defunto, disse ela, rindo; mas para que está com
esses sustos? Tudo se há de arranjar, descanse.
Afinal, à boca da noite, apareceu um escravo do padrinho, com uma carta para
Sinhá Rita. O negócio ainda não estava composto; o pai ficou furioso e quis
quebrar tudo; bradou que não, senhor, que o peralta havia de ir para o seminário,
ou então metia-o no Aljube ou na presiganga. João Carneiro lutou muito para
conseguir que o compadre não resolvesse logo, que dormisse a noite, e meditasse
bem se era conveniente dar à religião um sujeito tão rebelde e vicioso. Explicava
na carta que falou assim para melhor ganhar a causa. Não a tinha por ganha; mas
no dia seguinte lá iria ver o homem, e teimar de novo. Concluía dizendo que o
moço fosse para a casa dele.
Damião acabou de ler a carta e olhou para Sinhá Rita. Não tenho outra tábua de
salvação, pensou ele. Sinhá Rita mandou vir um tinteiro de chifre, e na meia folha
da própria carta escreveu esta resposta: "Joãozinho, ou você salva o moço, ou
nunca mais nos vemos". Fechou a carta com obreia, e deu-a ao escravo, para que
a levasse depressa. Voltou a reanimar o seminarista, que estava outra vez no
capuz da humildade e da consternação. Disse-lhe que sossegasse, que aquele
negócio era agora dela.
— Hão de ver para quanto presto! Não, que eu não sou de brincadeiras!
Era a hora de recolher os trabalhos. Sinhá Rita examinou-os; todas as discípulas
tinham concluído a tarefa. Só Lucrécia estava ainda à almofada, meneando os
bilros, já sem ver; Sinhá Rita chegou-se a ela, viu que a tarefa não estava
acabada, ficou furiosa, e agarrou-a por uma orelha.
— Ah! malandra!
— Nhanhã, nhanhã! pelo amor de Deus! por Nossa Senhora que está no céu.
— Malandra! Nossa Senhora não protege vadias!
Lucrécia fez um esforço, soltou-se das mãos da senhora, e fugiu para dentro; a
senhora foi atrás e agarrou-a.
— Anda cá!
— Minha senhora, me perdoe! tossia a negrinha.
— Não perdôo, não. Onde está a vara?
E tornaram ambas à sala, uma presa pela orelha, debatendo-se, chorando e
pedindo; a outra dizendo que não, que a havia de castigar.
— Onde está a vara?
A vara estava à cabeceira da marquesa, do outro lado da sala. Sinhá Rita, não
querendo soltar a pequena, bradou ao seminarista.
— Sr. Damião, dê-me aquela vara, faz favor?
Damião ficou frio... Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim, tinha
jurado apadrinhar a pequena, que por causa dele, atrasara o trabalho...
— Dê-me a vara, Sr. Damião!
Damião chegou a caminhar na direção da marquesa. A negrinha pediu-lhe então
por tudo o que houvesse mais sagrado, pela mãe, pelo pai, por Nosso Senhor...
— Me acuda, meu sinhô moço!
Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara, sem
largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião sentiu-se
compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa,
pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Poema: Luta.

Luta:


Da ilusão nasce à possibilidade
Da possibilidade nasce o sonho
Do sonho nasce à esperança
Da esperança nasce à luta
Da luta nasce o fato.

sábado, 15 de setembro de 2012

Navegar é Preciso: Fernando Pessoa.



Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:

"Navegar é preciso; viver não é preciso".

Quero para mim o espírito desta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,ainda que para isso tenha de
ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.

sábado, 25 de agosto de 2012

Poema:Inverso.



Alma clara, alma nua,
Nua e crua feita à alma tua.
Com um tempo que construa
O inverso da rua que continua a levar
As magoas tuas.



terça-feira, 21 de agosto de 2012

Poema: Perfume.




Com mãos atadas
Em cordas de sentimentos e dores que não cessam
Perco toda minha pressa.
Visto a minha capa de virtudes duvidosas.

E o frescor do perfume nobre que exala
Destas divinas almas
Em tardes que embalam
Meus sonhos e desejos mais profundos.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Poema: Regra.



Que a exceção não seja a regra
Nem a regra a exceção.
Apenas escute o coração
E viva a que tem que ser vivido.

Que o amor dure
Enquanto for eterno o prazer de viver a dois
Sem regra, sem medo ou pressa,
Apenas viva e seja feliz.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Poema: Náufragos.



Entrelaçados pelo mesmo ideal
Seguimos nossas trilhas
Com as imensas armaduras de insatisfações.

Sem nos dar conta das frágeis idéias
E sem as consistências necessárias
Para alcançarmos os nossos desejos incomuns.

Dessa forma naufragamos
Em sentimentos individuais e incontestes
Deixando o tempo se esvair
À revelia do nosso desejo ideal.


Então passamos pela vida
Como se ela fosse irreal ou inconsistente
Até os dias últimos
Da nossa frágil Existência.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Poema: Harmônico:

Harmônico:


Tenho daqueles que-encontro sem
que o tempo tenha mi dado à chance de-zer tudo diferente

Mais tem muita gente sol deixando o tempo passar sem se
reciclar e vem tudo de novo e o nosso povo sempre a batalhar.
O seu pão de cada dia com toda harmonia que a vida dá.

Mais si deus quiser tudo vai da pé.
Vou sempre com muita fé no meu criador
prá apagar a dor deste meu cantar.

Às vezes eu acho que sai do cacho de cabeça
pra baixo e sem a menor imunidade musical.
Pois a melodia me contamina como a menina a cantarolar.

sábado, 28 de julho de 2012

Poema: Ontem...



Do ontem nada posso mudar, pois lá não posso voltar.

Do amanhã nada posso pegar, pois nada sei de lá.

Mas no hoje tudo posso.

Pois é tudo que tenho...

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Poema: Força em movimento.

Força em movimento:


Entre o caos natural e uma esperança distante,
 os novos senhores em seus palacetes discutem
mais uma possibilidade de ganho.

Enquanto vidas se misturam nos escombros da
inconseqüência, os barões do poder arquitetam
seus novos planos de ações a seu favor.

Como podemos ser tão solidário na tragédia,
mais ao mesmo tempo não somos capazes de
nos comprometermos para evitá-las,vidas são
interrompidas por nossas incapacidades de enxergar o obvio.

Porque a força que nos consome é a mesma que nos
alimenta como a doce e incontrolável natureza em movimento.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Enquanto Deus Dormia: Poema; Propriedade.

Enquanto Deus Dormia: Poema; Propriedade.: Propriedade: A poesia nunca é propriedade do autor e sim dor leitor, que apesar de perde-se no tempo. A essência da criação, sempre ...

Poema; Propriedade.

Propriedade:


A poesia nunca é propriedade do autor e sim dor leitor,
que apesar de perde-se no tempo.
A essência da criação, sempre será compartilhada,
e o mesmo sentimento do desejo mutua.
A poesia é como uma pintura em evolução onde a tinta nunca seca,
a tela nunca está completa e as criações se eternizam por todo o sempre.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Crônica: A Revolução dos mortos.


       Enquanto os filhos da burguesia influente eram convidados a se retirar do país, os mesmo filhos da pátria operária e desafortunada eram massacrados em praça publica ou simplesmente torturados nos porões e corredores dos insolentes.
Como é sarcástica a capacidade dos bravos exilados brasileiros que se alto intitulam mártires da ditadura militar.
Será que em suas longínquas memórias eles serão capazes de acender as suas lembranças dos bravos cidadãos que enquanto eles debutavam seus olhares sobre a cultura estrangeira, estes bravos heróis esfacelavam seus espíritos em defesa de um ideal nacionalista, diante a imensa mão de ferro dos donos do poder. Quando é que todos vão se der conta, que só os filhos da burguesia eram exilados. Quantos serventes de pedreiros, mecânicos, eletricistas ou varredores de ruas foram exilados em Londres, Paris, Nova Iorque etc. Até quando vão ladear heroísmos se todos eram na verdade privilegiados pelas suas condições social do momento, e nunca ousaram realmente a desafiar a ordem estabelecida.
         Onde está à justiça à memória dos mortos, ou será que terão eles de se levantar de seus túmulos para fazer a revolução dos mortos por justiça as suas memórias.
Será que vamos todos continuar a utilizar os nobres meios de vivermos eternamente do heroísmo alheio com a grande benevolência dos hipócritas. Até quando os verdadeiros baluartes desta imensa pátria vão se resignar e assistir aos deleites deste bando de hipócritas que saqueiam os cofres públicos se alto intitulando defensores da democracia.
Que democracia é esta onde os homens que dão o seu suor e sangue para construí-la só recebem as migalhas, enquanto os senhores do poder, se deleitam em caviar nas poltronas da tranquilidade.