sexta-feira, 4 de março de 2022

Contos do Sábado na Usina: Camilo Castelo Branco:


INTRODUÇÃO
Entre as diversas moléstias significativas da minha velhice, o amor aos livros antigos – a mais dispendiosa
– leva-me o dinheiro que me sobra da botica, onde os outros achaques me obrigam a fazer grandes orgias de pílulas e tisanas. E, quando cuido que me curo com as drogas e me ilustro com os arcaísmos, arruíno o estômago, e enferrujo o cérebro numa caturrice académica.
Constou-me aqui há dias que a Srª Joaquina de Vilalva tinha um gigo de livros velhos entre duas pipas na adega, e que as pipas, em vez de malhais de pão, assentavam sobre missais, O meu informador denomina missais todos os livros grandes; aos pequenos chama cartilhas. Mandei perguntar à Srª Joaquina se dava licença que eu visse os livros. Não só mos deixou ver, mas até mos deu todos – que escolhesse, que levasse.
Examinei-os com alvoroço de bibliómano. Eles, gordurosos, húmidos, empoeirados, pareciam-me sedutores como ao leitor delicadamente sensual se lhe afigura a face da mulher querida, oleosa de cold-cream, pulverizada de bismuto.
Havia sermonários latinos, um Marco Marullo, três retóricas, muitas teologias morais, um Euclides, comentários de versões literais de Tito Lívio e Virgílio. Deixei tudo na benemérita podridão, tirante uma versão castelhana do mantuano por Diego Lopez e um muito raro Entendimento literal e canstrviçam portugueza de todas as obras de Horacio, por industria de Francisco da Costa, impresso em 1639.
Disse-me a dadivosa viúva de Vilalva que os livros estavam na adega havia mais de trinta anos, desde que seu cunhado, que estudava para padre, morrera ético; que o seu homem – Deus lhe fale na alma – mandara calcar o quarto onde o estudante acabara, e atirou para as lojas tudo o que era do defunto – trastes, roupa e livralhada. Contou-me isto secamente do extinto cunhado, ao mesmo tempo que roçava com a mão fagueira o ventre grávido de uma gata maltesa que lhe resbunava no regaço, passando-lhe pela cara a cauda em atritos de ama flacidez de arminho. E eu que dedico aos bichos um afecto nostálgico, uma sensibilidade retroactiva, um atavismo que me retrocede aos meus saudosos tempos de gorilha, olhava para a gata que me piscava um olho com uma meiguice antiga – a das meninas da minha mocidade que piscavam. Onde isto vai!
A Srª Joaquina, para me obrigar a um eterno reconhecimento, ofereceu-me uma das crias da sua gata que andava para cada hora e se chamava Velhaca – ajuntou com a satisfação de quem completa um esclarecimento interessante. Agradeci o porvindouro filho da Velhaca, fiz uma carícia no dorso crespo da mãe, que ma recebeu familiarmente, e sai com os livros velhos empacotados em duas bulas de 1816 e 1817 que a Srª Joaquina, com um riso céptico indisciplinado, me disse serem do tempo dos Afonsinhos. – Porque o seu sogro, acrescentou, era um asno às direitas que comprava a bula para poder comer carne em dia de jejum; e, sem que eu a provocasse a vomitar heresias, disse que os padres vendiam a bula e compravam a carne; e, juntando è heresia um anexim de limpeza muito duvidosa, disse o que quer que fosse a respeito dos pecados que entram pela boca.
Depois informaram-me que esta viúva, bastante estragada no moral e ainda mais no físico, andara de amores ilícitos com um escrivão do juiz de paz, o Barroso, um dos 7500 do Mindelo, que lera o Bom senso do cura João Meslier, e a saturara de má filosofia, e também a esbulhara de parte dos seus bens de raiz e do melhor da sua
riqueza – a Fé, o bordão com que as velhas e os velhos caminham resignados e contentes para os mistérios da eternidade.
Logo que cheguei a casa, entrei a folhear as páginas dos dois livros, preparado para o dissabor de encontrá- los mutilados, defeituosos, com folhas de menos, comidas pelas ratazanas colaboradoras roazes do galicismo na ruína da boa linguagem quinhentista. Folheei o Entendimento literal e constrviçam até páginas 154, e aqui achei um quarto de papel almaço amarelecido, com umas linhas de letra esbranquiçada, mas legível e regularmente escrita. O conteúdo do papel, onde se conheciam vincos de dobras, era o seguinte:
José, teu irmão, quando eu hoje saia da igreja, onde fui pedir a Nossa Senhora a tua vida ou minha morte, disse-me que eu não tardaria a pedir a Deus pela tua alma. Eu já não posso chorar mais nem rezar. Agora o que peço a Deus é que me leve também. Se não morrer, endoideço. Perdoa-me, José, e pede a Deus que me leve depressa para ao pé de ti.


Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo: UMA EMBAIXADA:

 

 

Minervino ouviu um toque de campainha, levantou-se do canapé, atirou para o lado o livro que estava lendo, e foi abrir a porta ao seu amigo Salema. 
— Entra. Estava ansioso. 
— Vim, mal recebi o teu bilhete. Que desejas de mim? 
— Um grande serviço! 
— Oh, diabo! trata-se de algum duelo? 
— Trata-se simplesmente de amor. Senta-te. Sentaram-se ambos. 
Eram dois rapagões de vinte e cinco anos, oficiais da mesma Secretaria do Estado; dois colegas, dois companheiros, dois amigos, entre os quais nunca houvera a menor divergência de opiniões ou sentimentos. 
Estimavam-se muito, estimavam-se deveras. 
— Mandei-te chamar, continuou Minervino, porque aqui podemos falar mais à vontade; lá em tua casa seríamos interrompidos por teus sobrinhos. Ter-me-ía guardado para amanhã, na Secretaria, se não se tratasse de uma coisa inadiável. Há se der hoje por força. 
— Estou às tuas ordens. 
— Bom. Lembras-te de um dia ter te falado de uma viúva bonita, minha vizinha, por quem andava muito apaixonado? 
— Sim, lembro-me... um namoro... 
— Namoro que se converteu em amor, amor que se transformou em paixão! 
— Que? Tu estás apaixonado?!... 
— Apaixonadíssimo... e é preciso acabar com isto! 
— De que modo? 
— Casando-me; e tu que hás de pedi-la! 
— Eu?!... 
— Sim, meu amigo. Bem sabes como sou tímido... Apenas me atrevo a fixá-la durante alguns momentos, quando chego à janela, ou a cumprimentá-la, quando entrou ou saio. Se eu mesmo fosse falar-lhe, era capaz de não articular três palavras. Lembras-te daquela ocasião em que fui pedir ao ministro que me nomeasse para a vaga do Florêncio? Pus-me a tremer diante dele, e a muito custo consegui expor o que desejava. E quando o ministro me disse: — Vá descansado, hei de fazer justiça, - eu respondi-lhe: — Vossa Excelência, se me nomear, não chove no molhado! - Ora, se sou assim com os ministros, que dirá com as viúvas! 
— Mas tu a conheces? 
— Estou perfeitamente informado: é uma senhora digna e respeitável, viúva do senhor Perkins, negociante americano. Mora ali defronte, no número 37. Peço-te que a procures imediatamente e lhe faças o pedido de minha parte. És tão desembaraçado como eu sou tímido; estou certo que serás bem sucedido. Dize-lhe de mim o melhor que puderes dizer; advoga a minha causa com a tua eloqüência habitual, e a gratidão do teu amigo será eterna. 
— Mas que diabo! observou Salema, - isto não é sangria desatada! Por que há de ser hoje e não outro dia? Não vim preparado! 
— Não pode deixar de ser hoje. A viúva Perkins vai amanhã para a fazenda da irmã, perto de Vassouras, e eu não queria que partisse sem deixar lavrada a minha sentença. 
— Mas, se lhe não falas, como sabes que ela vai partir? 
— Ah! como todos os namorados, tenho a minha polícia... Mas vai, vai, não te demores; ela está em casa e está sozinha; mora com um irmão empregado no comércio, mas o irmão saiu... Deve estar também em casa a dama de companhia, uma americana velha, que naturalmente não aparecerá na sala, nem estorvará a conversa. 
E Minervino empurrava Salema para a porta, repetindo sempre: — Vai! Vai! não te demores! Salema saiu, atravessou a rua, e entrou em casa da viúva Perkins. 
No corredor pôs-se a pensar na esquisitice da embaixada que o amigo lhe confiara. 
— Que diabo! refletiu ele; não sei quem é esta senhora; vou falar-lhe pela primeira vez... Não seria mais natural que Minervino procurasse alguém que a conhecesse e o apresentasse?... Mas, ora adeus!... eles namoram- se; é de esperar que o embaixador seja recebido de braços abertos. 
Alguns minutos depois, Salema achava-se na sala da viúva Perkins, uma sala mobiliada sem luxo, mas com certo gosto, cheia de quadros e outros objetos de arte. Na parede, por cima do divã de reps, o retrato de um homem novo ainda, muito louro, barbado, de olhos azuis, lânguidos e tristes. Provavelmente o americano defunto. 
Salema esperou uns dez minutos. 
Quando a viúva Perkins entrou na sala, ele agarrou-se a um móvel para não cair; paralisaram-se-lhe os movimentos, e não pode reter uma exclamação de surpresa. 
Era ela! ela!.. a misteriosa mulher que encontrara, havia muitos meses, num bonde das Laranjeiras, e meigamente lhe sorrira, e o impressionara tanto, e desaparecera, deixando-lhe no coração um sentimento indizível, que nunca soubera classificar direito. 
Durante muitos dias e muitas noites a imagem daquela mulher perseguiu-o obstinadamente, e ele debalde procurou tornar a vê-la nos bondes, na rua do Ouvidor, nos teatros, nos bailes, nos passeios, nas festas. Debalde!... 
— Oh!, disse a viúva, estendendo-lhe a mão, muito naturalmente, como se fosse a um velho amigo; era o senhor? 
— Conhece-me? balbuciou Salema. 
— Ora essa! Que mulher poderia esquecer-se de um homem a quem sorriu? Quando aquele dia nos encontramos no bonde das Laranjeiras, já eu o conhecia. Tinha-o visto uma noite no teatro, e, não sei porque... por simpatia, creio... perguntei quem o senhor era, não me lembro a quem........................................................... lembra-me que o puseram nas 
nuvens. Por que nunca mais tornei a vê-lo? 
Diante do desembaraço da viúva Perkins, Salema sentiu-se mais tímido que Minervino, - mas cobrou ânimo, e respondeu: 
— Não foi porque não a procurasse por toda a parte... 
— Não sabia onde eu morava? 
— Não; supus que nas Laranjeiras. Via-a entrar naquele sobrado. e debalde passei por lá um milhão de 
vezes, na esperança de tornar a vê-la. 
— Era impossível; aquela é a casa de minha irmã; só se abre quando ela vem da fazenda. O sobrado está fechado há oito meses. Mas sente-se... aqui... mais perto de mim........................ Sente-se, e diga o motivo de sua visita. 
De repente, e só então, Salema lembrou-se do Minervino. 
— O motivo da minha visita é muito delicado; eu... 
— Fale! diga sem rebuço o que deseja! seja franco! imite-me!... Não vê como sou desembaraçada? Fui 
educada por meu marido... 
E apontou para o retrato. 
— Era americano; educou-me à americana. Não há, creia, não há educação como esta para salvaguardar uma senhora. Vamos fale!... 
— Minha senhora, eu sou... 
Ela interrompeu... 
— É o senhor Nuno Salema, órfão, solteiro, empregado público, literato nas horas vagas, que vem pedir a minha mão em casamento. 
Ela estendeu-lhe a mão, que ele apertou. 
— É sua! Sou a viúva Perkins, honesta como a mais honesta, senhora das suas ações e quase rica. Não tenho filhos nem outros parentes por meu marido, e uma irmã fazendeira, igualmente viúva. Não percamos tempo! 
Salema quis dizer alguma coisa; ela não o deixou falar. 
— Amanhã parto para a fazenda da minha irmã. Venha comigo, à americana, para lhe ser apresentado. 
Nisto entrou na sala, vindo da rua, apressado, o irmão da viúva Perkins, um moço de vinte anos, muito correto, muito bem trajado. 
— Mano, apresento-lhe o senhor Nuno Salema, o meu noivo. 
O rapaz inclinou-se, apertou fortemente a mão do futuro cunhado, e disse: 
— All right!... 
Depois inclinou-se, de novo e saiu da sala, sempre apressado. 
— Mas, minha senhora, tartamudeou o noivo muito confundido, imagine que o meu colega Minervino que mora ali defronte... 
— Ah! aquele moço?... Coitado! não posso deixar de sorrir quando olho para ele... É tão ridículo com o seu namoro à brasileira!... 
— Mas... ele... tinha-me encarregado de pedi-la em casamento, e eu entrei aqui sem saber quem vinha encontrar... 
— Deveras?! exclamou a viúva Perkins. E ei-la acometida de um ataque de riso: 
— Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! 
E deixou-se cair no divã. 
— Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! 
Salema aproximou-se da viúva, tomou-lhe as mãozinhas, beijou-as, e perguntou: 
— Que hei de dizer ao meu amigo? Ela ficou muito séria, e respondeu: 
— Diga-lhe que quem tem boca não manda assoprar.

Contos do Sábado na Usina: Humberto de Campos: O CALDO I:



Como continuação da rua principal da pequena capital nortista, partia aquela estrada. Marginada de casas a princípio, pouco a pouco, se tornando mais deserta, solitária, mais abandonada. Serpeando aqui entre serrotes, cortando ali, retilínea, uma várzea; comprimindo-se na garganta de uma serra ou pulando o rio com o auxílio de um pontilhão, ganhava o sertão imenso, estabelecendo um longo traço de união entre o mundo agitado e aqueles longínquos sertões pastoris. Por ela, matando-lhe a relva teimosa sob os sapatos ferrados, haviam passado os primeiros desbravadores; por ela tinham descido, nos anos de seca e de fome, os rebanhos de sombras das populações flageladas; e por ela desciam e subiam agora as boiadas, e as tropas de muares demandando o litoral ou o interior, carregadas de algodão, de milho, de couros, de arroz, de queijos, produtos da terra, ou de sal, de querosene, de fazendas, para o pequeno comércio sertanejo. Às vezes, em uma das suas curvas longínquas, erguia-se uma nuvem de poeira amarelada, que faiscava à claridade forte do sol. 
À medida que a nuvem se ia aproximando, ia-se ouvindo um tilintar nervoso de guizos; e em um instante surgia, chouteando, a tropa numerosa, carregada de caixas ou de fardos, puxada pela burra-madrinha, animal inteligente e marchador, e fechada, atrás, pelos comboieiros, de chapéu de carnaúba e lenço vermelho ao pescoço, sentados na sela como imperadores de um povo itinerante. 
- Toca p 'ra diante, Mimosa!... 
- Endireita, Andorinha!... 
E o estalo seco do chicote, tocando a tropa. 
Era no alto sertão, já, para além da serra da Gameleira e da chapada dos Três Irmãos, mas à margem mesmo dessa estrada, que se erguia a casa de comércio e de moradia do coronel Antônio Solano. Antiga fazenda de gado e de cultura, havia, pouco a pouco, a Baixa-Verde caído em decadência com o seu último proprietário. O canavial e o engenho, que davam açúcar e aguardente para toda a região, tinham parado depois de 13 de maio, por falta de trabalhadores. O mato invadira as plantações, afogando- as, matando-as; e da velha casa engenho não restava agora senão uma parte do telhado sujo, tendo a outra desabado há muitos anos. A de moradia, essa, constava apenas da "venda", na frente, e uma sucessão de quartos e salas em abandono, por onde errava, fugitivo e soturno, o vulto pesado e grosseiro do coronel, último descendente de uma família ilustre e poderosa, que dominara em todo aquele sertão. 
Antônio Solano era o tipo integral do sertanejo indomesticável. De estatura mediana, grosso e forte, andava pelos quarenta e cinco anos, carão largo, moreno, bigode curto e grisalho. Trazia o cabelo cortado rente, e possuía uns olhos pequenos, escuros, escondidos, como dois tigres, sob a moita das sobrancelhas. Como não tivesse família, pois que a mulher havia morrido e a filha havia casado, vivia ali sozinho, com um criado de confiança, o Libório, que era, ao mesmo tempo, seu cozinheiro, seu caixeiro e seu guarda-costas nas aventuras perigosas. 
Com o abandono das culturas e a extinção do gado, vendido pouco a pouco na vila de acordo com as necessidades, vivia Antônio Solano, agora, do arrendamento de algumas braças de 
terra na Baixa, e dos vagos negócios daquela casa de comércio à beira da estrada. De longe em longe, uma ou duas vezes por dia, passava uma tropa. Os tropeiros acomodavam os animais, sob o telheiro do antigo engenho, apeavam-se, compravam aguardente, fósforos, farinha, rapadura, e, após um descanso ligeiro, continuavam o seu caminho. E isso alimentava a mediania do proprietário. 
Indolente por natureza, o antigo fazendeiro não compreendia, contudo, como outros prosperavam na vizinhança. A fortuna alheia fazia-lhe mal. E era para esquecer esse ressentimento que soltava a brida, inteira, ao corcel da concupiscência, transformando-se em sultão único daquelas redondezas. Mal desabrochava para a mocidade e para o desejo o botão de rosa de um seio virgem, e logo murchava poluído pela lagarta repugnante do seu beijo. Contavam-se às dezenas as mulheres atiradas por ele, ainda meninas, à degradação. Das raparigas que faziam vida dissoluta nas vilas mais próximas, embebedando-se de aguardente nos quartos da feira, uma ou outra não havia sido lançada nesse caminho pela sua bestialidade revoltante. 
Entre tantas vítimas uma houve, no entanto, que não esqueceu o ultraje recebido. Chamava-se Maria Rosa, e era clara e bonita. Aos quinze anos, após a morte do pai, com a mãe enferma de sezão, fora, com o irmão pequeno, à Casa Grande, pedir ao coronel que os não atirasse fora da terra por falta de pagamento. Quando o milho amadurecesse obteriam o suficiente para o arrendamento da terra em que tinham a cabana e o roçado. 
Sentado fora do balcão, num tamborete, os pés sem meias afundados nos chinelos de couro, vestindo calça e camisa de riscado, pela abertura da qual aparecia, vultosa, a musculatura do peito forte, o coronel fitava a menina como a cobra magnetiza o pássaro que vai devorar. Sentia, já, mentalmente, os encantos virgens daquele corpo, a curva suave daquele colo, a maciez daquela boca cheirando a fruta. O menino havia ido, a mandado seu, pedir ao Libório, na cozinha, uma xícara de café. E quando voltou, encontrou a irmã chorando, abotoando o casaquinho de cassa, mas tendo na mão, nervosamente amarfanhado, o pedaço de papel com o recibo, por seis meses, do arrendamento da terra.

 

Contos do Sábado na Usina: Machado de Assis: Luiz Soares IV:



Um dia de manhã o major Vilela recebeu a seguinte carta:

"Meu valente major. - Cheguei da Bahia hoje mesmo, e irei de tarde para ver-te e abraçar-te. Prepara um jantar. Creio que me não hás de receber como qualquer indivíduo. Não esqueças o vatapá. - Teu amigo, Anselmo."

-  Bravo! disse o major. Temos cá o Anselmo; prima Antônia, mande fazer um bom vatapá.

O Anselmo que chegara da Bahia chamava-se Anselmo Barroso de Vasconcelos. Era um fazendeiro rico, e veterano da independência. Com os seus setenta e oito anos ainda se mostrava rijo e capaz de grandes feitos. Tinha sido íntimo amigo do pai de Adelaide, que o apresentou ao major, vindo a ficar amigo deste depois que o outro morrera. Anselmo acompanhou o amigo até os seus últimos instantes; e chorou a perda como se fora seu próprio irmão. As lágrimas cimentaram a amizade entre ele e o major.

De tarde apareceu Anselmo galhofeiro e vivo como se começasse para ele uma nova mocidade. Abraçou a todos; deu um beijo em Adelaide, a quem felicitou pelo desenvolvimento das suas graças.

-   Não se ria de mim, disse-lhe ele, eu fui o maior amigo de seu pai. Pobre amigo! morreu nos meus braços.

Soares, que sofria com a monotonia da vida que levava em casa do tio, alegrou-se com a presença do galhofeiro ancião, que era um verdadeiro fogo de artifício. Anselmo é que pareceu não simpatizar com o sobrinho do major. Quando o major ouviu isto, disse:

-  Sinto muito, porque Soares é um rapaz sério.

-  Creio que é sério demais. Rapaz que não ri...

Não sei que incidente interrompeu a frase do fazendeiro. Depois do jantar Anselmo disse ao major:

-  Quantos são amanhã?

-  Quinze.

-  De que mês?

-  É boa! de dezembro.

-   Bem; amanhã 15 de dezembro preciso ter uma conferência contigo e teus parentes. Se o vapor se demora um dia em caminho pregava-me uma boa peça.

No dia seguinte verificou-se a conferência pedida por Anselmo. Estavam presentes o major, Soares, Adelaide e D. Antônia, únicos parentes do finado.

-   Faz hoje dez anos que faleceu o pai desta menina, disse Anselmo apontando para Adelaide. Como sabem, o Dr. Bento Varela foi o meu melhor amigo, e eu tenho consciência de haver correspondido à sua afeição até aos últimos instantes. Sabem que ele era um gênio excêntrico; toda a sua vida foi uma grande originalidade. Ideava vinte projetos, qual mais grandioso, qual mais impossível, sem chegar ao cabo de nenhum, porque o seu espírito criador tão depressa compunha uma coisa como entrava a planear outra.

-  É verdade, interrompeu o major.

-   O Bento morreu nos meus braços, e como derradeira prova da sua amizade confiou-me um papel com a declaração de que eu só o abrisse em presença dos seus parentes dez anos depois de sua morte. No caso de eu morrer os meus herdeiros assumiriam essa obrigação; em falta deles, o major, a Sra. D. Adelaide, enfim qualquer pessoa que por laço de sangue estivesse ligada a ele. Enfim, se ninguém houvesse na classe mencionada, ficava incumbido um tabelião. Tudo isto havia eu declarado em testamento, que vou reformar. O papel a que me refiro, tenho aqui no bolso.

Houve um movimento de curiosidade.

Anselmo tirou do bolso uma carta fechada com lacre preto.

-   É este, disse ele. Está intato. Não conheço o texto; mas posso mais ou menos saber o que está dentro por circunstâncias que vou referir.

Redobrou a atenção geral.

-   Antes de morrer, continuou Anselmo, o meu querido amigo entregou-me uma parte da sua fortuna, quero dizer a maior parte, porque a menina recebeu apenas trinta contos. Eu recebi dele trezentos contos, que guardei até hoje intatos, e que devo restituir segundo as indicações desta carta.

A um movimento de espanto em todos seguiu-se um movimento de ansiedade. Qual seria a vontade misteriosa do pai de Adelaide? D. Antônia lembrou-se que em rapariga fora namorada do defunto, e por um momento lisonjeou-se com a idéia de que o velho maníaco se houvesse lembrado dela às portas da morte.

-   Nisto reconheço eu o mano Bento, disse o major tomando uma pitada; era o homem dos mistérios, das surpresas e das idéias extravagantes, seja dito sem agravo aos seus pecados, se é que os teve...

Anselmo tinha aberto a carta. Todos prestaram ouvidos. O veterano leu o seguinte:

"Meu bom e estimadíssimo Anselmo. - Quero que me prestes o último favor. Tens contigo a maior parte da minha fortuna, e eu diria a melhor se tivesse de aludir à minha querida filha Adelaide.

Guarda esses trezentos contos até daqui a dez anos, e ao terminar o prazo, lê esta carta diante dos meus parentes.

"Se nessa época a minha filha Adelaide for viva e casada entrega-lhe a fortuna. Se não estiver casada, entrega-lha também, mas com uma condição: é que se case com o sobrinho Luiz Soares, filho de minha irmã Luiza; quero-lhe muito, e apesar de ser rico, desejo que entre na posse da fortuna com minha filha. No caso em que esta se recuse a esta condição, fica tu com a fortuna toda."

Quando Anselmo acabou de ler esta carta seguiu-se um silêncio de surpresa geral, de que partilhava o próprio veterano, alheio até então ao conteúdo da carta.

Soares tinha os olhos em Adelaide; esta tinha-os no chão. Como o silêncio se prolongasse, Anselmo resolveu rompê-lo.

-   Ignorava, como todos, disse ele, o que esta carta contém; felizmente chega ela a tempo de se realizar a última vontade do meu finado amigo.

-  Sem dúvida nenhuma, disse o major.

Ouvindo isto, a moça levantou insensivelmente os olhos para o primo, e os dela encontraram-se com os dele. Os dele transbordavam de contentamento e ternura; a moça fitou-os durante alguns instantes. Um sorriso, já não zombeteiro, passou pelos lábios do rapaz. A moça sorriu também; mas que sorriso! Jamais uma rainha sorriu com tamanho desdém às zumbaias de um cortesão.

Anselmo levantou-se.

-   Agora que estão cientes, disse ele aos dois primos, espero que resolvam, e como o resultado não pode ser duvidoso, desde os felicito. Entretanto, hão de dar-me licença, que tenho de ir a outras partes.

Com a saída de Anselmo dispersara-se a reunião. Adelaide foi para o seu quarto com a velha parenta. O tio e o sobrinho ficaram na sala.

-  Luiz, disse o primeiro, és o homem mais feliz do mundo.

-  Parece-lhe, meu tio? disse o moço procurando disfarçar a sua alegria.

-   És. Tens uma moça que te ama loucamente. De repente cai-lhe nas mãos uma fortuna inesperada; e essa fortuna só pode havê-la com a condição de se casar contigo. Até os mortos trabalham a teu favor.

-   Afirmo-lhe, meu tio, que a fortuna não pesa nada nestes casos, e se eu assentar em casar com a prima será por outro motivo.

-   Bem sei que a riqueza não é essencial; não é. Mas enfim vale alguma coisa. É melhor ter trezentos contos que trinta; sempre é mais uma cifra. Contudo não te aconselho que te cases com ela se não tiveres alguma afeição. Nota que eu não me refiro a essas paixões de que me falaste. Casar mal, apesar da riqueza, é sempre casar mal.


-   Estou convencido disto, meu tio. Por isso ainda não dei a minha resposta, nem dou por ora. Se eu vier a afeiçoar-me à prima estou pronto a entrar na posse dessa inesperada riqueza.

Como o leitor terá adivinhado, a resolução do casamento estava assentada no espírito de Soares. Em vez de esperar a morte do tio, parecia-lhe melhor entrar desde logo na posse de um excelente pecúlio, o que se lhe afigurava tanto mais fácil, quanto que era a voz do túmulo que o impunha. Soares contava também com a profunda veneração de Adelaide por seu pai. Isto, ligado ao amor que a rapariga sentia por ele, devia produzir o desejado efeito.

Nessa noite o rapaz dormiu pouco. Sonhou com o Oriente. Pintou-lhe a imaginação um harém rescendente das melhores essências da Arábia, forrado o chão com tapetes da Pérsia; sobre moles divãs ostentavam-se as mais perfeitas belezas do mundo. Uma Circassiana dançava no meio do salão ao som de um pandeiro de marfim. Mas um furioso eunuco, precipitando-se na sala com o iatagã desembainhado, enterrou-o todo no peito de Soares, que acordou com o pesadelo, e não pôde mais conciliar o sono.

Levantou-se mais cedo e foi passear até chegar a hora do almoço e da repartição.