sexta-feira, 30 de abril de 2021

Projeto Contos Do Sábado Na Usina: João Alphonsus: Galinha cega:

Na manhã sadia, o homem de barbas poentas, entronado na carrocinha,
aspirou forte. O ar passava lhe dobrando o bigode ríspido como a um
milharal. Berrou arrastadamente o pregão molengo:
- Frangos BONS E BARATOS!
Com as cabeças de mártires obscuros enfiadas na tela de arame os bichos
piavam num protesto. Não eram bons. Nem mesmo baratos. Queriam
apenas que os soltassem. Que lhes devolvessem o direito de continuar
ciscando no terreiro amplo e longe.
- Psiu!
Foi o cavalo que ouviu e estacou, enquanto o seu dono terminava o
pregão. Um bruto homem de barbas brancas na porta de um barracão
chamava o vendedor cavando o ar com o braço enorme.
Quanto? Tanto. Mas puseram-se a discutir exaustivamente os preços.
Não queriam por nada chegar a um acordo. O vendedor era macio.
O comprador brusco.
- Olhe esta franguinha branca. Então não vale?
- Está gordota... E que bonitos olhos ela tem. Pretotes... Vá lá!
O homem de barbas poentas entronou-se de novo e persistiu em gritar
pela rua que despertava:
- Frangos BONS E BARATOS!
Carregando a franga, o comprador satisfeito penetrou no barracão.
- Olha, Inácia, o que eu comprei.
A mulher tinha um eterno descontentamento escondido nas rugas.
Permaneceu calada.
- Olha os olhos. Pretotes...
- É.
- Gostei dela e comprei. Garanto que vai ser uma boa galinha.
- é.
No terreiro, sentindo a liberdade que retornava, a franga agitou as penas
e começou a catar afobada os bagos de milho que o novo dono lhe atirava
divertidíssimo.
A rua era suburbana, calada, sem movimento. Mas no alto da colina
dominando a cidade que se estendia lá embaixo cheia de árvores no dia e de
luzes na noite. Perto havia moitas de pitangueiras a cuja sombra os galináceos
podiam flanar à vontade e dormir a sesta.
A franga não notou grande diferença entre a sua vida atual e a que levava
em seu torrão natal distante. Muito distante. Lembrava-se vagamente de ter
sido embalaiada com companheiros mal-humorados. Carregaram os balaios
a trouxe-mouxe para um galinheiro sobre rodas, comprido e distinto, mas
sem poleiros. Houve um grito lá fora, lancinante, formidável. As paisagens
começaram a correr nas grades, enquanto o galinheiro todo se agitava,
barulhando e rangendo por baixo. Rolos de fumo rolavam com um cheiro
paulificante. De longe em longe as paisagens paravam. Mas novo grito e elas
de novo a correr. Na noitinha sumiram-se as paisagens e apareceram fagulhas.
Um fogo de artifício como nunca vira. Aliás ela nunca tinha visto um fogo
de artifício. Que lindo, que lindo. Adormecera numa enjoada madorna...
Viera depois outro dia de paisagens que tinham pressa. Dia de sede e
fome.
Agora a vida voltava a ser boa. Não tinha saudades do torrão natal.
Possuía o bastante para sua felicidade: liberdade e milho. Só o galo é que
àsvezes vinha perturbá-la incompreensivelmente. Já lá vinha ele, bem elegante,
com plumas, forte, resoluto. Já lá vinha. Não havia dúvida que era bem
bonito. Já lá vinha... Sujeito cacete.
O galo - có, có, có - có, có, có - rodeou-a, abriu a asa, arranhou
as penas com as unhas. Embarafustaram pelo mato numa carreira doida. E
ela teve a revelação do lado contrário da vida. Sem grande contrariedade a
não ser o propósito inconscientemente feminino de se esquivar, querendo e
não querendo.
- A melhor galinha, Inácia! Boa à beça!
- Não sei por quê.
- Você sempre besta! Pois eu sei...
- Besta! besta, hein?
- Desculpe, Inácia. Foi sem querer. Também você sabe que eu gosto
da galinha e fica me amolando.
- Besta é você!
- Eu sei que eu sou.
Ao ruído do milho se espalhando na terra, a galinha lá foi correndo
defender o seu quinhão, e os olhos do dono descansaram em suas penas
brancas, no seu porte firme, com ternura. E os olhos notaram logo a
anormalidade. A branquinha - era o nome que o dono lhe botara - bicava
o chão doidamente e raro alcançava um grão. Bicava quase sempre a uma
pequena distância de cada bago de milho e repetia o golpe, repetia com
desespero, até catar um grão que nem sempre era aquele que visava.
O dono correu atrás de sua branquinha, agarrou-a, lhe examinou os
olhos. Estavam direitinhos, graças a Deus, e muito pretos. Soltou-a no
terreiro e lhe atirou mais milho. A galinha continuou a bicar o chão
desorientada. Atirou ainda mais, com paciência, até que ela se fartasse. Mas
não conseguiu com o gasto de milho, de que as outras se aproveitaram, atinar
com a origem daquela desorientação. Que é que seria aquilo, meu Deus do
céu. Se fosse efeito de uma pedrada na cabeça e se soubesse quem havia
mandado a pedra, algum moleque da vizinhança, ai... Nem por sombra
imaginou que era a cegueira irremediável que principiava.
Também a galinha, coitada, não compreendia nada, absolutamente
nada daquilo. Por que não vinham mais os dias luminosos em que procurava
a sombra das pitangueiras? Sentia ainda o calor do sol, mas tudo quase sempre
tão escuro. Quase que já não sabia onde é que estava a luz, onde é que estava
a sombra.
Foi assim que, certa madrugada, quando abriu os olhos, abriu sem ver
coisa alguma. Tudo em redor dela estava preto. Era só ela, pobre, indefesa
galinha, dentro do infinitamente preto; perdida dentro do inexistente, pois
que o mundo desaparecera e só ela existia inexplicavelmente dentro da
sombra do nada. Estava ainda no poleiro. Ali se anularia, quietinha, se
finando quase sem sofrimento, porquanto a admirável clarividência dos seus
instintos não podia conceber que ela estivesse viva e obrigada a viver, quando
o mundo em redor se havia sumido.
Porém, suprema crueldade, os outros sentidos estavam atentos e fortes
no seu corpo. Ouviu que as outras galinhas desciam do poleiro cantando
alegremente. Ela, coitada, armou um pulo no vácuo e foi cair no chão
invisível, tocando-o com o bico, pés, peito, o corpo todo. As outras cantavam.
Espichava inutilmente o pescoço para passar além da sombra. Queria ver,
queria ver! Para depois cantar.
As mãos carinhosas do dono suspenderam-na do chão.
- A coitada está cega, Inácia! Cega!
- é.
Nos olhos raiados de sangue do carroceiro (ele era carroceiro) boiavam
duas lágrimas enormes.
Religiosamente, pela manhãzinha, ele dava milho na mão para a galinha
cega. As bicadas tontas, de violentas, faziam doer a palma da mão calosa.
E ele sorria. Depois a conduzia ao poço, onde ela bebia com os pés dentro
da água. A sensação direta da água nos pés lhe anunciava que era hora de
matar a sede; curvava o pescoço rapidamente, mas nem sempre apenas o bico
atingia a água: muita vez, no furor da sede longamente guardada, toda a
cabeça mergulhava no líquido, e ela a sacudia, assim molhada, no ar. Gotas
inúmeras se espargiam nas mãos e no rosto do carroceiro agachado junto do
poço. Aquela água era como uma bênção para ele. Como a água benta, com
que um Deus misericordioso e acessível aspergisse todas as dores animais.
Bênção, água benta, ou coisa parecida: uma impressão de doloroso triunfo,
de sofredora vitória sobre a desgraça inexplicável, injustificável, na carícia
dos pingos de água, que não enxugava e lhe secavam lentamente na pele.
Impressão, aliás, algo confusa, sem requintes psicológicos e sem literatura.
Depois de satisfeita a sede, ele a colocava no pequeno cercado de tela
separado do terreiro (as outras galinhas martirizavam muito a branquinha)
que construíra especialmente para ela. De tardinha dava-lhe outra vez milho
e água, e deixava a pobre cega num poleiro solitário, dentro do cercado.
Porque o bico e as unhas não mais catassem e ciscassem, puseram-se a
crescer. A galinha ia adquirindo um aspecto irrisório de rapace, ironia do
destino, o bico recurvo, as unhas aduncas. E tal crescimento já lhe atrapalhava
os passos, lhe impedia de comer e beber. Ele notou mais essa miséria e, de
vez em quando, com a tesoura, aparava o excesso de substância córnea no
serzinho desgraçado e querido.
Entretanto, a galinha já se sentia de novo quase feliz. Tinha delidas
lembranças da claridade sumida. No terreiro plano ela podia ir e vir à vontade
até topar a tela de arame, e abrigar-se do sol debaixo do seu poleiro solitário.
Ainda tinha liberdade - o pouco de liberdade necessário à sua cegueira.
E milho. Não compreendia nem procurava compreender aquilo. Tinham
soprado a lâmpada e acabou-se. Quem tinha soprado não era da conta dela.
Mas o que lhe doía fundamente era já não poder ver o galo de plumas bonitas.
E não sentir mais o galo perturbá-la com o seu có-có-có malicioso. O ingrato.
Em determinadas tardes, na ternura crescente do parati, ele pegava a
galinha, após dar-lhe comida e bebida, se sentava na porta do terreiro e
começava a niná-la com a voz branda, comovida:
- Coitadinha da minha ceguinha!
- Tadinha da ceguinha...
Depois, já de noite, ia botá-la no poleiro solitário.
De repente os acontecimentos se precipitaram.
- Entra!
- Centra!
A meninada ria a maldade atávica no gozo do futebol originalíssimo.
A galinha se abandonava sem protesto na sua treva à mercê dos chutes. Ia e
vinha. Os meninos não chutavam com tanta força como a uma bola, mas
chutavam, e gozavam a brincadeira.
O carroceiro não quis saber por que é que a sua ceguinha estava no
meio da rua. Avançou como um possesso com o chicote que assoviou para
atingir umas nádegas tenras. Zebrou carnes nos estalos da longa tira de sola.
O grupo de guris se dispersou em prantos, risos, insultos pesados, revolta.
- Você chicoteou o filho do delegado. Vamos à delegacia.
Quando saiu do xadrez, na manhã seguinte, levava um nó na garganta.
Rubro de raiva impotente. Foi quase que correndo para casa.
- Onde está a galinha, Inácia?
- Vai ver.
Encontrou-a no terreirinho, estirada, morta! Por todos os lados havia
penas arrancadas, mostrando que a pobre se debatera, lutara contra o
inimigo, antes deste abrir-lhe o pescoço, onde existiam coágulos de sangue...
Era tão trágico o aspecto do marido que os olhos da mulher se
esbugalharam de pavor.
- Não fui eu não! Com certeza um gambá!
- Você não viu?
- Não acordei! Não pude acordar!
Ele mandou a enorme mão fechada contra as rugas dela. A velha
tombou nocaute, mas sem aguardar a contagem dos pontos escapuliu para
a rua gritando: - Me acudam!
Quando de novo saiu do xadrez, na manhã seguinte, tinha açambarcado todas as
iras do mundo. Arquitetava vinganças tremendas contra o gambá.
Todo gambá é pau-d'água. Deixaria uma gamela com cachaça no terreiro.
Quando o bichinho se embriagasse, havia de matá-lo aos poucos. De-va-gari-nho.
GOSTOSAMENTE.
De noite preparou a esquisita armadilha e ficou esperando. Logo pelas
20 horas o sono chegou. Cansado da insônia no xadrez, ele não resistiu. Mas
acordou justamente na hora precisa, necessária. A porta do galinheiro, ao
luar leitoso, junto à mancha redonda da gamela, tinha outra mancha escura
que se movia dificilmente.
Foi se aproximando sorrateiro, traiçoeiro, meio agachado, examinando
em olhadas rápidas o terreno em volta, as possibilidades de fuga do animal,
para destruí-las de pronto, se necessário. O gambá fixou-o com os olhos
espertos e inocentes, e começou a rir:
- Kiss! kiss! kiss!
(Se o gambá fosse inglês com certeza estaria pedindo beijos. Mas não
era. No mínimo estava comunicando que houvera querido alguma coisa.
Comer galinhas por exemplo. Bêbado.)
O carroceiro examinou o bichinho curiosamente. O luar, que favorece
os surtos de raposas e gambás nos galinheiros, era esplêndido. Mas apenas
tocou-o de leve com o pé, já simpatizado:
- Vai embora, seu tratante!
O gambá foi indo tropegamente. Passou por baixo da tela e parou
olhando para a lua. Se sentia imensamente feliz o bichinho e começou a
cantarolar imbecilmente, como qualquer criatura humana:
- A lua como um balão balança!
A lua como um balão balança!
A lua como um ......
E adormeceu de súbito debaixo de uma pitangueira.

***

Projeto Contos do Sábado na Usina:Machado de Assis: Paixão:


 A distância da igreja à casa era pequena, e a conversa entre Isabel e
Camilo não foi longa nem seguida. E todavia, leitor, se alguma simpatia te
merece a princesa moscovita, deves sinceramente lastimá-la. A aurora de
um novo sentimento começava a dourar as cumeadas do coração de
Camilo; ao subir as escadas, confessava o filho do comendador de si parasi, que a interessante patrícia tinha qualidades superiores às da bela
princesa russa. Hora e meia depois, isto é, quase no fim do jantar, o
coração de Camilo confirmava plenamente esta descoberta do seu
investigador espírito.
A conversa, entretanto, não passou de coisas totalmente indiferentes;
mas Isabel falava com tanta doçura e graça, posto não alterasse nunca a
sua habitual reserva; os olhos eram tão bonitos de ver ao perto, e os
cabelos também, e a boca igualmente, e as mãos do mesmo modo, que o
nosso ardente mancebo, só mudando de natureza, poderia resistir ao
influxo de tantas graças juntas.
 O jantar correu sem novidade apreciável. Reuniram-se à mesa do
tenente-coronel todas as notabilidades do lugar, o vigário, o juiz
municipal, o negociante, o fazendeiro, reinando sempre de uma ponta à
outra da mesa a maior cordialidade e harmonia. O imperador do Divino,
já então restituído ao seu vestuário comum, fazia as honras da mesa com
verdadeiro entusiasmo. A festa era o objeto da geral conversa,
entremeada, é verdade, de reflexões políticas, em que todos estavam de
acordo, porque eram do mesmo partido, homens e senhoras.
 O Major Brás tinha por costume fazer um ou dois brindes longos e
eloqüentes em cada jantar de certa ordem a que assistisse. A facilidade
com que ele se exprimia não tinha rival em toda a província. Além disso,
como era dotado de descomunal estatura, dominava de tal modo o
auditório, que o simples levantar-se era já meio triunfo.
 Não podia o Major Brás deixar passar incólume o jantar do tenente-
coronel; ia-se entrar na sobremesa quando o eloqüente major pediu
licença para dizer algumas palavras singelas e toscas. Um murmúrio,
equivalente aos não-apoiados das câmaras, acolheu esta declaração do
orador, e o auditório preparou o ouvido para receber as pérolas que lhe
iam cair da boca.
 — O ilustre auditório que me escuta, disse ele, desculpará a minha
ousadia; não vos fala o talento, senhores; fala-vos o coração.
“Meu brinde é curto; para celebrar as virtudes e a capacidade do ilustre
Tenente-coronel Veiga não é preciso fazer um longo discurso. Seu nome
diz tudo; a minha voz nada adiantaria...”
O auditório revelou por sinais que aplaudia sem restrições o primeiro
membro desta última frase, e com restrições o segundo; isto é,
cumprimentou o tenente-coronel e o major; e o orador que, para ser
coerente com o que acabava de dizer, devia limitar-se a esvaziar o copo,
prosseguiu da seguinte maneira:
 — O imenso acontecimento que acabamos de presenciar, senhores, creio
que nunca se apagará da vossa memória. Muitas festas do Espírito Santo
têm havido nesta cidade e em outras; mas nunca o povo teve o júbilo de
contemplar um esplendor, uma animação, um triunfo igual ao que nos
proporcionou o nosso ilustre correligionário e amigo, o Tenente-coronel
Veiga, honra da classe a que pertence, e glória do partido a que se
filiou...
— E no qual pretendo morrer, completou o tenente-coronel.
— Nem outra coisa era de esperar de V. Ex.ª, disse o orador mudando de
voz para dar a estas palavras um tom de parênteses.
Apesar da declaração feita no princípio, de que era inútil acrescentar nada
aos méritos do tenente-coronel, o intrépido orador falou cerca de vinte e
cinco minutos com grande mágoa do Padre Maciel, que namorava de
longe um fofo e trêmulo pudim de pão, e do juiz municipal que estava
ansioso por ir fumar. A peroração desse memorável discurso foi pouco
mais ou menos assim:
— Eu faltaria, portanto, aos meus deveres de amigo, de correligionário,
de subordinado e de admirador, se não levantasse a voz nesta ocasião, e
não vos dissesse em linguagem tosca, sim (sinais de desaprovação), mas
sincera, os sentimentos que me tumultuam dentro do peito, o entusiasmo
de que me sinto possuído, quando contemplo o venerando e ilustre
tenente-coronel Veiga, e se vos não convidasse a beber comigo à saúde
de S. Ex.ª.
O auditório acompanhou com entusiasmo o brinde do major, ao qual
respondeu o tenente-coronel com estas poucas, mas sentidas palavras:
— Os elogios que me acaba de fazer o distinto Major Brás são verdadeiros
favores de uma alma grande e generosa; não os mereço, senhores;
devolvo-os intactos ao ilustre orador que me precedeu.
No meio da festa e da alegria que reinava ninguém reparou nas atenções
que Camilo prestava à bela filha do Dr. Matos. Ninguém, digo mal;
Leandro Soares, que fora convidado ao jantar, e assistira a ele, não tirava
os olhos do elegante rival e da sua formosa e esquiva dama.
Há de parecer milagre ao leitor a indiferença e até o ar alegre com que
Soares assistia aos ataques do adversário. Não é milagre; Soares também
interrogava o olhar de Isabel e lia nele a indiferença, talvez o desdém,
com que tratava o filho do comendador.
 “Nem eu, nem ele,” dizia consigo o pretendente.
Camilo estava apaixonado; no dia seguinte amanheceu pior; cada dia que
passava aumentava a chama que o consumia. Paris e a princesa, tudo
havia desaparecido do coração e da memória do rapaz. Um só ente, um
lugar único mereciam agora as suas atenções: Isabel e Goiás.
A esquivança e os desdéns da moça não contribuíram pouco para esta
transformação. Fazendo de si próprio melhor idéia que do rival, Camilo
dizia consigo:
“Se ela não me dá atenção, muito menos deve importar-se com o filho de
Soares. Mas por que razão se mostra comigo tão esquiva? Que motivo há
para que eu seja derrotado como qualquer pretendente vulgar?”
Nessas ocasiões lembrava-se do desconhecido que lhe falara na igreja e
das palavras que lhe dissera.
— Algum mistério haverá, dizia ele; mas como descobri-lo?
Indagou das pessoas da cidade quem era o sujeito baixo, de olhos miúdos
e vivos. Ninguém lho soube dizer. Parecia incrível que não chegasse a
descobrir naquelas paragens um homem que naturalmente alguém devia
conhecer; redobrou de esforços; ninguém sabia quem era o misterioso
sujeito.
Entretanto Camilo freqüentava a fazenda do Dr. Matos e ali ia jantar
algumas vezes. Era difícil falar a Isabel com a liberdade que permitem
mais adiantados costumes; fazia entretanto o que podia para comunicar à
bela moça os seus sentimentos. Isabel parecia cada vez mais estranha às
comunicações do rapaz. Suas maneiras não eram positivamente
desdenhosas, mas frias; dissera-se que ali dentro morava um coração de
neve.
Ao amor desprezado, veio juntar-se o orgulho ofendido, o despeito e a
vergonha, e tudo isto, junto a uma epidemia que então reinava na
comarca, deu com o nosso Camilo na cama, onde por agora o

deixaremos, entregue aos médicos seus colegas. 

Projeto Contos De Sábado Na Usina:Traduções de Fernando Pessoa: O Corvo:Edgar Allan Poe

O Corvo: (de Edgar Allan Poe).

1-Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."

2 - Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!
3-Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".
4-E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.
5-A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.
6
Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."
7
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.
8-E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".
9-Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".
10-Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhão também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".
11
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".
12-Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".
13-Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!
14-Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
15-"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".
16-"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Édem de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
17-"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
18-E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!

Fonte: http://www.secrel.com.br/jpoesia/fpesso.html

Projeto Contos do Sábado Na Usina: Júlia Lopes de Almeida:A caolha:


A caolha era uma mulher magra, alta, macilenta, peito fundo, busto
arqueado, braços compridos, delgados, largos nos cotovelos, grossos nos
pulsos; mãos grandes, ossudas, estragadas pelo reumatismo e pelo trabalho;
unhas grossas, chatas e cinzentas, cabelo crespo, de uma cor indecisa entre o branco sujo e o louro grisalho, desse cabelo cujo contato parece dever ser áspero e espinhento; boca descaída, numa expressão de desprezo, pescoço
longo, engelhado, como o pescoço dos urubus; dentes falhos e cariados.
O seu aspecto infundia terror às crianças e repulsão aos adultos; não
tanto pela sua altura e extraordinária magreza, mas porque a desgraçada tinha
um defeito horrível: haviam-lhe extraído o olho esquerdo; a pálpebra descera
mirrada, deixando, contudo, junto ao lacrimal, uma fístula continuamente
porejante.
Era essa pinta amarela sobre o fundo denegrido da olheira, era essa
destilação incessante de pus que a tornava repulsiva aos olhos de toda a gente.
Morava numa casa pequena, paga pelo filho único, operário numa
oficina de alfaiate; ela lavava a roupa para os hospitais e dava conta de todo
o serviço da casa inclusive cozinha. O filho, enquanto era pequeno, comia
os pobres jantares feitos por ela, às vezes até no mesmo prato; à proporção
que ia crescendo, ia-se-lhe a pouco e pouco manifestando na fisionomia a
repugnância por essa comida; até que um dia, tendo já um ordenadozinho,
declarou à mãe que, por conveniência do negócio, passava a comer fora...
Ela fingiu não perceber a verdade, e resignou-se.
Daquele filho vinha-lhe todo o bem e todo o mal.
Que lhe importava o desprezo dos outros, se o seu filho adorado lhe
apagasse com um beijo todas as amarguras da existência?
Um beijo dele era melhor que um dia de sol, era a suprema carícia para
o seu triste coração de mãe! Mas... os beijos foram escasseando também,
com o crescimento do Antonico! Em criança ele apertava-a nos bracinhos e
enchia-lhe a cara de beijos; depois, passou a beijá-la só na face direita,
aquela onde não havia vestígios de doença; agora, limitava-se a beijar-lhe a mão!
Ela compreendia tudo e calava-se.
O filho não sofria menos.
Quando em criança entrou para a escola pública da freguesia, começaram logo
os colegas, que o viam ir e vir com a mãe, a chamá-lo - o filho da
caolha.
Aquilo exasperava-o; respondia sempre.
Os outros riam-se e chacoteavam-no; ele queixava-se aos mestres, os
mestres ralhavam com os discípulos, chegavam mesmo a castigá-los - mas
a alcunha pegou, já não era só na escola que o chamavam assim.
Na rua, muitas vezes, ele ouvia de uma ou de outra janela dizerem: o
filho da caolha! Lá vai o filho da caolha! Lá vem o filho da caolha!
Eram as irmãs dos colegas, meninas novas, inocentes e que, industriadas
pelos irmãos, feriam o coração do pobre Antonico cada vez que o viam passar!
As quitandeiras, onde iam comprar as goiabas ou as bananas para o
lunch, aprenderam depressa a denominá-lo como os outros e, muitas vezes,
afastando os pequenos que se aglomeravam ao redor delas, diziam, estendendo
uma mancheia de araçás, com piedade e simpatia:
- Taí, isso é pra o filho da caolha!
O Antonico preferia não receber o presente a ouvi-lo acompanhar de
tais palavras; tanto mais que os outros, com inveja, rompiam a gritar,
cantando em coro, num estribilho já combinado:
- Filho da caolha, filho da caolha!
O Antonico pediu à mãe que o não fosse buscar à escola; e, muito
vermelho, contou-lhe a causa; sempre que o viam aparecer à porta do colégio
os companheiros murmuravam injúrias, piscavam os olhos para o Antonico
e faziam caretas de náuseas!
A caolha suspirou e nunca mais foi buscar o filho.
Aos onze anos o Antonico pediu para sair da escola: levava a brigar com
os condiscípulos, que o intrigavam e malqueriam. Pediu para entrar para
uma oficina de marceneiro. Mas na oficina de marceneiro aprenderam
depressa a chamá-lo - o filho da caolha, a humilhá-lo, como no colégio.
Além de tudo, o serviço era pesado e ele começou a ter vertigens e
desmaios. Arranjou então um lugar de caixeiro de venda; os seus ex-colegas
agrupavam-se à porta, insultando-o, e o vendeiro achou prudente mandar o
caixeiro embora, tanto que a rapaziada ia-lhe dando cabo do feijão e do arroz
expostos à porta nos sacos abertos! Era uma contínua saraivada de cereais
sobre o pobre Antonico!
Depois disso passou um tempo em casa, ocioso, magro, amarelo,
deitado pelos cantos, dormindo às moscas, sempre zangado e sempre bocejante!
Evitava sair de dia e nunca, mas nunca, acompanhava a mãe; esta
poupava-o: tinha medo de que o rapaz, num dos desmaios, lhe morresse nos
braços, e por isso nem sequer o repreendia! Aos dezesseis anos, vendo-o mais
forte, pediu e obteve-lhe, a caolha, um lugar numa oficina de alfaiate.
A infeliz mulher contou ao mestre toda a história do filho e suplicou-lhe que
não deixasse os aprendizes humilhá-lo; que os fizesse terem caridade!
Antonico encontrou na oficina uma certa reserva e silêncio da parte dos
companheiros; quando o mestre dizia: Sr. Antonico, ele percebia um sorriso
mal oculto nos lábios dos oficiais; mas a pouco e pouco essa suspeita, ou esse
sorriso, se foi desvanecendo, até que principiou a sentir-se bem ali.
Decorreram alguns anos e chegou a vez de Antonico se apaixonar. Até
aí, numa ou outra pretensão de namoro que ele tivera, encontrara sempre
uma resistência que o desanimava, e que o fazia retroceder sem grandes
mágoas. Agora, porém, a coisa era diversa: ele amava! amava como um louco
a linda moreninha da esquina fronteira, uma rapariguinha adorável, de olhos
negros como veludo e boca fresca como um botão de rosa. O Antonico voltou
a ser assíduo em casa e expandia-se mais carinhosamente com a mãe; um dia,
em que viu os olhos da morena fixarem os seus, entrou como um louco no
quarto da caolha e beijou-a mesmo na face esquerda, num transbordamento
de esquecida ternura!
Aquele beijo foi para a infeliz uma inundação de júbilo! tornara a
encontrar o seu querido filho! pôs-se a cantar toda a tarde, e nessa noite,
ao adormecer, dizia consigo:
- Sou muito feliz... o meu filho é um anjo!
Entretanto, o Antonico escrevia, num papel fino, a sua declaração de amor
à vizinha. No dia seguinte mandou-lhe cedo a carta. A resposta fez-se esperar.
Durante muitos dias Antonico perdia-se em amarguradas conjeturas.
Ao princípio pensava:
- "É o pudor". Depois começou a desconfiar de outra causa; por fim
recebeu uma carta em que a bela moreninha confessava consentir em ser sua
mulher, se ele se separasse completamente da mãe! Vinham explicações
confusas, mal alinhavadas: lembrava a mudança de bairro; ele ali era muito
conhecido por filho da caolha, e bem compreendia que ela não se poderia
sujeitar a ser alcunhada em breve de - nora da caolha, ou coisa semelhante!
O Antonico chorou! Não podia crer que a sua casta e gentil moreninha
tivesse pensamentos tão práticos!
Depois o seu rancor voltou-se para a mãe.
Ela era a causadora de toda a sua desgraça! Aquela mulher perturbara a
sua infância, quebrara-lhe todas as carreiras, e agora o seu mais brilhante
sonho de futuro sumia-se diante dela! Lamentava-se por ter nascido de
mulher tão feia, e resolveu procurar meio de separar-se dela; considerar-se-ia
humilhado continuando sob o mesmo teto; havia de protegê-la de longe,
vindo de vez em quando vê-la à noite, furtivamente...
Salvava assim a responsabilidade de protetor e, ao mesmo tempo,
consagraria à sua amada a felicidade que lhe devia em troca do seu consentimento
e amor... Passou um dia terrível; à noite, voltando para casa, levava o seu projeto
e a decisão de o expor à mãe.
A velha, agachada à porta do quintal, lavava umas panelas com um trapo
engordurado. O Antonico pensou: "A dizer a verdade eu havia de sujeitar
minha mulher a viver em companhia de... uma tal criatura?" Estas últimas
palavras foram arrastadas pelo seu espírito com verdadeira dor. A caolha
levantou para ele o rosto, e o Antonico, vendo-lhe o pus na face, disse:
- Limpe a cara, mãe... Ela sumiu a cabeça no avental; ele continuou:
- Afinal nunca me explicou bem a que é devido esse defeito!
- Foi uma doença, - respondeu sufocadamente a mãe - é melhor
não lembrar isso!
- E é sempre a sua resposta: é melhor não lembrar isso! Por quê?
- Porque não vale a pena; nada se remedeia...
- Bem! agora escute: trago-lhe uma novidade: o patrão exige que eu
vá dormir na vizinhança da loja... já aluguei um quarto: a senhora fica aqui
e eu virei todos os dias a saber da sua saúde ou se tem necessidade de alguma
coisa... É por força maior; não temos remédio senão sujeitar-nos!...
Ele, magrinho, curvado pelo hábito de costurar sobre os joelhos,
delgado e amarelo como todos os rapazes criados à sombra das oficinas, onde
o trabalho começa cedo e o serão acaba tarde, tinha lançado naquelas palavras
toda a sua energia, e espreitava agora a mãe com um olho desconfiado e
medroso.
A caolha levantou-se e, fixando o filho com uma expressão terrível,
respondeu com doloroso desdém:
- Embusteiro! o que você tem é vergonha de ser meu filho! Saia! que
eu também já sinto vergonha de ser mãe de semelhante ingrato!
O rapaz saiu cabisbaixo, humilde, surpreso da atitude que assumira a
mãe, até então sempre paciente e cordata; ia com medo, maquinalmente,
obedecendo à ordem que tão feroz e imperativamente lhe dera a caolha.
Ela acompanhou-o, fechou com estrondo a porta, e vendo-se só,
encostou-se cambaleante à parede do corredor e desabafou em soluços.
O Antonico passou uma tarde e uma noite de angústia.
Na manhã seguinte o seu primeiro desejo foi voltar à casa; mas não teve
coragem; via o rosto colérico da mãe, faces contraídas, lábios adelgaçados
pelo ódio, narinas dilatadas, o olho direito saliente, a penetrar-lhe até o
fundo do coração, o olho esquerdo arrepanhado, murcho - e sujo de pus; via a
sua atitude altiva, o seu dedo ossudo, de falanges salientes, apontando-lhe
com energia a porta da rua; sentia-lhe ainda o som cavernoso da voz, e o
grande fôlego que ela tomara para dizer as verdadeiras e amargas palavras que
lhe atirara no rosto; via toda a cena da véspera e não se animava a arrostar
com o perigo de outra semelhante.
Providencialmente, lembrou-se da madrinha, única amiga da caolha,
mas que, entretanto, raramente a procurava.
Foi pedir-lhe que interviesse, e contou-lhe sinceramente tudo que
houvera. A madrinha escutou-o comovida; depois disse:
- Eu previa isso mesmo, quando aconselhava tua mãe a que te dissesse
a verdade inteira; ela não quis, aí está!
- Que verdade, madrinha?
- Hei de dizer-te perto dela; anda, vamos lá!
Encontraram a caolha a tirar umas nódoas do fraque do filho - queria
mandar-lhe a roupa limpinha. A infeliz arrependera-se das palavras que
dissera e tinha passado toda a noite à janela, esperando que o Antonico
voltasse ou passasse apenas... Via o porvir negro e vazio e já se queixava
de si! Quando a amiga e o filho entraram, ela ficou imóvel: a surpresa e a alegria
amarraram-lhe toda a ação.
A madrinha do Antonico começou logo:
- O teu rapaz foi suplicar-me que te viesse pedir perdão pelo que houve
aqui ontem e eu aproveito a ocasião para, à tua vista, contar-lhe o que já
deverias ter-lhe dito!
- Cala-te! - murmurou com voz apagada a caolha.
- Não me calo! Essa pieguice é que te tem prejudicado! Olha! rapaz,
quem cegou tua mãe foste tu!
O afilhado tornou-se lívido; e ela concluiu:
- Ah, não tiveste culpa! eras muito pequeno quando, um dia, ao
almoço, levantaste na mãozinha um garfo; ela estava distraída, e antes que
eu pudesse evitar a catástrofe, tu enterraste-lho pelo olho esquerdo! Ainda
tenho no ouvido o grito de dor que ela deu!
O Antonico caiu pesadamente de bruços, com um desmaio; a mãe
acercou-se rapidamente dele, murmurando trêmula:
- Pobre filho! vês? era por isto que eu não lhe queria dizer nada!

Contos Do Sábado: Carlos Drummond de Andrade : O Presépio:


Dasdores (assim se chamavam as moças daquele tempo) sentia-se dividida
entre a Missa do Galo e o presépio. Se fosse à igreja, o presépio não
ficaria armado antes de meia-noite e, se se dedicasse ao segundo, não veria
namorado.
Ë difícil ver namorado na rua, pois moça não deve sair de casa, salvo
para rezar ou visitar parentes. Festas são raras. O cinema ainda não foi
inventado, ou, se o foi, não chegou a esta nossa cidade, que é antes uma
fazenda crescida. Cabras passeiam nas ruas, um cincerro tilinta: é a tropa.
E viúvas espiam de janelas, que se diriam jaulas.
Dasdores e suas numerosas obrigações: cuidar dos irmãos, velar pelos
doces de calda, pelas conservas, manejar agulha e bilro, escrever as cartas
de todos. Os pais exigem-lhe o máximo, não porque a casa seja pobre, mas
porque o primeiro mandamento da educação feminina é: trabalharás dia e
noite. Se não trabalhar sempre, se não ocupar todos os minutos, quem sabe
de que será capaz a mulher? Quem pode vigiar sonhos de moça? Eles são
confusos e perigosos. Portanto, é impedir que se formem. A total ocupação
varre o espírito. Dasdores nunca tem tempo para nada. Seu nome, alegre à
força de repetido, ressoa pela casa toda. "Dasdores, as dálias já foram regadas
hoje?" "Você viu, Dasdores, quem deixou o diabo desse gato furtar a carne?"
"Ah, Dasdores, meu bem, prega esse botão para sua mãezinha." Dasdores
multiplica-se, corre, delibera e providencia mil coisas. Mas é um engano
supor que se deixou aprisionar por obrigações enfadonhas. Em seu coração
ela voa para o sobrado da outra rua, em que, fumando ou alisando o cabelo
com brilhantina, está Abelardo.
Das mil maneiras de amar, ó pais, a secreta é a mais ardilosa, e eis a que
ocorre na espécie. Dasdores sente-se livre em meio às tarefas, e até mesmo
extrai delas algum prazer. (Dir-se-ia que as mulheres foram feitas para o
trabalho... Alguma coisa mais do que resignação sustenta as donas-de-casa.)
Dasdores sabe combinar o movimento dos braços com a atividade interior
- É uma conspiradora - e sempre acha folga para pensar em Abelardo.
Esta véspera de Natal, porém, veio encontrá-la completamente desprevenida.
O presépio está por armar, a noite caminha, lenta como costuma fazê-lo no
interior, mas Dasdores é íntima do relógio grande da sala de jantar, que não
perdoa, e mesmo no mais calmo povoado o tempo dá um salto repentino,
desafia o incauto: "Agarra-me!" Sucede que ninguém mais, salvo esta moça,
pode dispor o presépio, arte comunicada por uma tia já morta. E só Dasdores
conhece o lugar de cada peça, determinado há quase dois mil anos, porque
cada bicho, cada musgo tem seu papel no nascimento do Menino, e ai do
presépio que cede a novidades.
As caixas estão depositadas no chão ou sobre a mesa, e desembrulhá-las
é a primeira satisfação entre as que estão infusas na prática ritual da armação
do presépio. Todos os irmãos querem colaborar, mas antes atrapalham, e
Dasdores prefere ver-se morta a ceder-lhes a responsabilidade plena da
direção. Jamais lhes será dado tocar, por exemplo, no Menino Jesus, na
Virgem e em São José. Nos pastores, sim, e nas grutas subsidiárias. O melhor
seria que não amolassem, e Dasdores passaria o dia inteiro compondo sozinha
a paisagem de água e pedras, relva, cães e pinheiros, que há de circundar a
manjedoura. Nem todos os animais estão perfeitos; este carneirinho tem uma
perna quebrada, que se poderia consertar, mas parece a Dasdores que, assim
mutilado e dolorido, o Menino deve querer-lhe mais. Os camelos, bastante
miúdos, não guardam proporção com os cameleiros que os tangem; mas são
presente da tia morta, e participam da natureza dos animais domésticos, a
qual por sua vez participa obscuramente da natureza da família. Através de
um sentimento nebuloso, afigura-se-lhe que tudo é uma coisa só, e não há
limites para o humano. Dasdores passa os dedos, com ternura, pelos camelinhos;
sente neles a macieza da mão de Abelardo.
Alguém bate palmas na escada; ô de casa! amigas que vêm combinar a
hora de ir para a igreja. Entram e acham o presépio desarranjado, na sala em
desordem. Esta visita come mais tempo, matéria preciosa ("Agarra-me!
Agarra-me!"). Quando alguém dispõe apenas de uns poucos minutos para
fazer algo de muito importante e que exige não somente largo espaço de
tempo mas também uma calma dominadora - algo de muito importante
e que não pode absolutamente ser adiado - se esse alguém é nervoso, sua
vontade se concentra, numa excitação aguda, e o trabalho começa a surgir,
perfeito, de circunstâncias adversas. Dasdores não pertence a essa raça
torturada e criadora; figura no ramo também delicado, mas impotente, dos
fantasistas. Vão-se as amigas, para voltar duas horas depois, e Dasdores,
interrogando o relógio, nele vê apenas o rosto de Abelardo, como também
percebe esse rosto de bigode, e a cabeleira lustrosa, e os olhos acesos,
dissimulados nas ramagens do papel da parede, e um pouco por toda parte.
A mão continua tocando maquinalmente nas figuras do presépio,
dispondo-as onde convém. Nada fará com que erre; do passado a tia repete
sua lição profunda. Entretanto, o prazer de distribuir as figuras, de fixar
estrela, de espalhar no lago de vidro os patinhos de celulóide, está alterado,
ou subtrai-se. Dasdores não o saboreia por inteiro. Ou nele se insinuou o
prazer da missa? Ou o medo de que o primeiro, prolongando-se, viesse a
impedir o segundo? Ou um sentimento de culpa, ao misturar o sagrado ao
profano, dando, talvez, preferência a este último, pois no fundo da caminha
de palha suas mãos acariciavam o Menino, mas o que a pele queria sentir -
sentia, Deus me perdoe - era um calor humano, já sabeis de quem.
Aqui desejaria, porque o mundo é cruel e as histórias também costumam sê-lo,
acelerar o ritmo da narrativa, prover Dasdores com os muitos
braços de que ela carece para cumprir com sua obrigação, vestir-se
violentamente, sair com as amigas - depressa, depressa-, ir correndo ladeira
acima, encontrar a igreja vazia, o adro já quase deserto, e nenhum Abelardo. Mas
seria preciso atribuir-lhe, não braços e pernas suplementares, e sim outra
natureza, diferente da que lhe coube, e é pura placidez. Correi, sôfregos,
correi ladeira acima, e chegai sempre ou muito tarde ou muito cedo, mas
continuai a correr, a matar-vos, sem perspectiva de paz ou conciliação. Não
assim os serenos, aqueles que, mesmo sensuais, se policiam. O dono desta
noite, depois do Menino, é o relógio, e este vai mastigando seus minutos,
seus cinco minutos, seus quinze minutos. Se nos esquecermos dele, talvez
pule meia hora, como um prestidigitador furta um ovo, mas, se nos pusermos
a contemplá-lo, os números gelam, o ponteiro imobiliza-se, a vida parou
rigorosamente. Saber que a vida parou seria reconfortante para Dasdores,
que assim lograria folga para localizar condignamente os três reis na estrada,
levantar os muros de Belém. Começa a fazê-lo, e o tempo dispara de novo.
"Agarra-me! Agarra-me!" Nas cabeças que espiam pela porta entreaberta, no
estouvamento dos irmãos, que querem se debruçar sobre o caminho de areia
antes que essa esteja espalhada, na muda interrogação da mãe, no sentimento
de que a vida é variada demais para caber em instantes tão curtos, no calor
que começa a fazer apesar das janelas escancaradas - há uma previsão de
malogro iminente. Pronto, este ano não haverá Natal. Nem namorado. E a
noite se fundirá num largo pranto sobre o travesseiro.
Mas Dasdores continua, calma e preocupada, cismarenta e repartida,
juntando na imaginação os dois deuses, colocando os pastores na posição
devida e peculiar à adoração, decifrando os olhos de Abelardo, as mãos de
Abelardo, o mistério prestigioso do ser de Abelardo, a auréola que os
caminhantes descobriram em torno dos cabelos macios de Abelardo, a pele
morena de Jesus, e aquele cigarro - quem botou! - ardendo na areia do
presépio, e que Abelardo fumava na outra rua.

***