sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Contos do Sábado na Usina: Olavo Bilac: O PARAÍSO:


 




A pálida Ramona 
É uma formosa dona, Moça e cheia de encantos: 
Tem a graça e a malícia do Demônio... E, aos vinte anos, uniu-se em matrimônio Ao Chilperico Santos. 
Ornou-lhe a fronte de gentis galhadas... E, quando ele, entre as gentes assustadas, 
Passava assim, — que sustos e que espantos! 
Por fim, morreu... foi pena! 
— E a viúva, serena, 
Casou de novo... com Silvério Santos. 
Fez o mesmo ao segundo que ao primeiro, E, louca, ao mundo inteiro 
Andava namorando pelos cantos... Ele morreu. E a pálida senhora, Serena como outrora, 
Casou... com Hermes Santos. 
Fez ao terceiro o mesmo que ao segundo... 
Depois dele, casou com Segismundo Santos... Depois, sem lutos e sem prantos, Sem se lembrar dos pobres falecidos, Foi tendo por maridos Uns onze ou doze Santos! 
Ninguém jamais teve maridos tantos! Mulher nenhuma teve menos siso! E, por ter enganado a tantos Santos, Quase, com seus encantos, Converteu num curral o Paraíso...

Contos do Sábado na Usina: Machado de Assis: Miss Dollar V:



Dias depois, Andrade e Mendonça foram à casa de Margarida, e lá passaram meia hora em conversa cerimoniosa. As visitas repetiram-se; eram porém mais freqüentes da parte de Mendonça que de Andrade. D. Antônia mostrou-se mais familiar que Margarida; só depois de algum tempo Margarida desceu do Olimpo do silêncio em que habitualmente se encerrara. 
Era difícil deixar de o fazer. Mendonça, conquanto não fosse dado à convivência das salas, era um cavalheiro próprio para entreter duas senhoras que pareciam mortalmente aborrecidas. O médico sabia piano e tocava agradavelmente; a sua conversa era animada; sabia esses mil nadas que entretêm geralmente as senhoras quando elas não gostam ou não podem entrar no terreno elevado da arte, da história e da filosofia. Não foi difícil ao rapaz estabelecer intimidade com a família. 
Posteriormente às primeiras visitas, soube Mendonça, por via de Andrade, que Margarida era viúva. Mendonça não reprimiu o gesto de espanto. 
- Mas tu falaste de um modo que parecias tratar de uma solteira, disse ele ao amigo. 
- É verdade que não me expliquei bem; os casamentos recusados foram todos propostos depois da viuvez. 
- Há que tempo está viúva? 
- Há três anos. 
- Tudo se explica, disse Mendonça depois de algum silêncio; quer ficar fiel à sepultura; é uma Artemisa do século. 
Andrade era céptico a respeito de Artemisas; sorriu à observação do amigo, e, como este insistisse, replicou: 
- Mas se eu já te disse que ela amava apaixonadamente o primeiro pretendente e não era indiferente ao último. 
- Então, não compreendo. 
- Nem eu. 
Mendonça desde esse momento tratou de cortejar assiduamente a viúva; Margarida recebeu os primeiros olhares de Mendonça com um ar de tão supremo desdém, que o rapaz esteve quase a abandonar a empresa; mas, a viúva, ao mesmo tempo que parecia recusar amor, não lhe recusava estima, e tratava-o com a maior meiguice deste mundo sempre que ele a olhava como toda a gente. Amor repelido é amor multiplicado. Cada repulsa de Margarida aumentava a paixão de Mendonça. Nem já lhe mereciam atenção o feroz Calígula, nem o elegante Júlio César. Os dois escravos de Mendonça começaram a notar a profunda diferença que havia entre os hábitos de hoje e os de outro tempo. Supuseram logo que alguma coisa o preocupava. Convenceram-se disso quando Mendonça, entrando uma vez em casa, deu com a ponta do botim no focinho de Cornélia, na ocasião em que esta interessante cadelinha, mãe de dois Gracos rateiros, festejava a chegada do doutor. 
Andrade não foi insensível aos sofrimentos do amigo e procurou consolá-lo. Toda a consolação nestes casos é tão desejada quanto inútil; Mendonça ouvia as palavras de Andrade e confiava-lhe todas as suas penas. Andrade lembrou a Mendonça um excelente meio de fazer cessar a paixão: era ausentar-se da casa. A isto respondeu Mendonça citando La Rochefoucauld: 
"A ausência diminui as paixões medíocres e aumenta as grandes, como o vento apaga as velas a atiça as fogueiras." 
A citação teve o mérito de tapar a boca de Andrade, que acreditava tanto na constância como nas Artemisas, mas que não queria contrariar a autoridade do moralista, nem a resolução de Mendonça.

Contos do Sábado na Usina: Crítica da razão pura: Wander Piroli:




Ouvi primeiro o ruído de cascos pisando a grama, mas continuei deitado de bruços na esteira que havia estendido ao lado da barraca. Senti nitidamente o cheiro acre, muito próximo. Virei-me devagar, abri os olhos. O cavalo erguia-se interminável à minha frente. Em cima dele havia uma espingarda apontada para mim e atrás da espingarda um velhinho de chapéu de palha, que disse logo o seguinte: 
- Filhos de uma puta. 
- Pois não - tentei eu, ainda entorpecido pela bebida do almoço. O velho encaminhou o cavalo até o fogão, abaixou-se na sela e inspecionou o que restava na lenha. 
- Filhos de uma puta. 
Os moirões - pensei, pondo-me de pé. E andando de costas, sem tirar os olhos do velho, fui até a entrada da barraca e chamei pelo Dr. Fontes. 
- Fale, querida - disse ele lá de dentro. 
- Depressa, doutor - pedi. 
- Filhos de uma puta - repetiu o velho emputecido, agora examinando a cerca destruída. 
- São os moirões - expliquei para o Dr. Fontes, que saía da barraca com o óculos torto na cara amarrotada, os cabelos em desordem. 
- Calma - ponderou Dr. Fontes. 
- Filhos de uma puta - insistiu o velho de pele vermelha curtida, ossudo. 
Cainca apareceu fora da barraca, nu, com o calção na mão: 
- Mas que porra é essa? 
- Chega pra lá - ameaçou o velho lá de cima do cavalo. Cainca enfiou o calção. 
- Bem - disse eu - se é por causa dos moirões. 
- E o senhor tem dúvida? Olha lá o que vocês fizeram com a cerca. Será que algum filho da puta ainda tem alguma dúvida? 
- Filho da puta, não senhor - disse Cainca. 
- Filho da puta, sim - confirmou o velho brandindo a espingarda. 
- Filho da puta é a buceta da mãe. O velho apontou a espingarda. 
- Atira não - gritei, segurando Cainca pelas costas. 
- Nada de violência - propôs o Dr. Fontes, colocando-se a meio caminho entre o velho e Cainca. - O senhor desculpe. 
- Desculpar uma merda - intrometeu-se Cainca. 
- Cala essa boca podre, animal. Mas, doutor. 
Cala a boca. 
- Cala a boca - disse eu também. 
- Mas ele tá chamando a gente de filho da puta. 
- Isso agora é secundário - disse o Dr. Fontes, tecnicamente. 
- Pra mim não é. 
- Sua mãe é uma santa - afiançou o Dr. Fontes. - Agora, cale-se. Cainca acalmou-se. Soltei-o. Dr. Fontes dirigiu-se ao velho: 
- Abaixe a arma, por favor. 
- O quê? 
- A espingarda, meu bravo. Olha - Dr. Fontes ergueu a mão forense 
- quanto aos moirões. 
- Não quero conversa - cortou o velho. 
- E o que é que o senhor quer então? - Cainca quis saber. 
- Muita calma. - Dr. Fontes repetiu o mesmo gesto amistoso. - 
Eu quero dizer que retiramos os moirões, mas não vamos dar prejuízo a ninguém. Pelo amor de Deus. 
- O pessoal aqui é gente boa - observei eu modestamente. 
- Gente boa? - O velho fez uma careta em cima do cavalo mantendo a espingarda firme na mão direita, enquanto a esquerda segurava a rédea de couro. 
- O senhor está vendo - entornei. - Tudo aqui é gente boa. Viemos só dar uma pescada. E ninguém quer dar problema pra ninguém. 
O velho relaxou-se um pouco, os olhos muito azuis no rosto fino e curtido de sol. Estávamos os três à sua frente, a cinco passos do cavalo acaboclado que assistia tudo em omisso silêncio. 
- Tá certo - Cainca procurou ajudar, esforçando-se para imprimir à voz um tom sordidamente ameno e fraudulentamente conciliador. - Tiramos os moirões. A gente errou, mas a gente paga. 
Dr. Fontes meteu rápido a mão no bolso do macacão: 
É só o senhor falar quanto é, nós pagamos, pedimos desculpa - se o senhor quiser - e pronto. 
- Pagar? - rosnou o velho. - Pagar o quê? 
- Os moirões, é evidente. 
- Os moirões. Eu quero eles de volta. 
Lá estavam os moirões, ou melhor, o resto dos moirões, metidos no fogão cavado na terra e de onde ainda saía uma pífia fumaça. A dez metros da Rural, passava a cerca dividindo o campo imenso e montanhoso que se estendia verde pelo horizonte a fora, sem uma única árvore. Nada. 
Por favor - tornou o Dr. Fontes. - É só o senhor ter a bondade de dizer o valor dos moirões, nós pagamos. 
- Quero os paus onde eles estavam - retrucou o velho. - Quero a cerca no mesmo lugar. 
Mesmo assim, Dr. Fontes tirou um maço de notas da carteira. Mas não conseguiu sensibilizar o velho homem. 
- Não quero saber de dinheiro - disse ele. - É só dar o dinheiro e 
está tudo resolvido? Invadir o terreno dos outros, arrebentar cerca, é? 
- Nós estamos propondo um negócio correto - argumentou o Dr. Fontes. Estamos propondo uma indenização. É o mesmo que refazer a cerca. E a gente paga até a mais, por causa do aborrecimento. 
O velho encostou o cano da arma no pescoço imóvel do cavalo e ficou avaliando o Dr. Fontes com os seus enrugados olhos azuis. 
- Certo? É só o senhor falar quanto é. - Dr. Fontes animou-se, exibindo a dinheirama aberta nas mãos. 
- Quero a cerca como estava - redargüiu o velho - do mesmo jeito, no mesmo lugar. 
- Puta que os bunda - disse Cainca. 
- Assim é pior - observei. 
- Porra, mas não tem jeito de conversar com ele. 
- Deixe ficar - pedi, e depois me dirigi ao velho: - olha, o Dr. Fontes é advogado. Ele entende dessas coisas. 
- Adevogado? - corrigiu o velho, medindo o Dr. Fontes, cuja elegância de bota e macacão desbotado não endossava sua jurídica condição. 
- Advogado - entusiasmei-me - e dos melhores. O que ele está propondo é o que está na lei. Se alguém dá um prejuízo tem que indenizar a outra parte. 
Esperei que o velho reagisse. Ele se inclinou um pouco para a frente. Tive a impressão, sondando sua cara toda sulcada e curtida, que ele agora não estava se sentindo bem. Continuei: 
- Nós destruímos sua cerca sem má intenção. Agora temos que pagar, que indenizar o senhor. Assim o assunto fica encerrado. O senhor fala é tanto, e nos pagamos. 
- Quero a minha cerca - respondeu o velho. Ao mesmo tempo em que levava a mão à barriga murcha. Seu rosto estava começando a suar. 
- Pra mim este papo tá furado - disse Cainca; foi até a Rural e apanhou a sacola que estava dependurada na porta aberta. 
- Larga isso aí - ordenou o velho. 
- Largar, é? - Cainca enfiou a alça no pescoço. 
- Um momento - pediu o Dr. Fontes, e encaminhou-se para Cainca. 
- Cainca, você está piorando a situação. 
- Desculpe, doutor, mas estou puto da vida. 
- Eu sei, rapaz. Deixe a sacola aí até a gente chegar a um acordo. 
- Dr. Fontes, por favor: o senhor e o Moacir conversam com ele. Eu vou só conferir as linhas. 
Cainca ajeitou a sacola, deu as costas para o velho, desceu o pequeno barranco até alcançar a margem do Paraopeba. Começava a entardecer, e os últimos raios de sol reverberavam na água encachoeirada. Olhei para o Dr. Fontes e vi que tínhamos pensado a mesma coisa. 
- Bem - disse ele para o velho. - Vamos dar uma pescada enquanto o senhor decide. 
- Pescada? - O velho estava tenso, com o rosto um pouco mais pálido e molhado de suor. 
- Olha - explicou o Dr. Fontes apanhando o molinete encostado à barraca. - O que nós podemos fazer é isso: pagar a cerca. Não podemos fazer mais nada. Queira desculpar. 
Apanhei o caixotinho de minhocuçu e segui o Dr. Fontes, que já se encaminhava para o rio. 
- Pára aí - gritou o velho, com o cavalo virado em nossa direção e a espingarda à altura do ombro. 
Paramos no topo do barranco. 
- O senhor não vai fazer uma bobagem - disse o Dr. Fontes. 
- Pare - ordenou novamente, embora já estivéssemos parados. A espingarda tremia em suas mãos e seu rosto estava incrivelmente desbotado. 
- Calma - Dr. Fontes ergueu a mão. - O senhor não vai atirar na gente por causa de três pedaços de pau. 
Cainca subiu o barranco e veio para o nosso lado: 
- Porra, será que o velho tá querendo foder a gente? 
- Fica quieto - disse eu. 
- Acho que nós temos - ia dizendo o Dr. Fontes, quando vimos a espingarda cair e, logo em seguida, o velho levantar os braços espasmódicos à altura do peito, desprender-se do cavalo, tombar de cabeça no chão, ficando com um dos pés agarrado no estribo. 
Cainca precipitou-se para o cavalo e segurou as rédeas. Dr. Fontes amparou o corpo do velho, que agora estava sem chapéu, enquanto eu retirava sua botina do estribo. Dr. Fontes estendeu-o no chão. O corpo do velho tremia e, dentro da bocarra, de dentes podres e poucos, a língua parecia que estava dando um nó. Quietou-se em seguida, os olhos esbugalhados. Dr. Fontes sentiu o pulso e depois pôs o ouvido no peito do velho e procurou escutar. Ergueu-se contrariado. 
- Puta merda - disse ele. 
- Por Deus - disse eu. - Tem certeza? 
- Puta merda, se tenho. 
- Olha de novo, doutor. 
- Não há mais nada para olhar - disse o Dr. Fontes. 
Cainca largou as rédeas do cavalo e foi logo juntando as nossas coisas que andavam pelo chão. 
- Sacanagem - disse o Dr. Fontes, dirigindo-se para a barraca. Enquanto Cainca recolhia as varas na beira do rio, ajudei o Dr. Fontes a desmanchar a barraca e dobrar a lona. Pusemos tudo dentro da Rural. 
Olhamos para o cavalo de cabeça baixa, omisso. Olhamos para o velho esparramado no chão, com os olhos fixos no céu todo azul, sem uma única nuvem. Olhamos em volta para ver se havia mais alguma coisa para recolher. Estava tudo certo. 
- E agora, doutor? - disse eu. 
- Agora? 
- O que é que vamos fazer? Foda-se - disse o Dr. Fontes entrando na Rural.

Contos do Sábado na Usina: Tânia Jamardo Faillace: A porca:




Era uma vez um meninozinho, que tinha muito medo. Era só soprar um vento forte, desses de levantar poeira no fundo do quintal e bater com os postigos da janela; era só haver uma nuvem escura, uma única, que tampasse o sol; era só esbarrar com a pipa d'água e ouvir o rico e pesado sacolejar da água dentro, para que o menino se encolhesse bem no centro de seu ventre, orelhas retesas, olhos muito abertos ou obstinadamente fechados. Depois, o menino levantava, limpava o pó do fundilho das calças e ia para o quintal. 
Conhecia as galinhas, os porcos, mas nenhum lhe pertencia. Achava mesmo engraçado quando via os irmãos abraçarem um leitãozinho, a irmã mais nova tentando, por força, enfiar uma de suas saias no bicho. Bicho é bicho, sabia ele. Bicho tem vida sua, diferente da de gente. Os irmãos não sabiam. Fingiam que eram bonecas, criancinhas pequenas e, nos dias de matança, todos já eram petiscos, brinquedo esquecido. 
O menino preferia olhá-los de longe. Tremia, quando a velha porca gorda fuçava por entre as tábuas do chiqueiro; corria, se ela estava solta, com sua gorda barriga pendente, seu gordo cachaço lanhado. 
A mãe também era gorda. Rachando lenha, carregando água, enorme e pesada bolota de carne. Tinha um rosto comprido, sulcado de rugas, boca sempre aberta, gritando com alguém. A porca não gritava, só roncava, mesmo quando o pai passava e lhe dava um pontapé. Um dia botou sangue - disseram que ia abortar. Ele teve medo de ver. Escondeu-se em casa, na cama, sob a colcha de fustão. 
E de repente, foi o grande choque. Cama sacudiu. Lastro despencou, 
e ele caiu, sufocado pelos travesseiros. Era o pai. A mãe lhe batia com um resto de vassoura... pela loucura... quatorze leitões... quatorze... e todos perdidos... o pai grunhia e protegia a cabeça. Ao redor, tudo era escuro. Sabia agora o que era um nené de bicho. Havia sangue. Sempre havia sangue. 
Era um dia escuro. E em dias escuros, o menino tinha medo. O escuro era espesso, profundo, pegajoso, e sombras mais escuras eram manchas coaguladas. 
Havia um fio de luz, cinza-claro, sobre a pipa d'água. O menino se atreveu a ir bem junto dela. Puxou um banquinho e foi olhar. Como lhe doía a barriga, só de espichar, só de ver... a boca preta da pipa, a água grossa, molhada... E o menino caiu dentro da pipa... Não de verdade, de mentira... E encontrou uma porção de leitõezinhos lá no fundo, mas estavam pretos e encarquilhados. 
E ao pular de volta sobre seu banquinho, ao sentir toda a pipa sacudindo, o menino teve a idéia. Balançou forte, cada vez mais forte, a pipa veio pelo chão, despedaçando uma aranha, molhando a lenha, assustando a galinha choca que dormia debaixo do fogão. O pé do menino ficou preso, uma unha esmagada. Mas ele não chorou, fugiu. E fugiu para a rua... Porém o terreiro estava iluminado com uma luz muito pálida, a areia lisa, fina, as bananeiras imóveis e densas... Sentou-se no chão, sobre uma pedra pontuda, um pé em cima do outro, as mãos cruzadas no joelho. 
De noite, eram os corpos dos irmãos que se apertavam contra o dele. Mesmo de olhos fechados, sabia quem estava junto de si. A irmã tinha o costume de dar-lhe beliscões, e um dos irmãos sempre esperava que ele se distraísse para puxar-lhe aquilo. Depois ria, dizendo: "Por mais que se puxe, é uma coisinha de nada", e mostrava o seu, orgulhoso. 
Às vezes, o menino ia dormir no chão. Esperava que os grandes passassem para trás da cortina, ameaçava os irmãos e ia deitar na cozinha ou contra o cabide. Era pequeno, mas também sabia fazer coisas malvadas. 
Escutava o pai e a mãe. Suas vozes eram grossas, por vezes estridentes, e palavras feias estremeciam o ar, penduravam-se nas teias de aranha, nos arremates das mata-juntas. O lastro estalava, e havia risadas, de gengivas descobertas, de profundos ocos de garganta. 
Ir embora, era o que o menino desejava. Ir para um lugar onde a água fosse grande e livre, um mar infinito, como ouvira contar certa vez. Não haveria aves, nem porcos nem cachorros, apenas peixes, dourados e lisos... O menino habituou-se a correr. Corria ao ouvir as xingações da mãe, corria ao ouvir os tamancos do pai, corria ao ouvir as risadas dos irmãos. Corria ainda quando ouviu a voz da porca velha. 
Gritava. Não grunhidos, não roncos, mas gritos. O menino sentiu sua barriguinha encolher, aquilo se levantar em franco protesto. 
Na esquina da casa, lá estava o grupo: o pai, o empregado, a mãe, um vizinho, e qualquer coisa que rebolava feito doida na areia. As crianças se conservavam longe, as mãos nos ouvidos, as caras estúpidas. A mãe se afobava, a saia descosida arrastando no chão, dando ordens, xingando, gritando mais alto que a porca. O pai se remexia, o chapéu sobre a nuca, o nariz pingando de suor. 
E foi a mãe que arrancou a faca das mãos do vizinho num gesto brusco. 
E como gritava a porca... o menino só lhe via o rabinho e as patas trêmulas. E num instante, tudo ficou imóvel. Os homens forcejando, a mulher adquirindo impulso, gorda, redonda, enorme, sua saia de grandes flores desbotadas roçando o ventre da porca, os irmãos sumindo ao longe, a barriguinha do menino se retesando. 
E foi água que jorrou da porca. Agua de fonte, vermelha, impetuosa, que fugiu de dentro do corpo, que saltou ao sol, que cabriolou, que explodiu na cara de todos... que sujou de sangue (agora era sangue) o braço da mãe, o rosto da mãe, o peito da mãe... que se esparramou no chapéu velho do pai, que respingou em seus bigodes... que cegou o vizinho, sufocou o empregado... 
foi aspirado por bocas, nariz, escorreu por pescoços e ombros. Agora era o pai quem batia na mãe, descompunha-a... "a camisa... a roupa do empregado, do vizinho... velha porcalhona..." 
O menino se agachou atrás da bananeira, com muita dor em sua barriguinha. E nunca mais beijou a mãe.

A Divina Comédia: Inferno: Dante Alighieri:



DA nossa vida, em meio da jornada, Achei-me numa selva tenebrosa,
3 Tendo perdido a verdadeira estrada.
Dizer qual era é cousa tão penosa, Desta brava espessura a asperidade,

6 Que a memória a relembra inda cuidosa.
Na morte há pouco mais de acerbidade; Mas para o bem narrar lá deparado

9 De outras cousas que vi, direi verdade.
Contar não posso como tinha entrado; Tanto o sono os sentidos me tomara,

12 Quando hei o bom caminho abandonado. 
Depois que a uma colina me cercara,
Onde ia o vale escuro terminando,
15 Que pavor tão profundo me causara.