sexta-feira, 25 de novembro de 2022

D'Araújo: Posse da NALAP: Em SALVADOR:



Posse no Nucleo Acadêmico de Letras e Artes de Portugal. (NALAP)
No Instituto Histórico e Geográfico da Bahia:
Em 17/11/2022 Salvador - BA. Brasil.

" É a poesia que me alimenta, tire-me a poesia, e pouco restará de mim mesmo"

 

Projeto Contos de Sábado Na Usina: João Simões Lopes Neto:Contrabandista:

Batia nos noventa anos o corpo magro mas sempre teso do Jango Jorge,
um que foi capitão duma maloca de contrabandistas que fez cancha nos
banhados do Ibirocaí. Esse gaúcho desabotinado levou a existência inteira a cruzar os campos da fronteira: à luz do sol, no desmaiado da lua, na escuridão das noites, na cerração das madrugadas...; ainda que chovesse reiúnos acolherados ou que ventasse como por alma de padre, nunca errou vau, nunca perdeu atalho, nunca desandou cruzada!...
Conhecia as querências, pelo faro: aqui era o cheiro do açouta- ouvido: aqui, cancha de graxains, lá os pastos que ensurdecem ou estalam no casco do cavalo; adiante, o chape-chape, noutro ponto, o areão. Até pelo gosto ele dizia a parada, porque sabia onde estavam águas salobres e águas leves, com sabor de barro ou sabendo a limo. Tinha vindo das guerras do outro tempo; foi um dos que peleou na batalha de Ituzaingo; foi do esquadrão do general José de Abreu e sempre que falava do Anjo da Vitória ainda tirava o chapéu, numa braçada larga, como se cumprimentasse alguém de muito respeito, numa distância muito longe.
Foi sempre um gaúcho quebralhão, e despilchado sempre, por ser
muito de mãos abertas. Se numa mesa de primeira ganhava uma ponchada de balastracas, reunia a gurizada da casa, fazia - pi! pi! pi! pi! - como pra galinhas e semeava as moedas, rindo-se do formigueiro que a miuçalha formava, catando as pratas no terreiro. Gostava de sentar um laçaço num cachorro, mas desses laçaços de apanhar a paleta à virilha, e puxado a valer, tanto, que o bicho que o tomava, ficando entupido de dor, e lombeando-se, depois de disparar um pouco é que gritava, num - caim! caim! caim! - de desespero. Outras vezes dava-lhe para armar uma jantarola, e sobre o fim do festo, quando já estava tudo meio entropigaitado, puxava por uma ponta da toalha e lá vinha, de tirão seco, toda a traquitanda dos pratos e copos e garrafas restos de comidas e caldas dos doces!... Depois garganteava a chuspa e largava as onças pras unhas do bolicheiro, que aproveitava o vento e le echaba cuentas degran capitãn...
Era um pagodista! Aqui há poucos anos - coitado - pousei no arranchamento dele. Casado ou doutro jeito, estava afamilhado. Não nos víamos desde muito tempo. A dona da casa era uma mulher mocetona ainda, bem parecida e mui prazenteira; de filhos, uns três matalotes já emplumados e uma mocinha - pro caso, uma moça -, que era o - santo-antoninho-onde-te-porei! - daquela gente toda.
E era mesmo uma formosura; e prendada, mui habilidosa; tinha andado na escola e sabia botar os vestidos esquisitos das cidadãs da vila.
E noiva, casadeira, já era. E deu o caso, que quando eu pousei, foi justo pelas vésperas do casamento; estavam esperando o noivo e o resto do enxoval dela. O noivo chegou no outro dia, grande alegria; começaram os aprontamentos, e como me convidaram com gosto, fiquei pro festo.
O Jango Jorge saiu na madrugada seguinte, para ir buscar o tal enxoval da filha. Aonde, não sei; parecia-me que aquilo devia ser feito em casa, à moda antiga, mas, como cada um manda no que é seu...
Fiquei verdeando, à espera, e fui dando um ajutório na matança dos leitões e no tiramento dos assados com couro. Nesta terra do Rio Grande sempre se contrabandeou, desde em antes
da tomada das Missões. Naqueles tempos o que se fazia era sem malícia, e mais por divertir e acoquinar as guardas do inimigo: uma partida de guascas montava a cavalo, entrava na Banda Oriental e arrebanhava uma ponta grande de eguariços, abanava o poncho e vinha a meia-rédea; apartava-se a potrada e largava-se o
resto; os de lá faziam conosco a mesma cousa; depois era com gados, que se tocava a trote e galope, abandonando os assoleanos. Isto se fazia por despique dos espanhóis e eles se pagavam desquitando-se do
mesmo jeito. Só se cuidava de negacear as guardas do Cerro Largo, em Santa Tecla,
no Haedo... O mais, era várzea! Depois veio a guerra das Missões; o governo começou a dar sesmarias
e uns quantíssimos pesados foram-se arranchando por essas campanhas desertas. E cada um tinha que ser um rei pequeno... e agüentar-se com as balas, as lunares e os chifarotes que tinha em casa!...
Foi o tempo do manda-quem-pode!... E foi o tempo que o gaúcho, o seu cavalo e o seu facão, sozinhos, conquistaram e defenderam estes pagos!...
Quem governava aqui o continente era um chefe que se chamava o capitão-general; ele dava as sesmarias mas não garantia o pelego dos sesmeiros... Vancê tome tenência e vá vendo como as cousas, por si mesmas, se explicam.
Naquela era, a pólvora era do el-rei nosso senhor e só por sua licença é que algum particular graúdo podia ter em casa um polvarim...
Também só na vila de Porto Alegre é que havia baralhos de jogar, que eram feitos só na fábrica do rei nosso senhor, e havia fiscal, sim, senhor, das cartas de jogar, e ninguém podia comprar senão dessas!
Por esses tempos antigos também o tal rei nosso senhor mandou botar pra fora os ourives da vila do Rio Grande e acabar com os lavrantes e prendistas dos outros lugares desta terra, só pra dar flux aos retnois...
Agora imagine vancê se a gente lá de dentro podia andar com tantas etiquetas e pedindo louvado pra se defender, pra se divertir e pra luxar!...
O tal rei nosso senhor não se enxergava, mesmo!... E logo com quem!... Com a gauchada!...
Vai então, os estancieiros iam em pessoa ou mandavam ao outro lado, nos espanhóis, buscar pólvora e balas, pras pederneiras, cartas de jogo e prendas de ouro pras mulheres e preparos de prata pros arreios...; e ninguém pagava dízimos dessas cousas.
Às vezes lá voava pelos ares um cargueiro, com cangalhas e tudo, numa explosão de pólvora; doutras uma partilha de milicianos saía de atravessado
e tomava conta de tudo, a couce d'arma: isto foi ensinando a escaramuçar com os golas-de-couro.
Nesse serviço foram-se aficionando alguns gaúchos: recebiam as encomendas e pra aproveitar a monção e não ir com os cargueiros debalde, levavam baeta, que vinha do reino, e fumo em corda, que vinha da Bahia, e algum porrão de canha. E faziam trocas, de elas por elas, quase. Os paisanos das duas terras brigavam, mas os mercadores sempre se entendiam... Isto veio mais ou menos assim até a guerra dos Farrapos; depois vieram as califórnias do Chico Pedro; depois a guerra do Rosas. Aí inundou-se a fronteira da província de espanhóis e gringos emigrados. A cousa então mudou de figura. A estrangeirada era mitrada, na regra, e foi quem ensinou a gente de cá a mergulhar e ficar de cabeça enxuta...; entrou nos homens a sedução de ganhar barato: bastava ser campeiro e destorcido. Depois, andava-se empandilhado, bem armado; podia-se às vezes dar um vareio nos milicos, ajustar contas com algum devedor de desaforos, aporrear algum subdelegado abelhudo... Não se lidava com papéis nem contas de cousas: era só levantar os
volumes, encangalhar, tocar e entregar!... Quanta gauchagem leviana aparecia, encostava-se.
Rompeu a guerra do Paraguai. O dinheiro do Brasil ficou muito caro: uma onça de ouro, que corria
por trinta e dois, chegou a valer quarenta e seis mil-réis!... Imagine o que estrangeirada bolou nas contas!... Começou-se a cargueirear de um tudo: panos, águas de cheiro, armas, minigâncias, remédios, o diabo a quatro!... Era só pedir por boca! Apareceram também os mascates de campanha, com baús encangalhados e canastras, que passavam pra lá vazios e voltavam cheios, desovar aqui... Polícia pouca, fronteira aberta, direitos de levar couro e cabelo e nas coletarias umas papeladas cheias de benzeduras e rabioscas... Ora... ora!... Passar bem, paisano!... A semente grelou e está a árvore ramalhuda, que vancê sabe, do contrabando de hoje. O Jango Jorge foi maioral nesses estropícios. Desde moço. Até a hora
da morte. Eu vi. Como disse, na madrugada véspera do casamento o Jango Jorge saiu para ir buscar o enxoval da filha. Passou o dia; passou a noite.
No outro dia, que era o do casamento, até de tarde, nada. Havia na casa uma gentama convidada; da vila, vizinhos, os padrinhos, autoridades, moçada. Havia de se dançar três dias!... Corria o amargo e
copinhos de licor de butiá. Roncavam cordeonas no fogão, violas na ramada, uma caixa de música
na sala. Quase ao entrar do sol a mesa estava posta, vergando ao peso dos pratos enfeitados. A dona da casa, por certo traquejada nessas bolandinas do marido, estava sossegada, ao menos ao parecer.
As vezes mandava um dos filhos ver se o pai aparecia, na volta da estrada, encoberta por uma restinga fechada de arvoredo. Surgiu dum quarto o noivo, todo no trinque, de colarinho duro e casaco
de rabo. Houve caçoadas, ditérios, elogios. Só faltava a noiva; mas essa não podia aparecer, por falta do seu vestido branco, dos seus sapatos brancos, do seu véu branco, das suas flores de laranjeira, que o pai fora buscar e ainda não trouxera.
As moças riam-se; as senhoras velhas cochichavam. Entardeceu. Nisto correu voz que a noiva estava chorando: fizemos uma algazarra e ela - tão boazinha! - veio à porta do quarto, bem penteada, ainda num
vestidinho de chita de andar em casa, e pôs-se a rir pra nós, pra mostrar que estava contente.
A rir, sim, rindo na boca, mas também a chorar lágrimas grandes, que rolavam devagar nos olhos pestanudos... E rindo e chorando estava, sem saber por quê... sem saber por que, rindo e chorando, quando alguém gritou do terreiro:
- Aí vem o Jango Jorge, com mais gente!... Foi um vozerio geral; a moça porém ficou, como estava, no quadro da porta, rindo e chorando, cada vez menos sem saber por quê... pois o pai estava chegando e o seu vestido branco, o seu véu, as suas flores de noiva...
Era já fusco-fusco. Pegaram a acender as luzes. E nesse mesmo tempo parava no terreiro a comitiva; mas num silêncio, tudo.
E o mesmo silêncio foi fechando todas as bocas e abrindo todos os olhos. Então vimos os da comitiva descerem de um cavalo o corpo entregue de um homem, ainda de pala enfiado... Ninguém perguntou nada, ninguém informou de nada; todos entenderam tudo...; que a festa estava acabada e a tristeza começada...
Levou-se o corpo pra sala da mesa, para o sofá enfeitado, que ia ser o trono dos noivos. Então um dos chegados disse:
- A guarda nos deu em cima... tomou os cargueiros... E mataram o capitão, porque ele avançou sozinho pra mula ponteira e suspendeu um pacote que vinha solto.., e ainda o amarrou no corpo... Aí foi que o crivaram
de balas... parado... Os ordinários!... Tivemos que brigar, pra tomar o corpo!
A sia-dona mãe da noiva levantou o balandrau do Jango Jorge e desamarrou o embrulho; abriu-o.
Era o vestido branco da filha, os sapatos brancos, o véu branco, as flores de laranjeira...
Tudo numa plastada de sangue... tudo manchado de vermelho, toda a alvura daquelas cousas bonitas como que bordada de cobrado, num padrão esquisito, de feitios estrambólicos... como flores de cardo solferim esmagadas a casco de bagual!... Então rompeu o choro na casa toda.


Contos do sábado na Usina: Camilo Castelo Branco:

 


IX


Naquele tempo (1845), no Porto, Rua de S. Sebastião, nº 1, morava o padre Luís de Sousa Couto3, paleógrado da Misericórdia. Representava sessenta e tantos anos, uma nutrição doentia, pesado, com os pés túrgidos da gota, cheios de nodosidades. Era jovial. Tinha um sorriso lhano, conversava morosamente pausado com admirável correcção; deixava-se interromper sem impaciências e não interrompia nunca os desatinos, maçadas, e até as tolices de quem quer que fosse. E ouvia muitas. Este padre obscurecido na sua paleografia que lhe dava oito tostões por dia, naquela asquerosa alfurja chamada Rua de S. Sebastião, com o aljube à esquerda e as imundícies da Pena Ventosa à direita, era o impulsor, a alma, o cérebro do gigante miguelista nas províncias do Norte. A Junta de Lisboa consultava-o. Ribeiro Saraiva enviava-lhe de Londres os elementos para os seus cálculos, pedia-lhe conselhos; e D. Miguel escrevia-lhe frequentemente. Dizia-se que o príncipe proscrito o elegera bispo ou patriarca de Lisboa – não me recordo qual era a mitra.
A sua presença venerável impunha sem artifício; uma grande bondade obsequiadora; não proferia palavra ofensiva dos seus adversários políticos; não aceitava donativos dos seus correligionários; vivia com severa parcimónia dos seus 800 réis havidos da Santa Casa, e morreria de penúria antes de pedir ao governo liberal a paga dos seus lavores ilustrados, correctíssimos de intérprete de velhos e quase indecifráveis códices.
Ao entardecer do dia 15 de Maio de 1845, o padre Luís de Sousa escrevia a sua correspondência para Londres. Anunciou-se o padre Bernardo Rocha, perguntando a hora menos ocupada para poder dar duas palavras ao reverendo dono da casa. Foi logo recebido. Que todas as horas eram livres para receber os amigos.
Padre Rocha principiou alegando que os seus sentimentos políticos eram bem conhecidos; que cumpria sempre as ordens que recebia do centro realista, e que facilmente daria o sossego da sua vida em sacrifício das suas convicções. Que se julgava com direito a fazer uma pergunta e a exigir que lhe respondessem a verdade.
– Se a pergunta for feita a mim, não poderei responder de outra maneira. Que quer saber, padre Rocha?
– Se o Sr. D. Miguel está em Portugal.
– Não, senhor. Há 15 dias estava em Itália. – E abrindo uma gaveta, extraiu de uma pasta muito ordinária de carneira surr1æada com atilhos um papel que mostrou. – Aqui está uma carta assinada pelo Sr. D. Miguel de Bragança, datada no 1º de Maio. Quanto a isto, está satisfeito. Que mais quer saber?
– Mais nada. Agora corre-me o dever de justificar a pergunta.
– Bem sei – preveniu o padre Luís. – Essa mesma pergunta me fez há dias o Bezerra de Barrimau, seu vizinho, e mais de um cavalheiro de Braga, o Barata, o Manuel de Magalhães, etc. Diz-se por lá que o Sr. D. Miguel está no Alto Minho, no concelho da Póvoa de Lanhoso. Propalam-no certos padres, não sei com que alcance. A estupidez tem intuitos impenetráveis. Não percebo para que fim espalham tão absurdo boato, se não é para alarmar o governo ou lograr incautos.
– É isso mesmo: lograr incautos – interrompeu o Rocha, e contou o que se estava passando com o tenente- coronel de Quadros, a carta do suposto D. Miguel e o empréstimo dos três contos, que o fidalgo tencionava levar no próximo sábado ao impostor.
– Seria bom evitar a perda ao tenente-coronel e o opróbrio ao partido legitimista – alvitrou o paleógrafo.
– Eu não o podia fazer sem a certeza de não praticar alguma imprudência. Por isso vim consultar o reverendo Luís de Sousa. e daqui irei para Braga entender-me com o governador civil.
3O autor teve relações muito saudosas com este venerando sacerdote, que em 1851 residia num antigo casarão da Rua de Santo António, que depois se transformou em casa de banhos. Por esse tempo, se congregavam ali os homens eminentes, por inteligência e haveres, do partido realista. Neste ano, padre Luís de Sousa passava os seus dias rodeado de pergaminhos, imobilizado numa poltrona, gemendo as dores da gota. Morreu muito pobre e muito desamparado.
– Faz bem. Não lho aconselharia, se pudéssemos dar remédio mais suave à doença desse miserável impostor, de quem eu sei mais algumas traficâncias. Constou-me há poucas horas, que umas beatas de Braga, abastadas, e de apelido Botelhas, tinham enviado uma importante quantia, por intermédio de um certo abade, a um
D. Miguel que está escondido em Portugal. Eu podia dar aviso desta ladroeira; mas tenho compaixão do abade: não sei se ele é ladrão ou tolo. A segunda hipótese é que o salva de ser processado. Portanto, amigo padre Rocha, faz um bom serviço à humanidade e ao partido, solicitando o castigo desse homem que conspurca o nome de el-rei e a honra do partido. Agora, visto que veio, vou dizer-lhe o que há. Saraiva trata de contrair um empréstimo e de negociar generais, que infelizmente precisamos. O Póvoas está decrépito e quase morto para a nossa fé desde Souto Redondo. As patentes superiores, pela maior parte, estão em pessoas que regulam pela inteligência do seu amigo tenente-coronel de Quadros. Há por aí outros que aprenderam a táctica da covardia desde o cerco do Porto. Mal podemos contar com eles, quando os vemos intervir nas facções dos liberais a fim de abrirem brecha na mesa do orçamento com as espadas postas em almoeda. No ano próximo futuro, o partido legitimista deve dar sinais de vida; se esses sinais hão-de ser como os do cadáver galvanizado que se convulsiona e recai na sua podridão, isso não sei. O Sr. D. Miguel tem de vir a Londres; e quando lhe constar, padre Rocha, que el-rei está em Inglaterra, prepare-se com a sua energia para nos dar o muito que esperamos da sua influência e do seu afecto à legitimidade. E adeus, que sai depois de amanhã de Lisboa o paquete: estou escrevendo ao nosso Ribeiro Saraiva.
O secretário-geral, governador civil interino de Braga na ausência do conselheiro João Elias – uma vitima burlesca de troça dos setembristas – era o Marques Murta, uma gigantesca actividade frenética num corpo mediano, fino, acepilhado aristocraticamente, com a bossa da perspicácia política muito saliente. De resto, serviçal, agradável, com uns requintes de delicadeza de bom tom.
O padre Rocha procurou-o no seu gabinete e contou-lhe os casos sucedidos e a necessidade de não deferir a prisão do impostor até além do dia seguinte, porque no sábado safa de Quadros o Cerveira Lobo com os três contos.
– Talvez fosse mais curial e exemplar prendê-lo depois, e entrar com os três contos no cofre do distrito, visto que o Cerveira os quer aplicar às necessidades da monarquia – opinou o secretário sorridente.
O padre não percebeu a ironia, e entendeu que de qualquer dos modos já não podia obviar que o seu amigo fosse roubado, ou em nome de D. Miguel I ou de D. Maria II.
– Vá descansado – emendou a autoridade com o seu sorriso inteligente, habitual. – Se o homem estiver em Calvos, amanhã a esta hora há-de estar na cadeia de Braga.
Pela meia-noite deste dia, saiu do quartel do Pópulo uma escolta de infantaria 8, que chegou a São Gens ao apontar da manhã. Era guiada por um prático sabedor das avenidas da residência abacial, um sócio convertido e aproveitado da quadrilha de ladrões que devastara o concelho da Póvoa em 34, e saboreava agora na policia secreta uma qualquer prebenda honestamente ganha. Ele dispôs a soldadesca à volta da casa, debaixo das janelas, rente ao muro do passal, e mostrou ao sargento a porta de carro. Rompia a aurora quando a passarada do arvoredo se esvoaçou piando, alvorotada pelo estrondo das coronhadas à porta principal, e uns berros formidáveis:
– Abra! abra! senão vai dentro a porta!
O abade saltou da cama, espreitou por uma fresta das portadas, e viu um cordão de soldados, a olharem para as janelas, e com as baionetas nas espingardas. Correu descalço para a sala contígua à alcova do hóspede, e encontrou-o no meio da quadra, em fralda, a enfiar as calças, quase às escuras, com a respiração ansiada.
– Que é? – regougou o homem numa estrangulação de susto, muito ofegante.
– Tropa, senhor, tropa! Fuja depressa, que eu vou esconder Vossa Majestade na adega antes que arrombem a porta.
As coronhadas e as intimações ameaçadoras repetiam-se. Uma algazarra de Inferno. Vozes roucas pediam
machados e ferros do monte. A Senhorinha, muito esganiçada, expectorava agudos ais na cozinha; não acertava a enfiar o saiote pelo direito. Os cães de Castro Laboreiro, muito ferozes, arremetiam às portas com a dentuça refilada. Porcos grunhiam dando bufidos espavoridos. A moça dos recados chamava a sua Mãe Santíssima e a alma da tia Jacinta do Reimundles, que estava inteira na igreja. Dois criados da lavoura, estranhos ao segredo do real hóspede, como estavam recrutados, cuidaram que a tropa os vinha prender; enterraram-se nos fenos do palheiro, prometendo esmolas de quartinho ao Bom Jesus do Monte e ao mártile São Trocatles, se os livrassem daquela. Entretanto, o outro, de chinelos de tapete, guiado pela mão do abade até à cozinha, passou daqui para a adega, que a criada abriu com muita subtileza. Havia lá dentro um recanto encoberto por duas pipas vazias, postas ao alto; pela convexidade das aduelas e entre as pipas e a parede, abria-se um vácuo onde cabia à vontade um homem. O abade muito aflito:
– Suba depressa Vossa Majestade que eu ajudo por cima das pipas e deixe-se escorregar para o lado de lá.
Cosa-se bem com a parede; se vierem revistar, não se bula, não se bula, senhor!
O homem ficou em cega escuridade. Quando resvalava com as costas pela parede, as teias de aranha despegavam-se dos vigamentos de que pendiam, enrodilhavam-se-lhe viscosas ao nariz e aos beiços. Ele sacudia-as, cuspinhava com nojo, queria acocorar-se, mas não cabia. Ouvia rojos de ratazanas por debaixo das pipas, e lá fora o rodar das portas que se escancaravam com estridor.
Em cima, o sargento e três soldados entraram e examinaram vagarosamente os quartos e recantos.
– Senhor Abade, ponha para aqui o rei – disse o sargento, um farsola, o Pílula do 8 – queremos o rei e algumas botijas de genebra. A garrafeira da casa real deve ser coisa muito rica! Venha primeiro o Sr. D. Miguel, que lhe queremos fazer uma saúde.
– O senhor está a mangar! – disse o abade afinando pelo tom da chalaça. – Genebra, se a querem, dou-lha; mas a respeito de rei, só lhe posso dar o de copas, que tenho ali um.
– Pois sim, traga o rei de copas, e não será mau que ponha em guarda também o ás do mesmo naipe.
– Dá-se-lhe já duas biqueiras neste padreca, ó meu sargento! – propôs o 24.
– Deixa ver se a coisa se arranja sem biqueiras. Ande lá, Senhor Abade, vamos à genebra, à adega. Mexa-se.
– A genebra está cá em cima – observou o abade um pouco enfiado.
– Mande-a ir para baixo, que é mais fresco. Mexa-se, mexa-se que temos pressa.
Abra a porta da adega.
– Sim, senhor, abro tudo o que vossemecê quiser –resoluto, com um ar irónico de condescendência, sem receio. – Os senhores têm coisas! Onde diabo procuram o Sr. D. Miguel! – E descia, pedindo a chave à Senhorinha.
A criada demorava-se a procurá-la, a fingir; e o sargento:
– Se se demora, ó santinha, vai dentro a porta! Ó 24, vai buscar um machado que eu ali vi na cozinha. Salta um machado!
– Não é preciso, camarada – acudiu o abade. – Aqui está a chave. Eu abro. Entrem, procurem à vontade. O sargento parou à porta a familiarizar-se com a escassa luz da adega:
– Ó padre! isto aqui é que é a sala do trono? ou é o subterrâneo da inquisição? Mande lá acender uma candeia, se não tem um archote.
– Ó mulher, traz dai uma placa acesa– disse o abade Marcos, contrafazendo o seu terror.
E o homem, lá dentro atrás das pipas, tiritava como Heliogábalo na latrina, seu derradeiro refúgio.
A Senhorinha entrou adiante com a placa, um luzeiro mortiço de sebo com morrão que parecia condensar mais as trevas da lôbrega caverna.
– Arranja aí um fachoqueiro de palha, ó 14! Que raio de placa você cá traz, mulher!
– É enquanto não pega bem a torcida – explicou a criada, caminhando atrás do padre para o lado oposto ao esconderijo. Com deito, a claridade difundia-se, mas tão devagar que ninguém diria a velocidade que os naturalistas marcam a um raio de luz. Os soldados batiam com os nós dos dedos nos tampos das pipas, que toavam o som abafado de cheias.
E o 14:
– Ó meu sargento, o tanso do abade casca-lhe rijo no verdasco! Estão cheiinhas! – E apontando para as duas pipas vazias do canto, o sargento perguntava se o vinho daquelas já lhe tinha caído na sacristia – e dava piparotes na barriga do padre.
O abade tinha uns sorrisos pálidos, comprometedores como uma denúncia. O 24 escutava e dizia que a modos que ouvira mexer coisa atrás das pipas.
– Há-de ser ratos – conjecturou o abade, trémulo, engasgado.
– Palpa com a baioneta por trás das pipas, ó 24! – disse o sargento.
Assim que o aço da baioneta raspou na parede, a Senhorinha começou a dar gritos, sentou-se a espernear, e perdeu os sentidos.
– Que diabo tem a velha?! – perguntou o Pílula. Dão-lhe estupores, bem?
– É flato, costuma-lhe a dar – elucidou o abade. O 24 voltara-se a ver a velha escabujar, e retirara a baioneta de trás idas pipas. O abade teve um momento de esperança, cuidando que o exame estava feito:
– Tem visto, Senhor Sargento? Aqui não há nada. Os senhores vieram enganados a minha casa. – E caminhou para a porta com a luz.
– Espere aí, seu padre! Anda-me com a baioneta, 24. Escarafuncha-me esses ratos.
O outro soldado entrou no mesmo exame; e, apenas as baionetas resvalaram por corpo que lhes abafava os tinidos metálicos das pontuadas, ouviu-se um grande estrupido de coisa que trepava pelas pipas. E nisto apareceu uma cabeça com enormes barbas sobre um dos tampos.
– Oh! – bradou o Pílula – muito bem aparecido nesta função, Sr. D. Miguel I!
Suba para cima desse trono e dê lá de cima um bocado de cavaco às tropas! Mas o melhor é descer cá para baixo, Real Senhor!
O 24, muito espantado, a olhar para a cabeça do homem:
– Parece o padre eterno, ó meu sargento!
– Com quem ele se parece é com o Remexido do Algarve – afirmava o 14.
– Desça daí que ninguém lhe faz mal, homem. Está preso à ordem do governador civil – concluiu o sargento com seriedade imponente.
– Este senhor?... não... – disse o abade com as mãos postas4.
São as textuais palavras e a atitude do padre, significativas da crença entranhada na realeza do preso, e da sua paixão naquele lance. Parece que intentava mover à piedade a escolta, increpando-a pela profanação de pôr mãos no rei legítimo. (Informação de Ferreira de Andrade.)
– Não seja asno! – volveu o sargento. Este homem não é D. Miguel. É um falante que o está aqui a comer a você e mais aos patolas tia sua laia. Vá-lhe buscar a roupa, senão ele entra na escolta em mangas de camisa.
– Dê licença que este senhor se vá vestir ao seu quarto – suplicou o abade.
– Sim, que se arranje com guardas à vista. – E acompanhou-os à saleta.
Quando envergava o casaco de pano piloto, o abade disse-lhe, com um gesto, que o dinheiro das Botelhas de Braga ia nas algibeiras do paletó.
O sargento perguntou que papelada era aquela que estava sobre a mesa. Leu a primeira folha e desatou a rir e a dizer ao barbaças:
– Olha que grande pândego você é! Você como se chama, ó seu coisa? – E leu alto:
Rol das mercês que Sua Majestade o Senhor D. Miguel I fez em Portugal e que se descrevem neste livro de apontamentos provisoriamente.
E na primeira página:
Marcos António de Faria Rebelo, abade de São Gens de Calvos, capelão-mor de el-rei e Dom Prior de Guimarães.
E perguntava ao abade:
– Este ratão deste Dom Prior é você, hem? Parabéns! Em seguida:
Torcato Munes Elias, visconde de São Gens, secretário privado de el-rei.
– Torcato Nunes! – recordava o Pílula. – Eu parece-me que conheço este diabo de o ver em Braga no Café da Açucena, na Cruz de Pedra. Nunes! um pelintra. Onde está o visconde, que lhe queda dar um cigarro? Enfim cá levo a papelada para Braga – e enrolava os papéis. – A gente precisa conhecer os titulares novos para os respeitar e acatar, amigo Dom Prior de Guimarães.
Quando a escolta se formou fora do portão e o preso entrou ao centro, com a fronte majestosa abatida e os braços cruzados, levantou-se na residência um choro como à saída de um defunto muito querido. Eram a cozinheira e a outra criada, num arrancar de soluços, enquanto o abade afogava os gemidos com o rosto apanhado nas mãos. O povo da aldeia, com um grande terror da tropa, espreitava de longe por entre as árvores e de trás das paredes. O Torcato Nunes Elias, acordado pela mulher, que recebera a nova da prisão, saltara da cama, e correra à residência, perguntando ao abade se el-rei tinha levado as peças das Botelhas de Braga.
Que sim, que levara; pudera não levar!
– Pois então, abade, empreste-me aí meia moeda, que eu vou disfarçado a Braga ver o que se passa. Estou sem vintém.
– Veja lá se o prendem, visconde – acautelou o abade.
– O meu dever é seguir a sorte de el-rei! Onde ele morrer, morro eu!

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo:

 



A MARCELINA III 

Minutos depois, Clorinda estava completamente nua. 
— A senhora é muito bem feita de corpo, disse-lhe, num tom adulatório, 
a costureira, enfiando-lhe pela cabeça a camisa de seda. 
— Acha? perguntou desdenhosamente a atriz. 
— Ah! eu também já fui bem feita de corpo, mas... 
não tive juízo: fiei-me de mais nos homens. Se quer aceitar um conselho, filha, preste mais atenção à sua arte do que a todos esses... gajos, que fazem das mulheres um objeto de luxo e nada mais. Só assim a senhora evitará o hospital e a miséria. 
— Ora esta! exclamou Clorinda. Quem é você, mulher, para me falar assim? 
— Eu sou..... a Marcelina.

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo:

 



A MARCELINA II 

No tempo em que se passou ação deste ligeiro conto, a nova conquista do doutor Pires de Aguiar era uma atriz portuguesa, a Clorinda, que viera de Lisboa apregoada pelas cem trombetas da réclame, e cuja estréia, num dos nossos teatrinhos de opereta, o público esperava ansiosamente. 
Uma hora antes de começar o espetáculo de estréia, entrou o advogado triunfantemente na caixa do teatro, levando pelo braço a sua nova amiga, elegantemente envolvida numa soberba capa de pelúcia. Ia fazer-lhe entrega do camarim, cujo arranjo confiara liberalmente ao bom gosto e à perícia dos mais hábeis tapeceiros e estofadores. 
Ela ficou encantadíssima, e agradeceu com beijos quentes e sonoros a dedicada solicitude do amante. 
Que belo tapete felpudo! que bonitos quadros! que papel bem escolhido! que delicioso divã! que magnífico espelho de três faces, onde o seu vulto airoso se refletia três vezes por inteiro! e que profusão de perfumarias! e que preciosos serviço de toilette... 
Nada faltava também sobre a mesinha da maquillage, intensamente iluminada por dois bicos de gás. 
O doutor Pires de Aguiar tinha longa prática desses arranjos; não podia esquecer-se de nenhum dos ingredientes necessários ao camarim de uma atriz que se respeita; o arsenal estava completo. 
Dali a nada ouviu-se um — Dá licença?, - e o diretor de cena entrou no camarim acompanhado por uma mulher já idosa, muito pálida, de aspecto doentio, pobremente trajada. 
— Dona Clorinda, aqui tem a sua costureira. 
A estrela não conteve um gesto de despeito. O diretor de cena compreendeu-o, e saiu imediatamente, para não entrar em explicações. 
— É doente? perguntou Clorinda à costureira. 
— Não, senhora. Tive uma doença grave, mas agora estou boa. Sai há dois dias da Santa Casa. Clorinda trocou um olhar com o advogado, e este disse-lhe, refestelando-se no divã: 
— Ma chère, il faut se contenter de cette habilleuse; nous ne sommes pas en Europe. 
Ele impingiu esta frase em francês, para que não a entendesse a costureira, mas a verdade é que Clorinda também não percebeu, o que aliás não a impediu de responder: — Oui. 
Despojada da mantilha e da bela capa de pelúcia, Clorinda sentou-se entre os dois bicos de gás, e começou a pintar-se, dizendo: — Vamos a isto! 
E dirigindo-se à costureira: 
— Sente-se. Por que está de pé? 
A pobre mulher sentou-se a medo, como receosa de macular a palhinha dourada da cadeira com o seu miserável vestido de chita. 
— Sabe que me disseram bonitas coisas a seu respeito? perguntou a atriz ao advogado, olhando-o pelo 
espelho. 
— Deveras? 
— Ao que me parece, você tem sido um gajo! 
O doutor Pires de Aguiar teve um sorriso inexprimível. Aquele gajo entrou-lhe pela vaidade a dentro com uma gran-cruz. 
— Com que então, a sua especialidade são as atrizes? 
— Sou doido pelo teatro. 
— E há quanto tempo dura essa doidice? 
— Há muito tempo. Estou velho, bem vê. Orço pelos quarenta. 
— Ninguém lhe dará mais de trinta e cinco. 
— São os seus olhos. 
— Qual foi a sua primeira paixão no teatro? 
— Ah! isso... 
O advogado levantou o braço e estalou os dedos. 
— ... isso é pré histórico, perde-se na noite dos tempos. 
— Como se chamava esta colega? 
— Chamava-se Marcelina. 
— Que fim levou? 
— Sei lá! provavelmente morreu. Nunca mais ouvi falar dela. Há mulheres que desaparecem como os passarinhos que não foram mortos a tiro nem engaiolados: ninguém lhes vê o cadáver. 
— Gostou dela? 
— Foi talvez a paixão mais séria da minha vida. 
— Nunca mais a procurou? 
— Para que? 
— Tinha talento? 
— Talento? Não. Tinha habilidade. E depois de uma pausa: 
— Tinha habilidade e era muito boa rapariga. 
— Brasileira? 
— Sim, Representava ingênuas em dramalhões de capa e espada, ali, no São Pedro de Alcântara. Um dia - eu já a tinha deixado - um dia patearam-na por motivos que nada tinham que ver com a arte dramática; ela desgostou-se; andou mourejando pelas províncias, e afinal desapareceu. Requiescat in pace! 
Entrou o cabeleireiro. Enquanto Clorinda lhe confiou a cabeça, o doutor Pires de Aguiar divagou longamente sobre os méritos de Marcelina; depois falou de outras atrizes, desfiando o interminável rosário das suas mancebias. 
Clorinda, a costureira e o cabeleireiro ouviam sem dizer palavra. 
Terminado o serviço do cabeleireiro, que logo se retirou, Clorinda ergueu-se: 
— Agora, meu doutor, há de me dar licença, sim? Vou vestir-me. 
— Até logo, disse o advogado. O seu penteado ficou esplêndido! Vou aplaudi-la. Bonne chance! 
Deu-lhe um beijo - na testa para não desmanchar a pintura, - e saiu do camarim, cuja porta a costureira discretamente fechou.

Contos do Sábado na Usina: A Mão e a Luva Machado de Assis:

 
 
I - O FIM DA CARTA. 
— Mas que pretendes fazer agora? 
— Morrer. 
— Morrer? Que idéia! Deixa-te disso, Estêvão. Não se morre por tão pouco... 
— Morre-se. Quem não padece estas dores não as pode avaliar. O golpe foi profundo, e o meu coração é pusilânime; por mais aborrecível que pareça a idéia da morte, pior, muito pior do que ela, é a de viver. Ah! 
tu não sabes o que isto é? 
— Sei: um namoro gorado... 
— Luís! 
— ... E se em cada caso de namoro gorado morresse um homem, tinha já diminuído muito o gênero humano, e Malthus perderia o latim. 
Anda, sobe. 
Estêvão meteu a mão nos cabelos com um gesto de angústia; Luís Alves sacudiu a cabeça e sorriu. Achavam-se os dois no corredor da casa de Luís Alves, à rua da Constituição, — que então se chamava dos Ciganos; — então, isto é, em 1853, uma bagatela de vinte anos que lá vão, levando talvez consigo as ilusões do leitor, e deixando-lhe em troca (usurários!) uma triste, crua e desconsolada experiência. 
Eram nove horas da noite; Luís Alves recolhia-se para casa, justamente na ocasião em que Estêvão o ia procurar; encontraram-se à porta. 
Ali mesmo lhe confiou Estêvão tudo o que havia, e que o leitor saberá daqui a pouco, caso não aborreça estas historias de amor, velhas como Adão, e eternas como o céu. Os dois amigos demoraram-se ainda algum tempo no corredor, um a insistir com o outro para que subisse, o outro a teimar que queria ir morrer, tão tenazes ambos, que não haveria meio de os vencer, se a Luís não ocorresse uma transação. 
— Pois sim, disse ele, convenho em que deves morrer, mas há de ser amanhã. Cede da tua parte, e vem passar a noite comigo. Nestas últimas horas que tens de viver na terra dar-me-ás uma lição de amor, que eu te pagarei com outra de filosofia. 
Dizendo isto, Luís Alves travou do braço de Estêvão, que não resistiu dessa vez, ou porque a idéia da morte não se lhe houvesse entranhado deveras no cérebro, ou porque cedesse ao doloroso gosto de falar da mulher amada, ou, o que é mais provável, por esses dois motivos juntos. 
Vamos nós com eles, escada acima, até a sala de visitas, onde Luís foi beijar a mão de sua mãe. 
— Mamãe, disse ele, há de fazer-me o favor de mandar o chá ao meu quarto; o Estêvão passa a noite comigo. 
Estêvão murmurou algumas palavras, a que tentou dar um ar de gracejo, mas que eram fúnebres como um cipreste. Luís viu-lhe então, à luz das estearinas, alguma vermelhidão nos olhos, e adivinhou, — não era difícil, — que houvesse chorado. Pobre rapaz! suspirou ele mentalmente. Dali foram os dois para o quarto, que era uma vasta sala, com três camas, cadeiras de todos os feitios, duas estantes com livros e uma secretária, — vindo a ser ao mesmo tempo, alcova e gabinete de estudo. 
O chá subiu daí a pouco. Estêvão, a muito rogo do hóspede, bebeu dois goles; acendeu um cigarro e entrou a passear ao longo do aposento, enquanto Luís Alves, preferindo um charuto e um sofá, acendeu o primeiro e estirou-se no segundo, cruzando beatificamente as mãos sobre o 
ventre e contemplando o bico das chinelas, com aquela placidez de um homem a quem se não gorou nenhum namoro. O silêncio não era completo; ouviase o rodar de carros que passavam fora; no aposento, porém, o único rumor era dos botins de Estêvão na palhinha do chão. 
Cursavam estes dois moços a academia de S. Paulo, estando Luís Alves no quarto ano e Estêvão no terceiro. Conheceram-se na academia, e ficaram amigos íntimos, tanto quanto podiam sê-lo dois espíritos diferentes, ou talvez por isso mesmo que o eram. Estêvão, dotado de extrema sensibilidade, e não menor fraqueza de ânimo, afetuoso e bom, não daquela bondade varonil, que é apanágio de uma alma forte, mas dessa outra bondade mole e de cera, que vai à mercê de todas as circunstâncias, tinha, além de tudo isso, o infortúnio de trazer ainda sobre o nariz os óculos cor-de-rosa de suas virginais ilusões. Luís Alves via bem com os olhos da cara. 
Não era mau rapaz, mas tinha o seu grão de egoísmo, e se não era incapaz de afeições, sabia regê-las, moderá-las, e sobretudo guiá-las ao seu próprio interesse. Entre estes dois homens travara-se amizade íntima, nascida para um na simpatia, para outro no costume. Eram eles os naturais confidentes um do outro, com a diferença que Luís Alves dava menos do que recebia, e, ainda assim, nem tudo o que dava exprimia grande confiança. 
Estêvão referira ao amigo, desde tempos, toda a história do amor, agora malogrado, suas esperanças, desalentos e glórias, e, enfim, o inesperado desfecho. O pobre rapaz, que folheava o capítulo mais delicioso do romance — no sentir dele — caiu de toda a altura das ilusões na mais dura, prosaica e miserável realidade. 
A namorada de Estêvão, — é tempo de dizer alguma coisa dela, — era uma moça de dezessete anos, e, por ora, simples aluna-professora no colégio de uma tia do nosso estudante, à rua dos Inválidos. Estêvão tinha-a visto, pela primeira vez, seis meses antes, e desde logo sentiuse preso por ela, "até à morte", disse ele ao amigo, referindo-lhe o encontro, o que o fez sorrir de tão estirado prazo. Qualquer que ele fosse, porém, o prazo fatal daquele cativeiro, a verdade é que Estêvão no mesmo ponto em que a viu logo a amou, como se ama pela primeira vez na vida — amor um pouco estouvado e cego, mas sincero e puro. Amava-o ela? Estêvão dizia que sim, e devia crê-lo; alguns olhares ternos, meia dúzia de apertos de mão significativos, embora a largos intervalos, davam a entender que o coração de Guiomar — chamava-se Guiomar — não era surdo à paixão do acadêmico. Mas, fora disso, nada mais, ou pouco mais. 
O pouco mais foi uma flor, não colhida do pé em toda a original frescura, mas já murcha e sem cheiro, e não dada, senão pedida. 
— Faz-me um favor? disse um dia Estêvão apontando para a flor que ela trazia nos cabelos; esta flor está murcha, e, naturalmente, vai deitá-la fora ao despentear-se; eu desejava que ma desse. 
Guiomar, sorrindo, tirou a flor do cabelo, e deu-lha; Estêvão recebeu-a com igual contentamento ao que teria se lhe antecipassem o seu quinhão do céu. Além da flor, e para suprir as cartas, que não havia, nada mais obtivera Estêvão durante aqueles seis compridos meses, a não serem os tais olhares, que afinal são olhares, e vão-se com os olhos donde vieram. Era aquilo amor, capricho, passatempo ou que outra coisa era? 
Naquela tarde, a tarde fatal, estando ambos a sós, o que era raro e difícil, disse-lhe ele que em breve ia voltar para S. Paulo, levando consigo a imagem dela, e pedindo-lhe em câmbio, que uma vez ao menos lhe escrevesse. Guiomar franziu a testa e fitou nele o seu magnífico par de olhos castanhos, com tanta irritação e dignidade, que o pobre rapaz ficou atônito e perplexo. Imagina-se a angústia dele diante do silêncio que reinou entre ambos por alguns segundos; o que se não imagina é a dor que o prostrou, — a dor e o espanto, — quando ela, erguendo-se da cadeira em que estava, lhe respondeu, saindo: 
— Esqueça-se disso. 
— Pois quanto a mim, — disse Luís Alves ouvindo pela terceira vez a narração de tão cru desenlace; quanto a mim, obedecia-lhe pontualmente; esquecia-me disso e ia curar-me em cima dos compêndios; Direito Romano e Filosofia, não conheço remédio melhor para tais achaques. 
Estêvão não ouvia as palavras do amigo; estava então assentado na cama, com os cotovelos fincados nas pernas, e a cabeça metida nas mãos, parecendo que chorava. A principio chorou em silêncio; mas não tardou que Luís Alves o visse deitar-se na cama, estorcer-se convulsivamente, a soluçar, a abafar quanto podia os gritos que lhe saíam do peito, a puxar os cabelos, a pedir a morte, tudo entremeado com o nome de Guiomar, tão d'alma tudo aquilo, tão lastimosamente natural, que enfim o comoveu, e não houve remédio senão dizer-lhe algumas palavras de conforto. A consolação veio a tempo; a dor, chegada ao paroxismo, declinou pouco a pouco, e as lágrimas estancaram, ao menos por algum tempo. 
— Sei que tudo isto há de parecer-te ridículo, disse Estêvão sentandose na cama; mas que queres tu? Eu vivia na persuasão de que era amado, e era-o talvez. Por isso mesmo não entendo o que se passou hoje, Ou o que eu supunha ser amor, não passava talvez de passatempo ou zombaria... 
— Talvez, talvez, interrompeu Luís Alves, compreendendo que o melhor meio de o curar do amor era meter-lhe em brios o amor-próprio. 
Estêvão ficou alguns instantes pensativo. 
— Não, não é possível, contestou ele. Tu não a conheces. É uma grave e nobre criatura, incapaz de conceber um sentimento desses, que seria vulgar ou cruel. 
— As mulheres... 
— Já pensei se aquilo de hoje não seria uma maneira de experimentar-me, de ver até que ponto eu lhe queria... Escusas de rir-te, Luís; eu nada afirmo; digo que pode ser. Não admira que ela fizesse esse cálculo, - um bom cálculo, nesse caso, todo filho do coração... 
A imaginação de Estêvão desceu por este declívio de floridas conjecturas, e Luís Alves entendeu que era de bom aviso não espantar-lhe os cavalos. 
Ela foi, foi, foi por ali abaixo, rédea frouxa e riso nos lábios. Boa viagem! 
exclamou mentalmente o colega voltando a estirar-se no sofá. A viagem não foi longa, mas produziu efeito salutar no ânimo do namorado, adoçando-lhe as penas, circunstância que Luís Alves aproveitou para lhe falar de cem coisas alheias ao coração e diverti-lo do pensamento que o absorvia. Conseguiu o seu intento durante meia hora, e conseguiu mais, porque fez com que o colega risse, a princípio de um riso amargo e dúbio, depois de um riso jovial e franco incompatível com intuitos trágicos. Mas, ai triste! a dor dele era uma espécie de tosse moral, que aplacava e reaparecia, intensa às vezes, às vezes mais fraca, mas sempre infalível. O rapaz acertara de abrir uma página de Werther, leu meia dúzia de linhas, e o acesso voltou mais forte que nunca. 
Luís Alves acudiu-lhe com as pastilhas da consolação; o acesso passou; nova palestra, novo riso, novo desespero, e assim se foram escoando as horas da noite, que o relógio da sala de jantar batia seca e regularmente, como a lembrar aos dois amigos que as nossas paixões não aceleram nem moderam o passo do tempo. 
A aurora para os dois acadêmicos coincidiu com as badaladas do meio-dia, o que não admira, pois só adormeceram quando ela começava a apagar as estrelas. Estêvão passou a noite, — a manhã, quero dizer, — muito sossegada e livre de sonhos maus. Quando abriu os olhos estranhou o aposento e os objetos que o rodeavam. Logo que os reconheceu, despertou-se-lhe, com a memória, o coração, onde já não havia aquela dor aguda da véspera. Os sucessos, embora recentes, começavam a envolver-se na sombra crepuscular do passado. 
A natureza tem suas leis imperiosas; e o homem, ser complexo, vive não só do que ama, mas também (força é dizê-lo) do que come. Sirva isto de escusa ao nosso estudante, que almoçou nesse dia, como nos anteriores, bastando dizer em seu abono que, se o não fez com lágrimas, também o não fez alegre. Mas o certo é que a tempestade serenara; o que havia era uma ressaca, ainda forte, mas que diminuiria com o tempo. Luís Alves evitou falar-lhe de Guiomar; Estêvão foi o primeiro a recordar-se dela. 
— Dá tempo ao tempo, respondeu Luís Alves, e ainda te hás de rir dos teus planos de ontem. Sobretudo, agradece ao destino o haveres escapado tão depressa. E queres um conselho? 
— Dize. 
— O amor é uma carta, mais ou menos longa, escrita em papel velino, corte dourado, muito cheiroso e catita; carta de parabéns quando se lê, carta de pêsames quando se acabou de ler. Tu que chegaste ao fim, põe a epístola no fundo da gaveta, e não te lembres de ir ver se ela tem um post-scriptum... 
Estêvão aplaudiu a metáfora com um sorriso de bom agouro. 
Duas vezes viu ele a formosa Guiomar, antes de seguir para S. Paulo. 
Da primeira sentiu-se ainda abalado, porque a ferida não cicatrizara de todo; da segunda, pôde encará-la sem perturbação. Era melhor, — mais romântico pelo menos, que eu o pusesse a caminho da academia, com o desespero no coração, lavado em lágrimas, ou a bebê-las em silêncio, como lhe pedia a sua dignidade de homem. Mas que lhe hei de eu fazer? Ele foi daqui 
com os olhos enxutos, distraindo-se dos tédios da viagem com alguma pilhéria de rapaz, — rapaz outra vez, como dantes.