sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo: ÚTIL INDA BRINCANDO II:

 


Mês e meio depois desse encontro no Passeio Público, Leopoldo das Neves estava sozinho em casa, e sentia um aborrecimento de morte. 
Era uma noite chuvosa e fria. 
Tentou escrever, e não conseguiu alinhar quatro palavras; quis ler um livro interessante, que ainda não conhecia, e fechou o volume logo depois da segunda página; sentou-se ao piano, e sentiu as mãos pesadas como se fossem de chumbo. Acendeu um charuto, e deitou-se na cama a fio comprido, contemplando os bicos dos pés. 
Tinham-se já passado quarenta dias depois que ele apresentara Viriatinho a Clotilde, numa soirée, em casa de um tal comendador Freixo. 
Leopoldo tratara Clotilde com muita indiferença, passando a noite a jogar o voltarete com o marido dela, um major de engenheiros e um médico. De vez em quando o Viriatinho lhe aparecia na sala de jogo, e, por gestos, o informava de que tudo corria às mil maravilhas. 
Terminada a soirée, os dois amigos saíram juntos e, na rua deram cinqüenta passos ao lado um do outro sem falar. 
Leopoldo quebrou o silêncio: 
— Então, César? Chegaste, viste e venceste? 
Por única resposta o Viriatinho tirou da algibeira um pequenino lenço e apresentou-o a Leopoldo, 
dizendo: 
— Vê se conheces este perfume. 
— Bravo!... as coisas chegaram à cerimonia, meio maometana, da troca dos lenços? 
— Tal qual como contigo. Primeiro que tudo, e modéstia à parte, não há dúvida que lhe fiz certa 
impressão. É que naturalmente me achou parecido com algum herói de Xavier de Montépin. O resto já tu sabes: uns olhares ardentes e expressivos... uns apertos de mão durante a primeira quadrilha... logo em seguida uma valsa, e a troca dos lenços... Depois de amanhã lhe escreverei uma carta... 
Os dois amigos separaram-se, e, desde essa ocasião, Leopoldo não mais esteve com o Viriato. A correspondência de Clotilde cessou completamente. 
Durante os primeiros dias ele sentiu-se feliz, aliviado - uf! - daquela pesada algema que durante quatro anos penosamente arrastara. Depois vieram-lhe... como direi?... remorsos. Recordava-se do passado; saudosas cenas se renovavam no seu cérebro inquieto. 
Clotilde aparecia-lhe agora com toda a sua meiguice, como todo o seu ardor de mulher que fecha os olhos e se entrega resolutamente a um homem, como se mergulhasse no oceano 
Depois, ele passou todas noites consecutivas a sonhar com ela: via-a muito alta, muito magra, muito loura, de olhos azuis, a tocar harpa, dizendo-lhe: — Aqui me tens! Agora, sim, agora sou o teu ideal!... 
Naquela noite chuvosa e úmida, Leopoldo sentia-se mais do que nunca envergonhado do seu procedimento. Por fim de contas,. Clotilde era uma bonita mulher, e uma boa rapariga, que só tivera um defeito: amá-lo exageradamente. E que fez ele? Uma canalhice: entregou-a ao Viriatinho, ao Viriatinho da Estrada de Ferro, um pulha, uma besta que com certeza não saberia apreciá-la. 
O ingrato monologava esta interrogação terrível: — Já teriam indo à rua da Assembléia? - quando ouviu bater à porta. 
Foi abrir. Era o Viriatinho, que entrou alegre e radiante. 
— Está chovendo: tinha certeza de encontrar-te em casa. Venho trazer-te notícias da minha conquista... 
Fomos hoje à cartomante!... 
Leopoldo estremeceu, teve um sorriso contrafeito, e agarrou-se a um móvel para não cair. 
— Arre! Custou! Escrevi nada menos que de seis cartas! As três primeiras ficaram sem resposta. Afinal foi ela própria quem me indicou o buen retiro da rua da Assembléia... Talvez o mesmo quarto, hein? 
— Talvez... 
— Olha: sobem-se duas escadas... abre-se uma grade de pau... entra-se num corredor,,, primeira alcova à direita... com uma janela que dá para uma área... Embaixo uma casa de fumos... É isso?... 
As palavras de Viriatinho penetravam no coração de Leopoldo das Neves como outras tantas punhaladas. O pobre diabo teve ímpetos de agarrar uma bengala, e por pela porta a fora, a pauladas, o seu substituto; mas - que diabo! - o culpado de tudo não tinha sido ele próprio?... ele próprio não lhe indicara os meios de seduzir Clotilde?... não era esse o resultado fatal de uma combinação infame, proposta espontaneamente por ele?... 
O Viriatinho observou: 
— Mas... valha-me Deus! acho-te assim a modo de contrariado... Estás arrependido? 
— Eu?... que idéia!... murmurou Leopoldo sufocado; que idéia!... 
— Olha, se queres que te diga, acho que tinhas muita razão... A Clotilde é bonita, isso é, mas que mulher vulgar, que espírito acanhado!... Não tem por onde se lhe pegue!... 
— Não te dizia? acudiu vivamente Leopoldo, regozijado por essa opinião; a Clotilde não vale nada! 
— Sabes? não estou disposto a agüentar aquilo quatro anos, como tu... Nada! na primeira ocasião desfaço-me dela! Quis apenas prestar-te um serviço, e folgo de ter sido “útil inda brincando”. 
Alguns minutos depois, o Viriatinho saiu, e Leopoldo das Neves ficou aniquilado pelo desgosto. 
Foi para o seu quarto de dormir, abriu um armário, e tirou um vidro de perfumaria, o extrato predileto de Clotilde, há três anos esquecido no fundo daquele móvel. Ensopou o lenço, aspirou longamente aquele perfume “capitoso e enervante” como se quisesse anestesiar-se; depois, atirou-se à cama, enterrou a cabeça no travesseiro, e numa crise de nervos, começou a chorar desesperadamente, soluçando o nome dela. 
Passou assim toda a noite.

Contos do Sábado na Usina: Humberto de Campos: O ALCE:


Era nas margens do rio Cobar, ainda sem limo e sem nome, que se escancarava, dia e noite, naqueles tempos inocentes do mundo, a boca monstruosa da caverna. Aberta na rocha bruta pela força inconsciente das grandes águas primitivas, a enorme furna constituíra o refúgio seguro dos tímidos veados perseguidos, que ali iam repousar, assustados, contra a voracidade dos leões do Deserto. Um rebanho de cabras silvestres habitava-a, alarmando a ribanceira alta, quando o troglodita chegou, com a sua azagaia e a sua clava, disposto a ocupá-la. Os caprinos partiram em tumulto, pulando de rochedo em rochedo, estalando as unhas ásperas nas pedras escuras da margem, e o homem ficou só com as suas armas e a sua coragem, diante da natureza misteriosa. 
Quatro luas depois, a caverna das margens do rio era um lar, semente de uma família, esboço indeciso de uma tribo. Viviam nela, em paz e em silêncio, Djeb, o caçador de uros; Elam, domesticador de abelhas selvagens; e Heva, companheira e escrava de Elam. Vagavam, estes últimos, quase perdidos, pela solidão daquelas florestas ocidentais, quando encontraram o primeiro, e passaram a caminhar juntos, solidários contra os perigos infinitos da selva. A caverna, descoberta por Djeb, serviu-lhes de abrigo. À noite, aceso o fogo na pedra porejante, a goela enorme iluminava-se e os ursos, os tigres, os auroques, os mamutes, os cervos, os leões, os elefantes, os próprios cavalos bravios, paravam inquietos, perguntando-se em silêncio que monstro era aquele, que abria a garganta vermelha, onde dançavam línguas de chama, na encosta solitária da montanha. 
A vida na caverna era monótona, mas doce. Madrugada alta, quando vinham longe, ainda, os primeiros alvores do dia, Djeb chegava à boca da furna, defendida por grandes pedras amontoadas, consultava as horas pela marcha silenciosa das estrelas, prendia mais ao seu pescoço de uro selvagem a grande pele de tigre, examinava a extremidade da azagaia, cortada nas pontas agudas de um antílope, e partia cauteloso, a surpreender os grandes herbívoros adormecidos. Às vezes, desviavam-no no seu caminho bandos de cerdos, que perseguia na carreira, abalando com o estrondo dos seus passos a enorme floresta repousada. Outras, deixava-se ir sem destino, até sair, dia alto, nas grandes várzeas pontilhadas do sangue dos cardos floridos, de onde rebanhos de cavalos, partiam correndo e relinchando em galope largo, à sua aproximação. Nessas viagens de nômade, passava o troglodita dias e dias comendo, nas mãos de grandes unhas, pedaços de carne de uro mal tostada, e bebendo, de bruços, na correnteza dos rios ou, de pé, no lençol espumante das cachoeiras. De repente, retrocedia sobre os próprios passos, como se o perseguissem, uivando, todas as feras da floresta. Penetrava na caverna, arrastava pelo braço a escrava do companheiro, atirava-a sobre as folhas do leito, e amava, como os lobos, como os tigres, como os cães errantes da selva, como todos os seres da terra bárbara. Em seguida tomava, de novo, as suas armas, e partia sem rumo, - enquanto a mulher se erguia, sem revolta, do monte de folhas, atirando para as costas o tumultuoso caudal dos cabelos desordenados. 
Uma tarde penetrava Elam na caverna, quando ouviu, entre a queixa dos ramos do leito, os rugidos de amor do companheiro que regressara. Sob a sua cabeça fulva como a dos leões, os cabelos de Heva, mais fartos e mais claros, punham uma grande mancha no verde esmaecido das folhas. Estacou, olhando-os, e retrocedeu. Uma grande angústia enchia-lhe o abismo do coração. Sobre os seus ombros, vergando-o, oprimindo-o, havia o peso de um mundo. À sua inteligência de primitivo parecia que a floresta havia rolado, com toda a brutalidade dos seus troncos e dos seus ramos, sobre a sua cabeça impotente. Um desejo irresistível, teimoso, imperativo, chamava-o de novo para a furna, onde deixara, enlaçados como dois lobos, o amigo e a companheira. Detinha-se, porém, indeciso, olhando o chão, 
onde grandes formigas carregavam, ajudando-se mutuamente, pedaços de folhas, cortadas de um tinhorão nascido sobre uma pedra. Olhou-as, e pensou: 
- As mulheres são, talvez, como o tinhorão que nasce na pedra; todas as formigas podem devorá-lo... 
Repeliu, no entanto, o pensamento, e continuou a andar sem destino. Amanhecia quando o domesticador de abelhas chegou, com a sua azagaia de caça, à orla da floresta, longe do rio. A cautela involuntária com que andava tornou a sua aproximação imperceptível aos habitantes da clareira. Um búfalo, apenas, suspeitou da sua presença, aspirando com força o ar circunstante, desconfiado. Alguns cervos ergueram a cabeça eriçada de galhos entrecruzados, afilando as orelhas para maior percepção dos rumores. Tudo voltou, porém, à quietude, à serenidade, à paz confiante, com a imobilidade de Elam, oculto, como um verme, pelo tronco de uma grande faia de raízes à flor do solo. 
O nômade examinava, interessado, a vida harmônica das coisas, quando se aproximou da orla da selva um grande alce cujas pontas ultrapassavam a altura de um elefante. Atrás dele, caminhava, tosquiando a relva tenra, uma cerva de pêlo ruivo, que parecia tranqüila, como se confiasse inteiramente a sua segurança à coragem vigilante do companheiro. De repente, surgiu da floresta, dirigindo-se em sentido contrário, outro alce solitário, que se pôs a marchar no rumo da grande corça primitiva. O alce da várzea ergueu a cabeça semeada de pontas, e berrou alto. O outro respondeu, e defrontaram -se. Um ruído de ramos secos estalou, na fúria do encontro. Com os galhos emaranhados, cruzados, confundidos, os dois quadrúpedes vergavam o dorso, em dois arcos enormes. Um ruído mais forte anunciou que a luta ia terminar. Com a cabeça voltada, o alce agressor tombou por terra, num berro convulsivo, trêmulo, estrangulado, que assustou os uros distantes. O veado vitorioso desembaraçou-se do vencido, recuou dois passos, investiu contra o corpo palpitante, perfurou-lhe o ventre com duas marradas violentas, remexendo-lhe as vísceras, com as pontas agudas. Em seguida, baliu, alto, chamando a companheira. Esta achegou-se amorosa, lambendo-lhe o pêlo, como num agradecimento comovido. E continuaram a pastar, juntos, à claridade cariciosa do sol, a erva tenra da clareira... 
Elam acompanhara, imóvel, a grande luta dos cervos. Quando o combate acabou, o bárbaro retomou a azagaia, examinando-lhe as pontas, e retrocedeu, na direção da caverna. 
Na manhã seguinte, as águas do rio lavavam, pela primeira vez, na furna dos trogloditas, o sangue de um homem.

Contos do Sábado na Usina: Machado de Assis: Luiz Soares II:



O tio de Soares chamava-se o major Luís da Cunha Vilela, e era com efeito um homem já velho e adoentado. Contudo não se podia dizer que morreria cedo. O major Vilela observava um rigoroso regime que lhe ia entretendo a vida. Tinha uns bons sessenta anos. Era um velho alegre e severo ao mesmo tempo. Gostava de rir, mas era implacável com os maus costumes. Constitucional por necessidade, era no fundo de sua alma absolutista. Chorava pela sociedade antiga; criticava constantemente a nova. Enfim foi o último homem que abandonou a cabeleira de rabicho. 
Vivia o major Vilela em Catumbi, acompanhado de sua sobrinha Adelaide, e mais uma velha parenta. A sua vida era patriarcal. Importando-se pouco ou nada com o que ia por fora, o major entregava-se todo ao cuidado de sua casa, aonde poucos amigos e algumas famílias da vizinhança o iam ver, e passar as noites com ele. O major conservava sempre a mesma alegria, ainda nas ocasiões em que o reumatismo o prostrava. Os reumáticos dificilmente acreditarão nisto; mas eu posso afirmar que era verdade. 
Foi num dia de manhã, felizmente um dia em que o major não sentia o menor achaque, e ria e brincava com as duas parentas, que Soares apareceu em Catumbi à porta do tio. 
Quando o major recebeu o cartão com o nome do sobrinho, supôs que era alguma caçoada. Podia contar com todos em casa, menos o sobrinho. Fazia já dois anos que o não via, e entre a última e a penúltima vez tinha mediado ano e meio. Mas o moleque disse-lhe tão seriamente que o nhonhô Luís estava na sala de espera, que o velho acabou por acreditar. 
- Que te parece, Adelaide? A moça não respondeu. 
O velho foi à sala de visitas. 
Soares tinha pensado no meio de aparecer ao tio. Ajoelhar-se era dramático demais; cair-lhe nos braços exigia certo impulso íntimo que ele não tinha; além de que, Soares vexava-se de ter ou fingir uma comoção. Lembrou-se de começar uma conversação alheia ao fim que o levava lá, e acabar por confessar-se disposto a arrepiar carreira. Mas este meio tinha o inconveniente de fazer preceder a reconciliação por um sermão, que o rapaz dispensava. Ainda não se resolvera a aceitar um dos muitos meios que lhe vieram à idéia, quando o major apareceu à porta da sala. 
O major parou à porta sem dizer palavra e lançou sobre o sobrinho um olhar severo e interrogador. Soares hesitou um instante; mas como a situação podia prolongar-se em benefício seu, o rapaz seguiu um movimento natural: foi ao tio e estendeu-lhe a mão. 
- Meu tio, disse ele, não precisa dizer mais nada; o seu olhar diz-me tudo. Fui pecador e arrependo- me. Aqui estou. 
O major estendeu-lhe a mão, que o rapaz beijou com o respeito de que era suscetível. Depois encaminhou-se para uma cadeira e sentou-se; o rapaz ficou de pé. 
- Se o teu arrependimento é sincero, abro-te a minha porta e o meu coração. Se não é sincero podes ir embora; há muito tempo que não freqüento a casa da ópera: não gosto de comediantes. 
Soares protestou que era sincero. Disse que fora dissipado e doido, mas que aos trinta anos era justo ter juízo. Reconhecia agora que o tio sempre tivera razão. Supôs ao princípio que eram simples rabugices de velho, e mais nada; mas não era natural esta leviandade num rapaz educado no vício? Felizmente corrigia-se a tempo. O que ele agora queria era entrar em bom viver, e começava por aceitar um emprego público que o obrigasse a trabalhar e fazer-se sério. Tratava-se de ganhar uma posição. 
Ouvindo o discurso de que fiz o extrato acima, o major procurava adivinhar o fundo do pensamento de Soares. Seria ele sincero? O velho concluiu que o sobrinho falava com a alma nas mãos. A sua 
ilusão chegou ao ponto de ver-lhe uma lágrima nos olhos, lágrima que não apareceu, nem mesmo fingida. 
Quando Soares acabou, o major estendeu-lhe a mão e apertou a que o rapaz lhe estendeu também. 
- Creio, Luiz. Ainda bem que te arrependeste a tempo. Isso que vivias não era vida nem morte; a vida é mais digna e a morte mais tranqüila do que a existência que malbarataste. Entras agora em casa como um filho pródigo. Terás o melhor lugar à mesa. Esta família é a mesma família. 
O major continuou por este tom; Soares ouviu a pé quedo o discurso do tio. Dizia consigo que era a amostra da pena que ia sofrer, e um grande desconto dos seus pecados. 
O major acabou levando o rapaz para dentro, onde os esperava o almoço. 
Na sala de jantar estavam Adelaide e a velha parenta. A Sra. Antônia de Moura Vilela recebeu Soares com grandes exclamações que envergonharam sinceramente o rapaz. Quanto a Adelaide, apenas o cumprimentou sem olhar para ele; Soares retribuiu o cumprimento. 
O major reparou na frieza; mas parece que sabia alguma coisa, porque apenas deu uma risadinha amarela, coisa que lhe era peculiar. 
Sentaram-se à mesa, e o almoço correu entre as pilhérias do major, as recriminações da Sra. Antônia, as explicações do rapaz e o silêncio de Adelaide. Quando o almoço acabou, o major disse ao sobrinho que fumasse, concessão enorme que o rapaz a custo aceitou. As duas senhoras saíram; ficaram os dois à mesa. 
- Estás então disposto a trabalhar? 
- Estou, meu tio. 
- Bem; vou ver se te arranjo um emprego. Que emprego preferes? 
- O que quiser, meu tio, contanto que eu trabalhe. 
- Bem. Levarás amanhã, uma carta minha a um dos ministros, Deus queira que possas obter o emprego sem dificuldade. Quero ver-te trabalhador e sério; quero ver-te homem. As dissipações não produzem nada, a não ser dívidas e desgostos... Tens dívidas? 
- Nenhuma, respondeu Soares. 
Soares mentia. Tinha uma dívida de alfaiate, relativamente pequena; queria pagá-la sem que o tio soubesse. 
No dia seguinte o major escreveu a carta prometida, que o sobrinho levou ao ministro; e tão feliz foi, que daí a um mês estava empregado em uma secretaria com um bom ordenado. 
Cumpre fazer justiça ao rapaz. O sacrifício que fez de transformar os seus hábitos de vida foi enorme, e a julgá-lo pelos seus antecedentes, ninguém o julgara capaz de tal. Mas o desejo de perpetuar uma vida de dissipação pode explicar a mudança e o sacrifício. Aquilo na existência de Soares não passava de um parênteses mais ou menos extenso. Almejava por fechá-lo e continuar o período como havia começado, isto é, vivendo com Aspásia e pagodeando com Alcibíades. 
O tio não desconfiava de nada; mas temia que o rapaz fosse novamente tentado à fuga, ou porque o seduzisse a lembrança das dissipações antigas, ou porque o aborrecesse a monotonia e a fadiga do trabalho. Com o fim de impedir o desastre, lembrou-se de inspirar-lhe ambição política. Pensava o major que a política seria um remédio decisivo para aquele doente, como se não fosse conhecido que os louros de Lovelace e os de Turgot andam muita vez na mesma cabeça. 
Soares não desanimou o major. Disse que era natural acabar a sua existência na política, e chegou a dizer que algumas vezes sonhara com uma cadeira no parlamento. 
- Pois eu verei se te posso arranjar isto, respondeu o tio. O que é preciso é que estudes a ciência da política, a história do nosso parlamento e do nosso governo; e principalmente é preciso que continues a ser o que és hoje: um rapaz sério. 
Se bem o dizia o major, melhor o fazia Soares, que desde então meteu-se com os livros e lia com afinco as discussões das câmaras. 
Soares não morava com o tio, mas passava lá todo o tempo que lhe sobrava do trabalho, e voltava para casa depois do chá, que era patriarcal, e bem diferente das ceatas do antigo tempo. 
Não afirmo que entre as duas fases da existência de Luís Soares não houvesse algum elo de união, e que o emigrante das terras de Gnido não fizesse de quando em quando alguma excursão à pátria. 
Em todo o caso essas excursões eram tão secretas que ninguém sabia delas, nem talvez os habitantes das referidas terras, com exceção dos poucos escolhidos para receberem o expatriado. O caso era singular, porque naquele país não se reconhece o cidadão naturalizado estrangeiro, ao contrário da Inglaterra, que não dá aos súditos da rainha o direito de escolherem outra pátria. 
Soares encontrava-se de quando em quando com Pires. O confidente do convertido manifestava a sua amizade antiga oferecendo-lhe um charuto de Havana e contando-lhe algumas boas fortunas havidas nas campanhas do amor, em que o alarve supunha ser consumado general. 
Havia já cinco meses que o sobrinho do major Vilela se achava empregado, e ainda os chefes da repartição não tinham tido um só motivo de queixa contra ele. A dedicação era digna de melhor causa. Exteriormente via-se em Luís Soares um monge; raspando-se um pouco achava-se o diabo. Ora, o diabo viu de longe uma conquista...

Contos do Sábado na Usina: Alcantara Machado: APÓLOGO BRASILEIRO SEM VÉU DE ALEGORIA




O trenzinho recebeu em Maguari o pessoal do matadouro e tocou para Belém. Já era noite. Só se sentia o cheiro doce do sangue. As manchas na roupa dos passageiros ninguém via porque
não havia luz. De vez em quando passava uma fagulha que a chaminé da locomotiva botava. E os vagões no escuro.
Trem misterioso. Noite fora noite dentro. O chefe vinha recolher os bilhetes de cigarro na boca. Chegava a passagem bem perto da ponta acesa e dava uma chupada para fazer mais luz. Via mal-e~mal a data e ia guardando no bolso. Havia sempre uns que gritavam:
- Vá pisar no inferno!
Ele pedia perdão (ou não pedia) e continuava seu caminho. Os vagões sacolejando.
O trenzinho seguia danado para Belém porque o maquinista não tinha jantado até aquela hora. Os que não dormiam aproveitando a escuridão conversavam e até gesticulavam por força do hábito brasileiro. Ou então cantavam, assobiavam. Só as mulheres se encolhiam com medo de algum desrespeito.
Noite sem lua nem nada. Os fósforos é que alumiavam um instante as caras cansadas e a pretidão feia caía de novo. Ninguém estranhava. Era assim mesmo todos os dias. O pessoal do matadouro já estava acostumado. Parecia trem de carga o trem de Maguari.
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Porém aconteceu que no dia 6 de maio viajava no penúltimo banco do lado direito do segundo vagão um cego de óculos azuis. Cego baiano das margens do Verde de Baixo. Flautista de profissão dera um concerto em Bragança. Parara em Maguari. Voltava para Belém com setenta e quatrocentos no bolso. O taioca guia dele só dava uma folga no bocejo para cuspir.
Baiano velho estava contente. Primeiro deu uma cotovelada no secretário e puxou conversa. Puxou à toa porque não veio nada. Então principiou a assobiar. Assobiou uma valsa (dessas que vão subindo, vão subindo e depois descendo, vêm descendo), uma polca, um pedaço do Trovador. Ficou quieto uns tempos. De repente deu uma cousa nele. Perguntou para o rapaz:
- O jornal não dá nada sobre a sucessão presidencial?
O rapaz respondeu:
- Não sei: nós estamos no escuro.
- No escuro?
- É.
Ficou matutando calado. Claríssimo que não compreendia bem. Perguntou de novo:
- Não tem luz?
Bocejo.
- Não tem.
Cuspada.
Matutou mais um pouco. Perguntou de novo:
- O vagão está no escuro?
- Está.
De tanta indignação bateu com o porrete no soalho. E principiou a grita dele assim:
- Não pode ser! Estrada relaxada! Que é que faz que não acende? Não se pode viver sem luz! A luz é necessária! A luz é o maior dom da natureza! Luz! Luz! Luz!
E a luz não foi feita. Continuou berrando:
- Luz! Luz! Luz! Só a escuridão respondia.
Baiano velho estava fulo. Urrava. Vozes perguntaram dentro da noite:
- Que é que há?
Baiano velho trovejou:
- Não tem luz!
Vozes concordaram:
- Pois não tem mesmo.
*
Foi preciso explicar que era um desaforo. Homem não é bicho. Viver nas trevas é cuspir no progresso da humanidade. Depois a gente tem a obrigação de reagir contra os exploradores do povo. No preço da passagem está incluída a luz. O governo não toma providências? Não torna? A turba ignara fará valer seus direitos sem ele. Contra ele se necessário. Brasileiro é bom, é amigo da paz, é tudo quanto quiserem: mas bobo não. Chega um dia e a cousa pega fogo.
Todos gritavam discutindo com calor e palavrões. Um mulato propôs que se matasse o chefe do trem. Mas João Virgulino lembrou:
- Ele é pobre como a gente.
Outro sugeriu uma grande passeata em Belém com banda de música e discursos.
- Foguetes também?
- Foguetes também.
- Be-le-za!
Mas João Virgulino observou:
- Isso custa dinheiro.
- Que é que se vai fazer então? Ninguém sabia. Isto é: João Virgulino sabia. Magarefe-chefe do matadouro de Maguari, tirou a faca da cinta e começou a esquartejar o banco de palhinha. Com todas as regras do ofício. Cortou um pedaço, jogou pela janela e disse:
- Dois quilos de lombo!
Cortou outro e disse:
- Quilo e meio de toicinho!
Todos os passageiros magarefes e auxiliares imitaram o chefe. Os instintos carniceiros se satisfizeram plenamente. A indignação virou alegria. Era cortar e jogar pelas janelas. Parecia um serviço organizado. Ordens partiam de todos os lados. Com piadas, risadas, gargalhadas.
- Quantas reses, Zé Bento?
- Eu estou na quarta, Zé Bento!
Baiano velho quando percebeu a história pulou de contente. O chefe do trem correu quase que chorando.
- Que é isso? Que é isso? É por causa da luz?
Baiano velho respondeu:
- É por causa das trevas!
O chefe do trem suplicava:
- Calma! Calma! Eu arranjo umas velinhas.
João Virgulino percorria os vagões apalpando os bancos.
- Aqui ainda tem uns três quilos de colchão-mole!
O chefe do trem foi para o cubículo dele e se fechou por dentro rezando. Belém já estava perto. Dos bancos só restava a armação de ferro. Os passageiros de pé contavam façanhas. Baiano velho tocava a marcha de sua lavra chamada Às Armas Cidadãos! O taioquinha embrulhava no jornal a faca surripiada na confusão.
Tocando a sineta o trem de Maguari fundou na estação de Belém. Em dois tempos os vagões se esvaziaram. O último a sair, foi o chefe muito pálido.
*
Belém vibrou com a história. Os jornais afixaram cartazes. Era assim o titulo de um: Os Passageiros no Trem de Maguari Amotinaram-se Jogando os Assentos ao Leito da Estrada. Mas foi substituído porque se prestava a interpretações que feriam de frente o decoro das famílias. Diante do Teatro da Paz houve um conflito sangrento entre populares.
Dada a queixa à polícia foi iniciado o inquérito para apurar as responsabilidades. Perante grande número de advogados, representantes da imprensa, curiosos e pessoas gradas, o delegado ouviu vários passageiros. Todos se mantiveram na negativa menos um que se declarou protestante e trazia um exemplar da Bíblia no bolso. O delegado perguntou:
- Qual a causa verdadeira do motim?
O homem respondeu:
- A causa verdadeira do motim foi a falta de luz nos vagões.
O delegado olhou firme nos olhos do passageiro e continuou:
- Quem encabeçou o movimento?
Em meio da ansiosa expectativa dos presentes o homem revelou:
- Quem encabeçou o movimento foi um cego!
Quis jurar sobre a Bíblia mas foi imediatamente recolhido ao xadrez porque com a autoridade não se brinca.