sexta-feira, 1 de julho de 2022

Contos do Sábado na Usina: Olavo Bilac: O LUAR:



Insone, a moça Luísa Salta do leito, em camisa... Verão! verão de rachar!
Calor! calor que devora! Luísa vai dormir fora, Ao luar...
Ardente noite estrelada...
Entre as plantas, descansada, Põe-se Luísa a roncar.
Dorme toda a Natureza... E que esplendor! que beleza
No luar!
Olha-a o luar com ciúmes... E sabem vivos perfumes Do jardim e do pomar:
E ela, em camisa, formosa, Repousa, como uma rosa, Ao luar!
Mas alguém (um fantasma ou gente?) Chega-se prudentemente,
Para o seu sono espreitar...
— Alguém que, ardendo em desejo, Lhe põe nos lábios um beijo,
Ao luar...
Ela dorme... coitadinha! Nem o perigo adivinha, Pobre! a dormir e a sonhar...
Sente o beijo... mas parece Que é um beijo quente que desce
Do luar...
A lua (dizem-no os sábios...) Também tem boca, tem lábios, Lábios que sabem beijar.
Luísa dorme, em camisa... Como é formosa a Luísa Ao luar!
Vão depois correndo os meses, Entre risos e revezes...
— Começa a moça a engordar... Vai engordando, engordando...
E chora, amaldiçoando O luar...
Já todo o povo murmura E, na sua desventura, Ela só sabe chorar;
Chora e diz que não sabia Que tanto mal lhe faria
O luar...
O pai, que é homem sisudo, Homem que percebe tudo, Pergunta-lhe a praguejar:
" Que é que tu tens, rapariga?!" E ela: " Eu tenho na barriga...
O luar!"

Contos do Sábado na Usina: Camilo Castelo Branco:

 


V

Seis anos depois, em 1845, quando o Zeferino das Lamelas andava em roda-viva de Barrimau para Quadros, o Cerveira não tinha alterado sensivelmente os seus hábitos. Estava muito gordo, saúde de ferro – um desmentido triunfante aos foliculários que desacreditam as virtudes higiénicas, nutrientes do álcool. Os vomitórios quotidianos explicavam a depurada e sadia carnadura do tenente-coronel. Orçava pelos cinquenta anos, com um arrogante aspecto marcial, de intonsas barbas grisalhas – olhos rutilantes afogueados pela calcinação cerebral. As filhas não mostravam vestígios alguns de educação senhoril. Aquela Teresinha, que a Rosa de Carude denunciara, fugira para casar com o minorista das Quintãs. As outras duas, muito boçais e alavradeiradas. tinham amantes – uns engenheiros e empreiteiros do conde de Clarange Lucotte, que andava fazendo as estradas entre Braga, Porto e Guimarães. Ninguém decente as queria para casar porque, além do descrédito, o pai não dava dote; e, desde que a mãe fugira, convenceu-se de que não eram suas filhas. Heitor e Egas, dois galhardos moços, de jaqueta de alamares de prata, faixa vermelha, e sapatos de prateleira com ilhoses amarelos, tinham éguas travadas que entravam pelas feiras num arranque de rópia e pimponice, que ia tudo raso. De resto, valentes e bêbedos, possantes garanhões de femeaço reles, e muito esquivos a tratarem com senhoras – canhestros e bestiais. Roubavam o milho e o vinho; vendiam, nas matas distantes, ao desbarato, cortes de madeira e roças de mato; além disso tinham umas pequenas mesadas que o pai lhes dava. Ainda assim, a casa de Quadros não estava empenhada, prosperava, e era das primeiras do concelho. O luxo do fidalgo era a garrafeira. Mais nada. As filhas de Honorata, quando, entre si, falavam da mãe,
chamavam-lhe ; os rapazes, com um desapego desleixado que poderia fingir dignidade, nem se lembravam que tinham mãe. Quanto ao pai, esse, antes de jantar, era taciturno, casmurro, como quem se esforça por sacudir um pesadelo; e, de tarde, sumia-se para recomeçar as suas visões luminosas interceptadas pelas trevas momentâneas da razão. Não se sabe o que ele pensava da mulher.
Admitia pouca gente em sua casa e pouquíssima à sua presença. Além dos caseiros que lhe pagavam as grossas rendas de Vila do Conde, de Esmoriz e São Cosme do Vale, apenas recebia o pedreiro das lamelas, que lhe fizera os canastros e reconstruíra algumas paredes desabadas. Conhecia-lhe o pai, o alferes, desde a b atalha de Ponte Ferreira. Mandava-lhe botijas de genebra e maços de cigarros; – que bebesse, que se embebedasse, que os tempos não iam para outra coisa. E o alferes com vaidade de fino:
– A quem ele o vem dizer!
Ultimamente, falavam muito da chegada do Sr. D. Miguel – , dizia o Cerveira, pondo as mãos no peito e os olhos no tecto.
– Venha ele, e ver-me-ás, Zeferino, à frente dos meus dragões de Chaves! – Relampagueavam-lhe então as pupilas e fazia largos gestos marciais, com o braço trémulo como se brandisse a espada, rompendo um quadrado; montado na fantasia, arqueava as pernas, descaía o tronco sobre um imaginário cavalo empinado e bufava com trejeitos ferozes. Era de um ridículo lacrimável. O Zeferino dizia ao pai que às vezes lhe tinha medo quando ele fazia aquelas partes.
– O vinho do Porto é o Diabo! – dizia o alferes com uma grande experiência dessas façanhas incruentas –é o Diabo!
O Zeferino, na volta de Santa Marta de Bouro, contou-lhe o que soubera em casa do capitão-mor. O tenente-coronel quis imediatamente partir para Lanhoso; mas não tinha roupa decente para se apresentar a el-rei. As fardas estavam traçadas, podres, com um bafio de rodilhas no fundo de uma arca; dos galões restava um tecido esbranquiçado com laivos verdoengos; o casco das dragonas esfarinhou-se-lhe nas mãos roído pelos ratos. Não tinha casaca. Desde a convenção de Évora Monte, mandava fazer a Guimarães uns ferragoulos de mescla à laia de capote de soldado para o Inverno; de Verão, para equilibrar o calor artificial interno com o da atmosfera, andava em ceroulas e fazia leque da fralda. Por decência, fechava-se nos seus aposentos. Mandou chamar um alfaiate a Braga, o Cambraia da Rua do Souto, para se vestir à militar e à paisana.
Entretanto o Zeferino, um pouco desanimado, contou-lhe que o seu padrinho de Barrimau e mais o frade não acreditavam que el-rei estivesse em Calvos; que era uma comedela do Dr. Cândido de Anelhe e dos padres para apanharem cinquenta contos à D. Isabel Maria; que os generais do Sr. D. Miguel não sabiam de nada.
O Cerveira Lobo esfriou.
– Também me parece – dizia – que se o meu velho amigo D. Miguel aí estivesse, já me tinha mandado
chamar.
Mas, depois que o Bezerra de Bouro asseverou que beijara a mão de el-rei, o pedreiro e o tenente-coronel já
não podiam duvidar. Combinou o fidalgo com Zeferino que partisse ele para Lanhoso, e dissesse ao capitão-mor que o levasse a Calvos, e o abade que participasse a el-rei que estava ali um próprio com uma carta de Vasco da Cerveira Lobo, tenente-coronel de dragões.
– Assim que el-rei ouvir o meu nome, entras logo, imediatamente, num pronto. Depois, põe-te de joelhos. e entrega-lhe a carta, percebeste? Tu vais e trazes-me resposta. Por estes oito dias, o mais tardar, tenho cá o fardamento. No caso de Sua Majestade me mande ir, vou; se não, trato de chamar às armas cinco ou seis mil homens com que posso contar.
Zeferino, para evitar questões atrasadoras, não disse nada ao padrinho nem ao pai, receando as expansões usuais da carraspana.
O Cerveira dizia ao padre Rocha, capelão de D. Andresa:
– Ideias não me faltam; mas esqueci aquilo que se chama... sim, aquilo com que se escreve, quero dizer...
– Ortografia?
– E como diz, :padre Rocha, ortografia.
Era o exórdio para lhe dar parte que o seu amigo e rei D. Miguel estava no concelho da Póvoa de Lanhoso; que lhe queria escrever; mas que não se metia nisso; e acrescentava: – ele, o rei, aqui há treze anos sabia tanta ortografia como eu; mas agora dizem as gazetas que ele estudou coisas e loisas e tal. Pedia, portanto, ao padre Rocha que lhe escrevesse a carta para ele a copiar de seu vagar. E, pondo-lhe a mão no ombro: – E ouviu, padre? Vá pensando no que quer; uma boa abadia, Santiago de Antas, hem? serve-lhe? ou antes quereria ser cónego? Enfim, pense lá... Nós cá estamos às ordens.
O padre era a fina flor do clero realista. Sensato, inteligente e honesto. Primeiro, quando o Cerveira lhe revelou a meia voz a chegada do seu amigo e rei D. Miguel, imaginou-o no seu estado normal de bebedeira. Depois, reparando mais nas atitudes firmes e desempeno da língua, julgou-o sandeu, amolecimento cerebral pela alcoolização; por fim convenceu-se de que o pobre homem era enganado e escarnecido por alguns desfrutadores. O padre tinha muita compaixão do fidalgo, que a mulher e as filhas enlameavam torpemente. Ele avisara D. Andresa que, no dia em que o Sr. Dr. Adolfo entrasse nos Pombais pela porta principal, ele sairia pela porta travessa; e a fidalga levam tão a mal o proceder do irmão que pensava em fazer testamento para que os filhos dele e de Honorata
lhe não herdassem as quintas. Sabia-se nesse tempo que o Dr. Adolfo da Silveira era juiz de Direito nos Açores e tinha consigo uma formosa amante com três meninos.
A única ideia com que o Cerveira contribuiu para a redacção da carta foi que escrevesse: – Vossa Majestade precisa de dinheiro, diga o que quer, que eu até onde chegarem as minhas posses está tudo às ordens de el-rei meu senhor.
O padre Rocha não se esquivou a colaborar na endrómina, dizia ele a D. Andresa – porque .
A carta ia pomposa, a ponto de Cerveira pedir comentários, explicações. Que estava uma obra profunda – dizia o fidalgo, instruído enfim nas obscurezas do estilo.
E, tirando seis pintos do bolso do colete:
– Aí tem para o seu rapé, merece-os.
O capelão não aceitou; pediu que os aplicasse por sua intenção às necessidades do Sr. D. Miguel.
– É um realista às direitas, padre, um grande realista! – E, guardando os seis pintos, abraçou-o efusivamente e ofereceu-lhe um cálice de 1817.
– Eu desejaria muito ver a resposta de Sua Majestade – dizia o padre Rocha.
– Isso é logo que ela chegar, padre! pois então? Cá entre nós não há segredos; e, se o amigo quiser, no caso que el-rei me mande ir, vai comigo, e pode logo vir despachado. Pois então?
– Está dito! – e o padre com um regozijo muito cómico, e o cálice aromático debaixo do nariz: – Quem sabe se eu ainda serei arcebispo, ó Sr. Tenente-Coronel!
– Ora! como dois e dois são quatro! Há-de ser arcebispo, não tenha dúvida. Isto vai tudo mudar! – E carregava-lhe forte no 1817. – Arre! estou aqui metido há doze anos nestes montes, que me tem levado os diabos! Tenho 49 anos: mas este punho ainda pode com a espada! Há-de haver pancadaria de criar bicho! Olé! Eu dizia às vezes ao meu amigo D. Miguel quando o Sedvém, e o Mata e o Miguel Alcaide davam cacetada nos malhados que aquilo não era bonito. Pois agora, padre Rocha, hei-de dizer-lhe:
O Cerveira começava a gaguejar, a cambalear, e entornava o cálice. O padre despediu-se.

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo: O VELHO LIMA:


 A Fricinal Vassico 

O velho Lima, que era empregado - empregado antigo - numa da nossas repartições públicas, e morava no Engenho de Dentro, caiu de cama, seriamente enfermo, no dia 14 de novembro de 1889, isto é, na véspera da proclamação da República dos Estados Unidos do Brasil. 
O doente não considerou a moléstia coisa de cuidado, e tanto assim foi que não quis médico: bastaram- lhe alguns remédios caseiros, carinhosamente administrados por uma nédia mulata que há vinte e cinco anos lhe tratava com igual solicitude do amor e da cozinha. Entretanto, o velho Lima esteve de molho oito dias. 
O nosso homem tinha o hábito de não ler jornais, e, como em casa nada lhe dissessem (porque nada sabiam), ele ignorava completamente que o Império se transformara em República. 
No dia 23, restabelecido e pronto para outra comprou um bilhete, segundo o seu costume, e tomou lugar no trem, ao lado do comendador Vidal, que o recebeu com estas palavras: 
— Bom dia, cidadão. 
O velho Lima estranhou o cidadão, mas de si para si pensou que o comendador dissera aquilo como poderia ter dito ilustre, e não deu maior importância ao cumprimento, limitando-se a responder! 
— Bom dia, comendador. 
— Qual comendador! Chama-me Vidal! Já não há comendadores! 
— Ora essa! Então por que? 
— A República deu cabo de todas as comendas! Acabaram-se!... 
O velho Lima encarou o comendador, e calou-se, receoso de não ter compreendido a pilhéria. Passados alguns segundos, perguntou-lhe o outro: 
— Como vai você com o Aristides? 
— Que Aristides? 
— O Silveira Lobo. 
— Eu?... onde?... como?... 
— Que diabo! pois o Aristides não é o seu ministro? Você não é empregado de uma repartição do Ministério do Interior? 
Desta vez não ficou dentro do espírito do velho Lima a menor dúvida de que o comendador houvesse enlouquecido. 
— Que estará fazendo a estas horas o Pedro II? perguntou Vidal, passados alguns momentos. Sonetos, naturalmente, que é o do que mais se ocupava aquele tipo! 
— Ora vejam, refletiu o velho Lima, ora vejam o que é perder a razão: este homem quando estava nos eu juízo era tão monarquista, tão amigo do imperador. 
Entretanto, o velho Lima indignou-se, vendo que o subdelegado de sua freguesia, sentado no trem, defronte dele, aprovava com um sorriso a perfídia do comendador. 
— Uma autoridade policial! murmurou o velho Lima. E o comendador acrescentou: 
— Eu só quero ver como o ministro brasileiro recebe o Pedro II em Lisboa; ele deve chegar lá no princípio do mês. 
O velho Lima comovia-se: 
— Não diz coisa com coisa, coitado! 
— E a bandeira? Que diz você da bandeira? 
— Ah, sim... a bandeira... sim... repetiu o velho Lima para o não contrariar. 
— Como a prefere: com ou sem lema? 
— Sem lema. respondeu o bom homem num tom de profundo pesar; sem lema. 
— Também eu; não sei o que quer dizer bandeira com letreiro. 
Como o trem se demorasse um pouco mais numa das estações, o velho Lima voltou-se para o subdelegado, e disse-lhe: 
— Parece que vamos ficar aqui! está cada vez pior o serviço da Pedro II! 
— Qual Pedro II! bradou o comendador. Isto já não é de Pedro II! Ele que se contente com os cinco mil 
contos! 
— E vá para a casa do diabo! acrescentou o subdelegado. 
O velho Lima estava atônito. Tomou a resolução de calar-se. 
Chegado à praça da Aclamação. entrou num bonde e foi até a sua secretaria sem reparar em nada nem 
nada ouvir que o pusesse ao corrente do que se passara. 
Notou, entretanto, que um vândalo estava muito ocupado a arrancar as coroas imperiais que enfeitavam o gradil do parque da Aclamação... 
Ao entrar na secretaria, um servente preto e mal trajado não o cumprimentou com a costumeira humildade; limitou-se a dizer: 
— Cidadão! 
— Deram hoje para me chamar de cidadão! pensou o velho Lima. Ao subir, cruzou na escada com um conhecido de velha data. 
— Oh! você por aqui! Um revolucionário numa repartição do Estado!... O amigo cumprimentou-o cerimoniosamente. 
— Querem ver que já é alguém! refletiu o velho Lima. 
— Amanhã parto para a Paraíba, disse o sujeito cerimonioso, estendendo-lhe as pontas dos dedos; como sabe, vou exercer o cargo de chefe da polícia. Lá estou ao seu dispor. 
E saiu. 
— Logo vi! Mas que descarado! Um republicano exaltadíssimo!... 
Ao entrar na sua seção, o velho Lima reparou que haviam desaparecido os reposteiros. 
— Muito bem! disse consigo; foi uma boa medida suprimir os tais reposteiros pesados, agora que vamos entrar na estação calmosa. 
Sentou-se, e viu que tinham tirado da parede uma velha litografia representando D. Pedro de Alcântara. 
Como na ocasião passasse um contínuo, perguntou-lhe: 
— Por que tiraram da parede o retrato de sua majestade? O contínuo respondeu num tom lentamente desdenhoso: 
— Ora, cidadão, que fazia ali a figura do Pedro Banana? 
— Pedro Banana! repetiu raivoso o velho Lima. E, sentando-se, pensou com tristeza: 
— Não dou três anos para que isto seja república.

Contos do Sábado na Usina: Humberto de Campos: O Seringueiro II:


Aquela vida de penúria, em que se sucediam, às vezes, os dias em que o sustento de cada pessoa se limitava a um punhado de farinha e a um pequeno pedaço de rapadura, não podia, porém, perdurar sem protesto. Carolina tornava-se moça. Morena e pálida, opilada pela alimentação deficiente, possuía, contudo, os traços finos, delicados, do mameluco originário, em que predominavam, no entanto, as características da raça branca. Andava pelos quinze anos e não parecia ter mais de treze. Apenas, traindo a idade, os seios se lhe avolumavam opulentos, como uma árvore tenra que concentra toda a seiva destinada ao tronco no esplendor e na glória dos frutos. Os cabelos, cor de mel, apertados em trança descuidada, punham -lhe à mostra a testa bem feita, desenhando-lhe, ao mesmo tempo, a correção da cabeça pequena. Os olhos negros, pareciam mais negros na esclerótica acentuada pela anemia e os dentes mais alvos através dos lábios descorados pela miséria. Não fosse o vestidinho sujo e roto, de riscado grosseiro, e dir-se-ia uma dessas antigas imagens da Virgem, que tivesse permanecido sepultada durante séculos e perdido, ao contato da terra, a alvura fresca do marfim. O irmão, planta agreste do mesmo terreno pobre, desenvolvia-se com a mesma lentidão. Lia-se-lhe, entretanto, nos olhos pequenos, de luz concentrada, não a 
mesma resignação, mas o desejo incontido de romper as cadeias que o prendiam à terra madrasta, e partir pelo mundo em busca de pão, de dinheiro e de felicidade. 
E esse dia chegou. Tinha ele dezessete anos quando soube, no Graça, que se achava no Pacujá um paraoara, um cearense enriquecido no Amazonas, o qual estava contratando trabalhadores para o serviço de seringal. O primeiro pensamento do sertanejo foi correr à casa, pedir licença ao pai, e abraçar a irmã e a velha mãe entrevada. Refletiu, porém, rapidamente. Se fosse pedir o consentimento paterno certamente não o obteria. O velho sentia-se doente, acabado. E com a convicção da morte próxima, não admitiria, naturalmente, que faltasse à companheira, e à filha moça, o único arrimo com que elas poderiam contar. Seria melhor, pois, não tornar mais à casa, e partir sem o consolo, a dor e os riscos da despedida. No regresso, com o dinheiro economizado, redimiria, com a fartura no lar humilde, o pecado de ingratidão. 
Partiu, assim, a pé, viajando à noite, para o Pacujá. Apresentou-se ao paraoara e foi aceito. Três dias depois chegava a Camocim, onde o esperava o navio. Dois dias rolou no convés da proa, sacudido pelo balanço do mar. No terceiro surgiu-lhe no fundo de um estuário coalhado de navios uma cidade enorme, com os seus trapiches de mil pernas avançando sobre a água e as suas torres espetando o céu baixo, como chaminés de navios imensos, formados desde o porto pelas casas de três andares. Era Belém, o Pará. Outro navio pequeno, um "gaiola", achava-se, porém, à espera dele e dos companheiros. Uma barcaça levou-os, amontoados, como gado humano, de um para outro. E a viagem, agora por um rio, continuou. Do segundo dia em diante o "gaiola" começou a parar de quinze em quinze minutos, ou de hora em hora, atracando a pontes ligeiras, em que embarcava bolas de borracha, e desembarcava sacas e caixas de mercadorias. Dia e noite a mesma faina. Até que, uma noite, por volta das duas horas, todo o pessoal vindo com o paraoara teve ordem para preparar- se, a fim de desembarcar. Um apito na curva do rio e, em breve, aparecia uma pequena luz no alto de um barranco, dominando uma frágil ponte de tábuas. Sombras imprecisas moviam-se na sombra. 
- Salta, gente! gritou o agenciador. 
Sessenta e dois homens tristes, macerados pela viagem e pelos sofrimentos na terra do berço, desembarcaram, trazendo à mão, à cabeça, ou ao ombro, o seu saco, a sua trouxa, o seu baú. 
E João Lucrécio estava entre eles.

Contos do Sábado na Usina: Machado de Assis: FREI SIMÃO II:





As notas de frei Simão nada dizem do lugar do seu nascimento nem do nome de seus pais. O que se pôde saber dos seus princípios é que, tendo concluído os estudos preparatórios, não pôde seguir a carreira das letras, como desejava, e foi obrigado a entrar como guarda-livros na casa comercial de seu pai. 
Morava então em casa de seu pai uma prima de Simão, órfã de pai e mãe, que haviam por morte deixado ao pai de Simão o cuidado de a educarem e manterem. Parece que os cabedais deste deram para isto. Quanto ao pai da prima órfã, tendo sido rico, perdera tudo ao jogo e nos azares do comércio, ficando reduzido à última miséria. 
A órfã chamava-se Helena; era bela, meiga e extremamente boa. Simão, que se educara com ela, e juntamente vivia debaixo do mesmo teto, não pôde resistir às elevadas qualidades e à beleza de sua prima. Amaram-se. Em seus sonhos de futuro contavam ambos o casamento, coisa que parece o mais natural do mundo para corações amantes. 
Não tardou muito que os pais de Simão descobrissem o amor dos dois. Ora é preciso dizer, apesar de não haver declaração formal disto nos apontamentos do frade, é preciso dizer que os referidos pais eram de um egoísmo descomunal. Davam de boa vontade o pão da subsistência a Helena; mas lá casar o filho com a pobre órfã é que não podiam consentir. Tinham posto a mira em uma herdeira rica, e dispunham de si para si que o rapaz se casaria com ela. 
Uma tarde, como estivesse o rapaz a adiantar a escrituração do livro mestre, entrou no escritório o pai com ar grave e risonho ao mesmo tempo, e disse ao filho que largasse o trabalho e o ouvisse. O rapaz obedeceu. O pai falou assim: 
- Vais partir para a província de ***. Preciso mandar umas cartas ao meu correspondente Amaral, e 
,como sejam elas de grande importância, não quero confiá-las ao nosso desleixado correio. Queres ir no vapor ou preferes o nosso brigue? 
Esta pergunta era feita com grande tino. 
Obrigado a responder-lhe, o velho comerciante não dera lugar a que seu filho apresentasse objeções. 
O rapaz enfiou, abaixou os olhos e respondeu: 
- Vou onde meu pai quiser. 
O pai agradeceu mentalmente a submissão do filho, que lhe poupava o dinheiro da passagem no vapor, e foi muito contente dar parte à mulher de que o rapaz não fizera objeção alguma. 
Nessa noite os dois amantes tiveram ocasião de encontrar-se a sós na sala de jantar. 
Simão contou a Helena o que se passara. Choraram ambos algumas lágrimas furtivas, e ficaram na esperança de que a viagem fosse de um mês, quando muito. 
À mesa do chá, o pai de Simão conversou sobre a viagem do rapaz, que devia ser de poucos dias. Isto reanimou as esperanças dos dois amantes. O resto da noite passou-se em conselhos da parte do velho ao filho sobre a maneira de portar-se na casa do correspondente. Às dez horas, como de costume, todos se recolheram aos aposentos. 
Os dias passaram-se depressa. Finalmente raiou aquele em que devia partir o brigue. Helena saiu do seu quarto com os olhos vermelhos de chorar. Interrogada bruscamente pela tia, disse que era uma inflamação adquirida pelo muito que lera na noite anterior. A tia prescreveu-lhe abstenção da leitura e banhos de água de malvas. 
Quanto ao tio, tendo chamado Simão, entregou-lhe uma carta para o correspondente, e abraçou-o. A mala e um criado estavam prontos. A despedida foi triste. Os dois pais sempre choraram alguma coisa, a rapariga muito. 
Quanto a Simão, levava os olhos secos e ardentes. Era refratário às lágrimas; por isso mesmo padecia mais. 
O brigue partiu. Simão, enquanto pôde ver terra, não se retirou de cima; quando finalmente se fecharam de todo as paredes do cárcere que anda, na frase pitoresca de Ribeyrolles, Simão desceu ao seu camarote, triste e com o coração apertado. Havia como um pressentimento que lhe dizia interiormente ser impossível tornar a ver sua prima. Parecia que ia para um degredo. 
Chegando ao lugar do seu destino, procurou Simão o correspondente de seu pai e entregou-lhe a carta. O Sr. Amaral leu a carta, fitou o rapaz, e, depois de algum silêncio, disse-lhe, volvendo a carta: 
- Bem, agora é preciso esperar que eu cumpra esta ordem de seu pai. Entretanto venha morar para a minha casa. 
- Quando poderei voltar? perguntou Simão. 
- Em poucos dias, salvo se as coisas se complicarem. 
Este salvo, posto na boca de Amaral como incidente, era a oração principal. A carta do pai de Simão versava assim: 
"Meu caro Amaral, 
"Motivos ponderosos me obrigam a mandar meu filho desta cidade. Retenha-o por lá como puder. O pretexto da viagem é ter eu necessidade de ultimar alguns negócios com você, o que dirá ao pequeno, fazendo-lhe sempre crer que a demora é pouca ou nenhuma. Você, que teve na sua adolescência a triste idéia de engendrar romances, vá inventando circunstâncias e ocorrências imprevistas, de modo que o rapaz não me torne cá antes de segunda ordem. Sou, como sempre" ,etc.