sexta-feira, 23 de julho de 2021

Contos do Sábado na Usina: Olavo Bilac: IMUNIDADE...:

 



Foi Praxedes Cristiano À Capital Federal: Levou a mulher, o mano
E a filha. E, ao cabo de um ano, Regressa ao torrão natal. 
Regressa... Vão esperá-lo, Com festas e rapapés, Os amigos, à cavalo; 
Queimam-se as bichas de estalo, Foguetes e busca-pés. 
Praxedes, guapo e pachola, Vem transformado e feliz: Traz polainas e cartola, 
E guarda-chuva de mola, E botinas de verniz. 
E a mulher, gorda matrona, É aquilo que se vê: 
— Vem que parece uma dona, 
— Vestido cor de azeitona, Saído do Raunier... 
Depois do almoço, se ajunta Toda a gente principal: 
E, depois de toda junta. 
— O que há de novo, pergunta, 
Na Capital Federal. 
Praxedes impa de orgulho, E principia a falar: 
"Ah! que vida! que barulho! No Rio, este mês de julho 
É mesmo um mês de gozar!" 
Praxedes fala de tudo, Sem cousa alguma esquecer; 
Todo o auditório peludo Fica tonto, fica mudo, E de tudo quer saber. 
Nisto, o velho boticário, Sujeito de distinção, 
Que idolatra o Formulário E é a glória do campanário. Põe em campo esta questão: 
"Já que tanta cousa viste, Praxedes, dize-me cá: Dizem, não sei se por chiste Ou por maldade, que existe Muita sífilis por lá..." 
"É pura intriga, seu Ramos! (Diz o Praxedes) que quer? Um ano por lá passamos... E nada disso apanhamos, 
Nem eu, nem minha mulher!"

Contos do Sábado na Usina: Machado de Assis: VIII - GOLPE:


Um dia de manhã acordou Estêvão com a resolução feita de dar o golpe decisivo. Os corações frouxos têm destas energias súbitas, e é próprio da pusilanimidade iludir-se a si mesma. Ele confessava que nada havia feito, e que a situação exigia alguma coisa mais. 
— Nunca as circunstâncias foram mais propícias do que hoje, pensava o rapaz; Guiomar trata-me com afabilidade de bom agouro. Demais, há nela espírito elevado; há de reconhecer que um sentimento discreto e respeitoso, como este meu, vale um pouco mais do que lisonjarias de sala. 
A resolução estava assentada; restava o meio de a tornar efetiva. Estêvão hesitou largo tempo entre dizer de viva voz o que sentia ou transmitilo por via do papel. Qualquer dos modos tinha para ele mais perigos que vantagens. Ele receava ser frio na declaração escrita ou incompleto na confusão oral. Irresoluto e vacilante, ambos os meios adotou e repeliu, a curtos intervalos; enfim, diferiu a escolha para outra ocasião. 
O acaso supriu a resolução, e o premeditado cedeu o passo ao fortuito. 
Uma tarde, havendo algumas pessoas a jantar em casa da baronesa, foram passear à chácara. Estêvão que, como Luís Alves, era dos convivas, afastou-se gradualmente dos outros grupos, e aproximou-se daquela cerca histórica onde, após dois anos de ausência e esquecimento, vira, já transformada, a formosa Guiomar. Era a primeira vez que ele punha os olhos nesse sítio, depois da conversa, que aí tivera com ela. A comoção que sentiu foi naturalmente grande, ressurgia- lhe o quadro ante os olhos, a hora, o céu brilhante, o doce alento da manhã, e por fim a figura da moça, que ali apareceu, como a alma do quadro, trazendo-lhe recordações, que ele julgava mortas, esperanças que supunha impossíveis. 
Estêvão curvou a cabeça ao doce peso daquelas memórias, a alma bebeu, a largos haustos, a vida toda que a imaginação lhe criava e talvez a noite o tomasse na mesma atitude, se a voz maviosa de Guiomar, lhe não dissesse a poucos passos de distância: 
— Sr. doutor, perdeu alguma coisa? 
O rapaz volveu rapidamente a cabeça, e viu a moça, que atravessava uma das calhes próximas, a olhar e a sorrir para ele. Estêvão sorriu também, e com uma presença de espírito assaz rara em namorados, sobretudo em namorados como ele era, prontamente respondeu: 
— Não perdi nada, mas achei uma coisa. 
— Vejamos o que foi. 
E Guiomar aproximou-se, a passo firme e seguro, e Estêvão, sem muito vacilar, ali mesmo forjou uma reflexão filosófica a respeito de um inseto que casualmente passava por cima de uma folha seca. A reflexão não valia muito, e tinha o defeito de vir um pouco forçada e de acarreto; a moça sorriu, entretanto, e ia continuar o seu caminho, quando ele, colhendo as forças todas, a fez deter com estas palavras: 
— E se eu tivesse achado outra coisa? 
— Ainda mais! exclamou ela voltando-se risonha. 
Estêvão deu dois passos para Guiomar, desta vez comovido e resoluto. A moça fez-se séria e dispôs-se a ouvi-lo. 
— Se eu tivesse achado neste lugar, continuou ele, longos dias de esperança e de saudade, um passado que eu julgara não reviver mais, uma dor oculta e medrosa, vivida na solidão, nutrida e consolada de minhas próprias lágrimas? Se eu tivesse achado aqui a página rota de uma história começada e interrompida, não por culpa de ninguém na terra, mas da estrela sinistra da minha vida, que um anjo mau acendeu no céu, e que, talvez, talvez ninguém nunca apagará? 
Estêvão calou-se e ficou a olhar fixamente para Guiomar. 
Aquela declaração repentina e rosto a rosto estava tão longe do temperamento do rapaz, que ela gastou alguns segundos longos primeiro que voltasse a si do assombro. Ele próprio admirava-se do atrevimento que tivera; e enquanto pendia dos lábios da moça, repassava na memória, aliás confusamente, o que tão a frouxo lhe saíra do peito naquela hora de abençoada temeridade. 
— Se tivesse achado tudo isso, respondeu Guiomar sorrindo, é natural que preferisse achar outra coisa menos melancólica. Entretanto, parece que nada mais achou do que esta ocasião de falar, com a viva imaginação que Deus lhe deu; num ou noutro caso, porém, posso decerto lastimá-lo ou admirá-lo, mas não me é dado ouvi-lo. 
E Guiomar ia de novo afastar-se, quando Estêvão, receando perder a ocasião que a fortuna lhe oferecia, disse de longe com voz triste e súplice: 
— Atenda-me um só minuto! 
— Não um, mas dez — respondeu a moça estacando o passo e voltando o rosto para ele 
— e serão provavelmente os últimos em que falaremos a sós. Cedo à comiseração que me inspira o seu estado; e pois que rompeu o longo e expressivo silêncio em que se tem conservado até hoje, concedo-lhe que diga tudo, para me ouvir uma só palavra. 
A moça falara num tom seco e imperioso, em que mais dominava a impaciência do que a comiseração a que vinha de aludir. O coração de Estêvão batia-lhe como nunca, — como o coração costuma bater nas crises de uma angústia suprema. Todo aquele castelo de vento, laboriosamente construído nos seus dias de ilusão, todo ele se esboroava e desfazia, como vento que era. Estêvão arrependera-se do impulso que o levara a violar ainda uma vez o segredo dos seus sentimentos íntimos, a abrir mão de tantas esperanças, alimentadas com o melhor do seu sangue juvenil. 
Alguns instantes decorreram em que nem um nem outro falou; ambos pareciam medir-se, ela serena e quieta, ele trêmulo e gelado. 
— Uma só palavra, repetiu Estêvão, e essa adivinho que será de desengano. Embora! Pois que me atrevi a dizer-lhe alguma coisa, força é que lhe diga tudo, — feliz, se me restar, ao menos, a maior fortuna a que já agora posso aspirar, — o seu remorso. 
Guiomar ouvira-o tranqüilamente; a última palavra fê-la estremecer. 
Sorriu, entretanto, de um sorriso um pouco voluntário e esperou. 
A narração foi longa, tanto quanto o permitiam a ocasião, o lugar e a pessoa; durou apenas dez minutos. Estêvão nada lhe escondeu, nem o amor que lhe tivera outrora, nem o que agora lhe renascia, mais violento que o primeiro; disse-lhe as dores que curtira, as esperanças que afinal lhe enfloravam a alma, tudo quanto empreendera para ter a ventura de a contemplar de perto, de gozar naquele escasso ponto da terra a maior de todas as bem-aventuranças. 
Tal é a transcrição, não literal, mas fiel, do que disse Estêvão durante esses dez minutos. As palavras caíam-lhe trêmulas e a voz saia-lhe sumida, em parte porque ele forcejava em a abafar, a fim de que o não ouvissem, em parte porque a comoção lhe comprimia a garganta. A dor era visivelmente sincera; a eloqüência vinha do coração. 
Guiomar não ouvira tudo com a mesma expressão; a princípio um meio riso parecia desabrochar-lhe os lábios, mas não tardou que pelo rosto abaixo lhe caísse um véu mais compassivo e humano. Havia nela impaciência e ansiedade de acabar, de sair dali; era, sem dúvida, o receio de que a ausência se prolongasse de maneira que inspirasse suspeitas. Mas havia também comiseração e piedade. 
— Nenhuma culpa lhe pode caber do mal que tenho padecido, disse Estêvão concluindo; sobretudo agora, só eu, só a minha cabeça é a causa única de tudo. Parecia-me ver o contrário do que existia; cheguei a supor que havia em seu coração alguma coisa que não era a total indiferença; vejo que foi tudo ilusão. 
O tom em que ele falara era o mesmo das palavras que aí ficam, todas humildes e resignadas, sem o menor laivo de queixa ou de reproche. 
Uma submissão assim devia por força comover a uma mulher amada. 
Guiomar falou-lhe sem azedume: 
— Era ilusão, disse ela. O sentimento que me acaba de revelar inteiro, ninguém o recebe ou nutre de vontade; a natureza o infunde ou nega. Posso eu ter culpa disso? 
— Nenhuma. 
— Nem o senhor também, e espero que esta mútua justiça avigore o sentimento de estima que devemos ter um para com o outro. Mas estima apenas, não pode haver outra coisa, — da minha parte ao menos. É pouco, decerto... 
— Não é pouco, é coisa diferente, interrompeu Estêvão. 
— Mas não espere nada mais, concluiu Guiomar sem ouvir a interrupção. 
Estêvão abriu a boca para falar, mas não achou palavra que lhe dissesse o que sentia; levou a mão ao coração, que batia fortemente, e ficou a olhar para ela com os olhos secos e parados, a voz extinta, como se a alma lhe fugira toda. Era claro, depois daquele desengano, que lhe cumpria não voltar ali mais, pelo menos com a assiduidade da esperança; e assim era que a única e amarga satisfação de a ver, nem essa já agora se lhe consentia. 
— Dou-lhe um conselho, disse Guiomar depois de alguns segundos de pausa, seja homem, vença-se a si próprio; seu grande defeito é ter ficado com a alma criança. 
— Talvez, respondeu o moço suspirando. 
— E adeus. Falamos a sós, mais do que convinha; não sei se outra consentiria nisto. Mas eu não só reconheço os seus sentimentos de respeito, como desejo que estas poucas palavras trocadas agora ponham termo a aspirações impossíveis. 
Guiomar estendeu-lhe a mão, em que ele tocou levemente. 
A baronesa apareceu, entretanto, a algumas braças de distância; vinha encostada ao braço do sobrinho, que lhe falava, mas a quem ela já não ouvia. Tinha os olhos cravados nos dois interlocutores de há pouco. A moça, apenas vira de longe a madrinha, deu afoitamente o braço a Estêvão, e seguiram ambos a encontrar-se com ela; o rosto de Guiomar não revelava nada; o de Estêvão vinha perturbado e abatido. A baronesa franziu a testa: 
— Jorge, disse ela em voz baixa, precisamos conversar.

 



Contos do Sábado na Usina: Sérgio Sant'Anna: Estranhos:



Cheguei à portaria daquele edifício, em Botafogo, para ver o apartamento, quase ao mesmo tempo que uma mulher. Notei que ela estava nervosa, pelo modo como dava tragadas seguidas no cigarro, amassava com a mão fortemente cerrada o caderno de classificados de um jornal, e também pelo batom que transbordava da linha dos seus lábios, como se houvesse se pintado às pressas. Mas nem por isso era menos bonita ou elegante, usando um vestido listrado, de tecido meio rústico, que ostentava uma simplicidade que devia ter custado algum dinheiro. Os sapatos pretos grandões, desses de amarrar, concediam-lhe uma aparência um tanto exótica, um ar de força, quase de brutalidade, talvez premeditada, um toque masculino que não impedia de se evidenciar nela a mulher em todos os seus aspectos. Ou talvez eu só tenha pensado essas coisas todas depois, tornando-me capaz de escrever sobre elas desse modo. Naquele instante eu estava preocupado em ver logo o apartamento. 

Quando o porteiro estendeu a chave na minha direção, pois eu chegara um pouco antes, ela disse com uma voz que pretendia ser durona, igual aos seus sapatos. 
- Não podemos subir todos juntos? 
O porteiro tornou a recolher a chave, mantendo-a suspensa nos dedos, como se fôssemos crianças disputando um doce. 
- A senhora vai me desculpar, mas não posso largar a portaria - ele disse. - O apartamento está vazio e, se a senhora não se importar, pode subir sozinha com ele - o porteiro apontou a chave na minha direção. 
Ela olhou para mim de cima a baixo, como se me avaliasse, até concluir que eu era inofensivo. 
- Por mim, tudo bem - ela disse. 
Aquele exame minucioso, e talvez o seu resultado, me irritara. E também o fato de o porteiro ter perguntado a ela se se importava de subir comigo, e não a mim, que chegara primeiro, se me importava de subir com ela. Afinal, estávamos disputando o mesmo apartamento. Então apenas dei de ombros, indiferente. 
Mal fiz isso, ela tomou a chave da mão do porteiro e seguiu em frente pela aléia, ou fosse lá como fosse que se chamava aquela passagem que, margeando o estacionamento a céu aberto, ia dar no bloco B, onde ficava o tal apartamento. 
Enquanto ia atrás dela, pensei que não estava sentindo nenhuma vontade de morar naquele condomínio composto de dois caixotões verticais, com o nome absolutamente ridículo de Bois de Boulogne. De fato, era todo ajardinado e havia algumas árvores, para parecer bucólico e ecológico. Havia também um playground à vista, o que significava muitas crianças quando não fosse hora de colégio, e uma piscina escondida em algum lugar (eu lera no classificado), que devia ser um tanque grande, também cheio de crianças. 
Na verdade eu e Clarice preferíamos começar nossa vida num desses prédios mais antigos, com uma arquitetura humana, e não tínhamos a menor intenção de ter filhos tão cedo. Mas eu ia ver o apartamento. Estava de férias e programado para ver apartamentos. 
Depois de subir dois lances de escadinhas, alcancei a mulher no hall dos elevadores do bloco B, onde nos comportamos como os dois estranhos que de fato éramos um para o outro. Ela pôs um cigarro na boca, sem acendê-lo, e uma senhora juntou-se a nós. Logo depois o elevador chegou, um pessoal saiu, deixamos a senhora entrar primeiro, depois entrou ela, depois eu. A senhora desceu no quinto andar e, até lá, ficou olhando de cara feia para o cigarro apagado nos lábios da mulher, que sustentou o seu olhar. Assim que a senhora saiu, ela acendeu o cigarro, embora houvesse uma plaqueta de proibição, visível no meio de vários grafitezinhos infantilóides, alguns meio nazistas, alguns obscenos. Mas não seria eu, um ex-fumante, que iria me incomodar com o cigarro dela. 
- Também está procurando apartamento há muito tempo? - perguntei, para quebrar o gelo entre nós. 
- Não. Este é o segundo. Mas são todos umas merdas. 
- É verdade - eu disse, apaziguadoramente, achando graça. 
Chegamos ao décimo primeiro andar, o do nosso apartamento, e vi que a mão dela tremia ao tentar enfiar a chave. Eu disse "Me dá licença , peguei a chave e a introduzi facilmente na fechadura. 
Ela entrou, olhou ao seu redor, até encontrar um banheiro, onde se trancou imediatamente. Fui abrir a janela da sala, pois fazia um calor abafado ali dentro, apesar de ser outono. A primeira coisa que notei na paisagem foi o morro, a menos de um quilômetro de distância. Dava para ver as pessoas subindo e descendo a favela, como num formigueiro - não se pode ser original nessas coisas. Depois olhei para baixo e encontrei a piscina. Era melhor do que um tanque e devia estar fechada a essa hora da tarde, porque não havia ninguém lá. Mas o playground começava a se povoar e os gritos chegavam ali em cima, mas eram menos crianças do que eu imaginara. Ainda observei mais algumas coisinhas nos arredores, tentando vê-los também com os olhos da Clarice. 
Dei-me conta de que a mulher estava demorando no banheiro e desconfiei de alguma coisa. Cocaína, por exemplo. Mas, afinal, eu não estava com ela, podia ver o apartamento sozinho e ir logo embora, pois já concluíra, mais ou menos, que o imóvel não fazia o gênero de Clarice. 
Ao virar-me para examinar melhor a sala, reparei numas irregularidades na parede em frente, onde o sol batia nesse instante. A massa e a pintura tinham sido retocadas havia muito pouco tempo, em alguns pontos, formando pequenos calombos. Aproximei-me para vê-los de perto, quando a mulher saiu do banheiro. Fumava outra vez, o batom em seus lábios fora alinhado e ela se maquiara em torno dos olhos, que brilhavam, avermelhados. Podia ser cocaína, porque o seu nariz também estava congestionado, mas achei possível que ela houvesse apenas chorado e quisesse disfarçar com a maquiagem. 
Fingi não reparar nisso e pressionei o dedo num daqueles calombos, que cedeu um pouco. 
- Podem ser tiros - eu disse. - Eles devem ter extraído as balas. Por isso o aluguel é tão barato. 
Percebi que estava querendo impressioná-la, o que, a julgar por sua resposta, não consegui. 
- Você acha barato por uma pocilga dessas? Precisa ver o banheiro. É ridículo. 
- Estou falando de preço de mercado. 
- É possível - ela falou, olhando em direção à janela. - Mas a favela está longe. 
- Os fuzis alcançam dois quilômetros - eu disse, e vi que continuava querendo impressioná-la. 
- Você é da polícia? - ela perguntou, com uma voz falsamente neutra e ingênua, que significava ironia com toda a certeza. 
- Não, sou jornalista. 
Ela se dirigiu para a janela, sem perguntar qual era o meu jornal ou a área do jornalismo em que eu atuava, e achei melhor assim. Pois, não sei por que, senti que me sentiria um idiota se dissesse a uma mulher como aquela que eu era subeditor de um segundo caderno, fazendo entrevistas por telefone e escrevendo frescuras sobre artistas egocêntricos. 
Ela atirou a ponta do cigarro lá embaixo e ficou observando ela cair. Depois virou-se para mim e disse, antes de se debruçar novamente no parapeito: 
- É uma boa altura. 
De repente, me passou pela cabeça que ela só tivesse vindo ver o apartamento para se jogar lá de cima. Podia ser mera projeção minha, claro, pois também sou meio neurótico e até fizera um pouco de análise, antes de conhecer Clarice, que me dava segurança. Mas, por via das dúvidas, resolvi voltar à janela, onde poderia intervir caso a mulher fizesse menção de pular. Confesso que, além do fato em si de não querer que um semelhante meu se autodestruísse, pensei também nas complicações com a polícia, com a imprensa e com Clarice. Como iria explicar a ela por q e estava vendo apartamento com outra mulher que ainda por cima se atirara dele? 
Mas, assim que me aproximei da mulher, ela disse: 
- Vou dar mais uma olhada por aí. 
Enquanto ela foi ver um dos quartos, que dava para os fundos do prédio, fui ver outro bem em frente ao dela, procurando afastar a idéia de suicídio da cabeça. Na verdade, sabia que deixara a análise antes de remexer num lodo mais profundo, e talvez para não ter de fazê-lo. E aquela mulher, apesar de tudo, me dava a impressão de gostar muito da vida. Apenas tinha de ser a vida que ela gostava. 
O quarto que vi era comum, um desses quadrados que os construtores fazem economizando espaço. Também fora pintado recentemente, mas não havia calombos nas paredes. Abri a janela e depois fui dar uma olhada no armário embutido. Tentei abrir uma das gavetas e percebi que alguma coisa a estava emperrando. Puxei com força e um sutiã, empoeirado, acabou por soltar-se. Peguei-o e observei que, pelo seu tamanho e desenho, fora usado por uma mulher de seios pequenos, provavelmente uma jovem. 
Nesse instante, ouvi-a exclamar alguma coisa no outro quarto, que não deu para entender direito. Mas dali eu podia vê-la segurando um objeto que não consegui identificar. Devolvi o sutiã à gaveta, depressa, fechando-a em seguida. 
- Vem cá ver - a mulher me chamou em voz alta. 
Dirigi-me rapidamente para lá e encontrei-a suspendendo uma tira de cortina japonesa, que ela desenrolava do chão, onde devia ter sido largada na mudança. Nela, havia um buraco de bom tamanho. 
- Balas! - a mulher disse, com uma espécie de alegria, embora o buraco fosse só um. - O tiro deve ter entrado pelo outro quarto, atravessou o corredor e a bala veio se alojar aqui. Aliás, pode até ter saído de novo - ela mostrou a janela que havia aberto. - Você tinha razão. Os sacanas deixaram esse lixo aqui (ela largou a cortina com repugnância) e acharam que a gente não ia perceber. 
Fiquei satisfeito com aquele reconhecimento e acrescentei, excitado: 
- Vi poucas crianças no playground. Deve ter muita gente deixando o prédio. 
Foi nesse momento que ela disse sua grande frase, que me fez compreendê-la melhor: 
- Morrer não tem a menor importância. O horrível é ficar velha! 
- Você está longe disso - eu disse, sentindo-me metade idiota, metade cafajeste. Mas percebi que uma centelha se acendera em seus olhos. 
- Estou com trinta e quatro anos - a mulher disse e olhou para mim, com uma certa expectativa. 
- Parece ter bem menos - falei, embora ela pudesse ter também trinta e seis. - E mesmo que não parecesse, é uma bela idade. 
- Ele parece que não acha - ela retrucou, amargamente. 
- Ele quem? 
- Não interessa. E você, quantos anos tem? 
- Trinta e dois. 
- Ele tem cinquenta - ela falou com orgulho. 
Foi aí que eu disse a grande besteira, ou talvez não, levando-se em conta o que aconteceu depois. 
- Ele te abandonou? 
Sem qualquer aviso prévio, ela desatou um choro convulsivo, de dor e de raiva, e avançou com os punhos cerrados na minha direção. Recuei, amedrontado. Mas, em vez de me bater, ela se agarrou ao meu corpo, esfregando-se nele em movimentos sofregamente ritmados. Olhei para a janela, preocupado que alguém estivesse nos vendo. Felizmente não havia nenhum edifício alto nas proximidades. 
- Ninguém jamais me abandonou, entendeu? - ela gritava. - Ninguém, ouviu? 
- Claro - eu disse, correspondendo ao seu abraço um tanto mecanicamente, pois continuava com medo. 
- Mas o filho da puta também está comendo outra - ela disse, e agora chorava mais livremente. 
Acariciei os seus cabelos de um modo paternal: 
- É por isso que você está procurando apartamento? Ela fez que sim, com a cabeça: 
- Ele está comendo uma garota de dezoito anos. Você compreende bem o que isso significa? 
- Compreendo - eu disse. E, de fato, compreendia tudo cada vez mais. - Essas coisas acontecem - tentei consolá-la. 
Foi o suficiente para ela me empurrar, com brutalidade. 
- Vocês são todos iguais. Não pense que não vi você pegando aquele sutiã. Eu não preciso usar, veja! 
Ela arrancou o vestido de baixo para cima, de um só golpe. Havia parado de chorar tão subitamente quanto começara. 
Eram seios perfeitos. Talvez houvessem sofrido uma plástica, mas que importância tinha isso se eram tão bonitos e gostosos? Não havia outra coisa a fazer senão acariciá-los, enquanto enfiava a mão em sua calcinha branca, e a mulher, por sua vez, desatava o meu cinto, para depois baixar minha calça e minha cueca, tudo de uma só vez, ajoelhando-se então aos meus pés para chupar o meu pau, fazendo-o crescer de uma forma incomensurável, que dava a ela uma satisfação intensa, que talvez não tivesse muita coisa a ver comigo - eu via em seus olhos de cobra -, mas com o cara que estava comendo a garota de dezoito anos, como se ela quisesse provar a ele o seu poder, que acabava provando a mim e muito bem. 
Pedi um tempo, porque senão aquilo ia terminar logo, e também para tirar a camisa e os sapatos nos quais minha calça e cueca haviam se enroscado, fazendo com que eu tivesse de me apoiar na cabeça da mulher para não perder o equilíbrio. Enquanto eu tirava tudo, ela tirou a calcinha: 
- Você quer que eu fique com ou sem os sapatos? - ela perguntou. 
- Com os sapatos - eu disse. 
Ela deu um risinho: 
- Eu sabia. Vocês são todos homossexuais enrustidos. 
Ignorei aquele comentário, pois não sou machista, e preferi observar meticulosamente a xoxota dela, que era bastante ostensiva, mas bem proporcionada e agradável de ver, com os cabelinhos aparados. 
Ela demonstrava sentir prazer com a minha observação e acendeu calmamente mais um cigarro. 
- Poxa, como você fuma, hein? - eu disse, apenas por dizer, ou porque aquele silêncio contemplativo me deixava um pouco embaraçado. 
A resposta dela foi dar uma tragada funda e provocativa, para depois aproximar-se de mim, pedindo que eu a beijasse na boca. Foi um desses beijos profundos, sexuais, sem nada a ver com os beijos dos que se amam. Enquanto ele transcorria, ela foi soprando a fumaça para dentro da minha boca, lentamente. Eu só havia parado de fumar por causa da Clarice, que era antitabagista militante; então não tossi nem me engasguei, pelo contrário; traguei numa boa até o fundo, retendo o mais que pude a fumaça em meus pulmões. Se palavras podem descrever tal experiência, devo dizer que ela me alucinou como se eu fosse um fumador de ópio, e que foi a maior intimidade que jamais tive com uma mulher, como se eu a conhecesse em todas as suas entranhas. A falta de hábito, porém, fez com que eu me sentisse meio tonto, e fui descendo meu corpo, trazendo o dela comigo. 
- Quer que eu faça com você uma coisa que faço sempre com ele? - ela perguntou. 
- Quero - eu disse, ainda meio grogue. 
- Então vira de bruços. 
Saí do meu estupor e ergui a cabeça, assustado: 
- Só se você apagar o cigarro. 
- Não sou sadomasoquista - ela disse com desprezo, amassando o cigarro no assoalho. 
Virei-me de bruços e ela veio por cima de mim, de um modo que me fez conhecer melhor o mecanismo das mulheres, ou pelo menos de certas mulheres, e também dos homens, ou pelo menos de certos homens, como eu e o coroa devasso. Esfregando ritmadamente a xoxota em minha bunda, ela dizia coisas como "meu benzinho, eu te adoro, vou te comer todinho". E assim ela gozou, inquestionavelmente, pois não captei nada de teatral em seu orgasmo. Foi uma série de tremores silenciosos, apenas ligeiramente arfantes, quase introspectivos, até ela cair ao meu lado, satisfeita. Depois deitou a cabeça em meu peito e começou a fazer risquinhos nele, com suas unhas pontiagudas. 
- Por favor, não faça isso - eu disse. 
- Não faço por quê? - ela continuou com mais força. Segurei os braços dela. 
- Eu sou noivo. 
Ela deu uma gargalhada artificial e levantou-se, abruptamente: 
- Não acredito. Estamos quase no século vinte e um e você é noivo. Cadê a aliança? 
- Não uso. Foi apenas uma forma de dizer, já que eu e Clarice vamos nos casar. 
- Bem, nesse caso talvez seja melhor eu ir embora - ela disse, dirigindo-se até onde estavam jogadas suas coisas. - Não quero atrapalhar a vida de vocês. Quantos anos a Clarice tem? - ela perguntou, como que casualmente. 
- Dezenove - eu disse, embora a Clarice tivesse vinte e quatro. Só não falei dezoito porque ia parecer coincidência demais. 
Se houvesse algum objeto ali para jogar na parede, tenho certeza que ela teria jogado. Como não havia, ela dava pontapés no ar, tentando chutar os sapatões para longe, o que não conseguiu, pois eles estavam firmemente amarrados. Então ela pôs o vestido, mas pelo avesso. Ao retirá-lo, quase se sufocou com ele, ao contrário da maneira graciosa e segura como o fizera da primeira vez. E acabou por estar de novo nua, e de sapatos, chorando mansinho, como se tudo aquilo a houvesse feito amadurecer anos, conformar-se à realidade. 
Eu não sou burro, embora as coisas que escrevia para o segundo caderno muitas vezes fossem. Continuei ali deitado, nu, esperando que a histeria dela passasse. Sabia que se aquela mulher não cometesse nenhuma ação sem retorno, o fato de eu ter uma noivinha de dezenove anos só faria aumentar o seu desejo, desta vez por mim mesmo, nem que fosse para provar mais alguma coisa. E, realmente, enxugando as lágrimas, ela acabou por fazer a inevitável pergunta do final do século. 
- Você trouxe camisinha? 
- Não, eu e Clarice somos monogâmicos e não usamos. 
- Mas eu e ele não somos e não confiamos em ninguém - ela disse, indo até onde deixara sua bolsa. Remexeu lá dentro e depois atirou para mim uma camisinha. 
- Era para usar com aquele veado - ela fez questão de informar. - Mas se você fizer alguma perversão comigo eu vou gritar. 
- O que você chama de perversão? 
- Se chegar perto, eu aviso - ela disse. 
Fui pôr aquele troço no banheiro, onde estava mesmo precisando ir. Lá dentro, tentei descobrir o que ela achara tão ridículo, pois era uma peça comum, até confortável, com uma boa banheira. Imaginei que deviam ser os azulejos brancos, com figuras azuis de Vênus e de anjinhos tocando trombetas, possivelmente copiadas de terceira mão do banheiro de algum palácio na Europa. E não pude deixar de pensar, incomodado, que Clarice gostaria daquele banheiro, talvez o consideraria a melhor coisa do apartamento. 
Ou teria a mulher implicado com o espelho oval, com bordas trabalhadas em metal prateado? O espelho no qual agora eu me olhava, percebendo que alguma coisa mudara em meu rosto, talvez uma inocência perdida, pois estava traindo Clarice pela primeira vez. Tentei pescar lá no fundo de mim mesmo uma velha culpa, conhecida minha, e não consegui encontrá-la. 
Concluí que aquilo não era uma traição, era um acontecimento tão inexorável quanto uma catástrofe. Eu fora atropelado pelo destino e só me restava sair de novo ao seu encontro. 
Encontrei a mulher na sala, deitada de costas num colchãozinho que ela disse ter achado no quarto de empregada. Estava nua até dos sapatos, e, com as pernas e os olhos semicerrados, parecia a noivinha que, tenho certeza, ela estava representando, com algum rubor nas faces, talvez de ruge, mas o que importava? 
Descrições de pormenores sexuais são deselegantes e enfadonhas. Se as cometi, anteriormente, foi por considerar que certos atos obedeciam a uma lógica e motivações radicais, a uma sexualidade invulgar - e, por que não dizer?, refinada - que poderão servir ao enriquecimento do eventual leitor deste relato, feito por quem não se pretende mais do que um repórter. 
Mas creio poder revelar que gastamos duas camisinhas e fizemos de tudo, nesse segundo movimento, menos o que, imaginei, devia ser a tal perversão. Quanto aos orgasmos dela, da segunda fase, foram quase certamente falsos e teatrais e, por vezes, tive de tapar sua boca. Como se ela quisesse anunciá-los ao prédio inteiro, talvez ao mundo, mais particularmente a Clarice, ao tal coroa e sua garotinha. Mas o que importa, já que os meus foram verdadeiros, assim como os meus sentimentos? 
O meu grande erro, talvez, tenha sido querer traduzir esses sentimentos, comentando o crepúsculo que vimos cair, o luar que agora banhava os nossos corpos, o canto tardio de cigarras de outono. E houve um momento em que cheguei a dizer, ternamente: 
- Poderíamos até morrer juntos. 
Isso lembrou-lhe que devia ir embora. 
- É melhor descermos separados, depois de todo esse escândalo. Eu vou primeiro e você entrega as chaves, está bem? - ela disse. 
- Pretende ficar com o apartamento? - perguntei enquanto nos vestíamos. 
- Uma gaiola dessas? Você deve estar brincando. 
- Vai voltar para aquele cara? 
- Agora já posso - ela disse. 
- Vai contar para ele o que aconteceu? - perguntei, ajoelhando-me para amarrar os seus sapatos, enquanto ela acendia mais um de seus cigarros. 
- Tudo é possível - ela disse. - Mas não aconselho você a fazer o mesmo. Sua noivinha não iria perdoá-lo. 
- Talvez eu não queira ser perdoado. 
- Você é louco - ela disse, encaminhando-se para a porta. Quis acompanhá-la até o elevador, mas ela não deixou. 
- Me diga ao menos o seu nome - implorei. 
- O que passou, passou, está certo? Que importância têm os nomes? 
- Não quer nem saber o meu? 
- Não - ela disse, batendo a porta. 
O que mais dizer? 
Terminei com a Clarice, voltei a fumar e vim morar sozinho, pagando uma mixaria de aluguel, no apartamento 1101, B, do Condomínio Bois de Boulougne, na expectativa, talvez fantasiosa, pelo menos em sua segunda parte, de que o coroa um dia aprontasse mais alguma com a mulher, e ela, farejando o meu destino, viesse me usar para uma nova vingança. 
Até o momento em que escrevo, isso não aconteceu. Mas, entre intervalos mais ou menos longos de tediosa calmaria, muitas coisas acontecem no Bois e suas redondezas: batalhas entre traficantes no morro Dona Marta, o pipocar de fuzis e metralhadoras, foguetes sinalizadores cruzando os ares, incursões da polícia e do exército na favela, helicópteros voando rasante sobre o bairro e, de vez em quando, balas perdidas, que já furaram novamente as paredes da sala e dos quartos. 
Às vezes, engatinhando com as luzes todas apagadas, vou deitar-me no assoalho daquele quarto em que fui possuído pela mulher. Entrincheirado atrás de uma parede, acendo então um cigarro, dou uma tragada funda, e penso naquela que me penetrou até o âmago. 
Troquei o segundo caderno pelo setor de polícia do jornal, comprei um binóculo potente, para observar o morro, e instalei um fax no quarto desabitado de empregada, cujo colchão, onde às vezes durmo, conservei. Dali, o local mais seguro do imóvel, envio as últimas notícias para a redação, às vezes quase na hora do fechamento do caderno Cidade Escrevo à mão e assim transmito as páginas, pois meu micro levou um balaço que varreu para sempre sua memória, igual a um ser humano quando apaga. Estamos furando todos os concorrentes no noticiário do Dona Marta. 
Num domingo, enquanto olhava pensativo da janela lá para baixo, testemunhei quando um senhor, usando um desses shorts largos, foi alvejado pelas costas por um franco-atirador, no momento em que mergulhava na piscina semideserta do condomínio. Caiu já provavelmente morto na água, cujo azul se tingiu de vermelho, num contraste macabro na manhã ensolarada de primavera. Foi o que escrevi, e não cortaram. 
Pensei, também, que morrer talvez não tivesse mesmo a menor importância. O sujeito havia saído de cena em grande estilo, enquanto nós, aqui, continuamos sofrendo por razões diversas, incluindo as minhas. 
Mas não estava simplesmente fazendo frase quando escrevi, para finalizar a matéria, com esperança de que a mulher me lesse, entendesse tudo e viesse me encontrar, que morrer é muito fácil no Bois de Boulogne. 
Nos olhos do intruso Rubens Figueiredo Não lembro a primeira vez. Mas aqui e ali comecei a ouvir comentários: aquela é a cidade que interessa, é onde as coisas acontecem, o futuro fugiu para lá. Advertências que repetiam a verdade mais simples, não há como negar. Hoje, parecem ressoar a voz de um oráculo. Mas era uma verdade que entendi mal, que me apressei em traduzir totalmente errado, nos termos da euforia de um menino, ou até de um tolo. 
Talvez eu pudesse ter ficado como estava, talvez o futuro ainda dormisse bem longe até hoje, se naquela noite eu não tivesse ido ao teatro. Três atores representavam vários papéis e a história da peça quase não importava. O espetáculo consistia muito mais na velocidade e na perfeição das metamorfoses dos atores. Em poucos minutos, eles trocavam de roupa, peruca e maquiagem, encarnavam outra voz, outra personalidade, e tudo com um vigor que só podia nascer de um tipo de vida. 
No final da peça, algumas fileiras à minha frente, aconteceu. Quando as pessoas se levantaram, entrevi, no intervalo das cabeças, um homem parecido com alguém que eu conhecia. Talvez fosse a dança de tantos rostos a meu redor, mas o efeito era o de muitas feições distintas convergindo e se sobrepondo no ar transparente. 
Uma desconfiança incômoda me obrigou a olhar melhor e então deparei com um sujeito igual a mim mesmo, apenas um pouco mais novo. Sacudido por uma espécie de insulto, experimentei o temor de estar sendo sorrateiramente substituído. 
Com os olhos naquele homem, esqueci que devia continuar andando. 
As pessoas atrás de mim, na minha fileira, me repreenderam com resmungos. 
Tentei me livrar do meu estupor, mas o máximo que consegui foi observar o homem da maneira mais discreta que podia. As fileiras escorriam todas na mesma direção, o público escoava ligeiro para o funil da saída e logo o perdi de vista. 
Se uma coisa deriva sempre de outra, se todo fato espalha efeitos em todas as direções, por que não ver no que se seguiu uma continuação, um sistema? Podia parecer um desses acasos bobos, uma dessas situações tão corriqueiras que nem paramos para pensar. Em um intervalo de semanas, pelo menos três amigos se aproximaram de mim para dizer que me tinham visto em lugares que eu não conhecia, locais aonde eu nunca fora, fazendo coisas que eu absolutamente não podia ter feito, porque estava ocupado, em outra parte. 
Na primeira vez, juro, tentei negar. Depois, diante da alegre certeza da pessoa à minha frente, me resignei a ouvir em silêncio. A seguir, de uma maneira que eu mal percebi, passei pouco a pouco a acreditar que era eu mesmo que ia àqueles lugares e punha em prática aquelas ações. Eu até sorria e pelo menos uma vez cheguei a inventar explicações adicionais, coerentes, que vi serem bem aceitas pelo meu ouvinte. 
Outros talvez não prestassem atenção. Outros talvez não encadeassem uma coisa à outra. Sei que, mesmo na vida mais banal, há lugar para tudo. 
Mas, um dia, no centro da cidade, um homem completamente desconhecido me cumprimentou com familiaridade. O sinal fechou e, enquanto eu atravessava a rua, o homem, andando em sentido contrário, acenou ligeiro com a mão. Receoso de me mostrar mal-educado com algum conhecido, correspondi ao aceno. O sinal abriu, os carros e ônibus andaram, bloquearam minha visão e eu o perdi na multidão da calçada oposta. 
Tempos depois, eu vinha andando distraído pela rua. Quando dei por mim, uma pessoa que não pude reconhecer me dirigia palavras apressadas. 
Mencionou de passagem um nome estranho para mim como se fosse um amigo comum. Depois pediu desculpas pela pressa, se despediu e foi embora. Algo desse tipo se repetiu ainda, talvez em um espaço de alguns meses, duas ou três situações que outras pessoas poderiam interpretar como encontros fortuitos com lunáticos, do tipo que prolifera nas ruas, eu sei. Mas a minha lua é a mesma de todo mundo. 
Aos poucos, as atividades que esses desconhecidos atribuíam a mim começaram a me parecer familiares. As pessoas que eles mencionavam chegaram a se tornar íntimas para mim, com seus nomes e suas ambições cotidianas. Tudo ia se incorporando à minha memória. O meu passado se expandia com um novo elenco de pessoas e fatos, ao mesmo tempo em que o meu presente também se ampliava, numa espécie de movimento de conquista. Minha vida abarcava muitas outras vidas e assim eu conseguia me sentir mais vivo do que nunca. 
Um dia, numa rua do centro, tomei coragem. Arrisquei cumprimentar alguém que eu, com absoluta certeza, não conhecia. Após um instante de surpresa bem natural, nas circunstâncias, a pessoa respondeu ao meu cumprimento, de forma discreta. Sua expressão deu a entender que, naquele momento, não tinha tempo para conversar comigo como gostaria, e seguiu adiante. 
Por que pedir mais? Vi naquilo uma confirmação, e não poderia ser de outro modo. Agora, eu olhava o mundo à minha volta com o ardor de uma simpatia desconhecida. Via as pessoas entrando e saindo pelas portarias dos prédios, contemplava a fila de cabeças voltadas para mim nas janelas dos ônibus e sabia que no mundo ninguém mais seria para mim um estranho. 
Vivi assim um tempo, até que, certa manhã, o telefone me acordou. A voz do outro lado avisou que uma determinada pessoa havia morrido. Citou um nome, que não reconheci nem me dei ao trabalho de memorizar. Mas anotei a hora e o lugar do funeral. A voz ainda lamentou que ele tivesse morrido ainda jovem, e garantiu que "todos" iriam lá. 
Cheguei em cima da hora, um pouco atrasado até. Achei que por isso ninguém se aproximou para me cumprimentar. Raciocinei que temiam perturbar a cerimônia. Uma música de órgão descia gelada das paredes e só um segundo antes de o caixão ser fechado distingui as feições do defunto. Foi rápido, uma sombra correu sobre o véu transparente. Mas creio ter reconhecido o homem que eu, nem sei quanto tempo antes, vira no teatro. 
O homem igual a mim. Com a tampa fixada em seu lugar, o caixão deslizou por uma esteira na direção de uma porta e desapareceu no crematório. 
Antes que eu me refizesse da surpresa, todos haviam ido embora sem sequer se despedir de mim. Em poucos dias, as coisas começaram a mudar. Encostei no balcão de uma lanchonete, pedi um cafezinho, na esperança de que o garçom conversasse um minuto comigo, sobre o tempo, o trânsito, o que fosse. Mas ele logo virou a cara para o meu sorriso, como se estivesse diante de um estranho, um intrometido. 
A rigor, aqui e ali, eu descobria motivos para pensar que me consideravam um importuno. Em lugares onde eu esperava ser recebido como um irmão, me rechaçavam com a frieza e a hostilidade educada que só se descarrega sobre os intrusos. Mesmo nos ambientes que, antes, eram para mim perfeitamente familiares - meu trabalho, minha vizinhança, meus colegas - eu me via tratado como alguém indesejável. Foi nessa altura que resolvi me mudar para uma outra cidade, a cidade de que eu ouvia falar com tanta simpatia. 
Tratei de me adaptar o mais depressa possível. Tentei refazer minha vida, reconstituir à minha volta um convívio humano que me justificasse. 
Mas isso se revelou difícil. Pelo menos, eu não era tratado como um invasor. 
Acho que eu poderia ter vivido assim bastante tempo, sem maiores problemas. Mas agora isso não será possível. Há poucos dias, em uma barbearia, rodeado de espelhos que corriam diante de mim e às minhas costas, entendi o que era o futuro e por que ele estava nesta cidade. 
O barbeiro terminou de aparar meu cabelo, ergueu dos meus ombros o pano branco com um floreio do braço e então me levantei. Quando contemplava a mim mesmo no espelho, reparei com o canto dos olhos o reflexo de um homem, umas três cadeiras à esquerda. Ele me fitava com insistência. Tinha um ar quase desnorteado, na verdade, e achei que já devia estar me observando desde algum tempo. 
Por instinto, desviei o rosto pois o homem me pareceu agitado. Fingi que não o via e estou certo de que o deixei convencido disso. Mas os espelhos permitiam olhares diagonais. Por esse ângulo, pude notar que o sujeito era extraordinariamente parecido comigo. Apenas um pouco mais velho. 
Fui para a rua. Forcei minhas pernas a caminhar e vi a calçada fugindo para trás sob os meus passos. Sei agora por que vim para esta cidade. O olhar admirado do homem na barbearia foram as boas-vindas e também uma despedida para mim. Já posso sentir o calor das chamas estalando. Mas, até que chegue a minha vez, esse sujeito ainda vai ouvir falar muito de mim.

Contos do Sábado na Usina: Myriam Campello: Olho:




Quando ela acorda, põe imediatamente o seio esquerdo em minha boca. 
Sei muito bem que não é assim que se começa uma história. Mas a língua portuguesa nada mais é para mim que um instrumento de compreensão, de clareza científica. Por meio dela transmito minhas aulas de Botânica, leio as separatas, teses e livros que me informam das novidades do ramo por esse Brasil afora. Não sou escritor, isso vê-se. Pouco entendo de sintaxes ou 
estilos e sim de vegetais, florações. Um reino mais modesto. Devo confessar no entanto que a beleza perfeita de uma Phalaenotsis Winter Dawn var. 
Mauna Kea, por exemplo, me entusiasma bem mais que a frase cintilante do autor renomado. Se deito ao papel notícias do vendaval que no último mês desmantelou minha vida é por justamente sentir-me em pedaços. 
Português de nascença e ex-seminarista de hábitos metódicos, não que a solidão eu não possa suportá-la. Mas na de minha irmã e eu que vivemos sós nesta casa há uma tal qualidade de exílio e afastamento dos homens que por vezes nos sufoca ao impossível. Não há a quem falar. Do que acontece, não se pode dizer por proibido. Vivemos arredios, sem sociedade com outros além de um boa-tarde seco, um bom-dia reservado que marca limites. Não serviria conversar com aqueles a nossa volta. Esbarrando em um vizinho, falo sobre plantas orquídeas, minha especialidade. Isto é, perguntam-me e respondo, nada mais. E entro em casa. 
Minha irmã sei que sente-se como eu, embora minta: não quer aumentar a angústia que lê em meus silêncios. Ou por outra, sente-se como eu embora feita de material diverso. É mais forte, talvez. Talvez mais livre. 
Onde hesitei sequer pestanejou, radiosa como a Epidendrumfragrans. a mesma nitidez alba, a mesma elegância. Sua paixão tem a firmeza imaculada de certas sépalas, de certas pétalas. Mas tanto a ela quanto a mim se alguém nos oferecesse voltar no tempo faríamos tudo igual, privilégio dos atos perfeitos. O que não anula a noção de catástrofe que nos ronda, um perigo de partir-se o cristal a todo instante. É o tormento que se cola às minhas insônias. 
Pois o inferno mesmo é amar o proibido. Para todo o resto se encontra um jeito, se arma uma saída. Cirrose, lepra, enfarte, até mesmo certos tipos de câncer os médicos acham de curar. Mas experimente querer por um segundo impensável a própria irmã, querer como um homem quer uma mulher, eu digo tê-la. Pesadas comportas descerão sobre você em cadafalsos, isolando-o do mundo. Jaula sim. E o desterro brutal, o deserto. Terá que agüentar o silêncio como se fosse este o veículo natural entre os homens, já que a palavra denuncia a verdade e esta é arma de suicídio. E dar-se a uma existência surda, contida, de onde a espontaneidade será expulsa como um mal. Será um mal, trocada pela vigilância de si. Cárcere do desejo. Mentiras. Que nem assim adiantam. A primeira carta anônima meteu-se à minha correspondência mês atrás, caída do azul. Repelente como papéis desse tipo, dizia apenas "eu sei tudo" em letra forçada, velando-se. Estupor e medo subiram por mim. Como podiam ter visto algo e o que se minha irmã e eu só em casa nos tocamos? Se só entre nós permitimos que a espuma do amor flua e se derrame? Junto aos outros, também o olhar é mantido sob ferros. Sofro por esse sol ardente que se congela em contato com o mundo, como certas substâncias. Mas apesar da tela que pretendíamos vazia, vazada como um olho cego, varada de qualquer expressão que não a consentida, ainda assim nos viram. 
Desprenderá a paixão algum cheiro, traço, uma energia qualquer que emitindo-se nos denunciasse? Somos como lesmas? Outros o são? Analiso detidamente os casais em torno. Onde seus corpos se chocam, os pontos de pressão. Reentrâncias e volumes que disfarçadamente se esfregam em público. Eles, sim, fazem ondular a atmosfera com sua animalidade visível. Mas nós? Entre minha irmã e eu há sempre um rigor imposto, uma distância necessária, cerimônias que calham bem a meu jeito formal de ex-seminarista. Pois com olho sujo violaram nossa aparência impecável e surpreenderam-nos, os cães nojentos. Falo no plural por achar que a desgraça acode aos pares, às trincas; um canalha era pouco. Mas tenho que só uma víbora a nos morder o calcanhar. É ignorar-lhe os silvos. Cansar-se-a. 
Vista de dentro, nada existe de estranho em nossa relação. Minha irmã e eu somos como todo mundo, embora o disfarcemos. Gostamos dos espaços amplos, da textura das pétalas, de receber amigos e bradar nosso amor sem que empalideçam a nossa volta. Gostamos também daquela rua escura, por exemplo. 
Dando aulas à noite, passo por uma rua escurecida por grandes exemplares de Ficus religiosus, troncos imensos mergulhados na sombra que os namorados aproveitam como pontos de apoio. Por que também não posso levar minha irmã para lá, erguer sua saia e comê-la contra a casca rugosa? Reivindico para nós os mesmos atos que qualquer par de amantes chancela com a displicência de um direito divino. A idéia persegue-me dia e noite, acossa-me os sonhos, atropela-me as aulas, dando-me a expressão concentrada de um ser em transe. As margens de minhas anotações se cobrem com desenhos de homem e mulher de pé contra uma árvore, em posição de cópula. Como um pintor rupestre, reproduzo-os com insistência. Os desenhos se tornam cada vez mais esclarecedores, o traço mais seguro. Tenho medo que abram meus livros, vejam por acaso meus papéis. Qualquer momento de folga guia minha mão e da caneta ou lápis brota a imagem fixa: homem, mulher e árvore. Conheço bem a cena. Só me falta vivê-la. 
Há cinco dias nova carta anônima chegou-me às mãos. "Estou de olho em vocês", rezava a mesma letra sob máscara. Nada digo a minha irmã, pois algum terror sempre imprime-se a tais documentos. Não quero assustá-la. 
Apesar do temor, um prazer obscuro também se esgueira em mim: finalmente somos vistos. Gosto desse olho que nos cobre de uma gosma obscena. 
Nem as paredes nos protegem. 
Inconscientemente, assumo posições escabrosas para agradá-lo. Quando derrubo minha irmã na cama, sei que o olho me vê e meu pau lateja mais duro. Invado-a então com o vigor de quem escava um poço. Ontem a machuquei. 
Mas não reclamou, como se por alguma razão também necessitasse disso. Ao contrário, dilacerou-me as costas num êxtase profundo, secreto. Enfiado em sua vagina, vasculhei-a com umaviolênciade estupro. Agora somos três. A lembrança disso logo me faz enchê-la de um jorro quente e espumante. Hoje, ainda bem cedo, fui ver as orquídeas na grande estufa atrás da casa. Na espécie vegetal reina uma liberdade opulenta, caprichosa, que muito bem faria ser vista por quem nos persegue. Há de tudo. Algumas flores recebem dos pássaros o pólen necessário. Outras do vento. Ainda outras se autofecundam. E quero ver se aponta-me alguém algo mais esplêndido que a Paphiopeclilum maudire Magnficum, cuja carnação branca de veios verdes lembra folhas a virarem pétalas, surpreendidas na alquimia. Quanto à bela Sophronitis coccinea Reichb, delicadamente vermelha, é minha irmã que me traz à memória. Embora a palavra orquídea venha do grego orchídion "pequeno testículo", o labelo da flor assemelha a uma vulva deliciosamente aberta. 
Nomearam-na os gregos errado por não apreciarem mulher. Já eu sim. Morrendo-me a mãe viúva há quatro anos e não suportando mais o seminário, resolvi abandoná-lo. O sexo aguilhoava-me além do que se pedia a um sacerdote. Para evitar futuro desgosto à Igreja, e a mim uma contínua infelicidade, decidi ser professor. Na casa sobrara apenas minha irmã, que não via há tempos. 
Espantei-me com a desabrochada moça a receber-me, bonita, quase uma estranha nos seus dezoito anos, eu que guardara dela uma imagem infantil. Aos poucos, porém, fluindo os meses, uma intimidade nova nasceu entre nós. Nada acostumado às mulheres, naquela tudo me encantava. às vezes a olhava sem rebuços, mesmo às escâncaras. Outras secretamente. 
Gostava de vê-la sair do banho, os cabelos limpos envoltos na toalha em turbante. Lufadas de colônia seguiam-lhe cada gesto, espécie de neblina que se tornou para mim a denunciadora inefável de sua presença. 
Deslocava-me para o quarto dela, atraído de corpo e alma, fisgado como um peixe. Oferecia-me para segurar-lhe o secador. Em silêncio, voluptuosamente, entregava a cabeça em minhas mãos. Eu libertava os cabelos curtos como os de um menino, muito louros, fios de seda que a água escurecia brevemente como num ato mágico. Eriçados pela minha mão, varridos pelo jato quente como campo de trigo ao vendaval, os pêlos molhados desfaziam-se em mil fios leves, secos agora, novamente de ouro. Meu prazer aumentava quando isso era feito sob o sol. Ativada pelo banho, iluminada pela luz, em sua pele clara imprimia-se o tom das pequenas rosas silvestres que cresciam nos jardins do mosteiro. 
Sequioso, sem me fazer perguntas, buscava secretamente novas formas de contemplá-la. Preparando-se para sair tinha-me sempre por perto. Vestia-se, é claro, sozinha, a porta do quarto nos separando. Mas eu a observava pintar-se dentro do banheiro, encostado à parede, uma displicência fingida escondendo a tensão perturbadora. Atento, acompanhava o pó lhe cobrindo 
o rosto, o ruge tornando humano o tom só declarado em pétalas. Fria, absorta, ela examinava estranhamente a imagem do espelho como se a desconhecesse, namorando-se. Via sem dúvida uma mulher bonita. Quando pintava a boca com o batom vermelho, uma resposta clara esboçava-se no centro do meu corpo. Esperava que saísse e masturbava-me furiosamente no ar saturado de perfume. 
Às vezes a surpreendia com uma expressão tão intensa fixada em mim que bem podia ser desejo. Mas este, se o fosse, era logo varrido por autocontenção implacável que a obrigava a arredar a vista. Só voltava a fitar-me com o olhar limpo de tudo que não fosse ternura e um leve toque de zombaria, se de mim ou de si nunca soube. Travar-se-ia nela o mesmo combate agônico dilacerando-me? Muitas vezes chamei-me de louco, duplamente louco por pensar assim. 
Um dia, certa greve de professores me fez voltar mais cedo do trabalho. A casa boiava em silêncio, como sem ninguém. Larguei livros e um caderno cheio de meus traços em qualquer lugar e empurrei a porta do banheiro. 
Com movimento de susto, minha irmã cobriu-se com a toalha. Acabara de tomar banho e não esperava tão cedo minha volta. Durante um longo momento ficamos ali, um diante do outro, imóveis. O coração selvagem. 
Meu primeiro impulso foi virar-me e sair, mas forças contrárias o combateram, paralisando-me. Finalmente o desejo me sufocou. Fui até ela e puxei a toalha. Ainda tentou resistir, virou-se mas acabou cedendo, posso dizer que muito menos à força que à minha vontade. O grande espelho do banheiro 
viu quando beijei sua nuca loura e explorei-lhe o odor, minha boca eriçando os pêlos sedosos, a fronteira entre pele e pêlo que sempre quisera sondar. Virei-a de frente. Nosso banheiro tem uma antiga pia de mármore, muito sólida. Ergui minha irmã e sentei-a ali, naquela borda. Quando abri a boca e ela 
sentiu minha respiração dolorida, apressada como a de um animal que sofre, só podia fazer mesmo o que fez. Pegou o seio duro com a mão e o pôs em minha boca. A mucosa incendiada de febre o envolveu. Minha língua rolou pelo mamilo tentando derretê-lo, açoitando o botão de carne em todas as direções. Chupei, mastiguei, devorei seus seios com uma fome antiga. Sempre os mastigo longamente antes de caminhar pelo resto de seu corpo. Azeitonas que se enrijecem, vermelhas, e largam seu suco em minha boca. 
Puxei-a para o quarto e joguei-a na cama. Com a língua, umedeci sofregamente e por muito tempo as fendas de seu corpo. Quando a cobri, ela quis. Abriu-se como fruta que se racha no solo. O desejo é vagalhão enfurecido, avalanche que se nutre do próprio excesso para melhor derrubar e engolir. Iniciado, nada pode detê-lo. Se abrissem a porta e me vissem dentro de minha irmã, gozando-a, meu sêmen se estancaria? Penso que não. Uma vez explodindo, é esperar que a convulsão cesse por si mesma. Assim, fomos de roldão nas asas da carne até que o esgotamento nos fez dormir, eu ainda com o membro dentro dela. 
Desde então vivemos o que podemos, equilibrando-nos no fio aguçado. Apesar do dissímulo, eis-nos fortes como um par de leões. Antes deviam nos ver, que nos escondermos. Sabemos contudo que existe o que deve ser olhado e o que não deve sê-lo. Este inclui o relâmpago, por exemplo; o andar furtivo de um rato; pássaros fazendo ninho; dois amantes que se beijam. Como os mistérios de Elêusis, são matéria interdita, esfera do sagrado. Uma proibição implícita os protege. 
Do mesmo modo disfarçado e sonso com que os contemplamos, observo minha irmã, atualmente mais silenciosa que nunca. Pensamentos febris fulguram em suas íris douradas como a Brassidium Aloha var. Elisabeth, um amarelo pintalgado de madeira clara, flores fugidias que parecem exibir duas matérias diferentes. É só distrair-me e capto os pequenos faróis pousados sobre mim com algo movendo-se por trás deles como sob um véu. Não adianta perguntar-lhe nada, não o dirá: quer poupar-me de tudo. E se não fosse só isso? Preciso observá-la melhor. 
Lanço também aos namorados sob as árvores o mesmo olhar turvo, fugidio. Hoje passei lentamente pela rua escura para registrar o que fazem. O olho pronto a disparar como uma cãmera. Escolhi um par: nem me perceberam, aos beijos, esfregando-se. Também quero ter minha mulher sob as árvores. É uma idéia fixa. O odor do tronco crestado e das folhas crescidas à chuva e ao sol se misturaria ao de minha irmã, tépido, de carne humana florescente. 
Paro na rua ofegante, de nariz para o ar, os pulmões cheios até que doam. De repente, as células do corpo vibrando com a força do prazer contrariado me avisam que estou perto de realizar meu desejo. Como um cavalo veloz tolhido pela brida, basta-me um sinal. Basta-me um leve empurrão, o toque que precipita no abismo coisas já abaladas. Estou, estamos, no limite da resistência. Quero ser visto, exijo que me vejam. Quero o olho do mundo sobre nós, esse banho salgado e primordial que colará ainda mais minha irmã a mim. Vasculho a mente em todas as direções para decifrar o enigma. Em torno de mim tudo está fechado, imutável. O céu impassível não me diz com que sinal vencerei. Não desisto. 
Chego em casa incendiado como nunca. Quem sabe a resposta estaria ali, entre as paredes que nos cerram? Um bilhete de minha irmã avisa-me que logo voltará. Ando pelos cantos a esmo, as paredes devolvem-me muros frios. Não há salvação. Um desespero de morte tolhe-me o peito quando entro no escritório e ponho-me automaticamente a desenhar. Homem, mulher e árvore enchem um caderno encontrado ao acaso. O Ficus religiosus acobertando o par de pé, enlaçado como numa gravura hindu. O pênis dele mergulhado nela como um punhal. 
Desenho incessantemente durante algum tempo em busca de um alívio que não chega. Então paro, ofegante. Meus olhos caem sobre a correspondência na mesa, o envelope de cima com a letra embuçada que nos persegue. 
Desta vez, no entanto, algo familiar se destaca dele e investe contra meus olhos, rápido inseto esvoaçante. Numa revelação, reconheço sua função secreta. Rasgo o envelope em alvoroço. "Um gesto em falso e eu os denuncio." 
Uma onda quente de amor envolve-me com doçura. Somos iguais. Precisamos do peso do mundo. Minha irmã usa cartas anônimas. Já eu quero a árvore e a rua escura. É um grande salto no vazio, um salto sem retorno. Mas retornar para quê? Esta noite me casarei com ela sob a árvore. Esta noite sem falta.

Projeto Contos do Sábado Na Usina: D'Araújo: A morte do planeta azul:





Em um tempo não muito distante, quando o planeta terra já não era mais habitável, em uma das dezenas de estações para onde o que restou da população mundial foi transferido.
O comandante anuncia para que todos saiam das suas cápsulas e que se dirijam ao grande salão para que todos assistam juntos, ao marco da nova era humana. Pois o planeta no qual se originou a raça humana chegava ao seu ciclo final de existência. Certamente todos os tripulantes desta, e de todas as outras estações que formavam a frota de habitações espaciais, mal conseguiam controlar a ansiedade, pois a expectativa era grande, afinal, se aproximava o fim do grande planeta azul.
Coisa que até dois séculos atrás ninguém acreditaria nesta possibilidade tão absurda e irreal, mas que diante dos acontecimentos dos últimos séculos já se tornara um consenso. E o fato era inevitável.
         Vamos agora retornar então há alguns séculos atrás, quando tudo começou, mais precisamente em meados do século vinte e um. Quando um velho cientista, até então desconhecido para a comunidade cientifica mundial, chamado Antoniese Larise, surpreendeu o mundo com suas teses sobre a extinção do planeta azul. No ano de 2005 em uma conferência universitária Larise tornou público um artigo onde fez seus primeiros parâmetros entre a evolução do homem e a inevitável trajetória para a destruição do planeta. Em seus artigos, ele aliava a alienação do ser humano com a inevitável desagregação da espécie; a qual primeiramente levava o isolamento do homem até a inevitável destruição do planeta.
          No ano de 2005, O então desconhecido pesquisador, Larise, começava a destilar suas teses, segundo as quais em um pequeno intervalo de tempo já provocavam alvoroço e incômodo aos seus colegas.
          O Sr. Antoniese era um homem reservado pouco se sabia da sua vida pessoal apenas que ele era um dos maiores estudiosos do comportamento humano e da sobrevivência humana da época.


Naquele dia, o pequeno auditório encontrava-se completamente ocupados, com pessoas em pé que se espalhavam por todos os lados.
O Dr. Larise aparece trajando uma roupa bem casual para o momento. Quem o conhecia sabia que ele não era muito adepto de formalidades.
Ele começa a sua apresentação agradecendo a presença daquela pequena multidão que ali se aglomerava, agradece também pelo convite daquela entidade e a oportunidade para que ele possa divulgar as conclusões dos seus longos anos de pesquisa. Explicou em primeiro lugar que não tinha a menor intenção de transgredir qualquer conceito atual com as suas conclusões sobre os longos anos de pesquisa da espécie humana e o seu habitat, apenas elucidar o que ele achava inevitável diante os resultados obtidos.
Ficou em silencio por alguns segundos, pediu a atenção de todos ali presentes. A tensão era tão presente, que se podia ouvir o som daquela respiração coletiva do ambiente:
         Iniciou dizendo que era factual e notório que apesar dos milhões de anos da existência humana o homem continuava fingindo entender o universo para não ter tempo para entender ao seu próprio planeta. Pois um dos grandes desafios da humanidade era entender que a miscigenação não eliminou nenhum elemento genético das primeiras criaturas humanas que habitaram o mundo. O que houve foram apenas algumas adaptações naturais as necessidades de todos os habitat, conforme a seleção natural entre o cruzamento de espécies, conforme já especificado em pesquisas de alguns séculos atrás...
Além de causar muita apreensão entre os presentes, os mesmos esperavam pelas revelações que já circulava nos meus de comunicações sobre o seu intrigante artigo.
As comunidades científicas diziam que seus resultados eram incoerentes para o momento em que vivia o nosso planeta, e segundo os doutores do tempo, os fatos relatados não tinham qualquer consistência. Mesmo assim ele já tinha uma pequena legião de seguidores.



Ignorando os olhares de descrença de alguns colegas ali presente, primeiro ele começa a relatar sobre os resultados obtidos a qual demonstrava a desordenada adaptação da espécie humana no nosso planeta.
Com a adaptação da espécie para convivência em sociedade de regras pré - estabelecidas, o homem e suas inquietações, e a complexidade de sua mente. O levaram a criar situações de mistérios absolutos sobre suas próprias capacidades. Com suas necessidades antepassadas escondidas nos seus subconscientes, o homem muitas fezes se depara com suas inevitáveis verdades inconveniente. Trazendo assim com o desenvolvimento tecnológico o começo da perda do contato direto com sua própria espécie. Ele então começa a resgatar valores, desejos e necessidades que já não povoava sua mente consciente.
Tudo isso trazido a um contexto de competividade apregoada nos modelos sociais atuais. Resultou em uma situação de descontrole emocional ireversivel, e que se torna encompreencivél para a mente, pois ela não consegue identificar os horizontes de seguimentos desejáveis. Sendo assim a mente se alto programa de acordo com os sentimentos mais eminentes de acordo com o meio onde vive. Como nada no subconsciente do ser humano é descartado, somos surpreendidos por ações desumanas por pessoas ditas normais.
         Com a evolução muito rápida do seu meio, o homem chega muito rápido a fase adulta de sua mente, sem que o sentimento como pessoa os acompanhe. Gerando assim muitos conflitos, pois ele não se ver como a sociedade que o rodeia. Vivendo com essa mente conflitante ele se transforma em passageiro de se mesmo. Sem a capacidade de controlar suas próprias ações o homem começa a depositar sua esperança, na capacidade dos seus semelhantes gerando assim uma falsa expectativa de paz interior.     
Sempre esperamos que o homem finalmente encontrasse um ponto de equilíbrio, entre o desenvolvimento do seu meio e a capacidade de sua adaptação. Pois correríamos o serio risco de termos cada vez um crescimento desordenado de verdadeiras legiões de alienados.
Incorporado ao nosso meio social que julgamos sano, mas que infelizmente em um futuro bem próximo venha a causar um desequilíbrio capaz de comprometer o convívio social aceitável entre os homens...
         Conforme o professor Antoniese ia se aprofundando nos relatos das suas conclusões, mais gerava grande expectativa, sobre o que poderia vir a seguir. Por que, apesar de praticamente viver em uma eterna clausura onde dedicava praticamente todo tempo de sua vida ao desenvolvimento do conhecimento humano, pouco se sabia sobre as suas teses.
E depois de uma pequena pausa, ele retoma o seu discurso.
Explicando que ao longo das ultimas décadas temos utilizado de forma indiscriminado produtos químicos para se garantir uma produção satisfatória de alimentos. Desta forma temos acelerado também processos de mudanças genéticas significativas, e causando assim danos irreparáveis à saúde do homem a logo prazo.
Já é notória a situação de risco da existência humana diante a incapacidade do homem de preservar a si mesmo e ao seu meio...
E dessa forma o professor seguia conduzindo sua apresentação, até então de assustador nada tinha sido revelado diante dos comentários que tanto se falavam sobre ele, então ele seguia pontuando cada etapa da sua pesquisa.
          Explicando que estamos todos vivendo teleguiados por uma junção de ações internas e externas que dificulta a capacidade de compreensão das nossas próprias necessidades imediatas.
Com a necessidade de se competir com a mesma espécie o homem passa a ter uma evolução desajustada, transformando qualquer um, em presa.
Este fato desagrega a organização da família, quebrando assim o eixo principal do conceito de sociedade que vivemos. Trazendo assim enormes perdas para o vínculo de família.
O homem traz de volta a se, seus extintos mais conhecidos de sobrevivência, criando uma desordem na estrutura social capaz de tornar inviável a qualquer ação de estabilidade e sustentabilidade organizacional que se torne eficaz no controle da violência...

De certa forma, as pessoas ali presentes começavam a ficarem impacientes, pois eles não viam ali, nada significativos de novo que justificasse tanta importância dada aos resultados de suas pesquisas. Mas apesar de notar esta impaciência em sua platéia ele continua explicando a quem da indiferença da platéia. Sempre sereno e tranquilo, ele prossegue as suas explicações:..

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