quarta-feira, 28 de julho de 2021

Poesia de Quinta na Usina: Fernando Pessoa:

 




113.

"Para o esteta, as tragédias são coisas interessantes de observar, mas incomodas de sofrer. O próprio cultivo da imaginação é prejudicado pelo da vida. Reina quem não está entre os vulgares.
Afinal, isto bem me contentaria se eu conseguissepersuadir-me que esta teoria não é o que é, um complexo barulho que faço aos ouvidos da minha inteligência, quase para ela não perceber que, no fundo, não há senão a minha timidez, a minha incompetência para a vida."

Poesia de Quinta na Usina: Fernando Pessoa:

 




114.

ESTÉTICA DO ARTIFÍCIO
" A vida prejudica a expressão da vida. Se eu tivesse um grande amor nunca o poderia contar.
Eu próprio não sei se este eu, que vos exponho, por estas coleantes páginas fora, realmente existe ou é apenas um conceito estético e falso que fiz de mim próprio. Sim, é assim. Vivo-me esteticamente em outro. Esculpi a minha vida como a uma estátua de matéria alheia ao meu
ser. Às vezes não me reconheço, tão exterior me pus a mim, e tão de modo puramente artístico empreguei a minha consciência de mim próprio. Quem sou por detrás desta irrealidade? Não sei. Devo ser alguém. E se não busco viver, agir, sentir, é - crede-me bem - para não perturbar as linhas feitas da minha personalidade suposta. Quero ser tal qual quis ser e não sou. Se eu cedesse destruir-me-ia. Quero ser uma obra de arte, da alma pelo menos, já que do corpo não posso ser. Por isso me esculpi em calma e alheamento e me pus em estufa, longe dos ares frescos e das luzes francas - onde a minha artificialidade, flor absurda, floresça em afastada beleza."
* * *

 

Poesia de Quinta na Usina: Fernando Pessoa:

 




115.

"Assim organizar a nossa vida que ela seja para os outros um mistério, que quem melhor nos conheça, apenas nos desconheça de mais perto que os outros. Eu assim talhei a minha vida, quase que sem pensar nisso, mas tanta arte institiva pus em fazê-lo que para mim próprio me tornei uma não de todo clara e nítida individualidade minha."
* * *
116.
"A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida."

Poesia de Quinta na Usina: Machado de Assis:

 



LUZ ENTRE SOMBRAS

É noite medonha e escura, Muda como o passamento*
Uma só no firmamento Trêmula estrela fulgura.
Fala aos ecos da espessura
A chorosa harpa do vento,
E num canto sonolento
Entre as árvores murmura.
Noite que assombra a memória,
Noite que os medos convida,
Erma, triste, merencória.
No entanto...minha alma olvida
Dor que se transforma em glória,
Morte que se rompe em vida.

Poesia de Quina na Usina: Machado de Assis:

 




I

Saímos, ela e eu, dentro de um carro,
Um ao outro abraçados; e como era
Triste e sombria a natureza em torno,
Ia conosco a eterna primavera.
No cocheiro fiávamos a sorte
Daquele dia, o carro nos levava
Sem ponto fixo onde aprouvesse ao homem;
Nosso destino em suas mãos estava.
Quadrava-lhe Saint-Cloud. Eia! Pois vamos!
É um sítio de luz, de aroma e riso. Demais, 
se as nossas almas conversavam, 
Onde estivessem era o paraíso.
Fomos descer juntos ao portão do parque.
Era deserto e triste e mudo; o vento
Rolava nuvens cor de cinza; estavam
Seco o arbusto, o caminho lamacento.
Rimo-nos tanto, vendo-te, ó formosa,
(E felizmente ninguém mais te via!)
arregaçar a ponta do vestido
Que o lindo pé e a meia descobria!
Tinhas o gracioso acanhamento
Da fidalga gentil pisando a rua;
Desafeita ao andar, teu passo incerto
Deixava conhecer a raça tua.
Uma das tua mãos alevantava
O vestido de seda; as saias finas
Iam mostrando as rendas e os bordados,
Lambendo o chão, molhando-te as botinas.
Mergulhavam teus pés a cada instante,
Como se o chão quisesse ali guardá-los,
E que afã! Mal podíamos nós ambos
Da cobiçosa terra libertá-los.
Doce passeio aquele! E como é belo
O amor no bosque, em tarde tão sombria!
Tinhas os olhos úmidos, — e a face
A rajada do inverno enrubecia.
Era mais belo que a estação das flores;
Nenhum olhar nos espreitava ali;
Nosso era o parque, unicamente nosso;
Ninguém! estava eu só ao pé de ti!
Perlustramos as longas avenidas
Que o horizonte cinzento limitava,
Sem mesmo ver as deusas conhecidas
Que o arvoredo sem folhas abrigava.
O tanque, onde nadava um níveo cisne
Placidamente, — o passo nos deteve;
Era a face do lago uma esmeralda
Que refletia o cisne alvo de neve.
Veio este a nós, e como que pedia
Alguma coisa, uma migalha apenas;
Nada tinhas que dar*; a ave arrufada
Foi-se cortando as águas tão serenas.
E nadando parou junto ao repucho
Que de água viva aquele tanque enchia;
O murmúrio da gotas que tombavam
Era o único som que ali se ouvia.
Lá ficamos tão juntos um do outro,
Olhando o cisne e escutando as águas;
Vinha a noite; a sombria cor do bosque
Emoldurava as nossas próprias mágoas.
Num pedestal, onde outras frases ternas,
A mão de outros amantes escreveu,
Fui traçar, meu amor, aquela data
E junto dela por o nome teu!
Quando o estio volver aquelas árvores;
E à sombra delas for a gente a flux,
E o tanque refletir as folhas novas,
E o parque encher-se de murmúrio e luz,
Irei um dia, na estação das flores,
Ver a coluna onde escrevi teu nome,
O doce nome que minha alma prende,
E o que o tempo, quem sabe? já consome!
Onde estarás então? Talvez bem longe,
Separada de mim, triste e sombrio;
Talvez tenhas seguido a alegre estrada,
Dando-me áspero inverno em pleno estio.
Porque o inverno não é o frio e o vento,
Nem a erma alameda que ontem vi;
O inverno é o coração sem luz, nem flores,
É o que eu hei de ser longe de ti!