sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Contos do Sábado na Usina: Humberto de Campos: A LUZ DOS MORTOS:


Madrugada ainda, com os pássaros adormecidos nos ramos, a escolta abandonou a vila e pôs-se a caminho. Eram quinze homens, apenas, sob o comando de um sargento, conhecedores, todos, dos menores recantos daquelas paragens. Antigos sertanejos, arrastados um a um para a cidade pelo desejo de vestir farda, voltavam agora reunidos aos campos natais, com a missão de bater, no tabuleiro das campinas ou na garganta das serras, um forte agrupamento de bandoleiros. 
Carabina ao ombro, fardados à vontade - uns de calça vermelha e camisa de riscado, outros de blusa de policial e calça arregaçada até o joelho, e todos, ou quase todos, descalços, - a escolta dirigiu-se, sem ordem de marcha, para a várzea das Pedras, onde os bandidos haviam aparecido na véspera. Das matas quietas subia, e espalhava- se, um cheiro forte de folhas machucadas, natureza virgem se martirizasse em um grande sonho voluptuoso. As sarças rasteiras, abrindo os cálices roxos em que a Noite se embebedara de orvalho, acordavam, úmidas, emergindo do labirinto das próprias ramas, polvilhadas de terra e de sereno. 
Manuel Albino, o sargento que comandava a pequena força policial, era um desses tipos de sertanejo habituado às longas peregrinações pelo interior. Estatura mediana, cobreado pelo sol, pela vida ao ar livre, orçava pelos quarenta anos. O bigode, alourado e sem trato, fechava-lhe a boca forte, como se quisesse opor às palavras uma cortina de silêncio. Não se distinguia dos companheiros senão pela fita do braço, e naquelas marchas penosas, tão cheias de perigos a cada passo, era menos um chefe que um camarada. 
Ao amanhecer, os soldados já haviam andado três léguas. Das margens da estrada arenosa voavam, rápidos, trilando, pequenos pássaros assustados. Aqui e ali, na mata ressuscitada, uma árvore morta sonhava com os encantos da vida, oferecendo ao sol, em cima, no espetro do último galho, o óbolo de uma flor humilde, cujo cipó se lhe agarrara ao tronco para ir dar, no alto, ao astro namorado, a cheirosa esmola daquele beijo. Insetos trilavam nas touceiras, e em tal quantidade, que, invisíveis, eram como se todas as folhas fossem de metal, e se friccionassem numa grande carícia dolorosa. 
Em meio da várzea enorme, onde o dorso das pedras alvas, semeadas na campina verde, recordavam rebanhos pastando, os soldados acamparam. 
- É preciso olho vivo, - aconselhou o sargento. - Eles devem andar de perto, e é bom que não nos apanhem de surpresa. 
- Quer que eu vá reconhecer o terreno? - ofereceu-se uma das praças, o João Simeão, caboclo baixo e entroncado, que havia feito estágio no Exército e gostava de empregar, em serviço, os termos de técnica militar. 
Meia hora depois, escondendo- se de pedra em pedra, arrastando-se, coleando, o caboclo regressava. Os bandoleiros, em número superior a vinte, haviam dormido na Pedra Grande, na outra extremidade da várzea, de onde, àquela hora, se preparavam para a retirada. Partindo imediatamente e levando boa marcha, a tropa ainda os apanharia em campo aberto, antes que penetrassem na caatinga, escondendo-se nas moitas, ou alcançassem o Serrote Preto, de onde ninguém os desalojaria. 
Ao meio-dia, quando o sol, no meio do céu, devorava com os seus dentes dourados a sombra dos troncos, dos penedos e dos homens, a campina foi alarmada, de súbito, pelos primeiros tiros da escolta. Predispostos à morte, a lutar até o último alento de vida, os cangaceiros puseram-se em defesa, entrincheirando-se nas pedras. A tropa fez o mesmo, e começou a 
fuzilaria intensa, viva, desesperada, em que as balas dos soldados se cruzavam, rápidas, zunindo, com as cargas de chumbo dos cangaceiros. 
A luta, em tais circunstâncias, dependia mais de Deus do que da habilidade dos homens. Cada pedra plantada no campo, era o escudo gigantesco de um combatente. E as balas, e os punhados de chumbo, achatavam-se estalando, nesses escudos, arrancando-lhes estilhaços ou fazendo voar, leves, pequenas nuvens de poeira. 
O grupo dos bandoleiros era o de João Severino, antigo feitor da fazenda Água-Viva, nas fronteiras da Paraíba com o Ceará. Menino ainda, vivia João Severino com pai, no sítio dos Cajueiros, herança dos seus antepassados, quando o coronel Cazuza Rocha, fazendeiro vizinho, propôs a compra da pequena propriedade. O pai recusara o negócio, mas, como o coronel era poderoso, tomou-lhe a casa, a terra, a plantação e o gado miúdo que lá existia. Levado para a cadeia, o agricultor esbulhado morreu. A mulher morreu de mágoa, pouco depois. Com o ódio rugindo no coração, João Severino fizera-se homem, na Água-Viva. E era, já, feitor, homem de confiança da fazenda, quando uma noite, montou a cavalo e desapareceu. No dia seguinte, pela manhã, era o coronel Cazuza encontrado morto, no alpendre, tendo no peito, enterrada em toda extensão da lâmina, uma faca de ponta, cujo cabo, de prata lavrada, se viam as iniciais do antigo menino dos Cajueiros. Perseguido pelas autoridades, o rapaz reuniu uma dezena de homens decididos, depois outra, e ali estava, agora, no seu oitavo encontro com a polícia, depois de haver saqueado, durante dois anos e meio, várias coletorias do interior. 
Escolhido pouco a pouco, O pessoal do bandoleiro era, todo, de primeira ordem. Dos vinte e dois homens que o compunham, nenhum deles, ali, pensava na morte. Atacar, matar, a tiro ou a faca, era a sua profissão natural. Não se tivesse a escolta abrigado nas pedras, e não teriam perdido uma bala de rifle ou um caroço de chumbo grosso. Descalços, ceroula amarrada na perna, camisa de algodão ordinário por cima da ceroula, chapéu de couro, ou de carnaúba, com barbicacho, era esse o fardamento da maioria. Batiam-se como leões, e morriam como cães. Para eles, só havia uma coisa vergonhosa no mundo: morrer em casa, na rede, sem deixar uma nódoa de sangue no chão. E era disputando um fim heróico, buscando, em uma bala, a morte gloriosa e invejada, que ali estavam, o joelho direito na terra, a cartucheira ou o polvarilho a tiracolo, a arma à altura do rosto, à espera de um ponto vulnerável do inimigo para atingi-lo na pontaria certeira. 
Do lado oposto, não era menos vivo o interesse pela vitória. De rojo, com o queixo no chão e a carabina à altura do solo, o sargento disparava seguidamente contra os bandoleiros, que se dissimulavam a uns cinqüenta metros, por trás do seu grupo de rochas. E disparava, atento, o dedo no gatilho, quando uma bala, dirigida transversalmente, o apanhou de lado, varando-lhe o pulmão. Ferido de morte, a arma tombou-lhe das mãos com a última bala na agulha. Uma palidez repentina cobriu-lhe o rosto, acompanhada de estremecimentos leves, por todo o corpo. 
Do esconderijo próximo, a dez metros, um soldado humilde, o Marciano, que defendia heroicamente o seu rochedo, assistia, aflito, ao epílogo daquela bravura. O seu coração de sertanejo, encostado ao da terra, palpitava contra ela. Seria possível que, a dez passos de distância, o seu companheiro, o seu comandante, o seu chefe, morresse naquela agonia, 
como um bicho, sem que alguém lhe pusesse na mão a luz de uma vela com que descobrisse, entre as trevas eternas, o misterioso caminho do céu? A arma esquecida na mão, olhos ansiosos, procurava em torno, na nudez gloriosa das coisas, solução para aquele desespero da sua alma. E, em torno, era a várzea deserta, verde, em que pedras, agora, lhe pareciam sepulcros abandonados. Perto, longe, adiante, em toda extensão da campina, apenas os cardos, de folhas chatas, lhe estendiam as mãos cobertas de espinhos. E, na rocha, por trás da qual se abrigava, o chumbo e as balas do inimigo, assobiando, zunindo, estalando. 
De repente, esquecendo o inimigo, a vi da, tudo, para lembrar-se unicamente da salvação de uma alma, o soldado cingiu-se ainda mais estreitamente à terra, e começou a vencer, coleando, rasgando o peito no pedregulho, a cabeça encostada no solo, o espaço que o separava da outra pedra. Descoberto pelo inimigo, a fuzilaria aumentou na sua direção. Era, porém, já, tarde, pois que o espaço havia sido vencido. 
A boca ensopada de sangue, o sargento agonizava. Marciano olhou em roda, e, diante da majestade da natureza piedosa, teve um gesto que redimia a miséria dos homens; ajoelhou-se ao lado do moribundo, arrancou do bolso uma caixa de fósforos, riscou um, e colocando-lhe nos dedos, ajudou-o, rezando, a morrer. Os olhos erguidos para o céu azul e imenso, todo ele voltado para Deus, as suas mãos sustinham entre os dedos ásperos do moribundo a pequenina chama vacilante. E, a voz angustiosa, todo possuído pela emoção, murmurava, lento, com todo ardor de sua fé, aquela oração que ouvira, tantas vezes, gemer à cabeceira dos agonizantes: 
- Parte.. alma cristã... deste mundo... em nome de Deus Padre Onipotente... que padeceu por ti... em nome do Espírito Santo.. que sobre ti foi derramado... em nome dos Anjos e Arcanjos... em nome... 
Na sua comoção religiosa o soldado esquecera-se, porém, de si mesmo. E não estava, ainda, no meio daquela oração de morte, em que se misturam a piedade e o terror, ao entregar a Deus, com os olhos na altura, a alma do companheiro, uma bala o apanhou também, certeira, atravessando-lhe a cabeça. 
Duas horas depois a luta estava terminada com a fuga dos bandoleiros. E quando a pequena tropa legal se arregimentou para partir, os soldados encontraram, atrás de uma pedra, dois cadáveres, que seguravam, com os dedos hirtos, os restos do mesmo fósforo...


Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo: ARDIL: A Raul Pompéia:

 


  A que devo o prazer de uma visita a estas horas? perguntou a viscondessa ao entrar na sala, onde havia quinze minutos, a baronesa castigava o tapete com um pé pequenino e admiravelmente calçado.

Ergueu-se a formosa visitante, e suspirou, aliviada pela presença da amiga íntima. Depois dos beijinhos consuetudinários, sentaram-se ambas.

  O visconde ainda dorme?

  Ainda, e não acordará tão cedo: são apenas sete horas.

  Posso falar sem receio?

  Estamos completamente sós. Houve uma pequena pausa.

  Temos então algum mistério? interrogou a dona da casa, consertando as dobras da sua magnífica bata de rendas brancas. Histórias do coração, aposto?

  Do coração? Não sei. Há quem diga que estas coisas nada tem a ver com ele, mas com a cabeça...

Em todo caso, fazem padecer.

  A quem o dizes!

  Não durmo há duas noites... há três dias não abro o piano... Amor? - sei lá! Despeito, raiva, talvez...

  Conta-me tudo, disse a viscondessa, enxugando com os lábios duas lágrimas que tremeluziam nos olhos da amiga; conta-me tudo. Os meus trinta e nove outonos estão, como sempre, às ordens das tuas vinte e cinco primaveras. Adivinho que se trata do Bittencourt.

  Fale mais baixo.

  Não tenhas medo.

  Sim, venho ainda uma vez ao encontro dos seus conselhos... Há oito meses a senhora ensinou-me a subjugá-los, a escravizá-lo aos meus caprichos, aos meus ímpetos, ao meu amor; hoje, que ele se mostra arredio, farto e insolente, só a senhora, com a sua experiência, a sua calma, o seu bom senso e, sobre tudo, a sua amizade, me indicará os meios de reconquistá-lo sem triunfo para ele nem humilhação para mim. A senhora teve quatro amantes...

  Três, interrompeu serenamente a viscondessa; ao quarto não se pode ainda aplicar o pretérito mais que perfeito: está no pleno gozo da sua conquista.

  Pois bem, três, e nenhum deles a desprezou; no momento oportuno a senhora desfez-se habilmente de todos três, sem deixar a nenhum o direito de dizer, ao vê-la passar pelo braço do visconde: Fui eu que não quis mais...

Houve outra pausa.

  Imagine, prosseguiu a baronesa, imagine que há mês e meio só tenho estado com ele no Lírico, durante os espetáculos. Procura, para cumprimentar-me, justamente as ocasiões que o meu marido está no camarote. Escrevi-lhe duas cartas e um bilhete postal; não tive resposta!

  Que horror! murmurou a viscondessa, profundamente impressionada.

  Vamos... diga-me... aconselhe-me! Que devo fazer?... Estou irresoluta... a senhora bem sabe... é o meu primeiro amante...

  Deixa-me pensar, filhinha, deixa-me pensar. Estas coisas não se decidem assim, num abrir e fechar de olhos!

E, depois de refletir alguns segundos, tamborilando com os dedos nos braços da poltrona, a viscondessa inquiriu com a seriedade de um velho advogado, comprometido a defender causa importante.

  Vejamos: o Bittencourt, segundo me consta, contraiu ultimamente uma dívida de gratidão com teu marido...

  Sim, creio que sim... O barão, ao que parece, interveio com muito empenho para que lhe dessem aquele belo emprego...

  Uma verdadeira sinecura.

  Mas... que tem isso?

  Tem tudo, filhinha; a moral fácil desses senhores proíbe-lhes que sejam amantes da mulher, desde que devam favores ao marido.

  Quer isso dizer que tais favores são pagos à custa do nosso amor próprio?

  E do nosso próprio amor: o sacrifício é todo nosso! Podem limpar a mão à parede com sua moral!

  Mas, por fim das contas, que devo fazer?

  Guerrear e vencer os escrúpulos tolos do teu amante! Para isso é indispensável que ele te escreva.

Verba volant, scripta moment.

  Não sei latim.

  Quero dizer que nenhum homem, por mais inteligente, soube até hoje redigir uma epístola de amor sem se compromete. Na sua carta o Bittencourt fatalmente renovará promessas, e o seu cavalheirismo - o seu cavalheirismo pelo menos - o obrigará a cumpri-las. E quando o vires de novo rendido a teus pés, manda-o passear; não nos convém esses amantes que fazem pose da sua falsa dignidade.

  Mas por amor de Deus, viscondessa! Não lhe acabo de dizer que as minhas cartas tem ficado sem resposta?

  A que lhes vai escrever agora não ficará sem ela. Tenho um ardil que há tempos empreguei com ótimo resultado. Vem cá, acompanha-me.

A doutora levantou-se e dirigiu-se para um gabinete contíguo. A baronesa acompanhou-a.

  Senta-te, e escreve o te vou ditar.

No dia seguinte o Bittencourt recebia este bilhete:

“Tenho-lhe escrito três cartas, e de nenhuma recebi resposta. Não me queixo, perdôo: o senhor deve andar muito preocupado com o seu novo emprego, e há momentos, parece, em que todo o homem honesto é obrigado a sacrificar os seus afetos aos deveres e às responsabilidades da vida prática. Paciência.

Entretanto, como o senhor agora já deve estar mais folgado, tem por fim esta carta pedir-lhe a resposta das outras. - Sua quand même, L.

Post-scriptum - Há aqui no meu bairro grande dificuldade de obter selos do Correio, e, para evitar suspeitas, não quero mandar buscá-los à cidade. Peço-lhe que, com os cinco mil réis que inclusos encontrarás, compre cinqüenta selos de tostão, e nos remeta dentro da sua carta quando me responder. - Sua L.”

 E ali está como o Bittencourt voltou, forçado por uma nota de cinco mil réis!


Contos do Sábado na Usina: Machado de Assis: LUIZ SOARES I:



Trocar o dia pela noite, dizia Luiz Soares, é restaurar o império da natureza corrigindo a obra da sociedade. O calor do sol está dizendo aos homens que vão descansar e dormir, ao passo que a frescura relativa da noite é a verdadeira estação em que se deve viver. Livre em todas as minhas ações, não quero sujeitar-me à lei absurda que a sociedade me impõe: velarei de noite, dormirei de dia. 
Contrariamente a vários ministérios, Soares cumpria este programa com um escrúpulo digno de uma grande consciência. A aurora para ele era o crepúsculo, o crepúsculo era a aurora. Dormia doze horas consecutivas durante o dia, quer dizer das seis da manhã às seis da tarde. Almoçava às sete e jantava às duas da madrugada. Não ceava. A sua ceia limitava-se a uma xícara de chocolate que o criado lhe dava às cinco horas da manhã quando ele entrava para casa. Soares engolia o chocolate, fumava dois charutos, fazia alguns trocadilhos com o criado, lia uma página de algum romance, e deitava-se. 
Não lia jornais. Achava que um jornal era a coisa mais inútil deste mundo, depois da câmara dos deputados, das obras dos poetas e das missas. Não quer isto dizer que Soares fosse ateu em religião, política e poesia. Não. Soares era apenas indiferente. Olhava para todas as grandes coisas com a mesma cara com que via uma mulher feia. Podia vir a ser um grande perverso; até então era apenas uma grande inutilidade. 
Graças a uma boa fortuna que lhe deixara o pai, Soares podia gozar a vida que levava, esquivando- se a todo o gênero de trabalho e entregue somente aos instintos da sua natureza e aos caprichos do 
seu coração. Coração é talvez demais. Era duvidoso que Soares o tivesse. Ele mesmo o dizia. Quando alguma dama lhe pedia que ele a amasse, Soares respondia: 
- Minha rica pequena, eu nasci com a grande vantagem de não ter coisa nenhuma dentro do peito nem dentro da cabeça. Isso que chamam juízo e sentimento são para mim verdadeiros mistérios. Não os compreendo porque os não sinto. 
Soares acrescentava que a fortuna suplantara a natureza, deitando-lhe no berço em que nasceu uma boa soma de contos de réis. Mas esquecia que a fortuna, apesar de generosa, é exigente, e quer da parte dos seus afilhados algum esforço próprio. A fortuna não é Danaide. Quando vê que um tonel esgota a água que se lhe põe dentro vai levar os seus cântaros a outra parte. Soares não pensava nisto. Cuidava que os seus bens eram renascentes como as cabeças da hidra antiga. Gastava às mãos largas; e os contos de réis, tão dificilmente acumulados por seu pai, escapavam-se-lhe das mãos como pássaros sequiosos por gozarem do ar livre. 
Achou-se, portanto, pobre quando menos o esperava. Um dia de manhã, quer dizer às ave-marias, os olhos de Soares viram escritas as palavras fatídicas do festim babilônico. Era uma carta que o criado lhe entregara dizendo que o banqueiro de Soares a havia deixado à meia-noite. O criado falava como o amo vivia: ao meio-dia chamava meia-noite. 
- Já te disse, respondeu Soares, que eu só recebo cartas dos meus amigos, ou então... 
- De alguma rapariga, bem sei. É por isso que lhe não tenho dado as cartas que o banqueiro tem trazido há um mês. Hoje, porém, o homem disse que era indispensável que lhe eu desse esta. 
Soares sentou-se na cama, e perguntou ao criado meio alegre e meio zangado: 
- Então tu és criado dele ou meu? 
- Meu amo, o banqueiro disse que se trata de um grande perigo. 
- Que perigo? 
- Não sei. 
- Deixa ver a carta. 
O criado entregou-lhe a carta. 
Soares abriu-a e leu-a duas vezes. Dizia a carta que o rapaz não possuía mais que seis contos de réis. Para Soares seis contos de réis eram menos que seis vinténs. 
Pela primeira vez na sua vida Soares sentiu uma grande comoção. A idéia de não ter dinheiro nunca lhe havia acudido ao espírito; não imaginava que um dia se achasse na posição de qualquer outro homem que precisava de trabalhar. 
Almoçou sem vontade e saiu. Foi ao Alcazar. Os amigos acharam-no triste; perguntaram-lhe se era alguma mágoa de amor. Soares respondeu que estava doente. As Laís da localidade acharam que era de bom gosto ficarem tristes também. A consternação foi geral. 
Um dos seus amigos, José Pires, propôs um passeio a Botafogo para distrair as melancolias de Soares. O rapaz aceitou. Mas o passeio a Botafogo era tão comum que não podia distraí-lo. 
Lembraram-se de ir ao Corcovado, idéia que foi aceita e executada imediatamente. 
Mas que há que possa distrair um rapaz nas condições de Soares? A viagem ao Corcovado apenas lhe produziu uma grande fadiga, aliás útil, porque, na volta, dormiu o rapaz a sono solto. 
Quando acordou mandou dizer ao Pires que viesse falar-lhe imediatamente. Daí a uma hora parava um cano à porta: era o Pires que chegava, mas acompanhado de uma rapariga morena que respondia ao nome de Vitória. Entraram os dois pela sala de Soares com a franqueza e o estrépito naturais entre pessoas de família. 
- Não está doente? perguntou Vitória ao dono da casa. 
- Não, respondeu este; mas por que veio você? 
- É boa! disse José Pires; veio porque é a minha xícara inseparável... Querias falar-me em particular? 
- Queria. 
- Pois falemos aí em qualquer canto; Vitória fica na sala vendo os álbuns. 
- Nada, interrompeu a moça; nesse caso vou-me embora. É melhor; só imponho uma condição: é que ambos hão de ir depois lá para casa; temos ceata. 
- Valeu! disse Pires. 
Vitória saiu; os dois rapazes ficaram sós. 
Pires era o tipo do bisbilhoteiro e leviano. Em lhe cheirando novidade preparava-se para instruir-se de tudo. Lisonjeava-o a confiança de Soares, e adivinhava que o rapaz ia comunicar-lhe alguma coisa importante. Para isso assumiu um ar condigno com a situação. Sentou-se comodamente em uma cadeira de braços; pôs o castão da bengala na boca e começou o ataque com estas palavras: 
- Estamos sós; que me queres? 
Soares confiou-lhe tudo; leu-lhe a carta do banqueiro; mostrou-lhe em toda a nudez a sua miséria. Disse-lhe que naquela situação não via solução possível, e confessou ingenuamente que a idéia do suicídio o havia alimentado durante longas horas. 
- Um suicídio! exclamou Pires; estás doido. 
- Doido! respondeu Soares; entretanto não vejo outra saída neste beco. Demais, é apenas meio suicídio, porque a pobreza já é meia morte. 
- Convenho que a pobreza não é coisa agradável, e até acho... 
Pires interrompeu-se; uma idéia súbita atravessara-lhe o espírito: a idéia de que Soares acabasse a conferência por pedir-lhe dinheiro. Pires tinha um preceito na sua vida: era não emprestar dinheiro aos amigos. Não se empresta sangue, dizia ele. 
Soares não reparou na frase cortada do amigo, e disse: 
- Viver pobre depois de ter sido rico... é impossível. 
- Nesse caso que me queres tu? perguntou Pires, a quem pareceu que era bom atacar o touro de frente. 
- Um conselho. 
- Inútil conselho, pois que já tens uma idéia fixa. 
- Talvez. Entretanto confesso que não se deixa a vida com facilidade, e má ou boa, sempre custa morrer. Por outro lado, ostentar a minha miséria diante das pessoas que me viram rico é uma humilhação que eu não aceito. Que farias tu no meu lugar? 
- Homem, respondeu Pires, há muitos meios... 
- Venha um. 
- Primeiro meio. Vai para New York e procura uma fortuna. 
- Não me convém; nesse caso fico no Rio de Janeiro. 
- Segundo meio. Arranja um casamento rico. 
- É bom de dizer. Onde está esse casamento? 
- Procura. Não tens uma prima que gosta de ti? 
- Creio que já não gosta; e demais não é rica; tem apenas trinta contos; despesa de um ano. 
- É um bom princípio de vida. 
- Nada; outro meio. 
- Terceiro meio, e o melhor. Vai à casa de teu tio, angaria-lhe a estima, dize que estás arrependido da vida passada, aceita um emprego, enfim vê se te constituis seu herdeiro universal. 
Soares não respondeu; a idéia pareceu-lhe boa. 
- Aposto que te agrada o terceiro meio? perguntou Pires rindo. 
- Não é mau. Aceito; e bem sei que é difícil e demorado; mas eu não tenho muitos à escolha. 
- Ainda bem, disse Pires levantando-se. Agora o que se quer é algum juízo. Há de custar-te o sacrifício, mas lembra-te que é o meio único de teres dentro de pouco tempo uma fortuna. Teu tio é um homem achacado de moléstias; qualquer dia bate a bota. Aproveita o tempo. E agora vamos à ceia da Vitória. 
- Não vou, disse Soares; quero acostumar-me desde já a viver vida nova. 
- Bem; adeus. 
- Olha; confiei-te isto a ti só; guarda-me segredo. 
- Sou um túmulo, respondeu Pires descendo a escada. 
Mas no dia seguinte já os rapazes e raparigas sabiam que Soares ia fazer-se anacoreta... por não ter dinheiro nenhum. O próprio Soares reconheceu isto no rosto dos amigos. Todos pareciam dizer-lhe: É pena! que pândego vamos nós perder! 
Pires nunca mais o visitou.

Contos do Sábado na Usina: Alcântara Machado: GUERRA CIVIL:





Em Caguaçu os revolucionários. Em São Tiago os legalistas. Entre os dois indiferente o rio Jacaré. O delegado regional de Boniteza mandara recolher as barcas e as margens só podiam mesmo estreitar relações no infinito. De dia não acontecia nada. Os inimigos caçavam jararacas esperando ataques que não vinham. Por isso esperavam sossegados. Inutilmente os urubus no vôo lindo deles se cansavam indo e vindo de bico esfomeado. Os guerreiros gozavam de perfeita saúde.
De noite tinha o silêncio. Qualquer barulho assustava. Os soldados de guarda se preparavam para morrer no seu posto de honra. Mas era estalo de árvores. Ou correria de bicho. A madrugada se levantava sem novidades. Por isso a luta entre irmãos decorria verdadeiramente fraternal.
Porém uma manhã chegou a Boniteza a notícia de que do lado de Caguaçu qualquer coisa de muito grave se preparava. Tropas marchavam na direção do rio trazendo canhões, carros de combate, grande provisão de gases asfixiantes comprada na Argentina, aeroplanos, bombas de dinamite, granadas de mão e dinheiro, todos esses elementos de vitória. Um engenheiro russo construiria em dois tempos uma ponte sobre o Jacaré e o resto seria uma corrida fácil até a capital do país. Desta vez a cousa iria mesmo.
Boniteza se surpreendeu mas não se acovardou. Com rapidez e entusiasmo começou a preparar tudo para a defesa. Ao longo do rio se abriu uma trincheira inexpugnável. Caminhões descarregaram tropas em todos os pontos. As metralhadoras foram ajustadas, os fuzis engraxados, os caixotes de munições abertos. Costureiras solícitas pregaram botões nas fardas das praças mais relaxadas. Nas barbearias os vidros de loção estrangeira se esvaziaram na cabeça dos sargentos. Era de guerra o ar que se respirava.
A noite encontrou os combatentes a postos. Na trincheira eles velavam apoiados nos fuzis. Sentinelas foram destacadas para vigiar a margem inimiga. Entre elas o sorteado Leônidas Cacundeiro.
Era infeliz porque sofria de dor de dentes crônica, piscava sem parar e gaguejava. Foi para o seu posto de observação, deitou-se de barriga num cobertor velho. Só o busto meio erguido, ficou olhando na frente dele de fuzil na mão. Tinha ordens severas: vulto que aparecesse era mandar tiro nele. Sem discutir.
Leônidas Cacundeiro deu de pensar. Pensava uma cousa, o ventinho frio jogava o pensamento fora, pensava outra. Tudo quieto. Ainda bem que havia luar. Do alto da ribanceira ele examinava as águas do Jacaré. Ou então erguia o olhar e descobria nas nuvens a cabeleira de um maestro, um cachorro sem rabo, duas velhinhas, pessoas conhecidas.
Agora o frio era o frio da madrugada. O Doutor Adelino costumava dizer: Quando vocês sentirem frio pensem no Pólo Norte e sentirão logo calor. Pensou no Pólo Norte. Lembranças vagas de uma fita vista há muito tempo. Gelo e gelo e mais gelo. No meio do gelo um naviozinho encalhado. Homens barbudos, jogando fumaça pela boca, encapotados e enluvados, com cachorros felpudos. Duas barracas à esquerda. E aquela branquidão. Forçou bem o olhar. Um urso pardo com duas bandeirinhas. Um urso em pé com uma bandeirinha na pata direita, outra bandeirinha na pata esquerda. Nenhuma arma.
Deu um berro: - Alto!
Ficou em posição de tiro. O soldado não podia mesmo dar um passo à frente senão caía no rio. Começou a mexer com os braços. Levantava uma bandeirinha, abaixava outra, levantava as duas.
Leônidas pensou: - Que negócio será aquele?
Foi chamar o sargento. O sargento veio, olhou muito, disse: - Que negócio será aquele? Vá chamar o tenente!
Leônidas foi chamar o tenente, veio correndo com ele. O tenente limpou os óculos com o lenço de seda, verificou se o revólver estava armado, olhou muito, falou coçando a nuca: - Que negócio será aquele? Vá chamar o major!
Leônidas partiu em busca do major. No acampamento não estava. Foi até Boniteza. Encontrou um cabo. O cabo mandou Leônidas bater na casa da viúva Dona Birigüi ao lado do Correio. O major apareceu na janela com má vontade. Resmungou: - Já vou. Leônidas comboiou o major até o rio, o major teve uma conferência com o tenente, subiu num pé de pitanga, falou lá de cima: - Que negócio será aquele? Vá chamar o comandante!
O anspeçada primeiro não queria acordar o comandante. Eram ordens. Leônidas insistiu firme e o comandante teve de pular da cama. Leônidas fazendo continência explicou o caso. O coronel disse:
- Às seis estou lá.
Eram cinco, Leônidas voltou com o recado. O major, o tenente, o sargento estavam nervosos. De vez em quando um deles chegava mais perto da margem e o soldado do outro lado recomeçava a ginástica: bandeirinha na frente, bandeirinha atrás, bandeirinha apontando o céu, bandeirinha apontando o chão. Ia repetindo com uma paciência desgraçada.
Então já havia passarinhos cantando, barulho de vida em Boniteza, só a cara amarrotada dos insones não resplendia na luz da manhãzinha. Toques de cometa chegavam de longe despedaçados. Na banda de lá do Jacaré o homem da bandeirinha habitava sozinho a paisagem com uma vontade louca de tomar café bem quente e bem forte. Era a hora da raiva e todos se espreguiçavam com o sol que chegava.
O Coronel Jurupari ouviu calado a narração do estranho caso. Fez em seguida duas ou três perguntas hábeis com o intuito de esclarecê-lo tanto quanto possível. Chamou de lado o major e o tenente, os três discutiram muito, emitiram suas opiniões sobre assuntos de estratégia e balística que pareciam oportunos naquela emergência, fumaram vários cigarros. Afinal o coronel entre o major e o tenente avançou até a margem de binóculo em punho. Assim que ele assentou o binóculo, da outra banda do Jacaré recomeçou a dança das bandeirinhas. O coronel olhando. A sua primeira observação foi: - É um cabo e não tem má cara. Depois de uns minutos veio a segunda: - Hoje é dor de cabeça na certa com este noroeste. A terceira alimentou ainda mais a já angustiosa incerteza dos presentes: - Mas que negócio será aquele? Daí a uns instantes repetiu: - Mas que diabo de negócio será mesmo aquele? Porém acrescentou numa ordem para o Leônidas: - Vá chamar o sinaleiro!
O sinaleiro veio chupando o nariz. Olhou, deu uma risadinha, tirou um papel e um lápis do bolso traseiro da calça, ajoelhou-se com uma perna só, pôs o papel na coxa da outra, passou a ponta do lápis na língua, começou a tomar nota. Dava uma espiada, as bandeirinhas se mexiam, escrevia. O Coronel Jumpari, o major, o tenente, o sargento e o sorteado Leônidas Cacundeiro esperavam o resultado de armas na mão e ansiedade nos olhos.
O sinaleiro se levantou, ficou em posição de sentido e com voz pausada e firme leu a mensagem enviada pelos revolucionários de Caguaçu: Saúde e Fraternidade.
O coronel mandou responder agradecendo e retribuindo. Ex-corde.