sexta-feira, 26 de março de 2021

Projeto Contos De Sábado Na Usina: A Cartomante: Machado de Assis:




     Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinouas, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...
— Errou! interrompeu Camilo, rindo.
— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa.
Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...
Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria
muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse
algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disselhe
que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois...
— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.
— Onde é a casa?
— Aqui perto, na Rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião.
Descansa; eu não sou maluca.
Camilo riu outra vez:
— Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia
muita coisa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava,
paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é
que ela agora estava tranqüila e satisfeita.
Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões.
Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro
de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia
em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião,
ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma
dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada.
Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento: limitava-se a negar
tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a
incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi
andando.
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada;
Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às
cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se
lisonjeado. A casa do encontro era na antiga Rua dos Barbonos, onde morava uma
comprovinciana de Rita. Esta desceu pela Rua das Mangueiras, na direção de
Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de
passagem para a casa da cartomante.
Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das
origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a
carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai,
que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até
que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela
da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a
magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os
lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.
— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu
marido é seu amigo, falava sempre do senhor.
Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras.
Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as
cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca
fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos,
Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela faziao
parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida
moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que
a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem
intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de
Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele.
Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente
do coração, e ninguém o faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de
passar as horas ao lado dela, era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas
principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele aspirava nela,
e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam
juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às
noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as
coisas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita
vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as
atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de
presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi
então que ele pôde ler no próprio coração, não conseguia arrancar os olhos do
bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos,
deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a
mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem,
assim são as coisas que o cercam.
Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se
acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingoulhe
o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos,
remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória
delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí
foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de
ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando
estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser
as mesmas.
Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e
pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para
desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe
as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz.
Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram
inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio,
uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a
aleivosia do ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para
consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a
cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o
que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três
cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude,
mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras
palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e
avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.
Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com
Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.
— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das cartas
que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio,
falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre
isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o
marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular.
Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou
denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas.
Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e
separaram-se com lágrimas.
No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela:
"Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia.
Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao
escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse
realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas coisas com
a notícia da véspera.
— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os
olhos no papel.
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa,
Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele
acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois
sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De
caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe
explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de
estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma
denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que
Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo
aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.
Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras
estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então, — o que era ainda pior,
 — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já, à nossa
casa; preciso falar-te sem demora." Ditas assim, pela voz do outro, tinham um
tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde.
A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que
chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir
armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil.
Logo depois rejeitava a idéia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na
direção do Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou
seguir a trote largo.
"Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim..."
Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele
não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da Guarda Velha, o
tílburi teve de parar, a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra.
Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos,
reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a
quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas.
Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas
de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.
Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande,
extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de
outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe
voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho: ele respondeu que não, que
esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a
idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas
asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas
daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros
concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:
— Anda! agora! empurra! vá! vá!
Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em
outras coisas; mas a voz do marido sussurrava-lhe a orelhas as palavras da carta:
"Vem, já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele.
As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu
opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas coisas. A voz da mãe
repetia-lhe uma porção de casos extraordinários: e a mesma frase do príncipe de
Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais coisas no céu e na terra do que sonha a
filosofia..." Que perdia ele, se...?
Deu por si na calçada, ao pé da porta: disse ao cocheiro que esperasse, e rápido
enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos
pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não
aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade
fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas,
três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultála,
ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a
primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma
janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um
ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.
A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as
costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto
de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e
enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de
rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana,
morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a
mesa, e disse-lhe:
— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...
Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.
— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...
— A mim e a ela, explicou vivamente ele.
A cartomante não sorriu: disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das
cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhouas
bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendêlas.
Camilo tinha os olhos nela curioso e ansioso.
— As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que
não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o
terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela: ferviam
invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo
estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na
gaveta.
— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima
da mesa e apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se
fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda,
sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a
despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as
unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo,
ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.
— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer
mandar buscar?
— Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante
fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis.
— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do
senhor. Vá, vá, tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...
A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando,
com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que
levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima,
cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre.
Entrou e seguiu a trote largo.
Tudo lhe parecia agora melhor, as outras coisas traziam outro aspecto, o céu
estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou
pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e
familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram
urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e
gravíssimo.
— Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer coisa; parece que
formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga
assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da
cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a
existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se
ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz
iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às
vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as
palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no
fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos
recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.
A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de
outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar,
estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e
teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.
Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do
jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal
teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.
— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?
Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram
para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: 
— ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela
gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.

Fonte:Várias Histórias
Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis, vol. II,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

Publicado originalmente por Laemmert & C. Editores, Rio de Janeiro em 1896. Obra de domínio publico.

Contos Do Sábado Na Usina: D'Araújo:A dívida:



       Prezado leitor, lá pras bandas do meu sertão, é muito comum se recorrer aos amigos compadres ou parentes para tentar se livrar daquelas dívidas inevitáveis no mundo moderno e consumista de hoje em dia. Mesmo nos lugares mais ermos do nosso velho mundo.
Agoniado por demais o seu Manoel da besta... Agora me diga se tem cabimento se chamar um cristão por um nome deste quilate. Todos sabem bem, que é de costume lá no meu nordeste fazer esse tipo de coisa. Esses nomes associativos.
Tipo: Manoel do bode, Zé de zefa... E Por aí vai.
Mais vamos ao que interessa bem pelo menos eu acho que interessa senão você não estava ai lendo não é mesmo caro leitor.
Como eu comecei anteriormente, o seu Manoel da besta estava desesperado, pois tinha contraído um divida,vamos dizer que para alguns seria até insignificante, mais que pra um caboclo que dinheiro é quase uma visagem*, fica difícil, honrar seus compromissos.
Não encontrando outra saída, o seu Manoel da besta resolveu pedir ajuda como é de costume de todos por lá. Ao seu compadre Chico ventania..
Bem eu avisei que os nomes eram todos assim, vamos dizer meio esquisitos, mais vamos volta pra história.
O seu Manoel Acordou com as galinhas, bem e agora eu acho que você vai entender o porquê do nome, Eita eu e essa minha mania de querer explicar tudo. Lá no sertão pra comprar um cavalo é preciso se ter um bom recurso, mais “besta” é mais barato por que ela não serve para mão de obra pesada.
Então como se dizem por lá, quem não tem cão caça como gato, como se tivesse a ver uma coisa com outra.
Bem mais o seu Manoel da besta estava pouco preocupado com este tipo de coisa, pois ele tinha contraído uma dívida com o seu Zé corta saco. Bem, pelo nome, nem precisa explicar o motivo do medo do seu Manoel. Não é
Mesmo. Pois o cabra poderia causar um estrago se ele não honrasse o pagamento da dívida.
Só a titulo de esclarecimento, naquele tempo naquela região não se usa cheque, recibo ou promissória. Por que lá o cabra faz acerto é verbal mesmo, agora meu amigo se o cabra faltasse com a palavra. Ai para não ser muito dramático, vamos dizer que o cabra estava meio enrolado.
Seu Manoel da besta tomou seu café mais ligeiro do que teiú na caatinga seca. Arriou a besta e sumiu ribeirão a dentro prá casa do seu compadre Chico ventania. Que era um sujeito calmo pacificador, mais quando perdia a paciência não tinha pra ninguém.
Quando ele chegou ao ribeirão, na casa do seu Chico ventania, o homem nem tinha saído pra lida ainda.
Seu Chico tava no terreiro arrumando as coisas nas mulas pra levar pra roça, quando avistou surgindo lá na curva da velha estrada empoeirada o seu Manoel.
E logo resmungou uma pequena frase.
          - Eita peste, Virche! Que deve ter acontecido alguma desgraça muito grande, pro compadre Manoel vir esta hora pra essas bandas.
         - Olá compadre Chico, bom dia.
Quase que simultaneamente vai falando e descendo da besta ao mesmo tempo, o que deu para o seu Chico já ir notando o tamanho do aperreio do cabra.
         - Ôchi! Tô muito bem graças ao meu bom deus, e o compadre
Manoel, Como ta?
         - Ôchi! Com a graça de deus tô muito bem, por que.
Num devia ta não, é?
          - Eita homem ignorante da porra, tô só querendo saber Como o homem ta, e ele já me vêm com uma patada da molesta dessa.
Olha que pelo tamanho do cavalo eu até pensei que o coice fosse bem menor, num sabe.
        - Olha aqui compadre Chico, em primeiro lugar cavalo é a mãe, e
num mim aperrei que hoje compadre eu tô azedo num sabe.
          - Bem que eu desconfiei que boa coisa num pudesse ser, pro compadre ta por essas horas por essas bandas num é mesmo, compadre.
Mais vamos, mim diga o que diacho aconteceu pro compadre ficar tão azedo assim, vamos mim diga.
         - Virche! Compadre nem te conto, não é que antes de ontem eu fui resolver umas pendengas lá pras banda da ribeira de baixo, e na pressa de me livrar do problema compadre não é que eu fiz foi mim enrrolar mais ainda compadre.
         - Ôchi compadre Manoel se enrolou com que, mim diga vamos.
          - Fazia um bom tempo que eu tinha umas pendências financeiras por lá, e a semana passada eu tinha algumas coisas pra fazer por lá, então resolvi matar dois coelho de uma cajadada só.
Então lá fui eu da uma satisfação pros meus credores, num sabe, afinal se não podemos honrar os nossos compromissos no prazo, pelo menos devemos da uma satisfação não é mesmo compadre.
          - Espere compadre, que num tô entendendo coisa com coisa, porque quanto mais o compadre explica menos eu entendo, porque o compadre num desembucha de uma vez, afinal que miséria de enrrolação é essa, mim diga vá.
          - Eita que homem avexado da molesta, num da pra esperar não, é, tô só querendo explicar as coisas direitinhas num sabe.
Mais em todo caso vamos lá pra acabar com esse aperreio de uma vez. Chegando lá na bodega do seu Zé corta saco, que é um dos credores num sabe.
Ouve uma pequena pausa, e seu Chico logo perguntou.
          - Agora também compadre, com tanta gente no mundo pro compadre arrumar dinheiro emprestado. O compadre, foi logo pegar com o seu Zé corta saco, o compadre perdeu o juízo de vez foi? Porque o compadre sabe muito bem que aquele homem é o cão em pessoa num é mesmo.
Porque até a mãe dele pensa duas vezes em se meter com ele não é mesmo compadre.
          - Ôchi! Compadre Chico, que na hora do aperreio o sujeito pega com o primeiro que aparece, vê se na hora da desgraça o sujeito tem tempo de pensar nas conseqüências que vem depois, não é mesmo.
Mais voltando ao que eu tava contando antes.
          - Não é que na pressa de da uma satisfação pro homem, não é que eu disse que até tinha arrumado o dinheiro pra acerta com ele, mais o coitado do Ciço do peixe tava num aperreio da molesta. E eu tinha arrumado o dinheiro pra ele, e assim que o Ciço me devolvesse eu ia lá acerta com ele.
         - Eita compadre, que agora o sinhô se lascou pra valer.
         - Nem mim fala compadre, que se eu escapar dessa nunca mais eu quero conversa com agiota, num sabe.
         - Oia compadre, mim desculpe o trocadilho, mais enquanto ele é
agiota, o compadre ágil Como um idiota, não é mesmo.       
           - Ôchi! Compadre, também num precisa ofender desse jeito, porque eu já tô lascado e o compadre ainda vem e mim chama de idiota, isso é demais pra mim, num sabe.
          - Quer isso compadre, num tô querendo ofender o compadre não, tô só querendo abrir os olhos do compadre pra ver se nunca mais cai em uma esparrela dessas. Mais vamos deixar isso pra lá, mim diga, Como é que o compadre saiu dessa enrascada, hein?
          - Mais ai é que tá compadre, quem disse que eu saí. Quanto mais eu tentava sair mais eu me enrolava mais, num sabe.
         - Ôchi! Porque me diga vamos.
          - Sabe compadre, na hora eu num entendi muito bem, mais compadre, quando seu Zé soube que eu tinha emprestado o dinheiro pro Ciço do peixe, o homem virou o cão chupando manga, num sabe. E mim deu 24 horas pra eu quitar a minha divida, porque se não... Virche! Que meu são Leopoldo da perna torta, me ajude, que chega até, a me da arrepio só de pensar no que pode me acontecer não é mesmo compadre. O desgraçado ainda ficou se gabando de ser um sujeito compreensivo, bondoso e não um cabra intransigente como se fala dele por ai.
         - Eita peste, que primeiro pra me esse santo é novo, de onde o compadre desenterrou esse, e olha que eu conheço santo pra mais de ano.
         - Agora veja só se isso é hora pra brincadeira besta compadre. Então
o compadre acha, que no aperreio da molesta que eu tava, eu ia ter tempo pra escolher quem era o santo que ia me ajudar, era?
         - Quer isso compadre, eu num tenho nada contra o seu santo não, só acho que com tanto santo conhecido, e o compadre, vai buscar um que a gente nem sabe de onde é, e se pelo menos existe, não é mesmo.
         - Tudo bem, se trocar de santo vai deixa o compadre mais tranqüilo... Mais pensando bem se fosse nossa senhora talvez a coisa ficasse mais fácil, porque afinal de conta, problema que ela num resolver, pode esquecer ajuda divina. Por que num tem mais santo que dê jeito, não é mesmo compadre. Mais vamos esquecer os santos e vamos pra coisa prática, não é mesmo.
         - Ôchi! Pode parar, que pelo tom da conversa tô vendo que já me meteram nesse rolo.
        - Ôchi! E o compadre agora deu pra adivinhar, foi?
          - Eita por acaso é preciso adivinhar, é, pelo que eu vi do desenrolar da conversa, já tô vendo que me meteram nesse rolo até o pescoço, não é mesmo.
          - Pois é compadre, num tendo mais a quem recorrer só me sobrou o compadre pra me socorrer.
          - Ôchi! Mais compadre, ultimamente eu ando numa dureza de dá dó, esse ano a colheita foi pouca, a seca acabou com os pastos, e os meus cabritos nem vale a pena vender. Porque os bichinhos tão magros que da pena, tão no couro e no osso compadre.
          - Mais Ôchi! Quer isso compadre, eu não quero dinheiro não. Ora se num tem nem pra pagar o seu Zé, como é que eu vou querer mais dinheiro emprestado Ôchi, ta doido homem.
          - Eita peste, que agora quem num entendeu nada, foi eu, num sabe, se não é dinheiro que o compadre quer, é o quê, então, me diga.
          - Ora essa compadre, o sinhô ta cansado de saber que por aqui nessas redondezas o compadre é a única pessoa que o seu Zé corta saco respeita, não é mesmo. Ai eu pensei se o compadre num podia me ajudar pelo menos ganhar mais uns dias pra eu pagar essa divida, não é mesmo. Porque se não a desgraça ta feita. O desgraçado vai tirar meu couro, e compadre sabe muito bem que se eu num honrar o meu compromisso, eu tô é lascado nas mãos do Zé... Prá num dizer outra coisa que é coisa feia, não é mesmo.
          - Arri, que o compadre Manoel, agora me apertou, sem me abraçar, num sabe.
          - Ôchi! Que conversa mais besta é essa compadre, veja só se eu sou lá cabra de sair por ai, abraçando macho, eu hein! Ta me estranhando compadre.
          - Eita que também num se pode nem fazer uma brincadeirinha. Não é que o compadre tinha razão quando falou que estava azedo. Ôchi o abraçar, foi só jeito de falar.
          - Vôte! Pois pode parar com esse seu jeito de falar pro meu lado, que eu já tenho é problema demais, pra resolver não estou certo.
          - Eita! Num se aperrei não homem de deus, que eu vou dá um jeito nisso. Pode pegar seu rumo que assim que eu deixar esses badulaques na roça com os trabalhadores, de lá mesmo eu vou falar com seu Zé. Se preocupe não, que num vai ser ainda dessa fez que o compadre, vai perder as ferramentas ai não.
          - Virgem Maria, mãe de deus! O compadre nem me fala numa desgraceira dessas, mais eu sabia que o compadre num ia me faltar numa hora dessas, não é.
          - Olha aqui compadre, num vai contando vitória antes do tempo não, porque eu num sei como vai ta o humor do homem por lá não, acho melhor o compadre ir pra casa esfriar a cabeça. E a noitinha eu apareço por lá com resultado, ta bom, compadre Manoel.
          - Quer isso, só do compadre e lá falar com o homem, já tô até mais aliviado, mais pode deixar que eu vou voltar já pra casa, e cuidar das minhas coisas. Até mais ver compadre Chico.
         - Inter compadre.
Depois de passar na roça. O seu Chico foi direto pra casa do seu Zé que não ficava muito distante da sua propriedade. Já na entrada da propriedade do se Zé, fica a sua casa, por sinal uma casa grande toda avarandada com um terreiro enorme, do lado da casa de morada ficava a sua bodega. Onde ele costumava passar a maior parte do seu tempo, a disposição dos que dele precisava, geralmente pra arrumar dinheiro a juro.
Já no terreiro, como é de costume, seu Chico se anunciou.
         - Ô de casa.
E lá de dentro ecoou como resposta aquela voz seca e carrancuda do seu Zé.
         - Ô de dentro, quem chama.
         - Sou eu seu Zé.
         - Eu quem
         - Eita hominho difícil da molesta, sou eu, Chico de dona laurinha. Preciso ter um dedo de prosa com sinhô seu Zé.
Bem, ele sempre que a coisa era séria ele se apresentava como Chico de dona laurinha. Que era a senhora sua mãe, mulher respeitada por todo mundo naquela região.
          - Minha Virgem Maria, que vai chover canivete, por aqui hoje, porque pra esse homem ta essa hora por essas bandas, deve ter acontecido uma desgraça muito grande. Mais me diga meu bom homem, quem morreu dessa vez.
          - Ainda não morreu não. Mais é justamente por isso que eu Tô aqui, pra evitar o pior, num sabe.
          - Eita peste, que nem eu mesmo sabia desse meu dom da medicina, não é mesmo.
Mais deixa pra lá, e me diga seu Chico, em que posso ajudar o sinhô. Mais primeiro me desculpe pela indelicadeza da minha parte, se chegue tome assento, acha que podemos conversar aqui mesmo? Pelo menos o ar aqui é mais fresco... Não que eu tenha algum gosto pela frescura, claro, mais também quanto à frescura, cada um com as suas, não é mesmo.
          - Bem, frescuras a parte, o sinhô seu Zé sabe que eu não sou homem de arrodeio. Por isso vou direto ao assunto, que mim trousse aqui, num sabe.
         - Ôchi! Então desembucha homem que já ta mim dando agonia de tanta curiosidade.
          - Num se avexe não, que já ta é saindo. Bem, seu Zé. É que o compadre Manoel mim procurou todo aperreado, pois num sabe mais o que fazer pra cumprir com prazo que o sinhô deu pra ele acerta a divida que ele tem com sinhô, não é mesmo.
          - Mais eu num tô dizendo, pia, ou lugarzinho pra ter um magote de cabra frouxo. Ver se isso é qualidade de homem, pois o desgraçado faz besteira e depois foi correr pra debaixo da saia do compadre. Desculpe-me pela a saia, mais é só modo de dizer, num sabe.  Óh! Agora pense numa qualidade de homem sem futuro, pense. Por que seu Chico ver se tem cabimento, uma coisa dessas. O cabra vem na minha casa pra falar que num pode me pagar, a final eu não lhe autorizei emprestar o dinheiro que tinha pra me pagar, justamente pro caloteiro filho de uma égua. Que sumiu no mundo sem me pagar o que mim devia. Vê se pode uma coisa dessas, ou seja, fui enganado duas vez.
Então o sinhô acha que tinha outra coisa a fazer. Ele que se dê por satisfeito porque a coisa poderia ter sido bem pior, num sabe. E olha que eu não engrossei com ele foi por justamente por ter muita consideração ao sinhô que é um homem de bons princípios e num tem culpa das atrapalhada do seu compadre, num é mesmo seu Chico.
         - Bem seu Zé, até fico agradecido pela consideração, mais num vamos deixar uma coisa besta dessas chegar numa desgraça. Afinal o que aconteceu, é que o compadre Manoel com medo das conseqüências de num ter o dinheiro pra lhe pagar, acabou se enrolando todo.
         - Mais Como assim. Foi ele mesmo que mim contou essa história, com todas as letras, e eu ouvi muito bem com esses dois ouvidos que a terra a de comer.
          - Mais também, cá entre nós seu Zé, não querendo desvirtua a historia, com a fama que o sinhô tem nessas bandas, o coitado do compadre Manoel só pensou em ganhar tempo. Pois corria o risco de perder o único bem precioso dele, não é mesmo.
         - Agora pense em um cabra frouxo da molesta, pois se ele tentou
ganhar tempo. Ele fez foi se lascar todo, porque o único tempo que ele vai ter é de arrumar alguém pra fazer os curativos nos Bago. Porque eu duvido que aquele frouxo arrume trinta contos de réis em 24 horas, num é mesmo. Afinal eu fiz negocio foi com homem, e palavra de homem num se volta atrás.
         - Mais seu Zé, è justamente por isso que eu tô aqui. Em nome da
nossa velha amizade, afinal de contas todos nós sabemos que o compadre Manoel é um coitado. Um homem trabalhador que num meche com nada de ninguém. Então eu vi aqui propor um acordo com o seu Zé.
          - Eita! Que tu num tem jeito num é seu Chico. O sinhô continua coração mole, Eita! Homem de uma alma generosa da peste. Como sempre tentando resolver os problemas dos outros, não é mesmo. Mais vamos deixar pra lá, e que tipo de acordo seu Chico ta propondo, mim diga.
          - Bem seu Zé. Vou tentar simplificar as coisas, eu trago um cabrito, e sinhô abate e vende de meia, e da minha parte o sinhô tira os trinta contos de réis que o compadre lhe deve. Eu acho uma coisa justa mais depende do sinhô aceitar ou não o negocio. E pode deixar que depois eu acerto as coisas lá com o compadre. Eu tô mesmo precisando de trabalhador pra terminar o meu roçado, então fica fácil.
         - Num tô dizendo, por isso que esses homens de hoje em dia num toma jeito, sempre tem uma alma besta pra conserta as atrapalhada dos desgraçados. O sinhô me desculpe pelo besta, mais eu num mim conformo com uma coisa dessas. É por isso que esse monte de cabra safado num se emenda.
         - Tudo bem seu Zé, eu até entendo a sua indignação, mais o sinhô aceita ou não a minha oferta.
          - Olha aqui seu Chico, pra não saírem dizendo, que eu sou um homem bruto, ignorante, intransigente, e por consideração ao amigo, eu vou aceitar, mais tem uma condição.
          - Eita! Que eu sabia que nesse mundo de meu deus num tem jeito, nada sai de graça. Tudo tem um preço, mais vamos fale qual é a sua condição seu Zé.
         - Ôchi! Quer isso homem, é coisinha de nada, só queria que ele
mesmo me trouxesse o cabrito. Pois vou dá um susto tão grande naquele frouxo que nuca mais ele vai tirar a mão do saco, num sabe.
          - É de fato até que num é uma condição absurda, é até justa, agora vê lá seu Zé, que seja só um susto.
         - Quer isso seu Chico, num se preocupe não, no Maximo que pode acontecer é ele chegar lá de volta precisando de uma calça nova pra trocar. Porque do jeito que o bicho é frouxo ele vai se borrar todo.
          - Cuidado em seu Zé, vê lá se num mata o compadre de um ataque do coração, hein?
          - Ôchi! E o sinhô já viu cabra frouxo morrer do coração, seu Chico.
          - Tá bom, então ficou assim, amanhã cedinho ele traz o cabrito, e a gente acaba com essa pendenga da peste, não é mesmo.
          - Ôchi pendenga que ele mesmo arrumou com as mentiras deslavadas que ele inventou, não é mesmo.
          - Bem seu Zé, mais ai é outra história, mais deixe me ir, pois já está tarde por demais, eu tenho muito que fazer ainda hoje.
          - Vichi! Mais que diacho, que indelicadeza, pois na empolgação não é que até esqueci-me de mandar a zefa passar um cafezinho pra nós, mais espere só mais um bocadinho, que eu falo com ela e ligeirinho ela faz.
         - Quer isso, num vá dar trabalho pra comadre Zefa seu Zé, precisa não, já ta muito tarde, fica pra próxima, qualquer dia desses, eu venho com mais tempo e trago a Maria. Ai a gente toma um cafezinho e pôe a prosa em dia, até mais, da lembrança à dona zefa.
         - Enté, brigado, lembranças à dona Maria.
Já de volta a sua casa, seu Chico de longe ver o seu compadre Manoel no terreiro rodando igual um peru. Se descabelando de preocupação. Ao ver a aproximação do seu compadre, foi logo perguntando.   
         - E ai compadre Chico, como é que foi lá, deu tudo certo?
          - Olha compadre eu fiz o que pude mais depois que o homem soube que o compadre tinha inventado aquela mentirada toda. Virche! O homem virou uma arara, num sabe.
         - Eita peste que dessa fez eu mim lasquei todo, também com tanta gente pra eu mentir nesse mundo, e o besta aqui foi logo mentir pro seu Zé corta saco. Virche! Pobre dos meus bagos vai ficar sem eles. E agora, me valei meu são Benedito da baixa funda.
          - Eita, mais bem que seu Zé falou, pense num homem frouxo da peste, para de chorar, e seja macho enfrente o cabra de homem pra homem rapaz.
         - Ôchi! Que o compadre perdeu foi o juízo, o compadre fala isso
porque num é o sinhô. Enfrentar seu Zé corta saco de homem pra homem, ai em vez dos bagos eu perco é a vida de uma vez, num sabe.
Então seu Chico resolve aliviar à aflição do coitado.
          - Homem deixe de agonia, cabra frouxo da molesta. Que eu arrumei um acordo com homem.
          - Eita desgraça, porque num me disse isso logo homem, num ta vendo que eu tava quase dando uma pitingula, num sabe. Mais me diga compadre, que acordo.
          - Ôchi! Até que foi mais fácil do que em pensava. Ficou acertado que eu vou mandar um cabrito, ele mata e vende de meia, e da minha parte, ele tira os trinta contos de réis que o compadre deve.
         - Ôchi! E depois Como é que eu vou pagar pro compadre, hein?
          - Eita homem aperreado da peste, se preocupe não, depois o compadre faz uns servicinho ai pra mim, e fica tudo certo. Mais num vai se alegrando não porque o homem impôs uma pequena condição.
          - Sabia, em qualquer acordo sempre alguém se lasca. Nesse caso, eu não é mesmo, compadre.
          - Mais, fique calmo compadre, porque até que as condições que ele impôs num são tão ruim assim, até acho justa, compadre.
          - Estão mim diga logo o que é, homem de deus, que eu tô que num mim agüento mais.
          - Ô homem agoniado da molesta, a única exigência que ele fez, é que o compadre vá pessoalmente levar o cabrito.
          - Eita que ta fácil de mais pra ser só isso. Esse cabra ta armando alguma marmota pra cima de mim, num sabe.
          - Bem compadre Manoel, ai o sinhô é que sabe, mais até que eu acho justo não é mesmo. Largue de ser frouxo e vá lá homem, e acabe logo com essa pendenga da molesta.
         - È compadre, mais é justamente por isso que eu num tô gostando dessa história, porque em se tratando do seu Zé corta saco. Nessa mata tem coelho. Mais num tem outro jeito eu arranjei esse nó agora vou ter que desatar não é mesmo compadre.
          - É compadre Manoel, mais já ta tarde va pra casa refrescar a cabeça aproveita enquanto tem, e amanhã cedinho o compadre vem pra levar o cabrito, não é mesmo.
          - Oia aqui compadre, num gostei da brincadeira não, mais diante da situação o que é que eu posso fazer, não é mesmo. Mais brigado pela ajuda.
Porque se num fosse o compadre eu tava era lascado, então que deus lhe pague.
          - Quer isso compadre Manoel, fez nada demais não, mais o compadre deixe deus fora dessa, que ele num mim deve nada não. Quanto ao compadre depois a gente acerta os dias de o compadre vir trabalhar, não é mesmo.
          - Ôchi claro não é, é o compadre marcar e eu tô ai. Mais me deixa ir que amanhã tem que acordar cedo pra ir deixar o cabrito. Mais olha num sei por que, mais eu num tô gostando nada dessa história.
          - Ôchi! Se avexe não homem, é só pra cumprir protocolo com seu Zé.
          - Sei não compadre, mais esse tal de protocolo pra cumprir com seu Zé corta saco, num tem a menor graça, num é mesmo. Mais Como num tem outro jeito, até amanhã compadre, e seja o que deus quiser.
         - Inté compadre, minhas lembranças à comadre Joaquina, e benção pro Manoel Zinho.
Bem nem precisa dizer que o coitado do seu Manoel não pregou o olho a noite inteira. Porque antes do sol se aprumar no horizonte pra nascer, ele já estava plantado na frente da casa do seu compadre Chico.
         - Bom dia compadre Chico.
          - Bom dia compadre, ôchi! Que pelo jeito o compadre num pregou os olhos essa noite, não é mesmo.
         - Eita, Como se isso fosse possível, não é mesmo, tô de miolo latejando tentando adivinhar o que diacho o seu Zé ta aprontando pra eu.
          - Sabe o que eu acho compadre, acho que você ta fazendo tempestade sem nenhuma razão, num sabe. Por que o pior já passou, mesmo porque se o seu Zé quisesse apronta com o compadre, ele nem tinha aceitado o acordo, não é mesmo.
         - Olha de certa forma até que o compadre pode ter razão, mais é que se tratando do seu Zé corta saco, todo cuidado é pouco, não é mesmo. E depois de muita peleja o seu Manoel pegou o cabrito, e toca pra casa do seu Zé corta saco. Mais cá entre nós, um sujeito com um nome desses nem precisa ser valente pra meter medo em qual sujeito que tenha zelo pelas suas virtudes, para não dizer outra coisa, não é mesmo caro amigo.
Mais chegando à propriedade do seu Zé. De longe o seu Manoel já viu que a porta da bodega estava aberta. Aproximou-se e foi logo se anunciando.
         - Ô de casa, tem alguém ai.
Lá de dentro da bodega, ressoou aquela voz com o seu velho e bom tom de arrogância de sempre, e que para seu Manoel já se tornara casual e familiar.
         - Ô de fora, pode entrar, tava mesmo esperando por você.
Bem o seu Zé não costumava chamar os seus devedores de senhor, uma forma de impor respeito e intimidação e de não se criar certa intimidade, coisa que ele julgava muito ruim para os negócios. E do lado de fora seu Manoel responde.
         - Trouxe o seu cabrito seu Zé.
          - Ôchi certamente, por que sendo tu frouxo como é, não se atreveria
a chegar aqui sem ele, não é mesmo. Mais amarre o bichinho ai no pé de juazeiro ai no terreiro que nós precisamos ter um dedinho de prosa, num sabe.
Na frente da bodega havia um enorme pé de juazeiro, que era de uma formosura de causar inveja. Bem, nem é preciso dizer que depois que o seu Manoel amarrou o cabrito lá no juazeiro e que tomou o rumo da porta da bodega, o coitado já não conseguia controlar a tremedeira. Mais como ele não via outro jeito respirou fundo e entrou porta à dentro.
Olha caro amigo se ele já tremia antes de entrar você imagina quanto ele entra e da de cara com o seu Zé do outro lado do balcão, amolando seu velho e famoso facão de quatorze polegada. O barulho do passar pacientemente a lamina de aço do facão na pedra de amolar fazia o coitado de o seu Zé suar frio só de pensar nas possibilidades. E percebendo a tremedeira desvairada do coitado seu Manoel, ele foi dizendo.
         - Ôchi! Homem se achegue tome assento, porque eu sou assim feio mais num mordo não, num sabe. Afinal nós temos algumas coisas pra passar a limpo, não é mesmo, seu Manoel. Ôchi! Mais se assente homem até parece que vai dá uma pitingula. 
Larga mão de ser frouxo homem, que minha santa vovozinha que deus a tenha, sempre mim dizia, que quem não pode com pote num faz a rodinha, não é mesmo. Mais, e o seu Manoel Por acaso num prefere beber alguma coisa pra ver se a situação melhora.
          - Oia seu Zé, o sinhô mim desculpe, mais eu vou aceitar uma branquinha, porque num é por falta de vontade não, mais que minhas pernas se nega a eu obedecer, num sabe.
         - Ôchi! Mas o seu Manoel se enrolou por que quis. Era só ter mim falado a verdade. Preferiu inventar uma mentira agora arqui com as conseqüências, num é mesmo. Pois o sinhô num achou que essa marmota que o sinhô inventou ia passar em branco, achou?
         - Eita, e seu Zé num acha que eu já tô pagando, passando por uma humilhação da molesta dessa.
          - Êpa! Primeiro, eu vírgula, seu compadre é que ta pagando que alias, diga-se de passagem, pense num homem de coração mole. Mais vamos deixar o seu Chico fora dessa, não é mesmo, e tome sua pinga pra anestesiar as coisas. Porque o caso aqui é entre nos dois, num é mesmo.
         - Eita peste, de que coisa o seu Zé se refere, hein?
         - Oia seu Manoel, faz pra mais de ano que eu num amolo o meu estimado facão. E como o sinhô já deve ter ouvido falar por ai nas redondezas, eu nunca amolei pra num usar, num sabe.
         - Ôchi, primeiro que eu num preciso de anestesia, segundo usar em quem, porque graça ao bom coração do meu compadre, Como o sinhô mesmo disse, eu já tô acertando a minha dívida com o sinhô, não é mesmo. vi aqui e trouxe o cabrito conforme o combinado, estamos quites.
          - Oia seu Manoel, de fato o sinhô tem razão, a divida ta paga. Mais o desaforo de inventar uma mentira deslavada daquela pra tentar me engabelar e ganhar tempo, ah! Isso num vai ficar de graça não.
          - Ôchi que eu num tô entendendo, aonde seu Zé ta querendo chegar.
         - Eita que num se faça de desentendido não, porque o sinhô sabe muito bem, o que acontece com cabra que tenta eu engabelar, não é mesmo, seu Manoel.
E quando seu Manoel se dá conta, o seu Zé já está encostado no portal da porta de saída, limpando as unhas da mão com a ponta do facão. Sentindo-se encurralado, seu Manoel olha pro lado e percebe que no canto da parede tem um cabo de enxada, e se escorrega até o canto passa a mão no cabo de enxada, vem em direção ao seu Zé já com o tom de voz alterado.
          - Oia aqui seu Zé, devo num nego tô pagando a minha divida, sei que fiz besteira mais vamos parar por aqui, por que em mim, pro sinhô usar esse facão só se for pra me matar, num sabe.
         - Num é que basta o cabra ver que vai perder os documentos, que o cabra vira macho na hora. Não era melhor ter tido essa macheza toda pra me falar a verdade, mais tá bom eu já recebi mesmo a minha paga, mais que o sinhô guarde bem ai no seu quengo. Mentira num é coisa de homem não.
          - Tá certo seu Zé, mais mim da licença que eu preciso pegar a estrada que eu tenho muito que fazer ainda hoje.
         - É principalmente mudar de calça, não é mesmo seu Manoel.
          - Oia seu Zé num custava nada o sinhô me respeitar só um pouquinho, não é mesmo.
          - Ora desculpe seu Manoel, foi só uma brincadeira, mais falar nisso se senhor precisar de alguma coisa é só me procurar, não sabe.
         - Brigado seu Zé, mais prefiro morrer de fome que dever mais pro sujeito Como o sinhô, sem ofensa não sabe, até nunca mais se deus quiser...


- Fim -


   









Conteúdo do livro "Calabouço contos e outros":
Lançado em 2012 pela Editora: biblioteca24x7
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