sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo: PLEBISCITO:



abade. 

A cena passa-se em 1890. 
A família está toda reunida na sala de jantar. 
O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um 
Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga. 
Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à 
mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias. 
Silêncio 
De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta: 
— Papai, que é plebiscito? 
O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme. O pequeno insiste: 
— Papai? 
Pausa: 
— Papai? 
Dona Bernardina intervêm: 
— Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar que lhe faz mal. O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos. 
— Que é? que desejam vocês? 
— Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito? 
— Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito? 
— Se soubesse não perguntava. 
O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola: 
— Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito! 
— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei. 
— Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito? 
— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito. 
— Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante! 
— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!... 
— A senhora o que quer é enfezar-me! 
— Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, e o menino ficou sem saber! 
— Proletário, acudiu o senhor Rodrigues, é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado. 
— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem arredar dessa cadeira! 
— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças? 
— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: — Não sei Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho. 
O senhor Rodrigues ergueu-se de um ímpeto e brada: 
— Mas eu sei! 
— Pois se sabe, diga! 
— Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo! 
E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta. 
No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário... 
A menina toma a palavra: 
— Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso! 
— Não fosse tolo, observa dona Bernardina, e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito. 
— Pois sim, acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão: pois sim, mamãe, chame papai e façam as pazes. 
— Sim! sim! façam as pazes! diz a menina em tom meigo e suplicante. Que tolice! duas pessoas que se estimam tanto zangarem-se por causa do plebiscito! 
Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto: 
— Seu Rodrigues, venha sentar-se: não vale a pena zangar-se por tão pouco. 
O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente. Ele entra, atravessa a sala, e vai sentar- se na cadeira de balanço. 
— É boa! brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio; é muito boa! Eu! eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!... 
A mulher e os filhos aproximam-se dele 
O homem continua num tom profundamente dogmático: 
— Plebiscito... 
E olha para todos os lados a ver se há por ali mais alguém que possa aproveitar a lição. 
— Plebiscito é uma lei decretada pelos povos romanos, estabelecido em comícios. 
— Ah! suspiram todos, aliviados. 
— Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo.

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