
sexta-feira, 4 de março de 2022
Contos do Sábado na Usina: Camilo Castelo Branco:

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo: UMA EMBAIXADA:
Contos do Sábado na Usina: Humberto de Campos: O CALDO I:
Contos do Sábado na Usina: Machado de Assis: Luiz Soares IV:
Um dia de manhã o major Vilela recebeu a seguinte carta:
"Meu valente
major. - Cheguei
da Bahia hoje mesmo, e lá irei de tarde para ver-te e abraçar-te. Prepara um jantar. Creio que
me não hás de receber como qualquer indivíduo. Não esqueças o vatapá. - Teu
amigo, Anselmo."
-
Bravo! disse o major. Temos cá o Anselmo; prima
Antônia, mande fazer um bom vatapá.
O Anselmo que
chegara da Bahia chamava-se Anselmo Barroso de Vasconcelos. Era um fazendeiro
rico, e veterano da independência. Com os seus setenta e oito anos ainda se
mostrava rijo e capaz de grandes feitos. Tinha sido íntimo amigo do pai de
Adelaide, que o apresentou ao major, vindo a ficar amigo deste depois que o
outro morrera. Anselmo acompanhou o amigo até os seus últimos instantes; e
chorou a perda como se fora seu próprio irmão. As lágrimas cimentaram a amizade
entre ele e o major.
De tarde apareceu Anselmo
galhofeiro e vivo como se começasse para ele uma nova mocidade. Abraçou a todos; deu um beijo
em Adelaide, a quem felicitou pelo desenvolvimento das suas graças.
-
Não se ria de mim, disse-lhe ele, eu fui o maior
amigo de seu pai. Pobre amigo! morreu nos meus
braços.
Soares, que sofria
com a monotonia da vida que levava em casa do tio, alegrou-se com a presença do
galhofeiro ancião, que era um verdadeiro fogo de artifício. Anselmo é que pareceu
não simpatizar com o sobrinho do major. Quando o major ouviu isto, disse:
-
Sinto muito, porque Soares é um rapaz sério.
- Creio que é sério
demais. Rapaz que não ri...
Não sei que
incidente interrompeu a frase do fazendeiro. Depois do jantar Anselmo disse ao
major:
- Quantos são amanhã?
- Quinze.
- De que mês?
- É boa! de dezembro.
-
Bem; amanhã 15 de dezembro
preciso ter uma conferência contigo
e teus parentes. Se o vapor se demora um dia em caminho pregava-me
uma boa peça.
No dia seguinte
verificou-se a conferência pedida por Anselmo. Estavam presentes o major,
Soares, Adelaide e D. Antônia, únicos parentes do finado.
-
Faz hoje dez anos que faleceu o pai desta
menina, disse Anselmo
apontando para Adelaide.
Como sabem, o Dr. Bento Varela foi o meu melhor amigo, e eu tenho
consciência de haver correspondido à sua afeição até aos últimos instantes.
Sabem que ele era um gênio excêntrico; toda a sua vida foi uma grande
originalidade. Ideava vinte projetos, qual mais grandioso, qual mais
impossível, sem chegar ao cabo de nenhum, porque o seu espírito criador tão
depressa compunha uma coisa como entrava a planear outra.
- É verdade,
interrompeu o major.
-
O Bento morreu nos meus braços, e como derradeira
prova da sua amizade confiou-me um papel com a declaração de que eu só o
abrisse em presença dos seus parentes dez anos depois de sua morte. No caso de eu morrer os meus herdeiros assumiriam essa obrigação; em falta deles, o major, a Sra. D. Adelaide, enfim qualquer
pessoa que por laço de sangue estivesse ligada a ele. Enfim, se ninguém
houvesse na classe mencionada, ficava incumbido um tabelião. Tudo isto havia eu
declarado em testamento, que vou reformar. O papel a que me refiro, tenho aqui no bolso.
Houve um movimento
de curiosidade.
Anselmo tirou do
bolso uma carta fechada com lacre preto.
-
É este, disse
ele. Está intato.
Não conheço o texto; mas posso mais ou menos
saber o que está
dentro por circunstâncias que vou referir.
Redobrou a atenção
geral.
-
Antes de morrer, continuou Anselmo, o meu querido
amigo entregou-me uma parte da sua fortuna,
quero dizer a maior parte, porque a menina recebeu
apenas trinta contos.
Eu recebi dele trezentos contos, que guardei até
hoje intatos, e que devo restituir segundo as indicações desta carta.
A um movimento de espanto em todos seguiu-se
um movimento de ansiedade. Qual seria a vontade
misteriosa do pai de Adelaide? D. Antônia lembrou-se que em rapariga fora
namorada do defunto, e por um momento lisonjeou-se com a idéia de que o velho
maníaco se houvesse lembrado dela às portas da
morte.
-
Nisto reconheço eu o mano Bento, disse o major tomando uma pitada; era o homem dos mistérios, das surpresas e das idéias extravagantes, seja dito sem agravo aos seus pecados,
se é que os teve...
Anselmo tinha
aberto a carta. Todos prestaram ouvidos. O veterano leu o seguinte:
"Meu bom e
estimadíssimo Anselmo. - Quero que me prestes o último favor. Tens contigo a
maior parte da minha fortuna, e eu diria a melhor se tivesse de aludir à minha
querida filha Adelaide.
Guarda esses
trezentos contos até daqui a dez anos, e ao terminar o prazo, lê esta carta
diante dos meus parentes.
"Se nessa época
a minha filha Adelaide for viva e casada entrega-lhe a fortuna. Se não estiver
casada, entrega-lha também, mas com uma condição: é que se case com o sobrinho
Luiz Soares, filho de minha irmã Luiza; quero-lhe muito, e apesar de ser rico,
desejo que entre na posse da fortuna com minha filha. No caso em que esta se
recuse a esta condição, fica tu com a fortuna toda."
Quando Anselmo
acabou de ler esta carta seguiu-se um silêncio de surpresa geral, de que
partilhava o próprio veterano, alheio até então ao conteúdo da carta.
Soares tinha os
olhos em Adelaide; esta tinha-os no chão. Como o silêncio se prolongasse,
Anselmo resolveu rompê-lo.
-
Ignorava, como todos,
disse ele, o que esta carta contém;
felizmente chega ela a tempo
de se realizar a última
vontade do meu finado amigo.
- Sem dúvida nenhuma,
disse o major.
Ouvindo isto, a
moça levantou insensivelmente os olhos para o primo, e os dela encontraram-se
com os dele. Os dele transbordavam de contentamento e ternura; a moça fitou-os
durante alguns instantes. Um sorriso, já não zombeteiro, passou pelos lábios do
rapaz. A moça sorriu também; mas que sorriso! Jamais uma rainha sorriu com
tamanho desdém às zumbaias de um cortesão.
Anselmo
levantou-se.
- Agora que estão cientes,
disse ele aos dois primos,
espero que resolvam,
e como o resultado não pode
ser duvidoso, desde já os felicito. Entretanto, hão de dar-me
licença, que tenho de ir a outras partes.
Com a saída de
Anselmo dispersara-se a reunião. Adelaide foi para o seu quarto com a velha
parenta. O tio e o sobrinho ficaram na sala.
- Luiz, disse o
primeiro, és o homem mais feliz do mundo.
- Parece-lhe, meu tio?
disse o moço procurando disfarçar a sua alegria.
-
És. Tens uma moça que te ama loucamente. De repente cai-lhe
nas mãos uma fortuna inesperada; e essa fortuna só pode
havê-la com a condição de se casar contigo. Até os mortos trabalham a teu
favor.
-
Afirmo-lhe, meu tio, que a fortuna não pesa nada nestes casos, e se eu assentar
em casar com a
prima será por outro motivo.
-
Bem sei que a riqueza
não é essencial; não é. Mas enfim vale alguma
coisa. É melhor
ter trezentos contos que
trinta; sempre é mais uma cifra. Contudo não te aconselho que te cases com ela
se não tiveres alguma afeição. Nota que eu não me refiro a essas paixões de que
me falaste. Casar mal, apesar da riqueza, é sempre casar mal.
-
Estou convencido disto,
meu tio. Por isso ainda não dei a minha
resposta, nem dou por ora. Se eu vier a afeiçoar-me à prima estou
pronto a entrar na posse dessa inesperada riqueza.
Como o leitor terá
adivinhado, a resolução do casamento estava assentada no espírito de Soares. Em
vez de esperar a morte do tio, parecia-lhe melhor entrar desde logo na posse de
um excelente pecúlio, o que se lhe afigurava tanto mais fácil, quanto que era a
voz do túmulo que o impunha. Soares contava também com a profunda veneração de
Adelaide por seu pai. Isto, ligado ao amor que a rapariga sentia por ele, devia
produzir o desejado efeito.
Nessa noite o rapaz
dormiu pouco. Sonhou com o Oriente. Pintou-lhe a imaginação um harém
rescendente das melhores essências da Arábia, forrado o chão com tapetes da
Pérsia; sobre moles divãs ostentavam-se as mais perfeitas belezas do mundo. Uma
Circassiana dançava no meio do salão ao som de um pandeiro de marfim. Mas um
furioso eunuco, precipitando-se na sala com o iatagã desembainhado, enterrou-o
todo no peito de Soares, que acordou com o pesadelo, e não pôde mais conciliar
o sono.
Levantou-se mais
cedo e foi passear até chegar a hora do almoço e da repartição.