sexta-feira, 23 de julho de 2021

Contos do Sábado na Usina: Sérgio Sant'Anna: Estranhos:



Cheguei à portaria daquele edifício, em Botafogo, para ver o apartamento, quase ao mesmo tempo que uma mulher. Notei que ela estava nervosa, pelo modo como dava tragadas seguidas no cigarro, amassava com a mão fortemente cerrada o caderno de classificados de um jornal, e também pelo batom que transbordava da linha dos seus lábios, como se houvesse se pintado às pressas. Mas nem por isso era menos bonita ou elegante, usando um vestido listrado, de tecido meio rústico, que ostentava uma simplicidade que devia ter custado algum dinheiro. Os sapatos pretos grandões, desses de amarrar, concediam-lhe uma aparência um tanto exótica, um ar de força, quase de brutalidade, talvez premeditada, um toque masculino que não impedia de se evidenciar nela a mulher em todos os seus aspectos. Ou talvez eu só tenha pensado essas coisas todas depois, tornando-me capaz de escrever sobre elas desse modo. Naquele instante eu estava preocupado em ver logo o apartamento. 

Quando o porteiro estendeu a chave na minha direção, pois eu chegara um pouco antes, ela disse com uma voz que pretendia ser durona, igual aos seus sapatos. 
- Não podemos subir todos juntos? 
O porteiro tornou a recolher a chave, mantendo-a suspensa nos dedos, como se fôssemos crianças disputando um doce. 
- A senhora vai me desculpar, mas não posso largar a portaria - ele disse. - O apartamento está vazio e, se a senhora não se importar, pode subir sozinha com ele - o porteiro apontou a chave na minha direção. 
Ela olhou para mim de cima a baixo, como se me avaliasse, até concluir que eu era inofensivo. 
- Por mim, tudo bem - ela disse. 
Aquele exame minucioso, e talvez o seu resultado, me irritara. E também o fato de o porteiro ter perguntado a ela se se importava de subir comigo, e não a mim, que chegara primeiro, se me importava de subir com ela. Afinal, estávamos disputando o mesmo apartamento. Então apenas dei de ombros, indiferente. 
Mal fiz isso, ela tomou a chave da mão do porteiro e seguiu em frente pela aléia, ou fosse lá como fosse que se chamava aquela passagem que, margeando o estacionamento a céu aberto, ia dar no bloco B, onde ficava o tal apartamento. 
Enquanto ia atrás dela, pensei que não estava sentindo nenhuma vontade de morar naquele condomínio composto de dois caixotões verticais, com o nome absolutamente ridículo de Bois de Boulogne. De fato, era todo ajardinado e havia algumas árvores, para parecer bucólico e ecológico. Havia também um playground à vista, o que significava muitas crianças quando não fosse hora de colégio, e uma piscina escondida em algum lugar (eu lera no classificado), que devia ser um tanque grande, também cheio de crianças. 
Na verdade eu e Clarice preferíamos começar nossa vida num desses prédios mais antigos, com uma arquitetura humana, e não tínhamos a menor intenção de ter filhos tão cedo. Mas eu ia ver o apartamento. Estava de férias e programado para ver apartamentos. 
Depois de subir dois lances de escadinhas, alcancei a mulher no hall dos elevadores do bloco B, onde nos comportamos como os dois estranhos que de fato éramos um para o outro. Ela pôs um cigarro na boca, sem acendê-lo, e uma senhora juntou-se a nós. Logo depois o elevador chegou, um pessoal saiu, deixamos a senhora entrar primeiro, depois entrou ela, depois eu. A senhora desceu no quinto andar e, até lá, ficou olhando de cara feia para o cigarro apagado nos lábios da mulher, que sustentou o seu olhar. Assim que a senhora saiu, ela acendeu o cigarro, embora houvesse uma plaqueta de proibição, visível no meio de vários grafitezinhos infantilóides, alguns meio nazistas, alguns obscenos. Mas não seria eu, um ex-fumante, que iria me incomodar com o cigarro dela. 
- Também está procurando apartamento há muito tempo? - perguntei, para quebrar o gelo entre nós. 
- Não. Este é o segundo. Mas são todos umas merdas. 
- É verdade - eu disse, apaziguadoramente, achando graça. 
Chegamos ao décimo primeiro andar, o do nosso apartamento, e vi que a mão dela tremia ao tentar enfiar a chave. Eu disse "Me dá licença , peguei a chave e a introduzi facilmente na fechadura. 
Ela entrou, olhou ao seu redor, até encontrar um banheiro, onde se trancou imediatamente. Fui abrir a janela da sala, pois fazia um calor abafado ali dentro, apesar de ser outono. A primeira coisa que notei na paisagem foi o morro, a menos de um quilômetro de distância. Dava para ver as pessoas subindo e descendo a favela, como num formigueiro - não se pode ser original nessas coisas. Depois olhei para baixo e encontrei a piscina. Era melhor do que um tanque e devia estar fechada a essa hora da tarde, porque não havia ninguém lá. Mas o playground começava a se povoar e os gritos chegavam ali em cima, mas eram menos crianças do que eu imaginara. Ainda observei mais algumas coisinhas nos arredores, tentando vê-los também com os olhos da Clarice. 
Dei-me conta de que a mulher estava demorando no banheiro e desconfiei de alguma coisa. Cocaína, por exemplo. Mas, afinal, eu não estava com ela, podia ver o apartamento sozinho e ir logo embora, pois já concluíra, mais ou menos, que o imóvel não fazia o gênero de Clarice. 
Ao virar-me para examinar melhor a sala, reparei numas irregularidades na parede em frente, onde o sol batia nesse instante. A massa e a pintura tinham sido retocadas havia muito pouco tempo, em alguns pontos, formando pequenos calombos. Aproximei-me para vê-los de perto, quando a mulher saiu do banheiro. Fumava outra vez, o batom em seus lábios fora alinhado e ela se maquiara em torno dos olhos, que brilhavam, avermelhados. Podia ser cocaína, porque o seu nariz também estava congestionado, mas achei possível que ela houvesse apenas chorado e quisesse disfarçar com a maquiagem. 
Fingi não reparar nisso e pressionei o dedo num daqueles calombos, que cedeu um pouco. 
- Podem ser tiros - eu disse. - Eles devem ter extraído as balas. Por isso o aluguel é tão barato. 
Percebi que estava querendo impressioná-la, o que, a julgar por sua resposta, não consegui. 
- Você acha barato por uma pocilga dessas? Precisa ver o banheiro. É ridículo. 
- Estou falando de preço de mercado. 
- É possível - ela falou, olhando em direção à janela. - Mas a favela está longe. 
- Os fuzis alcançam dois quilômetros - eu disse, e vi que continuava querendo impressioná-la. 
- Você é da polícia? - ela perguntou, com uma voz falsamente neutra e ingênua, que significava ironia com toda a certeza. 
- Não, sou jornalista. 
Ela se dirigiu para a janela, sem perguntar qual era o meu jornal ou a área do jornalismo em que eu atuava, e achei melhor assim. Pois, não sei por que, senti que me sentiria um idiota se dissesse a uma mulher como aquela que eu era subeditor de um segundo caderno, fazendo entrevistas por telefone e escrevendo frescuras sobre artistas egocêntricos. 
Ela atirou a ponta do cigarro lá embaixo e ficou observando ela cair. Depois virou-se para mim e disse, antes de se debruçar novamente no parapeito: 
- É uma boa altura. 
De repente, me passou pela cabeça que ela só tivesse vindo ver o apartamento para se jogar lá de cima. Podia ser mera projeção minha, claro, pois também sou meio neurótico e até fizera um pouco de análise, antes de conhecer Clarice, que me dava segurança. Mas, por via das dúvidas, resolvi voltar à janela, onde poderia intervir caso a mulher fizesse menção de pular. Confesso que, além do fato em si de não querer que um semelhante meu se autodestruísse, pensei também nas complicações com a polícia, com a imprensa e com Clarice. Como iria explicar a ela por q e estava vendo apartamento com outra mulher que ainda por cima se atirara dele? 
Mas, assim que me aproximei da mulher, ela disse: 
- Vou dar mais uma olhada por aí. 
Enquanto ela foi ver um dos quartos, que dava para os fundos do prédio, fui ver outro bem em frente ao dela, procurando afastar a idéia de suicídio da cabeça. Na verdade, sabia que deixara a análise antes de remexer num lodo mais profundo, e talvez para não ter de fazê-lo. E aquela mulher, apesar de tudo, me dava a impressão de gostar muito da vida. Apenas tinha de ser a vida que ela gostava. 
O quarto que vi era comum, um desses quadrados que os construtores fazem economizando espaço. Também fora pintado recentemente, mas não havia calombos nas paredes. Abri a janela e depois fui dar uma olhada no armário embutido. Tentei abrir uma das gavetas e percebi que alguma coisa a estava emperrando. Puxei com força e um sutiã, empoeirado, acabou por soltar-se. Peguei-o e observei que, pelo seu tamanho e desenho, fora usado por uma mulher de seios pequenos, provavelmente uma jovem. 
Nesse instante, ouvi-a exclamar alguma coisa no outro quarto, que não deu para entender direito. Mas dali eu podia vê-la segurando um objeto que não consegui identificar. Devolvi o sutiã à gaveta, depressa, fechando-a em seguida. 
- Vem cá ver - a mulher me chamou em voz alta. 
Dirigi-me rapidamente para lá e encontrei-a suspendendo uma tira de cortina japonesa, que ela desenrolava do chão, onde devia ter sido largada na mudança. Nela, havia um buraco de bom tamanho. 
- Balas! - a mulher disse, com uma espécie de alegria, embora o buraco fosse só um. - O tiro deve ter entrado pelo outro quarto, atravessou o corredor e a bala veio se alojar aqui. Aliás, pode até ter saído de novo - ela mostrou a janela que havia aberto. - Você tinha razão. Os sacanas deixaram esse lixo aqui (ela largou a cortina com repugnância) e acharam que a gente não ia perceber. 
Fiquei satisfeito com aquele reconhecimento e acrescentei, excitado: 
- Vi poucas crianças no playground. Deve ter muita gente deixando o prédio. 
Foi nesse momento que ela disse sua grande frase, que me fez compreendê-la melhor: 
- Morrer não tem a menor importância. O horrível é ficar velha! 
- Você está longe disso - eu disse, sentindo-me metade idiota, metade cafajeste. Mas percebi que uma centelha se acendera em seus olhos. 
- Estou com trinta e quatro anos - a mulher disse e olhou para mim, com uma certa expectativa. 
- Parece ter bem menos - falei, embora ela pudesse ter também trinta e seis. - E mesmo que não parecesse, é uma bela idade. 
- Ele parece que não acha - ela retrucou, amargamente. 
- Ele quem? 
- Não interessa. E você, quantos anos tem? 
- Trinta e dois. 
- Ele tem cinquenta - ela falou com orgulho. 
Foi aí que eu disse a grande besteira, ou talvez não, levando-se em conta o que aconteceu depois. 
- Ele te abandonou? 
Sem qualquer aviso prévio, ela desatou um choro convulsivo, de dor e de raiva, e avançou com os punhos cerrados na minha direção. Recuei, amedrontado. Mas, em vez de me bater, ela se agarrou ao meu corpo, esfregando-se nele em movimentos sofregamente ritmados. Olhei para a janela, preocupado que alguém estivesse nos vendo. Felizmente não havia nenhum edifício alto nas proximidades. 
- Ninguém jamais me abandonou, entendeu? - ela gritava. - Ninguém, ouviu? 
- Claro - eu disse, correspondendo ao seu abraço um tanto mecanicamente, pois continuava com medo. 
- Mas o filho da puta também está comendo outra - ela disse, e agora chorava mais livremente. 
Acariciei os seus cabelos de um modo paternal: 
- É por isso que você está procurando apartamento? Ela fez que sim, com a cabeça: 
- Ele está comendo uma garota de dezoito anos. Você compreende bem o que isso significa? 
- Compreendo - eu disse. E, de fato, compreendia tudo cada vez mais. - Essas coisas acontecem - tentei consolá-la. 
Foi o suficiente para ela me empurrar, com brutalidade. 
- Vocês são todos iguais. Não pense que não vi você pegando aquele sutiã. Eu não preciso usar, veja! 
Ela arrancou o vestido de baixo para cima, de um só golpe. Havia parado de chorar tão subitamente quanto começara. 
Eram seios perfeitos. Talvez houvessem sofrido uma plástica, mas que importância tinha isso se eram tão bonitos e gostosos? Não havia outra coisa a fazer senão acariciá-los, enquanto enfiava a mão em sua calcinha branca, e a mulher, por sua vez, desatava o meu cinto, para depois baixar minha calça e minha cueca, tudo de uma só vez, ajoelhando-se então aos meus pés para chupar o meu pau, fazendo-o crescer de uma forma incomensurável, que dava a ela uma satisfação intensa, que talvez não tivesse muita coisa a ver comigo - eu via em seus olhos de cobra -, mas com o cara que estava comendo a garota de dezoito anos, como se ela quisesse provar a ele o seu poder, que acabava provando a mim e muito bem. 
Pedi um tempo, porque senão aquilo ia terminar logo, e também para tirar a camisa e os sapatos nos quais minha calça e cueca haviam se enroscado, fazendo com que eu tivesse de me apoiar na cabeça da mulher para não perder o equilíbrio. Enquanto eu tirava tudo, ela tirou a calcinha: 
- Você quer que eu fique com ou sem os sapatos? - ela perguntou. 
- Com os sapatos - eu disse. 
Ela deu um risinho: 
- Eu sabia. Vocês são todos homossexuais enrustidos. 
Ignorei aquele comentário, pois não sou machista, e preferi observar meticulosamente a xoxota dela, que era bastante ostensiva, mas bem proporcionada e agradável de ver, com os cabelinhos aparados. 
Ela demonstrava sentir prazer com a minha observação e acendeu calmamente mais um cigarro. 
- Poxa, como você fuma, hein? - eu disse, apenas por dizer, ou porque aquele silêncio contemplativo me deixava um pouco embaraçado. 
A resposta dela foi dar uma tragada funda e provocativa, para depois aproximar-se de mim, pedindo que eu a beijasse na boca. Foi um desses beijos profundos, sexuais, sem nada a ver com os beijos dos que se amam. Enquanto ele transcorria, ela foi soprando a fumaça para dentro da minha boca, lentamente. Eu só havia parado de fumar por causa da Clarice, que era antitabagista militante; então não tossi nem me engasguei, pelo contrário; traguei numa boa até o fundo, retendo o mais que pude a fumaça em meus pulmões. Se palavras podem descrever tal experiência, devo dizer que ela me alucinou como se eu fosse um fumador de ópio, e que foi a maior intimidade que jamais tive com uma mulher, como se eu a conhecesse em todas as suas entranhas. A falta de hábito, porém, fez com que eu me sentisse meio tonto, e fui descendo meu corpo, trazendo o dela comigo. 
- Quer que eu faça com você uma coisa que faço sempre com ele? - ela perguntou. 
- Quero - eu disse, ainda meio grogue. 
- Então vira de bruços. 
Saí do meu estupor e ergui a cabeça, assustado: 
- Só se você apagar o cigarro. 
- Não sou sadomasoquista - ela disse com desprezo, amassando o cigarro no assoalho. 
Virei-me de bruços e ela veio por cima de mim, de um modo que me fez conhecer melhor o mecanismo das mulheres, ou pelo menos de certas mulheres, e também dos homens, ou pelo menos de certos homens, como eu e o coroa devasso. Esfregando ritmadamente a xoxota em minha bunda, ela dizia coisas como "meu benzinho, eu te adoro, vou te comer todinho". E assim ela gozou, inquestionavelmente, pois não captei nada de teatral em seu orgasmo. Foi uma série de tremores silenciosos, apenas ligeiramente arfantes, quase introspectivos, até ela cair ao meu lado, satisfeita. Depois deitou a cabeça em meu peito e começou a fazer risquinhos nele, com suas unhas pontiagudas. 
- Por favor, não faça isso - eu disse. 
- Não faço por quê? - ela continuou com mais força. Segurei os braços dela. 
- Eu sou noivo. 
Ela deu uma gargalhada artificial e levantou-se, abruptamente: 
- Não acredito. Estamos quase no século vinte e um e você é noivo. Cadê a aliança? 
- Não uso. Foi apenas uma forma de dizer, já que eu e Clarice vamos nos casar. 
- Bem, nesse caso talvez seja melhor eu ir embora - ela disse, dirigindo-se até onde estavam jogadas suas coisas. - Não quero atrapalhar a vida de vocês. Quantos anos a Clarice tem? - ela perguntou, como que casualmente. 
- Dezenove - eu disse, embora a Clarice tivesse vinte e quatro. Só não falei dezoito porque ia parecer coincidência demais. 
Se houvesse algum objeto ali para jogar na parede, tenho certeza que ela teria jogado. Como não havia, ela dava pontapés no ar, tentando chutar os sapatões para longe, o que não conseguiu, pois eles estavam firmemente amarrados. Então ela pôs o vestido, mas pelo avesso. Ao retirá-lo, quase se sufocou com ele, ao contrário da maneira graciosa e segura como o fizera da primeira vez. E acabou por estar de novo nua, e de sapatos, chorando mansinho, como se tudo aquilo a houvesse feito amadurecer anos, conformar-se à realidade. 
Eu não sou burro, embora as coisas que escrevia para o segundo caderno muitas vezes fossem. Continuei ali deitado, nu, esperando que a histeria dela passasse. Sabia que se aquela mulher não cometesse nenhuma ação sem retorno, o fato de eu ter uma noivinha de dezenove anos só faria aumentar o seu desejo, desta vez por mim mesmo, nem que fosse para provar mais alguma coisa. E, realmente, enxugando as lágrimas, ela acabou por fazer a inevitável pergunta do final do século. 
- Você trouxe camisinha? 
- Não, eu e Clarice somos monogâmicos e não usamos. 
- Mas eu e ele não somos e não confiamos em ninguém - ela disse, indo até onde deixara sua bolsa. Remexeu lá dentro e depois atirou para mim uma camisinha. 
- Era para usar com aquele veado - ela fez questão de informar. - Mas se você fizer alguma perversão comigo eu vou gritar. 
- O que você chama de perversão? 
- Se chegar perto, eu aviso - ela disse. 
Fui pôr aquele troço no banheiro, onde estava mesmo precisando ir. Lá dentro, tentei descobrir o que ela achara tão ridículo, pois era uma peça comum, até confortável, com uma boa banheira. Imaginei que deviam ser os azulejos brancos, com figuras azuis de Vênus e de anjinhos tocando trombetas, possivelmente copiadas de terceira mão do banheiro de algum palácio na Europa. E não pude deixar de pensar, incomodado, que Clarice gostaria daquele banheiro, talvez o consideraria a melhor coisa do apartamento. 
Ou teria a mulher implicado com o espelho oval, com bordas trabalhadas em metal prateado? O espelho no qual agora eu me olhava, percebendo que alguma coisa mudara em meu rosto, talvez uma inocência perdida, pois estava traindo Clarice pela primeira vez. Tentei pescar lá no fundo de mim mesmo uma velha culpa, conhecida minha, e não consegui encontrá-la. 
Concluí que aquilo não era uma traição, era um acontecimento tão inexorável quanto uma catástrofe. Eu fora atropelado pelo destino e só me restava sair de novo ao seu encontro. 
Encontrei a mulher na sala, deitada de costas num colchãozinho que ela disse ter achado no quarto de empregada. Estava nua até dos sapatos, e, com as pernas e os olhos semicerrados, parecia a noivinha que, tenho certeza, ela estava representando, com algum rubor nas faces, talvez de ruge, mas o que importava? 
Descrições de pormenores sexuais são deselegantes e enfadonhas. Se as cometi, anteriormente, foi por considerar que certos atos obedeciam a uma lógica e motivações radicais, a uma sexualidade invulgar - e, por que não dizer?, refinada - que poderão servir ao enriquecimento do eventual leitor deste relato, feito por quem não se pretende mais do que um repórter. 
Mas creio poder revelar que gastamos duas camisinhas e fizemos de tudo, nesse segundo movimento, menos o que, imaginei, devia ser a tal perversão. Quanto aos orgasmos dela, da segunda fase, foram quase certamente falsos e teatrais e, por vezes, tive de tapar sua boca. Como se ela quisesse anunciá-los ao prédio inteiro, talvez ao mundo, mais particularmente a Clarice, ao tal coroa e sua garotinha. Mas o que importa, já que os meus foram verdadeiros, assim como os meus sentimentos? 
O meu grande erro, talvez, tenha sido querer traduzir esses sentimentos, comentando o crepúsculo que vimos cair, o luar que agora banhava os nossos corpos, o canto tardio de cigarras de outono. E houve um momento em que cheguei a dizer, ternamente: 
- Poderíamos até morrer juntos. 
Isso lembrou-lhe que devia ir embora. 
- É melhor descermos separados, depois de todo esse escândalo. Eu vou primeiro e você entrega as chaves, está bem? - ela disse. 
- Pretende ficar com o apartamento? - perguntei enquanto nos vestíamos. 
- Uma gaiola dessas? Você deve estar brincando. 
- Vai voltar para aquele cara? 
- Agora já posso - ela disse. 
- Vai contar para ele o que aconteceu? - perguntei, ajoelhando-me para amarrar os seus sapatos, enquanto ela acendia mais um de seus cigarros. 
- Tudo é possível - ela disse. - Mas não aconselho você a fazer o mesmo. Sua noivinha não iria perdoá-lo. 
- Talvez eu não queira ser perdoado. 
- Você é louco - ela disse, encaminhando-se para a porta. Quis acompanhá-la até o elevador, mas ela não deixou. 
- Me diga ao menos o seu nome - implorei. 
- O que passou, passou, está certo? Que importância têm os nomes? 
- Não quer nem saber o meu? 
- Não - ela disse, batendo a porta. 
O que mais dizer? 
Terminei com a Clarice, voltei a fumar e vim morar sozinho, pagando uma mixaria de aluguel, no apartamento 1101, B, do Condomínio Bois de Boulougne, na expectativa, talvez fantasiosa, pelo menos em sua segunda parte, de que o coroa um dia aprontasse mais alguma com a mulher, e ela, farejando o meu destino, viesse me usar para uma nova vingança. 
Até o momento em que escrevo, isso não aconteceu. Mas, entre intervalos mais ou menos longos de tediosa calmaria, muitas coisas acontecem no Bois e suas redondezas: batalhas entre traficantes no morro Dona Marta, o pipocar de fuzis e metralhadoras, foguetes sinalizadores cruzando os ares, incursões da polícia e do exército na favela, helicópteros voando rasante sobre o bairro e, de vez em quando, balas perdidas, que já furaram novamente as paredes da sala e dos quartos. 
Às vezes, engatinhando com as luzes todas apagadas, vou deitar-me no assoalho daquele quarto em que fui possuído pela mulher. Entrincheirado atrás de uma parede, acendo então um cigarro, dou uma tragada funda, e penso naquela que me penetrou até o âmago. 
Troquei o segundo caderno pelo setor de polícia do jornal, comprei um binóculo potente, para observar o morro, e instalei um fax no quarto desabitado de empregada, cujo colchão, onde às vezes durmo, conservei. Dali, o local mais seguro do imóvel, envio as últimas notícias para a redação, às vezes quase na hora do fechamento do caderno Cidade Escrevo à mão e assim transmito as páginas, pois meu micro levou um balaço que varreu para sempre sua memória, igual a um ser humano quando apaga. Estamos furando todos os concorrentes no noticiário do Dona Marta. 
Num domingo, enquanto olhava pensativo da janela lá para baixo, testemunhei quando um senhor, usando um desses shorts largos, foi alvejado pelas costas por um franco-atirador, no momento em que mergulhava na piscina semideserta do condomínio. Caiu já provavelmente morto na água, cujo azul se tingiu de vermelho, num contraste macabro na manhã ensolarada de primavera. Foi o que escrevi, e não cortaram. 
Pensei, também, que morrer talvez não tivesse mesmo a menor importância. O sujeito havia saído de cena em grande estilo, enquanto nós, aqui, continuamos sofrendo por razões diversas, incluindo as minhas. 
Mas não estava simplesmente fazendo frase quando escrevi, para finalizar a matéria, com esperança de que a mulher me lesse, entendesse tudo e viesse me encontrar, que morrer é muito fácil no Bois de Boulogne. 
Nos olhos do intruso Rubens Figueiredo Não lembro a primeira vez. Mas aqui e ali comecei a ouvir comentários: aquela é a cidade que interessa, é onde as coisas acontecem, o futuro fugiu para lá. Advertências que repetiam a verdade mais simples, não há como negar. Hoje, parecem ressoar a voz de um oráculo. Mas era uma verdade que entendi mal, que me apressei em traduzir totalmente errado, nos termos da euforia de um menino, ou até de um tolo. 
Talvez eu pudesse ter ficado como estava, talvez o futuro ainda dormisse bem longe até hoje, se naquela noite eu não tivesse ido ao teatro. Três atores representavam vários papéis e a história da peça quase não importava. O espetáculo consistia muito mais na velocidade e na perfeição das metamorfoses dos atores. Em poucos minutos, eles trocavam de roupa, peruca e maquiagem, encarnavam outra voz, outra personalidade, e tudo com um vigor que só podia nascer de um tipo de vida. 
No final da peça, algumas fileiras à minha frente, aconteceu. Quando as pessoas se levantaram, entrevi, no intervalo das cabeças, um homem parecido com alguém que eu conhecia. Talvez fosse a dança de tantos rostos a meu redor, mas o efeito era o de muitas feições distintas convergindo e se sobrepondo no ar transparente. 
Uma desconfiança incômoda me obrigou a olhar melhor e então deparei com um sujeito igual a mim mesmo, apenas um pouco mais novo. Sacudido por uma espécie de insulto, experimentei o temor de estar sendo sorrateiramente substituído. 
Com os olhos naquele homem, esqueci que devia continuar andando. 
As pessoas atrás de mim, na minha fileira, me repreenderam com resmungos. 
Tentei me livrar do meu estupor, mas o máximo que consegui foi observar o homem da maneira mais discreta que podia. As fileiras escorriam todas na mesma direção, o público escoava ligeiro para o funil da saída e logo o perdi de vista. 
Se uma coisa deriva sempre de outra, se todo fato espalha efeitos em todas as direções, por que não ver no que se seguiu uma continuação, um sistema? Podia parecer um desses acasos bobos, uma dessas situações tão corriqueiras que nem paramos para pensar. Em um intervalo de semanas, pelo menos três amigos se aproximaram de mim para dizer que me tinham visto em lugares que eu não conhecia, locais aonde eu nunca fora, fazendo coisas que eu absolutamente não podia ter feito, porque estava ocupado, em outra parte. 
Na primeira vez, juro, tentei negar. Depois, diante da alegre certeza da pessoa à minha frente, me resignei a ouvir em silêncio. A seguir, de uma maneira que eu mal percebi, passei pouco a pouco a acreditar que era eu mesmo que ia àqueles lugares e punha em prática aquelas ações. Eu até sorria e pelo menos uma vez cheguei a inventar explicações adicionais, coerentes, que vi serem bem aceitas pelo meu ouvinte. 
Outros talvez não prestassem atenção. Outros talvez não encadeassem uma coisa à outra. Sei que, mesmo na vida mais banal, há lugar para tudo. 
Mas, um dia, no centro da cidade, um homem completamente desconhecido me cumprimentou com familiaridade. O sinal fechou e, enquanto eu atravessava a rua, o homem, andando em sentido contrário, acenou ligeiro com a mão. Receoso de me mostrar mal-educado com algum conhecido, correspondi ao aceno. O sinal abriu, os carros e ônibus andaram, bloquearam minha visão e eu o perdi na multidão da calçada oposta. 
Tempos depois, eu vinha andando distraído pela rua. Quando dei por mim, uma pessoa que não pude reconhecer me dirigia palavras apressadas. 
Mencionou de passagem um nome estranho para mim como se fosse um amigo comum. Depois pediu desculpas pela pressa, se despediu e foi embora. Algo desse tipo se repetiu ainda, talvez em um espaço de alguns meses, duas ou três situações que outras pessoas poderiam interpretar como encontros fortuitos com lunáticos, do tipo que prolifera nas ruas, eu sei. Mas a minha lua é a mesma de todo mundo. 
Aos poucos, as atividades que esses desconhecidos atribuíam a mim começaram a me parecer familiares. As pessoas que eles mencionavam chegaram a se tornar íntimas para mim, com seus nomes e suas ambições cotidianas. Tudo ia se incorporando à minha memória. O meu passado se expandia com um novo elenco de pessoas e fatos, ao mesmo tempo em que o meu presente também se ampliava, numa espécie de movimento de conquista. Minha vida abarcava muitas outras vidas e assim eu conseguia me sentir mais vivo do que nunca. 
Um dia, numa rua do centro, tomei coragem. Arrisquei cumprimentar alguém que eu, com absoluta certeza, não conhecia. Após um instante de surpresa bem natural, nas circunstâncias, a pessoa respondeu ao meu cumprimento, de forma discreta. Sua expressão deu a entender que, naquele momento, não tinha tempo para conversar comigo como gostaria, e seguiu adiante. 
Por que pedir mais? Vi naquilo uma confirmação, e não poderia ser de outro modo. Agora, eu olhava o mundo à minha volta com o ardor de uma simpatia desconhecida. Via as pessoas entrando e saindo pelas portarias dos prédios, contemplava a fila de cabeças voltadas para mim nas janelas dos ônibus e sabia que no mundo ninguém mais seria para mim um estranho. 
Vivi assim um tempo, até que, certa manhã, o telefone me acordou. A voz do outro lado avisou que uma determinada pessoa havia morrido. Citou um nome, que não reconheci nem me dei ao trabalho de memorizar. Mas anotei a hora e o lugar do funeral. A voz ainda lamentou que ele tivesse morrido ainda jovem, e garantiu que "todos" iriam lá. 
Cheguei em cima da hora, um pouco atrasado até. Achei que por isso ninguém se aproximou para me cumprimentar. Raciocinei que temiam perturbar a cerimônia. Uma música de órgão descia gelada das paredes e só um segundo antes de o caixão ser fechado distingui as feições do defunto. Foi rápido, uma sombra correu sobre o véu transparente. Mas creio ter reconhecido o homem que eu, nem sei quanto tempo antes, vira no teatro. 
O homem igual a mim. Com a tampa fixada em seu lugar, o caixão deslizou por uma esteira na direção de uma porta e desapareceu no crematório. 
Antes que eu me refizesse da surpresa, todos haviam ido embora sem sequer se despedir de mim. Em poucos dias, as coisas começaram a mudar. Encostei no balcão de uma lanchonete, pedi um cafezinho, na esperança de que o garçom conversasse um minuto comigo, sobre o tempo, o trânsito, o que fosse. Mas ele logo virou a cara para o meu sorriso, como se estivesse diante de um estranho, um intrometido. 
A rigor, aqui e ali, eu descobria motivos para pensar que me consideravam um importuno. Em lugares onde eu esperava ser recebido como um irmão, me rechaçavam com a frieza e a hostilidade educada que só se descarrega sobre os intrusos. Mesmo nos ambientes que, antes, eram para mim perfeitamente familiares - meu trabalho, minha vizinhança, meus colegas - eu me via tratado como alguém indesejável. Foi nessa altura que resolvi me mudar para uma outra cidade, a cidade de que eu ouvia falar com tanta simpatia. 
Tratei de me adaptar o mais depressa possível. Tentei refazer minha vida, reconstituir à minha volta um convívio humano que me justificasse. 
Mas isso se revelou difícil. Pelo menos, eu não era tratado como um invasor. 
Acho que eu poderia ter vivido assim bastante tempo, sem maiores problemas. Mas agora isso não será possível. Há poucos dias, em uma barbearia, rodeado de espelhos que corriam diante de mim e às minhas costas, entendi o que era o futuro e por que ele estava nesta cidade. 
O barbeiro terminou de aparar meu cabelo, ergueu dos meus ombros o pano branco com um floreio do braço e então me levantei. Quando contemplava a mim mesmo no espelho, reparei com o canto dos olhos o reflexo de um homem, umas três cadeiras à esquerda. Ele me fitava com insistência. Tinha um ar quase desnorteado, na verdade, e achei que já devia estar me observando desde algum tempo. 
Por instinto, desviei o rosto pois o homem me pareceu agitado. Fingi que não o via e estou certo de que o deixei convencido disso. Mas os espelhos permitiam olhares diagonais. Por esse ângulo, pude notar que o sujeito era extraordinariamente parecido comigo. Apenas um pouco mais velho. 
Fui para a rua. Forcei minhas pernas a caminhar e vi a calçada fugindo para trás sob os meus passos. Sei agora por que vim para esta cidade. O olhar admirado do homem na barbearia foram as boas-vindas e também uma despedida para mim. Já posso sentir o calor das chamas estalando. Mas, até que chegue a minha vez, esse sujeito ainda vai ouvir falar muito de mim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário