sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Dante Alighieri: A Divina Comédia: Inferno:

  


“Nossos olhos, por vezes encontrados, Cessam de ler; ao gesto a cor mudara.
132 Um ponto só deu causa aos nossos fados.
“Ao lermos que nos lábios osculara O desejado riso, o heróico amante,
135 Este, que mais de mim se não separa,
“A boca me beijou todo tremante, De Galeotto fez o autor e o escrito.
138 Em ler não fomos nesse dia avante”.
Enquanto a história triste um tinha dito, Tanto carpia o outro, que eu, absorto
Em piedade, senti letal conflito,
142 E tombei, como tomba corpo morto.
4. Minos, rei de Creta e que na mitologia pagã era juiz do Inferno. — 58. Semíramis, rainha de Babilônia, viúva do rei Nino. — 61. Dido, rainha de Cartago, que amou a Enéias. — 63. Cleópatra, rainha do Egito. — 64. Helena, mulher de Menelau, rei de Esparta que causou a guerra de Tróia. — 67. Páris e Tristão, cavaleiros dos romances medievais. — 73. Companheiros dois, Francesca de Rimini e Paulo Malatesta, que foram mortos por Gianciotto Malatesta, marido de Francesca e
irmão de Paulo, por eles terem ficado apaixonados um pelo outro.

Contos do Sábado na Usina: Humberto de Campos: A promessa VI:

 


Aproximava-se o dia do regresso dos rapazes. Todo aquele mês havia sido de festas, de homenagens aos bravos soldados conterrâneos. E à medida que se escoavam as horas, mais se confrangia a alma de Maria Inácia. O seu coração não se saciava de acariciar o filho. As noites, levava- as acordada, passando-lhe as mãos pelos cabelos, cobrindo-o com o lençol, beijando-lhe a cabeça adormecida. Nos primeiros dias, estava certa de que a Senhora das Dores consideraria uma loucura a promessa que lhe fizera, e a perdoaria. Pouco a pouco, porém, a proporção que se aproximava o dia do regresso, foi a su'alma se inquietando. Prometera dar a sua vida pela do filho, se ainda o abraçasse uma vez. Deus o trouxera aos seus braços, ao seu carinho, à sua presença. Devia cumprir o voto? E, se não cumprisse,


Deus não a castigaria no coração, arrebatando-o ao mundo, nos novos combates em que tomasse parte?

 Esse pensamento afligia-a. Até que, de repente, resolveu:

 -  Não, eu devo cumprir a promessa. Devo, sim. Antes eu do que meu filho. E eu resistiria, acaso, à dor de perdê-lo, se o perdesse por culpa: minha, por falta minha perante Deus?

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo: PLEBISCITO:



abade. 

A cena passa-se em 1890. 
A família está toda reunida na sala de jantar. 
O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um 
Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga. 
Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à 
mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias. 
Silêncio 
De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta: 
— Papai, que é plebiscito? 
O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme. O pequeno insiste: 
— Papai? 
Pausa: 
— Papai? 
Dona Bernardina intervêm: 
— Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar que lhe faz mal. O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos. 
— Que é? que desejam vocês? 
— Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito? 
— Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito? 
— Se soubesse não perguntava. 
O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola: 
— Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito! 
— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei. 
— Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito? 
— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito. 
— Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante! 
— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!... 
— A senhora o que quer é enfezar-me! 
— Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, e o menino ficou sem saber! 
— Proletário, acudiu o senhor Rodrigues, é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado. 
— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem arredar dessa cadeira! 
— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças? 
— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: — Não sei Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho. 
O senhor Rodrigues ergueu-se de um ímpeto e brada: 
— Mas eu sei! 
— Pois se sabe, diga! 
— Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo! 
E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta. 
No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário... 
A menina toma a palavra: 
— Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso! 
— Não fosse tolo, observa dona Bernardina, e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito. 
— Pois sim, acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão: pois sim, mamãe, chame papai e façam as pazes. 
— Sim! sim! façam as pazes! diz a menina em tom meigo e suplicante. Que tolice! duas pessoas que se estimam tanto zangarem-se por causa do plebiscito! 
Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto: 
— Seu Rodrigues, venha sentar-se: não vale a pena zangar-se por tão pouco. 
O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente. Ele entra, atravessa a sala, e vai sentar- se na cadeira de balanço. 
— É boa! brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio; é muito boa! Eu! eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!... 
A mulher e os filhos aproximam-se dele 
O homem continua num tom profundamente dogmático: 
— Plebiscito... 
E olha para todos os lados a ver se há por ali mais alguém que possa aproveitar a lição. 
— Plebiscito é uma lei decretada pelos povos romanos, estabelecido em comícios. 
— Ah! suspiram todos, aliviados. 
— Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo.

Contos do Sábado na Usina: Machado de Assis: LINHA RETA E LINHA CURVA IV:

 

No dia seguinte, ao meio-dia, Diogo apresentou-se ao Tito, e depois de falar sobre diferentes coisas, tirou do bolso uma cartinha, que fingira ter esquecido até então, e a qual mostrava não dar grande apreço. - Que bomba! disse ele consigo, na ocasião em que Tito rasgou a sobrecarta. Eis o que dizia a carta: "Dei-lhe o meu coração. Não quis aceitá-lo, desprezou-o mesmo. A sua bota magoou-o demais para que ele possa palpitar ainda. Está morto. Não o censuro; não se deve falar de luz aos cegos; a culpada fui eu. Supus que pudesse dar-lhe uma felicidade, recebendo outra. Enganei-me. "Tem a glória de retirar-se com todas as honras de guerra. Eu é que fico vencida. Paciência! Pode zombar de mim; não lhe contesto o direito que tem para isso. "Entretanto, devo dizer-lhe que eu bem o conhecia; nunca lho disse, mas conhecia-o; desde o dia em que o vi pela primeira vez em casa de Adelaide, reconheci na sua pessoa o mesmo homem que um dia veio atirar-se aos meus pés... Era zombaria então, como hoje. Eu já devia conhecê-lo. Caro pago o meu engano. Adeus, adeus para sempre." Lendo esta carta, Tito olhava repetidas vezes para Diogo. Como é que o velho se prestara àquilo? Era autêntica ou apócrifa a tal carta? Sobre não trazer assinatura, tinha a letra disfarçada. Seria uma arma de que o velho usara para descartar-se do rapaz? Mas, se fosse assim, era preciso que ele soubesse do que se passara na véspera. Tito releu a carta muitas vezes; e, despedindo-se do velho, disse-lhe que a resposta iria depois. Diogo retirou-se esfregando as mãos de contente. É que a carta cuja leitura os leitores fizeram ao mesmo tempo que o nosso herói não era a que Emília lera a Diogo. Na minuta apresentada ao velho a viúva declarava simplesmente que se retirava para a corte, e acrescentava que entre as recordações que levava de Petrópolis figurava Tito, pela figura que ele havia representado diante dela. Mas essa minuta, por uma destreza puramente feminina, não foi a que Emília mandou a Tito, como viram os leitores. À carta de Emília respondeu Tito nos seguintes termos: "Minha senhora, "Li e reli a sua carta; e não lhe ocultarei o sentimento de pesar que ela me inspirou. Realmente, minha senhora, é esse o estado do seu coração? Está assim tão perdido por mim? "Diz Vossa Excelência que eu com a minha bota machuquei o seu coração. Penaliza-me o fato, sem que eu entretanto o confirme. Não me lembra até hoje que tivesse feito estrago algum desta natureza. Mas, enfim, Vossa Excelência o diz, e eu devo crê-lo. "Lendo esta carta Vossa Excelência dirá consigo que eu sou o mais audaz cavalheiro que ainda pisou a terra de Santa Cruz. Será um engano de observação. Isto em mim não é audácia, é franqueza. Lastimo que as coisas chegassem a este ponto, mas não posso dizer-lhe nada mais que a verdade. "Devo confessar que não sei se a carta a que respondo é de Vossa Excelência. A sua letra, de que eu já vi uma amostra no álbum de D. Adelaide, não se parece com a da carta; está evidentemente disfarçada; é de qualquer mão. Demais, não traz assinatura. "Digo isto porque a primeira dúvida que nasceu em meu espírito proveio do portador escolhido. Pois quê! Vossa Excelência não achou outro senão o próprio Diogo? Confesso que de tudo o que tenho visto em minha vida, é isto o que mais me faz rir. "Mas eu não devo rir, minha senhora. Vossa Excelência abriu-me o seu coração de um modo que inspira antes compaixão. Esta compaixão não lhe é desairosa, porque não vem por sentido irônico. É pura e sincera. Sinto não poder dar-lhe essa felicidade que me pede; mas é assim. 

 94 "Não devo estender-me e, contudo custa-me arrancar a pena de cima do papel. É que poucos terão a posição que eu ocupo agora, a posição de requestado. Mas devo acabar e acabo aqui, mandando-lhe os meus pêsames e rogando a Deus para que encontre um coração menos frio que o meu. "A letra vai disfarçada como a sua, e; como na sua carta, deixo a assinatura em branco." Esta carta foi entregue à viúva na mesma tarde. À noite Azevedo e Adelaide foram visitá-la. Não puderam dissuadi-la da idéia da viagem para a Corte. Emília usou mesmo de uma certa reserva para com Adelaide, que não pôde descobrir os motivos de semelhante procedimento, e retirou-se um tanto triste. No dia seguinte, com efeito, Emília e a tia aprontaram-se e saíram para voltar para a corte. Diogo ficou em Petrópolis ainda, cuidando em aprontar as malas... Não queria, dizia ele, que o público, vendo-o partir em companhia das duas senhoras, supusesse coisas desairosas à viúva. Todos estes passos admiravam Adelaide, que, como disse, via na insistência de Emília e nos seus modos reservados um segredo que não compreendia. Quereria ela por aquele meio de viagem atrair Tito? Nesse caso era cálculo errado; visto que o rapaz, naquele dia como nos outros, acordou tarde e almoçou alegremente. - Sabe, disse Adelaide, que a esta hora deve ter partido para a cidade a nossa amiga Emília? - Já tinha ouvido dizer. - Por que será? - Ah! isso é que eu não sei. Altos segredos do espírito de mulher! Por que sopra hoje a brisa deste lado e não daquele? Interessa-me tanto saber uma coisa como outra. No fim do almoço Tito, como quase sempre, retirou-se para ler durante duas horas. Adelaide ia dar algumas ordens quando viu com pasmo entrar-lhe em casa a viúva, acompanhada de um criado. - Ah! não partiste? disse Adelaide correndo a abraçá-la. - Não me vês aqui? O criado saiu a um sinal de Emília. - Mas que há? perguntou a mulher de Azevedo, vendo os modos estranhos da viúva. - Que há? disse esta. Há o que não prevíamos... És quase minha irmã... posso falar francamente. Ninguém nos ouve? - Ernesto está fora e o Tito lá em cima. Mas que ar é esse? - Adelaide! disse Emília com os olhos rasos de lágrimas, eu o amo! - Que me dizes? - Isto mesmo. Amo-o doidamente, perdidamente, completamente. Procurei até agora vencer esta paixão, mas não pude; e quando, por vãos preconceitos, tratava de ocultar-lhe o estado do meu coração, não pude, as palavras saíram-me dos lábios insensivelmente... - Mas como se deu isto? - Eu sei! Parece que foi castigo; quis fazer fogo e queimei-me nas mesmas chamas. Ah! não é de hoje que me sinto assim. Desde que os seus desdéns em nada cederam, comecei a sentir não sei o quê; ao princípio despeito, depois um desejo de triunfar, depois uma ambição de ceder tudo, contanto que tudo ganhasse; afinal não fui senhora de mim. Era eu quem me sentia doidamente apaixonada e lho manifestava, por gestos, por palavras, por tudo; e mais crescia nele a indiferença, mais crescia o amor em mim. - Mas estás falando sério? - Olha antes para mim. - Quem pensara?... - A mim própria parece impossível; porém é mais que verdade... - E ele?... - Ele disse-me quatro palavras indiferentes, nem sei o que foi, e retirou-se. - Resistirá? - Não sei. - Se eu adivinhara isto não te insinuaria naquela malfadada idéia. 

 95 - Não me compreendeste. Cuidas que eu deploro o que acontece? Oh! não! Sinto-me feliz, sinto-me orgulhosa... É um destes amores que brotam por si para encher a alma de satisfação: devo antes abençoar-te... - É uma verdadeira paixão... Mas acreditas impossível a conversão dele? - Não sei; mas seja ou não impossível, não é a conversão que eu peço; basta-me que seja menos indiferente e mais compassivo. - Mas que pretendes fazer? perguntou Adelaide sentindo que as lágrimas também lhe rebentavam dos olhos. Houve alguns instantes de silêncio. - Mas o que tu não sabes, continuou Emília, é que ele não é para mim um simples estranho. Já o conhecia antes de casada. Foi ele quem me pediu em casamento antes de Rafael... - Ah! - Sabias? - Ele já me havia contado a história, mas não nomeara a santa. Eras tu? - Era eu. Ambos nos conhecíamos, sem dizermos nada um ao outro... - Por quê? A resposta a esta pergunta foi dada pelo próprio Tito, que assomara à porta do interior. Tendo visto entrar a viúva de uma das janelas, Tito desceu abaixo a ouvir a conversa dela com Adelaide. A estranheza que lhe causava a volta inesperada de Emília podia desculpar a indiscrição do rapaz. - Por quê? repetiu ele. É o que lhes vou dizer. - Mas antes de tudo, disse Adelaide, não sei se sabe que uma indiferença, tão completa, como a sua, pode ser fatal a quem lhe é menos indiferente? - Refere-se à sua amiga? perguntou Tito. Eu corto tudo com uma palavra. E voltando-se para Emília, disse, estendendo-lhe a mão: - Aceita a minha mão de esposo? Um grito de alegria suprema ia saindo do peito de Emília; mas não sei se um resto de orgulho, ou qualquer outro sentimento, converteu essa manifestação em uma simples palavra, que aliás foi pronunciada com lágrimas na voz: - Sim! disse ela. Tito beijou amorosamente a mão da viúva. Depois acrescentou: - Mas é preciso medir toda a minha generosidade; eu devia dizer: aceito a sua mão. Devia ou não devia? Sou um tanto original e gosto de fazer inversão em tudo. - Pois sim; mas de um ou de outro modo sou feliz. Contudo um remorso me surge na consciência. Dou-lhe uma felicidade tão completa como a que recebo? - Remorso? se é sujeita aos remorsos deve ter um, mas por motivo diverso. A senhora está passando neste momento pelas forcas caudinas. Fi-la sofrer, não? Ouvindo o que vou dizer concordará que eu já antes sofria, e muito mais. - Temos romance? perguntou Adelaide a Tito. - Realidade, minha senhora, respondeu Tito, e realidade em prosa. Um dia, há já alguns anos, tive eu a felicidade de ver uma senhora, e amei-a. O amor foi tanto mais indomável quanto que me nasceu de súbito. Era então mais ardente que hoje, não conhecia muito os usos do mundo. Resolvi declarar-lhe a minha paixão e pedi-la em casamento. Tive em resposta este bilhete... - Já sei, disse Emília. Essa senhora fui eu. Estou humilhada; perdão! - Meu amor lhe perdoa; nunca deixei de amá-la. Eu estava certo de encontrá-la um dia e procedi de modo a fazer-me o desejado. - Escreva isto e dirão que é um romance, disse alegremente Adelaide. - A vida não é outra coisa... acrescentou Tito. Daí a meia hora entrava Azevedo. Admirado da presença de Emília quando a supunha a rodar no trem de ferro, e mais admirado ainda das maneiras cordiais por que se tratavam Tito e Emília, o marido de Adelaide inquiriu a causa disso. - A causa é simples, respondeu Adelaide; Emília voltou porque vai casar-se com Tito. 

 96 Azevedo não se deu por satisfeito; explicaram-lhe tudo. - Percebo, disse ele. Tito não tendo alcançado nada caminhando em linha reta, procurou ver se alcançava caminhando por linha curva. Às vezes é o caminho mais curto. - Como agora, acrescentou Tito. Emília jantou em casa de Adelaide. À tarde apareceu ali o velho Diogo, que ia despedir-se porque devia partir para a Corte no dia seguinte de manhã. Grande foi a sua admiração quando viu a viúva. - Voltou? - É verdade, respondeu Emília rindo. - Pois eu ia partir, mas já não parto. Ah! recebi uma carta da Europa: foi o capitão da galera Macedônia que ma trouxe! Chegou o urso! - Pois vá fazer-lhe companhia, respondeu Tito. Diogo fez uma careta. Depois, como desejasse saber o motivo da súbita volta da viúva, esta explicou-lhe que se ia casar com Tito. Diogo não acreditou. - É ainda um laço, não? disse ele piscando os olhos. E não só não acreditou então, como não acreditou daí em diante, apesar de tudo. Daí a alguns dias partiram todos para a Corte. Diogo ainda se não convencia de nada. Mas, quando entrando um dia em casa de Emília viu a festa do noivado, o pobre velho não pôde negar a realidade e sofreu um forte abalo. Todavia, teve ainda coração para assistir às festas do noivado. Azevedo e a mulher serviram de testemunhas. "É preciso confessar, escrevia dois meses depois o feliz noivo ao esposo de Adelaide; - é preciso confessar que eu entrei num jogo arriscado. Podia perder; felizmente ganhei."

Contos do Sábado na Usina: Raduan Nassar: Aí pelas três da tarde: Para José Carlos Abbate:



Nesta sala atulhada de mesas, máquinas e papéis, onde invejáveis escreventes dividiram entre si o bom-senso do mundo, aplicando-se em idéias claras apesar do ruído e do mormaço, seguros ao se pronunciarem sobre problemas que afligem o homem moderno (espécie da qual você, milenarmente cansado, talvez se sinta um tanto excluído), largue tudo de repente sob os olhares à sua volta, componha uma cara de louco quieto e perigoso, faça os gestos mais calmos quanto os tais escribas mais severos, dê um largo "ciao" ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida, surpreenda pouco mais tarde, com sua presença em hora tão insólita, os que estiveram em casa ocupados na limpeza dos armários, que você não sabia antes como era conduzida. Convém não responder aos olhares interrogativos, deixando crescer, por instantes, a intensa expectativa que se instala. Mas não exagere na medida e suba sem demora ao quarto, libertando aí os pés das meias e dos sapatos, tirando a roupa do corpo como se retirasse a importância das coisas, pondo-se enfim em vestes mínimas, quem sabe até em pêlo, mas sem ferir o pudor (o seu pudor, bem entendido), e aceitando ao mesmo tempo, como boa verdade provisória, toda mudança de comportamento. Feito um banhista incerto, assome depois com sua nudez no trampolim do patamar e avance dois passos como se fosse beirar um salto, silenciando de vez, embaixo, o surto abafado dos comentários. Nada de grandes lances. Desça, sem pressa, degrau por degrau, sendo tolerante com o espanto (coitados!) dos pobres familiares, que cobrem a boca com a mão enquanto se comprimem ao pé da escada. Passe por eles calado, circule pela casa toda como se andasse numa praia deserta (mas sempre com a mesma cara de louco ainda não precipitado), e se achegue depois, com cuidado e ternura, junto à rede languidamente envergada entre plantas lá no terraço. Largue-se nela como quem se larga na vida, e fundo nesse mergulho: cerre as abas da rede sobre os olhos e, com um impulso do pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de se sentir embalado pelo mundo.

Contos do Sábado na Usina: Adélia Prado: Sem enfeite nenhum:




A mãe era desse jeito: só ia em missa das cinco, por causa de os gatos no scuro serem pardos. Cinema, só uma vez, quando passou os Milagres 
do padre Antônio em Urucánia. Desde aí, falava sempre, excitada nos olhos, apressada no cacoete dela de enrolar um cacho de cabelo: se eu fosse lá, quem sabe? 
Sofria palpitação e tonteira, lembro dela caindo na beira do tanque, o vulto dobrado em arco, gente afobada em volta, cheiro de alcanfor. 
Quando comecei a empinar as blusas com o estufadinho dos peitos, o pai chegou pra almoçar, estudando terreno, e anunciou com a voz que fazia nessas ocasiões, meio saliente: companheiro meu tá vendendo um relogim que é uma gracinha, pulseirinha de crom', danado de bom pra do Carmo. Ela foi logo emendando: tristeza, relógio de pulso e vestido de bolér. Nem bolero ela falou direito de tanta antipatia. Foi água na fervura minha e do pai. 
Vivia repetindo que era graça de Deus se a gente fosse tudo pra um convento e várias vezes por dia era isto: meu Jesus, misericórdia... A senhora tá triste, mãe? eu falava. Não, tou só pedindo a Deus pra ter dó de nós. 
Tinha muito medo da morte repentina e pra se livrar dela, fazia as nove primeiras sextas-feiras, emendadas. De defunto não tinha medo, só de gente viva, conforme dizia. Agora, da perdição eterna, tinha horror, pra ela e pros outros. 
Quando a Ricardina começou a morrer, no Beco atrás da nossa casa, ela me chamou com a voz alterada: vai lá, a Ricardina tá morrendo, coitada, que Deus perdoe ela, corre lá, quem sabe ainda dá tempo de chamar o padre, falava de arranco, querendo chorar, apavorada: que Deus perdoe ela, Deus perdoe ela, ficou falando sem coragem de sair do lugar. 
Mas a Ricardina era de impressionar mesmo, imagina que falou pra mãe, uma vez, que não podia ver nem cueca de homem que ela ficava doida. Foi mais por isso que ela ficou daquele jeito, rezando pra salvação da alma da Ricardina. 
Era a mulher mais difícil a mãe. Difícil, assim, de ser agradada. Gostava que eu tirasse só dez e primeiro lugar. Pra essas coisas não poupava, era pasta de primeira, caixa com doze lápis e uniforme mandado plissar. Acho mesmo que meia razão ela teve no caso do relógio, luxo bobo, pra quem só tinha um vestido de sair. 
Rodeava a gente estudar e um dia falou abrupto, por causa do esforço de vencer a vergonha: me dá seus lápis de cor. Foi falando e colorindo de laranjado, uma rosa geométrica: cê põe muita força no lápis, se eu tivesse seu tempo, ninguém na escola me passava, inteligência não te falta, o que falta é estudar, por exemplo falar você em vez de cê, é tão mais bonito, é só acostumar. Quando o coração da gente dispara e a gente fala cortado, era desse jeito que tava a voz da mãe. 
Achava estudo a coisa mais fina e inteligente era mesmo, demais até, pensava com a maior rapidez. Gostava de ler de noite, em voz alta, junto com tia Santa, os livros da Pia Biblioteca, e de um não esqueci, pois ela insistia com gosto no título dele, em latim: Máguina pecatrís. Falava era antusiasmo e nunca tive coragem de corrigir, porque toda vez que usava essa palavra, tava muito alegre, feito naquela hora, desenhando, feito no dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou: coitado, até essa hora no serviço pesado. 
Não estava gostando nem um pouquinho do desenho, mas nem que eu falava. Com tanta satisfação ela passava o lápis, que eu fiquei foi aflita, como sempre que uma coisa boa acontecia. 
Bom também era ver ela passando creme Marsílea no rosto e Antisardina nº 3, se sacudindo de rir depois, com a cara toda empolada. Sua mãe é bonita, me falaram na escola. E era mesmo, o olho meio verde. 
Tinha um vestido de seda branco e preto e um mantô cinzentado que ela gostava demais. 
Dia ruim foi quando o pai entestou de dar um par de sapato pra ela. 
Foi três vezes na loja e ela botando defeito, achando o modelo jeca, achando a cor regalada, achando aquilo uma desgraça e que o pai tinha era umas bobagens. Foi até ele enfezar e arrebentar com o trem, de tanta raiva e mágoa. 
Mas sapato é sapato, pior foi com o crucifixo. O pai, voltando de cumprir promessa em Congonhas do Campo, trouxe de presente pra ela um crucifixo torneadinho, o cordão de pendurar, com bambolim nas pontas, a maior gracinha. Ela desembrulhou e falou assim: bonito, mas eu preferia mais se fosse uma cruz simples, sem enfeite nenhum. 
Morreu sem fazer trinta e cinco anos, da morte mais agoniada, encomendando com a maior coragem: a oração dos agonizantes, reza aí pra mim, gente. 
Fiquei hipnotizada, olhando a mãe. Já no caixão, tinha a cara severa, de quem sente dor forte, igualzinho no dia que o João Antônio nasceu, Entrei no quarto querendo festejar e falei sem graça: a cara da senhora, parece que tá com raiva, 
O Senhor te abençoe e te guarde, 
Volva a ti o Seu Rosto e se compadeça de ti, O Senhor te dê a Paz. 
Esta é a bênção de São Francisco, que foi abrandando o rosto dela, descansando, descansando, até como ficou, quase entusiasmado. 
Era raiva não. Era marca de dor.