sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Contos do Sábado na Usina: Olavo Bilac: OS ANJOS:


No atelier do pintor Álvaro, a palestra vai animada. Lá está o poeta Carlos, muito aprumado, muito elegante, encostado a um buffet renaissance, sacudindo o pé em que a polaina branca irradia, mordendo o seu magnífico Henry Clay de três mil réis. Mais adiante, o escultor Júlio, amorosamente inclinado para a viscondessinha de Mirantes e namoradamente mirando o seu belo colo desnudado, faz-lhe uma preleção sobre o amor e a beleza: e ela, agitando com indolência o leque japonês, sorri, e crava nele os olhos maliciosos, deixando-o admirar sem escrúpulo o seu colo, — como para o desafiar a dizer se a própria Vênus de Milo o possui tão branco e tão puro... No sofá, o romancista Henrique discute música de Wagner com Alberto, — o maestro famoso, cujo último poema sinfônico acaba de fazer um ruidoso sucesso. São 5 horas da tarde. Serve-se o chá, em lindas taças de porcelana chinesa; e, nos cálices de cristal, brilha o tom aceso do rhum da Jamaica. 
Agora, parece que Júlio, o escultor, arriscou um galanteio mais forte. Porque a viscondessinha, corada, morde os lábios e, para disfarçar a sua comoção, contempla um quadro grande, que está na parede do atelier, cópia de Raphael. 
Júlio, falando baixo, inclina-se mais, ainda mais: 
— Então, viscondessa, então? 
Ela, para desviar a conversa, pergunta uma banalidade: 
— Diga-me, senhor Álvaro, o senhor, que é pintor, deve saber isso... Porque é que, em todos os quadros, os anjos são representados só com cabeça e asas? 
De canto a canto da sala, suspende-se a conversa. Álvaro, sorrindo, responde: 
— Nada mais fácil, viscondessa... queremos assim indicar que os anjos só têm espírito; damo-lhes unicamente a cabeça em que reside o pensamento, e a asa que é o símbolo da imaterialidade... 
Mas o poeta Carlos, puxando uma longa fumaça de seu cheiroso Henri Clay, 
adianta-se até o meio da sala: 
— Não é só isso, Álvaro, não é só isso... Vou dar à viscondessa a verdadeira explicação do caso... 
Tomou um gole de rhum, e continuou: 
— Antigamente, nos primitivos tempos da Bíblia, os anjos não tinham apenas cabeças e asas: tinham braços, pernas e tudo. Depois do incêndio de Gomorra, foi que Deus os privou de todo o resto do corpo, deixando-lhes apenas a cabeça que é a sede do pensamento e a asa que é o símbolo da imaterialidade.... 
— Depois do incêndio de Gomorra? — perguntaram todos — porque? 
— Já vão ver! 
E Carlos, dirigindo-se a uma estante, tirou uma Bíblia, abriu-a e leu: 
— IX. Então, como as abominações daquela cidade maldita indignassem ao Senhor, mandou ele que dois Anjos fossem converter os perversos e aconselhar- lhes que se deixassem de abusar das torpezas da carne. X. E foram os Anjos, e bateram às portas da cidade. IX. E os habitantes foram tão infames, que os deixaram entrar, e assim que os tiveram dentro, também os violentaram, abusando deles. " 
Houve um silêncio constrangido no atelier... 
— Aí está. E o Senhor, incendiou a cidade, e, para evitar que os anjos continuassem a estar expostos a essas infâmias determinou que, dali em diante, eles só tivessem cabeças e asas... 
A viscondessinha, dando um muxoxo, murmurou: 
— Shoking!

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo: A Filha do Patrão IV:



No dia seguinte o comendador chamou o caixeiro ao escritório, e disse-lhe:

  Seu Manoel, estou muito contente com os seus serviços.

  Oh! patrão!

  Você é um empregado zeloso, ativo e morigerado; é o modelo dos empregados.

  Oh! patrão!

  Não sou ingrato. Do dia primeiro em diante você é interessado na minha casa: dou-lhe cinco por cento além do ordenado.

  Oh! patrão! isso não faz um pai ao filho!...

  Ainda não é tudo. Quero que você se case com a minha filha. Doto-a com cinqüenta contos. O pobre diabo sentiu-se engasgado pela comoção: não pode articular uma palavra.

  Mas eu sou um homem sério, continuou o patrão; a minha lealdade obriga-me a confessar-lhe que minha filha... não é virgem.

O noivo espalmou as mãos, inclinou a cabeça para a esquerda, baixou as pálpebras, ajustou os lábios em bico, e, respondeu com um sorriso resignado e humilde:

  Oh! patrão! ainda mesmo que fosse, não fazia mal.


Contos do Sábado na Usina: Humberto de Campos: CATIMBAU: Humberto de Campos:





"BELÉM, 18 de janeiro - Os jornais desta capital noticiam a trágica morte ocorrida há dias nos campos da ilha de Marajó, município de Soure. 
O destemido vaqueiro Narciso Viana, aí cunhado Catimbau, famoso domador de touros, prometeu â sua namorada que, em troca de um beijo, laçaria um touro bravio que esta lhe indicou. 
Narciso perseguiu o animal, fez prodígios de equitação, rivalizando em rapidez com a destreza do touro. Afinal, atirou o laço, enrolando-se este acidentalmente, em torno do vaqueiro, que foi cuspido da sela. Estando a ponta do laço presa â cilha foi estrangulado o bravo sertanejo, sendo arrastado pelo cavalo cerca de légua e meia. 
Os companheiros da fazenda do infeliz cavaleiro, conseguiram, depois de grande correria, apoderar-se do sangrento cadáver de Narciso Viana, entregando-o 
â sua namorada, que, involuntariamente, causara a sua morte 
(Telegrama da Agência Americana). 
Entre os vaqueiros do Campo-Alegre, a famosa fazenda marajoara, era Catimbau, sem dúvida, o mais destemido. À tarde, quando a campina, extensa a perder de vista, começava a cobrir-se da cinza tênue com que a noite polvilha o seu caminho, era ele o primeiro a esporear o cavalo na extremidade da planície, e a estacar, de repente, no alpendre da casa, o chapéu de couro para a nuca, o chicote na mão, disposto, após doze horas de campo, como se voltasse de um passeio domingueiro. 
Era um caboclo forte e ágil. O rosto moreno, queimado de sol, que Os olhos risonhos alegravam, iluminava-se todo, quando com a dentadura sã, das raças primitivas. Toda a sua figura constituía, enfim, uma festa de bravura e de saúde, que enchia de inveja os homens e matava de paixão as mulheres. 
Na sua vida de herói, filho e rei daquelas amplidões verdes, havia, contudo, tristeza secreta: a que lhe nascera há dois anos, pelo S. João, na festa do Aquiri, fazenda do Joaquim Inácio, quando conhecera a Rosinha, caçula do João Soares e o botão que ia ser, no ano próximo, a rosa mais linda, e mais fresca daquelas redondezas. 
A filha do João Soares era o tipo clássico da cabocla paraense. Cabelo escorrido e longo, atirado em cascata para as costas; morena, como as rolas do terreiro; nariz correto e fino; olhos negros e úmidos; era, toda ela, candura e tentação. Duas cousas, porém, não saíam da imaginação de Catimbau: o colo farto da rapariga, arfante como as ondas do rio depois da "pororoca", e aquela boca miúda e vermelha, de uma mobilidade atordoante e que mostrava, ao menor sorriso, dois rosários de dentes pequenos, que eram, aos seus olhos de homem do campo, como pingos de leite no focinho rosado de um bezerrinho novo. 
Beijar aquela boca, sugar aquelas gotas de leite, tornara-se para o vaqueiro a maior ambição do seu destino. Para ver a rapariga, mesmo de passagem, viajava cinco léguas, três vezes por semana. Para isso, inventava os pretextos mais ingênuos: ora perseguição a um garrote da fazenda, tocado à força naquela direção, ora a caça a uma novilha que ele sabia onde se achava, mas que ia procurar, sempre, para as bandas do João Soares. E cada uma dessas vezes, eram horas perdidas de conversa no alpendre: ele, escanchado no cavalo, o cotovelo esquerdo pousado na lua da sela, a curva da perna direita dobrada, em posição de descanso; ela, feliz, assustada, risonha, esmagando os seios virgens na tábua escura do parapeito. 
A despedida era todo um poema de ternura que, quase, não tinha fim. A mão na mão, os olhos nos olhos, ficavam assim minutos seguidos, sem uma palavra nos lábios. Até que, fria, trêmula, numa sacudidela violenta dos nervos, Rosinha pedia, fechando os olhos e soltando-se violentamente da férrea pressão dos seus dedos: 
- Ande... Vá embora! 
E, esporeando o cavalo, em dois corcovos, o caboclo partia. 
Certa vez, a voz cortada pela emoção, Catimbau resistiu: 
- Não vou! 
E enunciando um desejo que lhe estava, de há muito, no coração: 
- Só irei se você me der um beijo! 
A resposta, dessa vez, foi uma carreira, rápida, de veadinha arisca, para o interior da casa. 
De outra feita, porém, Rosinha prometera, corando: 
- Olhe, agora, não... Pelo Natal... Pelo Natal eu dou... Serve? 
- Olhe lá, hein? Promessa é promessa! observou o vaqueiro. 
De agosto a dezembro o pensamento de Catimbau não se prendeu a outra cousa. Agitada pela esperança da felicidade, a sua imaginação galopava mais que o seu cavalo. Para que o beijo prometido fosse mais doce, e não comprometesse outros, pela repugnância talvez despertada na rapariga, deixara de fumar. Para perfumar a boca alimentava-se de coalhada e comia, no campo, das frutas mais cheirosas da ilha. E foi assim que, com o coração aos pulos como um potro bravo, chegou, enfim, ao mês do Natal. 
O dia da Conceição, oito de dezembro, era de festa, de novo, no Aquiri. De toda parte da ilha iriam vaqueiros e moças, para a festa de Nossa Senhora. E lá estaria, também, a Rosinha, cuja beleza se acentuava à medida que se tornava mulher e o amor penetrava, como uma aurora, aos abismos floridos da alma. 
Quando Catimbau chegou à fazenda do Joaquim Inácio, a casa já estava cheia de gente. Dançava-se na sala, no alpendre e, na cozinha. Ao ver, de longe, o movimento dos pares, o coração do caboclo apertou-se. Rosinha estaria dançando? E com quem? Ao aproximar-se, porém, da casa, a alma se lhe desabrochou no rosto franco, num sorriso de felicidade: resistindo às solicitações dos outros rapazes, Rosinha estava a um canto do alpendre, à sua espera. À tarde, com o sombrear da campina, os convidados saíram, todos, para o alpendre para o terreiro. Para aguardar a noite, e dar um pouco de repouso aos músicos, sugeriu-se uma pega aos novilhos. E a idéia recebida com uma salva de palmas pelas mulheres, e por um gesto de entusiasmo pelos vaqueiros, sempre dispostos a pôr em evidência a sua bravura na carreira e a sua destreza no manejo do laço. 
Em frente à casa, a uns cinqüenta metros, ficava o curral, onde uma pequena boiada que chegara pela manhã aguardava o dia seguinte para continuar a viagem, rumo do Soure. Estalando os chifres, amontoando-se ora a um canto do cercado, ora noutro, as reses permaneciam de pé, sem repouso. À menor aproximação de uma pessoa, agitavam-se todas em redemoinho, na previsão instintiva da fatalidade iminente. 
Um dos vaqueiros encaminhou-se naquele rumo, para escolher um barbatão. A porteira entreabriu- se, e o primeiro boi que estourou no pátio, foi um garrote alvação, de chifres tortos e pescoço de touro precoce. Ao sentir-se em liberdade, o animal estacou, irresoluto, como se procurasse destino. Ao ver, porém, a poucos metros um vaqueiro que corria ao seu encontro, atirou-se pela planície em carreira desabalada, levando na esteira, cada vez mais próximos, 
cavalo e cavaleiro. Este era Ventania, campeiro famoso da fazenda Água-Doce, e rival, nas "pegas", do Catimbau. 
Curvado para diante, apoiado apenas nos estribos, em poucos segundos o rapaz alcançava o garrote, emparelhava-se com ele, segurava-lhe a cauda distendida na carreira, enrolava-a na mão, e, num movimento súbito, atirava o animal ao solo, pulando-lhe em seguida em cima, paralisando-o de focinho no chão. 
- Catimbau!... Catimbau!... - gritavam as moças e os outros vaqueiros, partidários do campeiro do Campo-Alegre. 
Ao lado da namorada, o caboclo mostrava-se indiferente a tudo aquilo. Que lhe importavam a glória, a fama de vaqueiro, se ele possuía, ali, o coração da Rosinha? Que o Ventania lhe arrebatasse todos os louros, mas deixasse aqueles, de homem que ama, e que é amado... 
Ademais, enchia-lhe a alma um pressentimento doloroso. Parecia-lhe que, se saísse dali, do lado da noiva, lhe aconteceria alguma coisa. 
A sua indiferença ao feito do outro começava, porém, a causar estranheza. Onde estava, então, a sua coragem tão proclamada? Os partidários do Ventania principiavam a sorrir, vitoriosos; os amigos Catimbau murmuravam, contrafeitos. E quem deu por isso, por essa atmosfera de prevenção que se formava, foi Rosinha. 
- Por que você não vai? - indagou, mimosa. 
- Para não sair de junto de você. 
- E se eu lhe pedisse que fosse? 
- Eu ia... Mas, com uma condição... Que você me desse hoje o beijo que me prometeu para o Natal... 
A moça ficou toda vermelha. As orelhas pequenas tornaram- se-lhe de lacre, como duas cristas de galo garnizé. Meditou, porém, um instante. A fama, a nomeada, a dignidade de vaqueiro do seu namorado, do seu noivo, do homem que era o seu orgulho, estavam em perigo. E foi resoluta, decidida, que, numa violência sobre si mesma, prometeu: 
- Eu dou... Vá... 
De um arranco, pulando sobre o parapeito, estava Catimbau escanchado no seu cavalo castanho, o sorriso nos lábios, um brilho estranho nos olhos, o laço enrodilhado no arção. Uma salva de palmas cobriu-lhe o gesto inopinado. 
- Solta o touro! - gritou o caboclo. 
Um momento mais, e, arrancando pela porteira meia-aberta, sacudindo -lhe os paus para os lados, irrompia no campo a maior peça da fazenda, um touro negro, de sangue crioulo, que, após vários meses de vida arisca e selvagem, havia sido, na véspera, recolhido ao curral. 
Pernas estendidas, o corpo ligeiramente vergado para a frente, as mãos na rédea, o olhar de ave de rapina que espera a passagem da presa, a corda do laço pendente da sela, Catimbau aguardava o arranco do touro. E quando o bicho estourou fora da cerca, só se ouviu uma dupla exclamação, rápida, seca, repentina, como um grito de guerra: 
- Upa!... Upa!... 
E o cavalo partiu, depois de dois galões, com uma assombrosa elasticidade dos músculos, no encalço da fera. 
Levando o touro uma vantagem de trinta metros, o cavaleiro alcançou-o, em dois segundos. Negaceando, virando, torcendo, o boi dificultava a pega, que o próprio vaqueiro evitava, preferindo demorar a batalha para dar maior campo à variedade da destreza. De repente, no meio da várzea, em uma grande manobra elegante, Catimbau deixou o touro distanciar-se. 
- É o laço... É o laço!... exclamaram todos, que conheciam, ponto por ponto, os processos do vaqueiro famoso. 
E não se enganavam. Ao fundo da planície imensa e verde, que se tornava azul na proporção da distância, o touro e o cavalo eram como duas formigas em uma grande bandeja de esmeralda. Arrancando o laço à ilharga da sela, sentindo-lhe a extremidade bem amarrada ao arção, Cabimbau cravou as esporas no cavalo, apertou os joelhos à barriga do animal, e soltou o grito clássico do momento de perigo: 
- Ecôoo!... 
Compreendendo o sinal, cavalo e touro dispararam no máximo da velocidade e do esforço. Duas flechas que cortassem o ar, impelidas pelo arco de um gigante, não seriam mais rápidas. Não era uma carreira: era uma vertigem. 
- Ecôoo!... 
A cinco metros da rês, viu-se, ou imaginou-se ver, do alpendre, a corda rodar, num círculo, sobre a cabeça do vaqueiro. E a um impulso violento, justo, certeiro, aquele arco partiu, rodou, desceu, indo cair, preciso, sobre a cabeça do touro. 
- Laçou!... Laçou!... - gritaram vozes nervosas, no alpendre e no terreiro. 
Súbito, a corda esticou. Dir-se-ia que ia partir, rebentar, estalar. Cavaleiro e touro, ao choque formidável, estremeceram, sem parar. Mas, a este choque, correspondeu uma nova cena imprevista: o corpo de Catimbau, arrancado da sela num salto sinistro, foi postar-se, de pé, entre o touro e o cavalo! 
- Nossa Senhora! ... 
- Meu Deus... - gritaram quarenta vozes, no alpendre. 
As mãos nos olhos, as mulheres não queriam ver. Olhos arregalados, porém, os homens compreenderam tudo: ao atirar a corda, esta dera volta em torno ao pescoço do vaqueiro, o qual, ao esticar o laço, fora arrancado da sela, estrangulado! 
Ao longe, na campina, o touro e o cavalo presos um ao outro pela corda distendida continuavam a correr, em direção à mata distante. E, de pé, sustido pela corda, arrastado como um bólide, pela várzea, corria, também, com eles, o cadáver do vaqueiro. 
Cavaleiros partiram, céleres, com estrépito, em uma nuvem de poeira. Ao alcançarem o touro e o cavalo, estes aproximavam-se da mata misteriosa, mas, já sem o companheiro sinistro. A cabeça do vaqueiro foi encontrada primeiro, coberta de sangue e terra. O corpo foi achado depois. 
Uma hora mais tarde, a cabeça decepada de Catimbau recebia na boca sangrenta, no alpendre da fazenda, diante dos companheiros comovidos, o seu prometido beijo do Natal... 

Contos do Sábado na Usina: Machado de Assis: Miss Dollar VIII:



No dia seguinte estava Mendonça em casa fumando charutos sobre charutos, recurso das grandes ocasiões, quando parou à porta dele um carro, apeando-se pouco depois a mãe de Jorge. A visita pareceu de mau agouro ao médico. Mas apenas a velha entrou, dissipou-lhe o receio. 
- Creio, disse D. Antônia, que a minha idade permite visitar um homem solteiro. 
Mendonça procurou sorrir ouvindo este gracejo; mas não pôde. Convidou a boa senhora a sentar-se, e sentou-se ele também esperando que ela lhe explicasse a causa da visita. 
- Escrevi-lhe ontem, disse ela, para que fosse ver-me hoje; preferi vir cá, receando que por qualquer motivo não fosse a Matacavalos. 
- Queria então incumbir-me? 
- De coisa nenhuma, respondeu a velha sorrindo; incumbir disse-lhe eu, como diria qualquer outra coisa indiferente; quero informá-lo. 
- Ah! de quê? 
- Sabe quem ficou hoje de cama? 
- D. Margarida? 
- É verdade; amanheceu um pouco doente; diz que passou a noite mal. Eu creio que sei a razão, acrescentou D. Antônia rindo maliciosamente para Mendonça. 
- Qual será então a razão? perguntou o médico. 
- Pois não percebe? 
- Não. 
- Margarida ama-o. 
Mendonça levantou-se da cadeira como por uma mola. A declaração da tia da viúva era tão inesperada que o rapaz cuidou de estar sonhando. 
- Ama-o, repetiu D. Antônia. 
- Não creio, respondeu Mendonça depois de algum silêncio; há de ser engano seu. 
- Engano! disse a velha. 
D. Antônia contou a Mendonça que, curiosa por saber a causa das vigílias de Margarida, descobrira no quarto dela um diário de impressões, escrito por ela, à imitação de não sei quantas heroínas de romances; aí lera a verdade que lhe acabava de dizer. 
- Mas se me ama, observou Mendonça sentindo entrar-lhe n’alma um mundo de esperanças, se me ama, por que recusa o meu coração? 
- O diário explica isso mesmo; eu lhe digo. Margarida foi infeliz no casamento; o marido teve unicamente em vista gozar da riqueza dela; Margarida adquiriu a certeza de que nunca será amada por si, mas pelos cabedais que possui; atribui o seu amor à cobiça. Está convencido? 
Mendonça começou a protestar. 
- É inútil, disse D. Antônia, eu creio na sinceridade do seu afeto; já de há muito percebi isso mesmo; mas como convencer um coração desconfiado? 
- Não sei. 
- Nem eu, disse a velha; mas para isso é que eu vim cá; peço-lhe que veja se pode fazer com que a minha Margarida torne a ser feliz, se lhe influi a crença no amor que lhe tem. 
- Acho que é impossível... 
Mendonça lembrou-se de contar a D. Antônia a cena da véspera; mas arrependeu-se a tempo. 
D. Antônia saiu pouco depois. 
A situação de Mendonça, ao passo que se tornara mais clara, estava mais difícil que dantes. Era possível tentar alguma coisa antes da cena do quarto; mas depois, achava Mendonça impossível conseguir nada. 
A doença de Margarida durou dois dias, no fim dos quais levantou-se a viúva um pouco abatida, e a primeira coisa que fez foi escrever a Mendonça pedindo-lhe que fosse lá à casa. 
Mendonça admirou-se bastante do convite, e obedeceu de pronto. 
- Depois do que se deu há três dias, disse-lhe Margarida, compreende o senhor que eu não posso ficar debaixo da ação da maledicência... Diz que me ama; pois bem, o nosso casamento é inevitável. 
Inevitável! amargou esta palavra ao médico, que aliás não podia recusar uma reparação. Lembrava- se ao mesmo tempo que era amado; e conquanto a idéia lhe sorrisse ao espírito, outra vinha dissipar esse instantâneo prazer, e era a suspeita que Margarida nutria a seu respeito. 
- Estou às suas ordens, respondeu ele. 
Admirou-se D. Antônia da presteza do casamento quando Margarida lho anunciou nesse mesmo dia. Supôs que fosse milagre do rapaz. Pelo tempo adiante reparou que os noivos tinham cara mais de enterro que de casamento. Interrogou a sobrinha a esse respeito; obteve uma resposta evasiva. Foi modesta e reservada a cerimônia do casamento. Andrade serviu de padrinho, D. Antônia de madrinha; Jorge falou no Alcazar a um padre, seu amigo, para celebrar o ato. 
D. Antônia quis que os noivos ficassem residindo em casa com ela. Quando Mendonça se achou a sós com Margarida, disse-lhe: 
- Casei-me para salvar-lhe a reputação; não quero obrigar pela fatalidade das coisas um coração que me não pertence. Ter-me-á por seu amigo; até amanhã. 
Saiu Mendonça depois deste speech, deixando Margarida suspensa entre o conceito que fazia dele e a impressão das suas palavras agora. 
Não havia posição mais singular do que a destes noivos separados por uma quimera. O mais belo dia da vida tornava-se para eles um dia de desgraça e de solidão; a formalidade do casamento foi simplesmente o prelúdio do mais completo divórcio. Menos cepticismo da parte de Margarida, mais cavalheirismo da parte do rapaz teriam poupado o desenlace sombrio da comédia do coração. Vale mais imaginar que descrever as torturas daquela primeira noite de noivado. 
Mas aquilo que o espírito do homem não vence, há de vencê-lo o tempo, a quem cabe final razão. O tempo convenceu Margarida de que a sua suspeita era gratuita; e, coincidindo com ele o coração, veio a tornar-se efetivo o casamento apenas celebrado. 
Andrade ignorou estas coisas; cada vez que encontrava Mendonça chamava-lhe Colombo do amor; tinha Andrade a mania de todo o sujeito a quem as idéias ocorrem trimestralmente; apenas pilhada alguma de jeito repetia-a até a saciedade. 
Os dois esposos são ainda noivos e prometem sê-lo até a morte. Andrade meteu-se na diplomacia e promete ser um dos luzeiros da nossa representação internacional. Jorge continua a ser um bom pândego; D. Antônia prepara-se para despedir-se do mundo. 
Quanto a Miss Dollar, causa indireta de todos estes acontecimentos, saindo um dia à rua foi pisada por um carro; faleceu pouco depois. Margarida não pôde reter algumas lágrimas pela nobre cadelinha; foi o corpo enterrado na chácara, à sombra de uma laranjeira; cobre a sepultura uma lápide com esta simples inscrição: 
A Miss Dollar