sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Contos do Sábado na Usina: Humberto de Campos: O MONSTRO:



Pelas margens sagradas do Eufrates, que fugia, então, sem espuma e sem ondas, caminhavam, na infância maravilhosa da Terra, a Dor e a Morte. Eram dois espetros longos e vagos, sem forma definida, cujos pés não deixavam traços na areia. De onde vinham, nem elas próprias sabiam. Guardavam silêncio, e marchavam sem ruído olhando as coisas recém-criadas. 
Foi isto no sexto dia da Criação. Com o focinho mergulhado no rio, hipopótamos descomunais contemplavam, parados, a sua sombra enorme, tremulamente refletida nas águas. Leões fulvos, de jubas tão grandes que pareciam, de longe, estranhas frondes de árvores louras, estendiam a cabeça redonda, perscrutando o Deserto. Para o interior da terra, onde o solo começava a cobrir-se de verde, velando a sua nudez com um leve manto de relva moça, que os primeiros botões enfeitavam, fervilhava um mundo de seres novos, assustados, ainda, com a surpresa miraculosa da Vida. Eram aves gigantescas, palmípedes monstruosos, que mal se sustinham nas asas grosseiras, e que traziam ainda na fragilidade dos ossos a umidade do barro modelado na véspera. Algumas marchavam aos saltos, o arcabouço à mostra, mal vestidas pela penugem nascente. Outras se aninhavam, já, nas moitas sem espinhos, nos primeiros cuidados da primeira procriação. Batráquios de dorso esverdeado porejando água, fitavam mudos, com os largos olhos fosforescentes e interrogativos, a fila cinzenta dos outeiros longínquos, que pareciam, à distância, à sua brutalidade virgem, uma procissão silenciosa, contínua, infinita, de batráquios maiores. Auroques taciturnos, sacudindo a cabeça brutal, em que se enrolavam, encharcadas e gotejantes, braçadas de ervas dos charcos, desafiavam-se, urrando, com as patas enfiadas na terra mole. 
Rebanho monstruoso de um gigante que os perdera, os elefantes pastavam em bando, colhendo com a tromba, como ramalhetes verdes, moitas de arbustos frescos. Aqui e ali, um alce galopava, célere. E à sua passagem, os outros animais o ficavam olhando, como se perguntassem que focinho, que tromba, ou que bico, havia privado das folhas aquele galho seco e pontiagudo que ele arrebatava na fuga. Ursos primitivos lambiam as patas, monotonamente. E quando um pássaro mais ligeiro cortava o ar, num vôo rápido, havia como que uma interrogação inocente nos olhos ingênuos de todos os brutos. 
Em passo triste, a Dor e a Morte caminham, olhando, sem interesse, as maravilhas da Criação. Raramente marcham lado a lado. A Dor vai sempre à frente, ora mais vagarosa, ora mais apressada; a outra, sempre no mesmo ritmo, não se adianta, nem se atrasa. Adivinhando, de longe, a marcha dos dois duendes, as coisas todas se arrepiam, tomadas de agoniado terror. As folhas, ainda mal recortadas no limo do chão, contraem-se, num susto impreciso. Os animais entreolham-se inquietos e o vento, o próprio vento, parece gemer mais alto, e correr mais veloz à aproximação lenta, mas segura, das duas inimigas da Vida. 
Súbito, como se a detivesse um grande braço invisível, a Dor estacou, deixando aproximar-se a companheira. 
Para que mistério - disse, a voz surda, - para que mistério teria Jeová, no capricho da sua onipotência, enfeitado a terra de tanta coisa curiosa? 
A Morte estendeu os olhos perscrutadores até os limites do horizonte, abrangendo o rio e o 
Deserto, e observou, num sorriso macabro, que fez rugir os leões: 
- Para nós ambas, talvez... 
- E se nós próprias fizéssemos, com as nossas mãos, uma criatura que fosse, na terra, o objeto carinhoso do nosso cuidado? Modelado por nós mesmas, o nosso filho seria, com certeza, diferente dos auroques, dos ursos, dos mastodontes, das aves fugitivas do céu e das grandes baleias do mar. Tra-lo-íamos, eu e tu, em nossos braços, fazendo do seu canto, ou do seu urro, a música do nosso prazer... Eu o traria sempre comigo, embalando-o, avivando-lhe o espírito, aperfeiçoando-lhe à alma, formando-lhe o coração. Quando eu me fatigasse, tomá-lo-ias, tu, então, no teu regaço... Queres? 
A Morte assentiu, e desceram, ambas, à margem do rio; onde se acocoraram, sombrias, modelando o seu filho. 
- Eu darei a água... - disse a Dor, mergulhando a concha das mãos, de dedos esqueléticos, no lençol vagaroso da corrente. 
- Eu darei o barro... - ajuntou a Morte, enchendo as mãos de lama pútrida, que o sol endurecera. 
E puseram-se a trabalhar. Seca e áspera, a lama se desfazia nas mãos da oleira sinistra que, assim, trabalhava inutilmente. 
- Traze mais água! - pedia. 
A Dor enchia as mãos no leito do rio, molhava o barro, e este, logo, se amoldava, escuro, ao capricho dos dedos magros que o comprimiam. O crânio, os olhos, o nariz, a boca, Os braços, o ventre, as pernas, tudo se foi formando, a um jeito, mais forte ou mais leve, da escultora silenciosa. 
- Mais água! - pedia esta, logo que o barro se tornava menos dócil. E a Dor enchia as mãos na corrente, e levava-a à companheira. 
Horas depois, possuía a Criação um bicho desconhecido. Plagiado da obra divina, o novo habitante da Terra não se parecia com os outros, sendo, embora, nas suas particularidades, uma reminiscência de todos eles. A sua juba era a do leão; os seus dentes, os do lobo; os seus olhos, os da hiena; andava sobre dois pés, como as aves, e trepava, rápido, como os bugios. 
O seu aparecimento no seio da animalidade alarmou a Criação. Os uros, que jamais se haviam mostrado selvagens, urravam alto, e escarvavam o solo, à sua aproximação. As aves piavam nos ninhos, amedrontadas e os leões, as hienas, os tigres, os lobos, reconhecendo-se nele, arreganhavam o dentes ou mostravam as garras, como se a terra acabasse de ser invadida, naquele instante, por um inimigo inesperado. 
Repelido pelos outros seres, marchava, assim, o Homem pela margem do rio, custodiado pela Dor e pela Morte. No seu espirito inseguro, surgiam, às vezes, interrogações inquietantes. Certo, se aqueles seres se assombravam à sua aproximação, era porque reconheciam, unânimes, a sua condição superior. E assim refletindo, comprazia-se em amedrontar as aves, e em perseguir em correrias desabaladas pela planície, ou pela margem do rio, esquecendo por um instante a Dor e a Morte, os gamos, os cerdos, as cabras, os animais que lhe pareciam mais fracos. 
Um dia, porém, orgulhosas do seu filho, as duas se desavieram, disputando-se a primazia na criação do abantesma. 
- Quem o criou fui eu! - dizia a Morte. - Fui eu quem contribuiu com o barro! 
- Fui eu! - gritava a outra. - Que farias tu sem a água, que amoleceu a lama? 
E como nenhuma voz conciliadora as serenasse, resolveram, as duas, que cada uma tiraria da sua criatura a parte com que havia contribuído. 
- Eu dei a água! - tornou a Dor. 
- Eu dei o barro! - insistiu a Morte. 
Abrindo os braços, a Dor lançou- se contra o monstro, apertando-o, violentamente, com as tenazes das mãos. A água, que o corpo continha, subiu, de repente, aos olhos do Homem, e começou a cair, gota a gota... Quando não havia mais água que espremer, a Dor se foi embora. A Morte aproximou-se, então, do monte de lama, tomou-o nos ombros, e partiu... 
Humberto de Campos

Contos do Sábado na Usina: Zulmira Ribeiro Tavares:O japonês dos olhos redondos:





Meu amigo e informante almoça comigo aos domingos em minha casa. 
Ele é desquitado, não tem filhos, eu, um solteirão. Ele vive de rendas, poucas, eu sou tradutor, tenho algumas economias além da casa própria. Nada nos aflige em particular; nem a velhice um dia - já passamos os quarenta, somos contemporâneos, a data exata de nosso nascimento vai mais por conta da imaginação do que dos fatos; com isso mostro-me francamente otimista, não acho que estamos nos saindo assim tão mal; fazemos o nosso cooper na pista do parque Ibirapuera nas manhãs de domingo e depois do chuveiro nos premiamos com um bom almoço comprado no restaurante da rua de trás; a que sai da avenida larga, aquela avenida extensa onde um dia existiu apenas o leito para as águas sujas do córrego do Sapateiro. 
Digo que meu amigo além de amigo é informante porque é ele que aos domingos reapresenta o mundo e as coisas para mim. Não que eu não tenha idéias. Como não? E muitas! Mas ele, por assim dizer, é quem anuncia primeiro, ele que primeiro assinala, descreve, interpreta. Eu me resguardo. Quase sempre me calo. Mas quando a discordância é muita, respondo. Em suma: ele que me informa verdadeiramente sobre as coisas, eu simplesmente reajo. O que tenho e o que sei são em princípio para o meu uso. Deixo que as impressões se acumulem, deixo que desçam fundo e formem um depósito. 
É o meu amigo que faz nascer, por oposição, o meu mundo desse depósito, tudo: uma espécie de vórtice ao contrário que se pusesse em movimento por efeito de alguma palavra sua e, em margens circulares cada vez mais amplas, fosse largando sucessivamente: minha casa, o bairro, suas ruas, enfim as idéias, as cidades, fortificações concêntricas, perfeitamente estruturadas que ninguém diria pudessem brotar da natureza até certo ponto amorfa como vem a ser a dos depósitos. Sendo esse o caso, eu dependendo da sua informação para colocar a minha, tenho-me na conta e acertadamente, de seu contra-informante. Não deve causar espécie a idéia de eu procurar definir nossas manifestações recíprocas de amizade como atos de informação e contra-informação. Afinal somos, como todos em quem esbarramos andando por aí mais ou menos de pé, os transeuntes da contra-revolução de 64 
(que meu amigo insiste em chamar de revolução). 
Veios desgarrados e insubmissos do córrego do Sapateiro ou de algum outro que eu nunca soube, fizeram - ajudados pelos aguaceiros de verão - o seu trabalho de sapa no subsolo do meu terreno. Metade do muro da frente desabou. Contratei dois pedreiros que amanhã tornam a erguê-lo, talvez mova um processo contra a Prefeitura por perdas e danos, mas hoje: 
Uma paisagem nova abre-se para mim e meu amigo. Defronte, a casa do tintureiro torna-se próxima e animada. O tintureiro, coisa que nunca me ocorreu, também não trabalha ao domingos. Anda de lá para cá na sua propriedade, ergue-se, senta-se, almoça, cuida da sua cerca-viva de azaléias. Sorri, cumprimenta: 
Meu amigo, duríssimo e preciso, informa-me no ato: 
- Dissimulado como todos os japoneses. Reparou no sorriso? Calo-me como é de meu feitio. 
- Reparou no sorriso? 
De início acho mais prudente responder-lhe com outra pergunta para ver se o distraio das vertentes sem volta onde usualmente sua retórica imbatível o lança. Arrisco: 
- Que sorriso? 
- Pergunta estapafúrdia! E grosseira se me permite a franqueza! De quem havia de ser o sorriso? O seu? Não gastaria um perdigoto para descrevê-lo! O do muro caído? Sorriem os muros por acaso? E ainda que assim fosse, teria esse muro em especial, razões particulares para sorrir? 
Permaneço razoavelmente calmo. Mastigo minha lasanha, bebo um gole do tinto, brinco com o guardanapo. Ouso mesmo a barbaridade do lugar-comum: 
- Parece que vai chover. 
Meu informante lambe o dedo indicador e o espeta para fora da janela na mornidão do dia para ver de que lado vem o vento; não vem de nenhum. Na casa defronte observa-o o vizinho tintureiro, o sorriso aumenta, quase um riso. Meu amigo recolhe o dedo sobressaltado; volta à carga: 
- Você tem ainda o desplante de me perguntar que sorriso? 
Faz calor na sala, acho-me antecipadamente cansado e concedo: 
- Suponho que queira se referir ao tintureiro meu vizinho, não? 
- Japonês! 
Sinto-me no direito de manifestar meu espanto jogando o guardanapo com força sobre a mesa. Meu amigo o ignora e volta à carga: 
- Reparou no sorriso? Se não reparou há pouco tem oportunidade agora pois o dissimulado continua de boca aberta! 
Apesar de ser impossível ao vizinho pegar o conteúdo das palavras de meu informante, eu, como forma de compensação, cumprimento-o várias vezes, aceno-lhe, agito aflitivamente o guardanapo como se fosse uma bandeirinha de sinaleiro. 
- Vai em frente, vai em frente - provoca meu amigo. - Só falta você se jogar pela janela e ir lhe lamber os pés! Inocente útil! E se fosse um espião? 
- Um espião!? - Confundo-me, interrompo-me, vejo que me deixei apanhar numa armadilha. É preciso voltar atrás. Retomar o fio. Afasto o copo de vinho, procuro ficar lúcido como um filamento aceso, falo escandindo as sílabas: 
- Meu caro, o que o leva a supor que estamos diante de um tintureiro japonês? 
Meu amigo e informante responde limpidament , os olhos postos no outro lado da rua: 
- Reparou na natureza do sorriso? 
- Muito franco, muito aberto, se quer saber. Particularmente amigável. 
- Perfeitamente, aí reside a completa dissimulação; aí também começa a pista. Meu Deus, meu Deus! Você é mesmo um simples de coração! Um sorriso dissimulado que se mostrasse francamente dissimulado, o seria? hein? Sua lógica perfeita mantém minha boca fechada. 
- Um sorriso dissimuladamente franco, por sua vez, teria alguma coisa 
a ver com esse caso? Não, claro, porque um sorriso dessa espécie nada mais é que o de um caráter franco que por pudor se oculta, disfarça por timidez suas manifestações mais sinceras, está me seguindo? 
Aprovo com a cabeça e tomo mais vinho. 
- Agora, o que me diz de um sorriso francamente franco? Hum? 
Aliso a toalha da mesa e me permito regurgitar de forma audível para mostrar que não apenas estou na minha casa como estou muito à vontade na minha casa. Mas meu amigo encontra-se surdo para tudo que não diga respeito à sua cerrada argumentação; continua: 

- É na manifestação absoluta de franqueza, no sorriso inteiramente aberto sem qualquer hesitação que igualmente se manifesta a máxima dissimulação é lógico! Sendo assim, Irritado no limite da cólera eu o interrompo: 
- Muito bem! E aonde está querendo chegar? 
Meu amigo pede calma; repete a lasanha, está seguro como em raros domingos eu o vi e particularmente satisfeito: 
- Meu caro, não estou querendo chegar porque já cheguei. O sorriso perfeitamente franco desse seu vizinho tintureiro naturalmente não faz mais do que exprimir a capacidade para a perfeita dissimulação, própria da raça! 
- Que raça? 
- Recomeçamos como no caso do sorriso? Que raça, que raça! 
Amarela, amarela! Japonesa, japonesa! Preciso ficar aqui repetindo como um disco quebrado? Amarela! Amarela! Japonesa! Japonesa! 
Respiro fundo, enxugo o suor da testa com a ponta do guardanapo, um gesto que reconheço desagradável e que nunca pensei fazer diante de terceiros. Meu amigo desvia os olhos de mim com uma ponta de repugnância em uma dessas manifestações espontâneas de rejeição pelo outro que mesmo 
a maior amizade não consegue sempre ocultar. Pergunto, novamente destacando as sílabas: 
- O que o leva a supor que tenha diante dos olhos, ali defronte, um cidadão japonês? 
- Ora, ora! Não bastasse o sorriso, a profissão! 
- E por que os tintureiros teriam que ser necessariamente japoneses? 
- Meu caro, não necessariamente. Mas veja, sem querer chamá-lo de ignorante, suponho que você conheça algo sobre imigração japonesa, as diversas profissões ocupadas no Estado de S. Paulo no meio urbano depois que os descendentes dos primeiros japoneses, deixando a lavoura... 
- Basta! 
- Pois bem, basta. Não pensei em ofendê-lo. Mas quando se junta a essa característica ocupacional típica, outra característica também típica, étnica ou cultural, como queira, o sorriso dissimulado, o que mais precisa para formar um juízo? 
Sinto que a minha jugular lateja. Nunca pensei até o dia de hoje na minha jugular, nunca pensei em nomeá-la, tenho até dúvidas se é a jugular mesmo, mas algo no meu pescoço pula de forma insistente como se fosse a qualquer momento escapar do estojo da pele, minhas palavras se atropelam, afasto o copo de vinho, digo respirando fundo: 
- Se outros sinais não lhe foram suficientes, tenho o prazer aqui agora de lhe afirmar que ali defronte acha-se um tintureiro brasileiro! Um tintureiro brasileiro, nem mais nem menos! 
- Um nisei, quer você dizer? 
- Não, não é um nisei o que eu quero dizer. Trata-se de um tintureiro brasileiro, brasileiro! Cujo pai porém, além de não ter sido um japonês, também não foi um português! Ou africano, ou italiano! 
- Ah, ah, e como então se chama esse senhor "brasileiro"? - Meu amigo aspeia a palavra no ar com grande habilidade cênica. 
- Marcus Czestochowska! não sei se pronuncio certo, o que não vem ao caso. 
- E como vem! Divina Providência! Czestochowska, Kurosawa! O que quer mais? 
- Como o que quero? 
- Então, não conhece o diretor japonês de cinema, Akira Kurosawa? Não percebe que se trata de nomes gêmeos, com o mesmo peso sonoro, provindos do mesmo chão? 
Estou farto e não o escondo: 
- Não seja imbecil, é um nome polonês, aliás o nome de uma cidade da Polônia. Nunca ouviu falar de Matka Boska Czestochowska, analfabeto? É a Virgem Maria, é uma imagem da Virgem Maria que existe pendurada numa igreja em Czestochowska! Provavelmente a idéia de adotar o nome da cidade como nome de família vem de algum ascendente mais remoto que simples pais ou avós, arrastado, quem sabe, por irresistível surto de nacionalismo exaltado ou catolicismo triunfalista, que sei eu? 
Meu amigo balança a cabeça penalizado por mim e por meu empenho. 
Não serão questiúnculas, ciscos como esses que o irão demover quando algo verdadeiramente grande se acha à sua frente. Não ele! Enumera em voz alta contando nos dedos: 
- O sorriso, a profissão, a geminação sonora, três dados. Como não bastassem, o quarto e que arrasta e confirma os outros três: a ocultação da nacionalidade (com ou sem adulteração de documentos o que aqui é irrelevante). Oh, meu Deus, se fosse no tempo da guerra quando o Brasil declarou guerra ao Eixo eu simplesmente denunciaria e mandaria prender esse japonês! mas as suponho coloridas, são varejeiras, mil, as asas irisadas, batem na parte interna do crânio, as asas como mica ao sol, cintilam, fracionam-se em mil outras, enchem-se a cabeça de som, cascalho e loucura. Agarro-me aos fiapos de razão que sobram, procuro manter-me à tona, contra-argumento: 
- Espere que o homem se vire para nós, olhe, vem vindo para mexer de novo na cerca, aproveite agora que está bem de frente; observe: que cor tem o seu rost ? é amarelo? pálido? negro? 
Meu informante retruca sem medo: 
- Rosado, não o nego. E não teria por quê. Ganho forças paulatinamente, continuo: 
- Bem, agora preste muita atenção. E os seus olhos, serão oblíquos? amendoados? puxados? entrefechados? 
Meu amigo dá um pequeno salto e sufoca um grito que me parece de exultação e que talvez pela proximidade do assunto me lembra muito o sinal de luta dos samurais como sempre vejo no cinema. Ele investe: 
- Era por aqui que você queria me pegar? Oh, meu Deus mas a que primarismo chegamos! Para você então o real é o imediatamente dado, suponho? Na sua idade! 
Não quero saber de conversa fiada; insisto: 
- Seus olhos, seus olhos, responda-me! 
- Com prazer, com muito prazer! Redondos, REDONDOS! 
As moscas varejeiras retornam pelos ouvidos nas palavras de meu amigo, entram e dançam dentro da cabeça. Mas eu quase mecanicamente vou em frente: 
-A cor? 
Meu amigo informa-me com a segurança e a alegria de um colorista nato: 
- Azuis, azuis! Você duvida? Olhe lá em frente! 
Do outro lado da rua, no jardim da casa oposta, os olhos de meu querido vizinho Marcus Czestochowska reluzem como dois faroletes celestes, cintilam em nossa direção curiosos. Já perceberam uma movimentação ativa demais para uma simples mesa de almoço. Meu amigo agora fará sua preleção final: 
- Você talvez veja pouco televisão, talvez a julgue um divertimento menor, um veículo plebeu. É pena. Se a visse com regularidade como eu, talvez soubesse que durante muito tempo teve enorme sucesso aqui no país um seriado japonês, um desenho animado em episódios chamado "Taro Kid". Pois bem, o herói desse seriado japonês tinha que tipo de olhos? 
Puxados, por acaso? Redondos, absolutamente redondos! Mesmo hoje se você ligar a televisão para ver desenho japonês não vai ver coisa diferente. Mas o "Taro Kid" é que chamou primeiro atenção para o fato, por isso eu cito. Se você além disso deixasse essa inércia, descolasse o traseiro aí de Vila Nova e fosse dar uma volta pela Liberdade, veria muitos outros desenhos japoneses onde os heróis sempre, com raríssimas exceções, têm os olhos? 
- Absolutamente redondos - respondo com um fio de voz. 
- Você em sua cegueira dirá que isso acontece por motivos de aculturação, exportação, etc. etc. Invocará (pois passei a conhecê-lo bem de 64 para cá) mil fatores heterogêneos, indústria, capital, alteridade, interculturalidade, com a maior sem-cerimônia. E botará esse equipamento todo em cena, para quê? Para complicá-la. E tudo isso com que finalidade? Recusar mais uma vez teimosamente, 
- A perfeita dissimulação! 
- Própria da raça! 
-Amarela! 
Mas meu amigo ainda não terminou: 
- E a coisa não fica só ao nível da imagem cinematográfica, não senhor, irradia-se para o humano, lá chega, penetra a carne, o conteúdo mesmo dessa imagem de cinema! Você naturalmente (ou pelo menos assim espero) já leu alguma coisa sobre imigração japonesa nos Estados Unidos? 
- Não tive a oportunidade. 
- É pena, é pena. Pois bem, informo-lhe; não irá perder a informação, não por mim. A coisa é a seguinte: mesmo sem nenhum casamento misto, sem nenhum fator de miscigenação, alguns traços físicos desses imigrantes começam a mudar, inicialmente constatou-se a alteração na altura média, devida provavelmente à alimentação diversa, ao clima etc. Agora ouça. 
Acho-me imóvel com a cabeça ligeiramente estendida para meu amigo de forma que o sol quente da tarde se abate sobre minhas orelhas, elas ardem fundo como duas línguas de fogo, duas labaredas apertando-me o crânio, para todos os efeitos sou mesmo "todo ouvidos". 
- Ouça -, insiste mais uma vez meu amigo, não satisfeito com minha docilidade acesa e visível. - Ouça, ouça que tudo é ganho. Você (e não se é cientista, mesmo de domingo aqui como eu, se não se tem muito de imaginação criadora, se não se lança um grão de audácia dentro do rigor lógico!), você já pensou a que níveis extensos de dissimulação, a apropriação e controle dessa possibilidade de modificação dos caracteres físicos pode chegar? A miscigenação, e que seria à primeira vista a dissimulação mais evidente, fácil e completa, é bem outra coisa, na verdade a nega e por isso deve ser posta de lado nessa ordem de raciocínio. Pois no caso da miscigenação, a desaparição de características raciais se irá dar não por sua ocultação 
- o que aqui nos interessa - mas pela sua "confusão", pela sua "imersão" ou "solubilidade" em contato com outros genes, seria portanto na verdade a extinção da própria dissimulação, marca distintiva do biótipo em pauta (-e nessa altura meu informante faz uma pequena pausa, dá uma piscadela e aponta de forma significativa com o queixo, a casa defronte -). Já pensou como o controle e desenvolvimento dessa possibilidade de alteração física sem cruzamento vem a ser tão mais grave exatamente na medida em que ocorre por assim dizer, na superfície, permanece externa, manipula o fisionômico para fazê-lo funcionar como cortina de fumaça? Permita-me a veleidade agora de passar de cientista a poeta! Pense, ao pensar nessa espécie de disfarce, na natureza dissimulada dos biombos, dos gestos rituais para o preparo de um cachimbo de ópio (resvalei para os chineses, não importa), nas engenhosas silenciosas portas (ou paredes!) corrediças de papel de arroz (volto aos japoneses com sua arquitetura escancaradamente dissimulada) , em suma: pense em tudo isso e pense mais; pense em como irão funcionar essas possibilidades ainda em aberto: como uma máscara de infinitos recursos onde por trás se há de esconder sempre, em quaisquer circunstâncias... 
Completo porque não há mesmo outra coisa a fazer: 
- O japonês, o amarelo, o oriental. 
- Isso - reforça satisfeito meu informante e encerra a preleção com uma exortação carinhosa: 
- Assim, não se deixe perturbar pelo fato dos olhinhos de seu vizinho serem azuis, muito menos se abale com o fato de serem redondos! Indo por essa ordem de raciocínio, por que haveria de espantá-lo a circunstância de estarem tais olhos embutidos numa face rosada e provavelmente (daqui de longe não posso afirmar com segurança) pintalgada de sardas? e (veja que a nada temo, que nada evito em minha descrição), circundada por cabelos vermelhos encaracolados e, vou mais longe, vou mais longe, tudo isso sustentado por uma coluna vertebral e mais duas pernas que, somadas, totalizam um conjunto de pelo menos metro e noventa e lá vai pedrada? E se eu nada temo, por que iria você se perturbar? Siga o meu exemplo, olhe em frente, no sentido literal e figurado do termo porque ambos se ajustam à situação. Olhe em frente e fique alerta: alerta sim, mas para o significado oculto de tudo isso, a significação subjacente. Em suma, analise com isenção e livre de paixões esse curioso espaço que proveitosamente se abre à nossa frente para o nosso mútuo regozijo intelectual. Observe nele a rigorosa não-coincidência entre a imagem média do japonês comum e a rica e complicada configuração de variegadas cores que se movimenta para lá da cerca-viva de azaléias! E garanto que se você estiver descansado e livre de preconceito, se o tinto não lhe tiver subido à cabeça, saberá sem dúvida chegar à conclusão correta. 
Uma pausa se dependura no ar parado como bicho preguiça. Migalhas de pão e salpicos de molho e vinho sujaram a toalha. Meu amigo e informante não teme a interrupção de nossa amizade. É antiga como o bairro, tem seus hábitos, seus desacordos que sempre voltam, alguns mais profundos e definitivos do que esse, como a estória da contra-revolução à qual meu parceiro de mesa sempre tira o aposto com a teatralidade de quem desembainha a espada e separa de golpe uma cabeça do tronco. Ele sem dúvida foi talhado para as situações absolutas e o que irá permanecer é a sua lógica de ferro, sua lógica fechada de algemas, perfeita como a circunferência do olho azul que distingo entre uma azaléia e outra, saltando espantado no puro amarelo do verão. 
Disse que minha qualidade de contra-informante nascia e se desenvolvia a partir da informação, prestada pelo meu companheiro de almoço de domingo. Isso é verdade. Todavia não disse que ultrapassada a primeira fase, do diálogo audível, a outra desenvolve-se sempre resistente mas invisível. Minha contra-informação como o subsolo de meu terreno tem um tipo de porosidade que a permite se mover perpetuamente e mover aquilo que sustenta. O bairro, o município e o mundo, as fortificações em que me apóio vogam docemente, talvez não resistam, mas disso eu gosto. Isso é a razão. Isso é comigo. Me abro reflexivamente sem forças, cedo porque minha formação é como essa terra preta do bairro, não presta, não edificará cidades ou códigos. 
Não ficará.

Contos do Sábado na Usina: Caio Fernando Abreu: Para Sergio Keuchguerian:




"Você nunca ouviu falar em maldição nunca viu um milagre nunca chorou sozinha num banheiro sujo nem nunca quis ver a face de Deus." 
(Cazuza: "Só as mães são felizes") 
Só depois de apertar muitas vezes a campainha foi que escutou o rumor de passos descendo a escada. E reviu o tapete gasto, antigamente púrpura, depois apenas vermelho, mais tarde rosa cada vez mais claro - agora, que cor? - e ouviu o latido desafinado de um cão, uma tosse noturna, ruídos secos, então sentiu a luz acesa do interior da casa filtrada pelo vidro cair sobre 
sua cara de barba por fazer, três dias. Meteu as mãos nos bolsos, procurou um cigarro ou um chaveiro para rodar entre os dedos, antes que se abrisse a janelinha no alto da porta. 
Enquadrado pelo retângulo, o rosto dela apertava os olhos para vê-lo melhor. Mediram-se um pouco assim - de fora, de dentro da casa -, até ela afastar o rosto, sem nenhuma surpresa. Estava mais velha, viu ao entrar. E mais amarga, percebeu depois. 
- Tu não avisou que vinha - ela resmungou no seu velho jeito azedo, que antigamente ele não compreendia. Mas agora, tantos anos depois, aprendera a traduzir como que-saudade, seja-benvindo, que-bom-ver-você ou qualquer coisa assim. Mais carinhosa, embora inábil. 
Abraçou-a, desajeitado. Não era um hábito, contatos, afagos. Afundou tonto, rápido, naquele cheiro conhecido - cigarro, cebola, cachorro, sabonete, creme de beleza e carne velha, sozinha há anos. Segurando-o pelas duas orelhas, como de costume, ela o beijou na testa. Depois foi puxando-o pela mão, para dentro. 
- A senhora não tem telefone - explicou. - Resolvi fazer uma surpresa. 
Acendendo luzes, certa ânsia, ela o puxava cada vez mais para dentro. Mal podia rever a escada, a estante, a cristaleira, os porta-retratos empoeirados. 
A cadela se enrolou nas pernas dele, ganindo baixinho. 
- Sai, Linda - ela gritou, ameaçando um pontapé. A cadela pulou de lado, ela riu. - Só ameaço, ela respeita. Coitada, quase cega. Uma inútil, sarnenta. Só sabe dormir, comer e cagar, esperando a morte. 
- Que idade ela tem? - ele perguntou. Que esse era o melhor jeito de chegar ao fundo: pelos caminhos transversos, pelas perguntas banais. Por trás do jeito azedo, das flores roxas do robe. 
- Sei lá, uns quinze. - A voz tão rouca. - Diz-que idade de cachorro a gente multiplica por sete. 
Ele forçou um pouco a cabeça, esse era o jeito: 
- Uns noventa e cinco, então. 
Ela colocou a mala dele em cima de uma cadeira da sala. Depois apertou novamente os olhos. E espiou em volta, como se acabasse de acordar: 
- O quê? 
- A Linda. Se fosse gente, estaria com noventa e cinco anos. Ela riu: 
- Mais velha que eu, imagina. Velha que dá medo. - Fechou o robe sobre o peito, apertou a gola com as mãos. Cheias de manchas escuras, ele viu, como sardas (ce-ra-to-se, repetiu mentalmente), pintura alguma nas unhas rentes dos dedos amarelos de cigarros. - Quer um café? 
- Se não der trabalho - ele sabia que esse continuava sendo o jeito exato, enquanto ela adentrava soberana pela cozinha, seu reino. Mãos nos bolsos, olhou em volta, encostado na porta. 
As costas dela, tão curvas. Parecia mais lenta, embora guardasse o mesmo jeito antigo de abrir e fechar sem parar as portas dos armários, dispor xícaras, colheres, guardanapos, fazendo muito ruído e forçando-o a sentar - enquanto ele via. Manchadas de gordura, as paredes da cozinha. A pequena janela basculante, vidro quebrado. No furo do vidro, ela colocara uma folha de jornal. País mergulha no caos, na doença e na miséria- ele leu. E sentou na cadeira de plástico rasgado. 
- Tá fresquinho - ela serviu o café. - Agora só consigo dormir depois de tomar café. 
- A senhora não devia. Café tira o sono. Ela sacudiu os ombros: 
- Dane-se. Comigo sempre foi tudo ao contrário. 
A xícara amarela tinha uma nódoa escura no fundo, bordas lascadas. 
Ele mexeu o café, sem vontade. De repente, então, enquanto nem ele nem ela diziam nada, quis fugir. Como se volta a fita num videocassete, de costas, apanhar a mala, atravessar a sala, o corredor de entrada, ultrapassar o caminho de pedras do jardim, sair novamente para a ruazinha de casas quase todas brancas. Até algum táxi, o aeroporto, para outra cidade, longe do Passo da Guanxuma, até a outra vida de onde vinha. Anônima, sem laços nem passado. Para sempre, para nunca mais. Até a morte de qualquer um dos dois, teve medo. E desejou. Alívio, vergonha. 
- Vá dormir - pediu. - É muito tarde. Eu não devia ter vindo assim, sem avisar. Mas a senhora não tem telefone. 

Ela sentou à frente dele, o robe abriu-se. Por entre as flores roxas, ele viu as inúmeras linhas da pele, papel de seda amassado. Ela apertou os olhos, espiando a cara dele enquanto tomava um gole de café. 

- Que que foi? - perguntou, lenta. E esse era o tom que indicava a abertura para um novo jeito. Mas ele tossiu, baixou os olhos para a estamparia de losangos da toalha. Vermelho, verde. Plástico frio, velhos morangos. 
- Nada, mãe. Não foi nada. Deu saudade, só isso. De repente, me deu tanta saudade. Da senhora, de tudo. 
Ela tirou um maço de cigarros do bolso do robe: 
- Me dá o fogo. 
Estendeu o isqueiro. Ela tocou na mão dele, toque áspero das mãos manchadas de ceratose nas mãos muito brancas dele. Carícia torta: 
- Bonito, o isqueiro. 
- É francês. 
- Que é isso que tem dentro? 
- Sei lá, fluido. Essa coisa que os isqueiros têm. Só que este é transparente, nos outros a gente não vê. 
Ela ergueu o isqueiro contra a luz. Reflexos de ouro, o líquido verde brilhou. A cadela entrou por baixo da mesa, ganindo baixinho. Ela pareceu não notar, encantada com o por trás do verde, líquido dourado. 
- Parece o mar- sorriu. Bateu o cigarro na borda da xícara, estendeu o isqueiro de volta para ele. - Então quer dizer que o senhor veio me visitar? Muito bem. 
Ele fechou o isqueiro na palma da mão. Quente da mão manchada dela. 
- Vim, mãe. Deu saudade. Riso rouco: 
- Saudade? Sabe que a Elzinha não aparece aqui faz mais de mês? Eu podia morrer aqui dentro. Sozinha. Deus me livre. Ela nem ia ficar sabendo, só se fosse pelo jornal. Se desse no jornal. Quem se importa com um caco velho? 
Ele acendeu um cigarro. Tossiu forte na primeira tragada: 
- Também moro só, mãe. Se morresse, ninguém ia ficar sabendo. E não ia dar no jornal. 
Ela tragou fundo. Soltou a fumaça, círculos. Mas não acompanhou com os olhos. Na ponta da unha, tirava uma lasca da borda da xícara. 
- É sina - disse. - Tua avó morreu só. Teu avô morreu só. Teu pai 
morreu só, lembra? Naquele fim de semana que eu fui pra praia. Ele tinha horror do mar. Uma coisa tão grande que mete medo na gente, ele dizia. 
Jogou longe a bolinha com a pintura da xícara. - E nem um neto, morreu sem um neto nem nada. O que mais ele queria. 
-Já faz tempo, mãe. Esquece - ele endireitou as costas, doíam. Não, decidiu: naquele poço, não. O cheiro, uma semana, vizinhos telefonando. Passou as pontas dos dedos pelos losangos desbotados da toalha. - Não sei como a senhora consegue continuar morando aqui sozinha. Esta casa é grande demais pra uma pessoa só. Por que não vai morar com a Elzinha? 
Ela fingiu cuspir de lado, meio cínica. Aquele cinismo de telenovela não combinava com o robe desbotado de flores roxas, cabelos quase inteiramente brancos, mãos de manchas marrons segurando o cigarro quase no fim. 
- E agüentar o Pedro, com aquela mania de grandeza? Pelo amor de 
Deus, só se eu fosse sei lá. Iam ter que me esconder no dia das visitas, Deus me livre. A velha, a louca, a bruxa. A megera socada no quartinho de empregada, feito uma negra. - Bateu o cigarro. - E como se não bastasse, tu acha que iam me deixar levar a Linda junto? 
Embaixo da mesa, ao ouvir o próprio nome a cadela ganiu mais forte. 
- Também não é assim, não é, mãe? A Elzinha tem a faculdade. E o Pedro no fundo é boa gente. Só que. 
Ela remexeu nos bolsos do robe. Tirou uns óculos de hastes remendadas com esparadrapo, lente rachada. 
- Deixa eu te ver melhor - pediu. 
Ajeitou os óculos. Ele baixou os olhos. No silêncio, ficou ouvindo o tic-tac do relógio da sala. Uma barata miúda riscou o branco dos azulejos atrás dela. 
- Tu estás mais magro - ela observou. Parecia preocupada. - Muito mais magro. 
- É o cabelo - ele disse. Passou a mão pela cabeça quase raspada. - E a barba, três dias. 
- Perdeu cabelo, meu filho. 
- É a idade. Quase quarenta anos. - Apagou o cigarro. Tossiu. 
- E essa tosse de cachorro? 
- Cigarro, mãe. Poluição. 
Levantou os olhos, pela primeira vez olhou direto nos olhos dela. Ela também olhava direto nos olhos dele. Verde desmaiado por trás das lentes dos óculos, subitamente muito atentos. Ele pensou: é agora, nesta contramão. Quase falou. Mas ela piscou primeiro. Desviou os olhos para baixo da mesa, segurou com cuidado a cadela sarnenta e a trouxe até o colo. 
- Mas vai tudo bem? 
- Tudo, mãe. 
- Trabalho? 
Ele fez que sim. Ela acariciou as orelhas sem pêlo da cadela. Depois olhou outra vez direto para ele: 
- Saúde? Diz que tem umas doenças novas aí, vi na tevê. Umas pestes. 
- Graças a Deus - ele cortou. Acendeu outro cigarro, as mãos tremiam um pouco. - E a dona Alzira, firme? 
A ponta apagada do cigarro entre os dedos amarelos, ela estava recostada na cadeira. Olhos apertados, como se visse por trás dele. No tempo, não no espaço. A cadela apoiara a cabeça na mesa, os olhos branquicentos fechados. Ela suspirou, sacudiu os ombros: 
- Coitada. Mais esclerosada do que eu. 
- A senhora não está esclerosada. 
- Tu que pensa. Tem vezes que me pego falando sozinha pelos cantos. Outro dia, sabe quem eu chamava o dia inteiro? - Esperou um pouco, ele não disse nada. - A Cândida, lembra dela? Ô negrinha boa, aquela. Até Ana Cristina Cesar: A teus pés. 
parecia branca. Fiquei chamando, chamando o dia inteiro. Cândida, ô Cândida. Onde é que tu te meteu, criatura? Aí me dei conta. 
- A Cândida morreu, mãe. 
Ela tornou a passar a mão pela cabeça da cadela. Mais devagar, agora. Fechou os olhos, como se as duas dormissem. 
- Pois é, esfaqueada. Que nem um porco, lembra? - Abriu os olhos. 
- Quer comer alguma coisa, meu filho? 
- Comi no avião. 
Ela fingiu cuspir de lado, outra vez. 
- Cruz credo. Comida congelada, Deus me livre. Parece plástico. Lembra daquela vez que eu fui? - Ele sacudiu a cabeça, ela não notou. 
Olhava para cima, para a fumaça do cigarro perdida contra o teto manchado de umidade, de mofo, de tempo, de solidão. - Fui toda chique, parecia uma granfa. De avião e tudo, uma madame. Frasqueira, raiban. Contando, ninguém acredita. - Molhou um pedaço de pão no café frio, colocou-o na boca quase sem dentes da cadela. Ela engoliu de um golpe. - Sabe que eu gostei mais do avião do que da cidade? Coisa de louco, aquela barulheira. Nem parece coisa de gente, como é que tu agüenta? 
- A gente acostuma, mãe. Acaba gostando. 
- E o Beto? - ela perguntou de repente. E foi baixando os olhos até encaixarem, outra vez, direto nos olhos dele. Se eu me debruçasse? - ele pensou. Se, então, assim. Mas olhou para os azulejos na parede atrás dela. A barata tinha desaparecido. 
- Tá lá, mãe. Vivendo a vida dele. Ela voltou a olhar o teto: 
- Tão atencioso, o Beto. Me levou pra jantar, abriu a porta do carro pra mim. Parecia coisa de cinema. Puxou a cadeira do restaurante pra mim sentar. Nunca ninguém tinha feito isso. - Apertou os olhos. - Como era mesmo o nome do restaurante? Um nome de gringo. 
- Casserole, mãe. La Casserole. - Quase sorriu, ele tinha uns olhos de menino, lembrou. - Foi boa aquela noite, não foi? 
- Foi - ela concordou. - Tão boa, parecia filme. - Estendeu a mão por sobre a mesa, quase tocou na mão dele. Ele abriu os dedos, certa ânsia. Saudade, saudade. Então ela recuou, afundou os dedos na cabeça pelada da cadela. 
- O Beto gostou da senhora. Gostou tanto - ele fechou os dedos. 
Assim fechados, passou-os pelos pêlos do próprio braço. Umas memórias, distância. - Ele disse que a senhora era muito chique. 
- Chique, eu? Uma velha grossa, esclerosada. - Ela riu, vaidosa, mão manchada no cabelo branco. Suspirou. - Tão bonito. Um moço tão fino, aquilo é que é moço fino. Eu falei pra Elzinha, bem na cara do Pedro. Pra ele tomar como indireta mesmo, eu disse bem alto, bem assim. Quem não tem berço, a gente vê logo na cara. Não adianta ostentar, tá escrito. Que nem o Beto, aquela calça rasgadinha. Quem ia dizer que era um moço assim tão fino, de tênis? - Voltou a olhar dentro dos olhos dele. - Isso é que é amigo, meu filho. Até meio parecido contigo, eu fiquei pensando. Parecem irmãos. Mesma altura, mesmo jeito, mesmo. 
- A gente não se vê faz algum tempo, mãe. 
Ela debruçou um pouco, apertando a cabeça da cadela contra a mesa. Linda abriu os olhos esbranquiçados. Embora cega, também parecia olhar para ele. 
Ficaram se olhando assim. Um tempo quase insuportável, entre a fumaça dos cigarros, cinzeiros cheios, xícaras vazias - os três, ele, a mãe e Linda. 
- E por quê? 
- Mãe - ele começou. A voz tremia. - Mãe, é tão difícil - repetiu. E não disse mais nada. 
Foi então que ela levantou. De repente, jogando a cadela ao chão como um pano sujo. Começou a recolher xícaras, colheres, cinzeiros, jogando tudo dentro da pia. Depois de amontoar a louça, derramar o detergente e abrir as torneiras, andando de um lado para outro enquanto ele ficava ali sentado, olhando para ela, tão curva, um pouco mais velha, cabelos quase inteiramente brancos, voz ainda mais rouca, dedos cada vez mais amarelados pelo fumo, guardou os óculos no bolso do robe, fechou a gola, olhou para ele e - como quem quer mudar de assunto, e esse também era um sinal para um outro jeito que, desta vez sim, seria o certo - disse: 
- Teu quarto continua igual, lá em cima. Vou dormir que amanhã cedo tem feira. Tem lençol limpo no armário do banheiro. 
Então fez uma coisa que não faria, antigamente. Segurou-o pelas duas orelhas para beijá-lo não na testa, mas nas duas faces. Quase demorada. Aquele cheiro - cigarro, cebola, cachorro, sabonete, cansaço, velhice. Mais qualquer coisa úmida que parecia piedade, fadiga de ver. Ou amor. Uma espécie de amor. 
- Amanhã a gente fala melhor, mãe. Tem tempo, dorme bem. 
Debruçado na mesa, acendeu mais um cigarro enquanto ouvia os passos dela subindo pesados pela escada até o andar superior. Quando ouviu a porta do quarto bater, levantou e saiu da cozinha. 
Deu alguns passos tontos pela sala. A mesa enorme, madeira escura. Oito lugares, todos vazios. Parou em frente ao retrato do avô - rosto levemente inclinado, olhos verdes aguados que eram os mesmos da mãe e também os dele, heranças. No meio do campo, pensou, morreu só com um revólver e sua sina. Levou a mão até o bolso interno do casaco, tirou a pequena garrafa estrangeira e bebeu. Quando a afastou, gotas de uísque rolaram pelos cantos da boca, pescoço, camisa, até o chão. A cadela lambeu o tapete gasto, olhos quase cegos, língua tateando para encontrar o líquido. 
Ele abriu os olhos. Como depois de uma vertigem, percebeu-se a olhar fixamente para o grande espelho da sala. No fundo do espelho na parede da sala de uma casa antiga, numa cidade provinciana, localizou a sombra de um homem magro demais, cabelos quase raspados, olhos assustados feito os de uma criança. Colocou a garrafa sobre a mesa, tirou o casaco. Suava muito. Jogou o casaco na guarda de uma cadeira. E começou a desabotoar a camisa manchada de suor e uísque. 
Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse mais clara quando, sem camisa, começou a acariciar as manchas púrpura, da cor antiga do tapete na escada - agora, que cor? -, espalhadas embaixo dos pêlos do peito. Na ponta dos dedos, tocou o pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça, como se apalpasse uma semente no escuro. 
Depois foi dobrando os joelhos até o chão. Deus, pensou, antes de estender a outra mão para tocar no pêlo da cadela quase cega, cheio de manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto da escada, iguais às da pele do seu peito, embaixo dos pêlos. Crespos, escuros, macios. 
- Linda - sussurrou. - Linda, você é tão linda, Linda.

Contos do Sábado na Usina: Os mínimos carapinas do nada Autran Dourado: Para Eneida Maria de Souza:



No Ponto, na farmácia de seu Belo, no armazém de secos e molhados de seu Bernardino, mesmo no final das tardes de conversação distinta do Banco Duas Pontes, no gabinete do nobre de alma e de gestos Vítor Macedônio (o belo varão, bem-nascido e gentil-homem), que reunia em torno de si (ali se servia do melhor conhaque francês) os potentados do café como o coronel Tote ou ilustres desocupados como seu Bê P. Lima, maledicente e boa-vida, mas de berço, enfim nas várias ágoras da cidade onde se comerciava a novidade, a imaginação, o ócio e o tédio... 
Nas janelas das casas terreiras de grandes e pesadas janelas de marco rústico, baixo e retangular, junto das calçadas, onde se ficava sabendo de tudo pelos passantes que iam e vinham (como era bom se debruçar e bater dois dedinhos de prosa ou fugir para dentro, se quem apontava na esquina era um maçante), de tudo se sabia sem carecer de estafeta e selo, as notícias e novidades: quem andava pastoreando quem, aquela que tinha caído na vida e agora era carne nova, estava de rapariga na Casa da Ponte, na testa de quem apontara o broto de futura e soberba galhada... 
Mesmo nas nobres sacadas de ferro, nas janelas de ricos sobrados, podia-se ver a qualquer hora do dia, no enovelar lento do tempo, os carapinas do nada, ocupados na gratuita e absurda, prazerosa ocupação. 
Eram os carapinas do mínimo e do nada, os devoradores das horas, insaciáveis Saturnos, dizia o sapientíssimo, alambicado, precioso Dr. Viriato. 
Quem não tem o que fazer, faz colher de pau e enfeita o cabo, vinha por sua vez o proverbial, memorioso, eterno, pantemporal noveleiro Donga Novais, uma das poucas pessoas a não se entregar inteiramente ao vício e paixão da cidade. É porque para ele a entidade metafísica do tempo não existe (como para os platônicos que, ao contrário dos hebreus, não tinham o senso da historicidade, lidavam com o puro universal), passado, presente e futuro são uma coisa só, retrucava o Dr. Viriato, súbito espantosamente aderindo à fiação e tecelagem dos nossos mitos. Ele que era um cientista exaltado, um agnóstico convicto, de dialético linguajar maneirista que demandava precioso raciocínio, imaginação, dicionário. 
Não que o Dr. Viriato tivesse as mãos ocupadas no admirável passatempo (santo remédio para a ansiedade e a angústia), que demandava habilidade, precisão e paciência, a que se dedicavam aristocraticamente potentados e pingantes que só tinham de seu serem bem-nascidos. Tão alto crítico ele era, jamais se permitiria aquela vamos dizer arte, paixão antiga de Duas Pontes. De uma certa maneira ele colaborava era na criação de nossos mitos, mesmo negando-os, racionalista que ele se dizia e era. 
Quando, quem inventou tão sublime vamos dizer desocupação e alívio do espírito, perguntava o Dr. Viriato a seu Donga Novais, sapiência viva do nosso tempo e história, os fabulosos, inconclusos e aéreos anais. Você, Donga, é o Sócrates da nossa pólis. Não sei, dizia desapontando à gente o nosso macróbio cidadão Donga Novais: amor e ócio são maus negócios. Eu acho que deve ser invenção de índio, que enfeitava caprichosamente as suas flechas que, partidas do arco, não voltavam mais. Mas eles não estão enfeitando nada, dizia por sua vez o Dr. Viriato. Os puristas, os cultores do absoluto, os escribas da idéia, dos protótipos e arquétipos ideais, os minúsculos carapinas do nada. 
Seu Donga ficou um tempo parado, assuntando, ideando. Não é que o senhor tem razão, Dr. Viriato? Sim, dizia o médico, porque a finalidade mágica dos bisões e demais caças pintadas nas cavernas pelo homem de Cro-Magnon... Seu Donga desatou a rir, não tinha mesmo jeito aquele Dr. Viriato, comia brisas com pirão de areia. 
Porque havia três categorias de livres oficiais que se dedicavam à nobre arte de desbastar e trabalhar a madeira com o simples canivete e um ou outro instrumento auxiliar feito as latinhas que faziam as vezes do compasso. Três, porque não se podia considerar como cultores da Idéia, do sublime e do nada, os carpinteiros e marceneiros, que se utilizavam da madeira e de instrumentos mais eficientes como o formão, o cepilho, as brocas, e tudo sabiam de sua arte, ofício e meio de vida. São os nossos sofistas, dizia o Dr. Viriato, que pensavam ser possível ensinar a arete e recebiam pelo seu trabalho e tinham as mãos calosas. 
A primeira categoria quase se podia, se não fosse o nenhum pagamento, considerar uma corporação de operários, que faziam de sua técnica e imaginação um ofício. Se vendiam o produto, não eram bem vistos pelos autênticos carapinas do nada, os sublimes; podiam começar a receber encomendas como qualquer trabalhador, o que se considerava degradante. 
Não há dúvida que o elogio é uma forma sublimada de remuneração e só se remunera operário, o que nem de longe se podia dizer deles (se ofendiam) que nunca pegaram no pesado. Eles e seus ancestrais, patriarcas absolutos, sempre estiveram do lado do cabo do chicote. 
Eram os fabricantes de carrinhos de bois, caminhões, mobilinhas, monjolos de sofisticada feitura e perfeita serventia, usados para compor presépio. Em geral exerciam a sua ocupação ociosa em casa, se serviam de instrumentos caseiros para auxiliar o trabalho do canivete, e chegavam a utilizar outros materiais que não a madeira, como espelhinhos, pregos, folhas-de-flandres. 
A segunda categoria, os marceneiros da nobre arte. Era exatamente aquela, sem metáfora ou imagem, de que falou o sábio e intemporal rifoneiro Donga Novais - os que literalmente enfeitavam o cabo de colher de pau. 
As vezes se dava o caso de que a colher ficava tão bem-feitinha e artística, com delicado e sutil rendilhado, labiríntica barafunda, de quase absoluta nenhuma serventia, que a peça passava de mão em mão por toda a parentela, vizinhos e mesmo estranhos. Os elogios que recebiam valiam por uma paga ao artista, que acabava por consentir (queriam) que a mulher ou a filha colocasse a colher na parede, para nunca ser usada. 
O perigo dessa categoria era o autor, por vaidade ou outro motivo subalterno, gravar o seu nome na concha ou no cabo da colher. Como o primeiro artista da antiguidade que gravou numa obra sua a frase "Felix fecit", inaugurando assim o culto da personalidade, tão contrário aos artistas do gótico, que nunca tinham a certeza de verem concluídas as catedrais que iniciavam, e eram anônimos, senão humílimos oficiais. 
O coronel Sigismundo era exemplo típico dos oficiais da segunda categoria. Era não só meio destelhado e quarta-feira, mas verdadeira alimária. Dele constavam dos anais fantásticas proezas nos seus carros sempre novos e lustrosos, se dando ao luxo e à extravagância de às vezes vestir a sua brilhosa e engalanada farda da Guarda Nacional, que não mais existia, e passear de carro pela cidade. 
Tudo se desculpava no coronel Sigismundo, por respeito ou medo. Ele deu ao máximo, como nos tempos de casa-grande e senzala, de oferecer não uma colher de pau, mas palmatória de manopla por ele rendilhada, verdadeiro instrumento de suplício, ao major Américo, diretor e dono do Colégio Divino Espírito Santo, de terrível e acrescentada memória, capaz de desasnar a própria alimária. O velho major da Guarda Nacional recuou, os tempos agora eram outros. O gesto de ofertar e a utilidade do produto desqualificavam muito o coronel Sigismundo. Podia-se argumentar em seu favor que uma colher de pau também é útil. Sim, mas ninguém ia usar uma colher de pau finamente trabalhada para remexer panela, o bom dela, após o trabalho do artista, era não servir para coisa nenhuma, puro deleite. 
E agora se apresenta a pura, a sublime, a extraordinária terceira categoria. Só aos seus membros, peripatética academia, se podia aplicar estes qualificativos: divinos e luminosos, aristocráticos artífices do absurdo. 
Eram como poetas puros, narradores perfeitos, cepilhando e polindo as vazias estruturas do nada. A terceira categoria era o último estágio para se atingir a sabedoria e a salvação. 
Às vezes se dava o caso de que o artista (e isso não se ensina, ao contrário do que afirmavam os sofistas, dizia o Dr. Viriato, emérito teórico do vazio e do absoluto) vinha diretamente da primeira categoria, e alcançava a plenitude do nada, era um dos amados dos deuses, para os quais o grande, senão único pecado é a ignorância. Não se atingia essa categoria (era raríssimo o caso de um jovem a ela pertencer; falta à juventude ócio e paciência) senão na velhice, quando se alcançava a plenitude da arete. 
Vovô Tomé era um desses casos raros do artista que passa veloz e diretamente da primeira à terceira categoria. Atribuem a sua proeza e a sua mestria no ofício ao sofrimento, que é uma das vias para se atingir o absoluto e a glória. Ele os alcançou, e isso consta dos anais do vento, na última velhice, quando atingiu, de apara em apara, cada vez mais longas e mais finas, enroladinhas que nem cabelo de preto, o etéreo, e o que lhe restou na mão foi um minúsculo pedacinho de pau. Na mesa, a seu lado, no círculo de luz do cone do abajur, um monte de finíssimas aparas, nenhuma delas partida. Uma obra divina, foi o que disse o famigerado artista Bê P. Lima, quando viu o tiquinho de nada que restou. Falou quem pode, disse seu Donga Novais da sua aérea, fantástica e insone janela, almenara da cidade. Um mestre e guru nirvântico, acolitou-o o Dr. Viriato. 
Para atingir esse estágio, o noviço carece de muita paciência, aplicação, humildade, modéstia. É preciso enfrentar a maledicência dos ocupados, vencer a delicadeza e timidez, correr o risco de se ferir. 
O mais elevado ideal dos membros dessa categoria era se dedicar a tão sublime ocupação sentado numa roda, prestando atenção no desenrolar da conversa vadia e mesmo dela participando com um ou outro aforismo ou ponderação, sem despregar os olhos da mecânica ocupação. Conta-se a fantástica proeza de um dos sacerdotes do culto, o inefável seu Bê P. Lima, que começou desbastando um grande pedaço de madeira e foi indo, foi indo, de caracol em caracol, sem pressa, preciso, cuidando do seu gratuito oficio, o ouvido porém atento à conversa, que esquentava, e seu Bê não queria perder nada, cujo tema principal era o comportamento de certa dama de nossa cidade. 
E de repente se suspendeu a conversação, todos voltados para ele. Seu Bê se aproximava do fim, faltava-lhe uma última e mínima apara para atingir o nada. O próprio seu Belo veio lá de dentro do laboratório e ficou à espera. Então aconteceu. Não se podia dizer se o que ficou na mão de seu Bê fosse ou não minúsculo caracol que ele soprou. Como num circo ou num 
concerto, após sustenida atenção, a respiração suspensa, a roda prorrompeu num coro de palmas. 
Seu Vítor Macedônio, que passava pela farmácia, diante do silêncio da roda, parou. Não se dedicava ao nobre oficio, mas vendo a atenção de todos, também ele aderiu à rodada de palmas. Seu Bê, me faça o favor de comparecer no banco lá pelo fim da tarde, para comemorarmos o evento. Mais do que o normal, ele seria generoso com o seu conhaque francês. 
Acredito com os outros que o móvel inicial que levou o vovô Tomé à nobre ocupação de pica-pau tenha sido o sofrimento. O suicídio de tio Zózimo, a loucura mansa de tia Margarida, um desastre econômico de papai que o obrigou a vender a Fazenda do Carapina para que não lhe tomassem a casa. Mas muito antes da terrível morte de tio Zózimo ele já se ocupava em fazer a canivete um ou outro objeto de alguma serventia. A gratuidade mesmo de magníficos caracóis ele só viria a atingir depois da morte por enforcamento de tio Zózimo. 
Mas antes mesmo do primeiro desses tristes acontecimentos vovô Tomé já se dedicava a manter as mãos ocupadas. Acredito em parte que foi a tentativa de manter as mãos ocupadas para vencer a opressão e a angústia que o levou a se dedicar a pequenas tarefas caseiras. Porque não lhe bastava fazer um longo, caprichado e lento cigarro de palha, tarefa em que era perito. 
Os outros podem estar certos, e eu mesmo recuaria no tempo (não conhecia senão de crônica vovô Zé Mariano, pai de vovô Tomé), se pudesse contar a história que, num dia de maior solidão e sufocamento, sob promessa de sigilo, me contou vovô Tomé. Mas é um caso longo, não é para agora. 
Não, não foi só isso. Havia um lado menino muito bom em vovô Tomé. 
Eu me lembro do entusiasmo em que ele ficava quando da chegada de um circo à nossa cidade, mesmo que fosse circo de tourada. E eu muito criança ia com ele, ficava no seu camarote. Só depois é que eu o abandonei para estar com os meus amigos mais velhos lá no alto das arquibancadas. 
Me lembro (e isso mamãe e vovó Naninha confirmam) dos primeiros passos de vovô Tomé na arte de picar pau. Eu estava sentado no chão de tábuas lavadas e secas da sala, cortando figuras de umas revistas velhas. Eram de uma coleção antiga de tia Margarida. 
Quando vovô Tomé viu e me chamou. João, deixa isso de banda, guarde as revistas onde você tirou, venha comigo, tive uma idéia. Vamos ao armazém de seu Bernardino buscar material. 
Ele me deu a mão e eu estava muito feliz. Não era meu aniversário, quando, como fazia com os netos e afilhados, ele nos levava ao armazém de seu Bernardino para comprar um sapato de ver Deus. 
No armazém, depois de uma conversa breve e formal com seu Bernardino, vovô perguntou se ele lhe podia arranjar um caixote vazio. Seu Bernardino se espantou com o pedido, vovô ainda não era da confraria. Quer que eu mande levar, perguntou seu Bernardino. Se me fizesse a bondade... Eu tive um ímpeto, disse pode deixar que eu levo. Seu Bernardino olhou para mim, olhou para vovô Tomé, e disse como ficamos, seu Tomé? Mande levar, disse vovô. E o preço da peça e do carreto, por favor. Seu Bernardino disse brincando nem o preço de uma das suas fazendas bastaria. Então lhe mandarei, no fim da safra, uma saca do melhor café tipo sete. Ora, seu Tomé, e eu ia aceitar?! Não é pelo caixote, é por nossa velha amizade, disse vovô Tomé. 
Aprendi então um dos preceitos do seu código de aristocrata rural. Eu e ele não podíamos fazer qualquer trabalho manual, a nossa posição nos vedava. O primeiro foi (como esquecer!) quando soube que o delegado seu Dionísio tinha mandado dar uma surra num preso para ele confessar. Em homem não se bate, é melhor matar, por respeito à sua condição de homem, é mais digno. Outro preceito do seu código de honra aprendi muito menino, quando uma vez, a mando de mamãe, lhe fui tomar a bênção. Ele me recusou a mão, disse homem não beija mão de homem. Era um comportamento raro em Duas Pontes, cidade de velhos patriarcas. 
Nem bem chegamos em casa e veio o empregado com o caixote. Era um caixote de madeira branca que, pelos dizeres e pelo cheiro, se viu que tinha servido para embalar bacalhau, madeira das estranjas. Vovô tirou o paletó, desabotoou o colete, afrouxou o colarinho e começou a fazer um caminhãozinho para mim. Para quem parecia estar usando as mãos pela primeira vez, não estava mal. No final da tarde, a obra estava pronta. Tinha ficado um tanto rústica, mas eu não disse nada a vovô Tomé, para não atrapalhar a sua satisfação. 
No outro dia dei com vovô Tomé aparando pachorrentamente um pedaço de pau. Quê que o senhor está fazendo, perguntei. Uma colher de pau para a Naninha, ela me pediu, disse ele meio envergonhado, talvez pela sua utilidade doméstica. O senhor parece que não está gostando, não é, perguntei. Para lhe ser franco, não, disse vovô. O que gostaria de fazer, um monjolinho, indaguei. Não, gostaria de fazer nada, disse ele. Nada, à toa? disse eu meio desapontado. Não, fazendo absolutamente nada, quer dizer, ir aparando vagarosamente a madeira até não restar mais nada. Assim feito seu Bê, perguntei. Vovô riu, achava muita graça nas bestagens de seu Bê P. Lima, nas histórias obscenas que ele contava, quando não tinha menino por perto, na presença de menino e de mulher ele fechava a cara, metia a viola no saco, se dava ao respeito. Bê é um artista do nada, por isso é um homem feliz, disse. 
E vovô Tomé foi ficando um perito na arte dos caracóis. Demorava muito o aprendizado, ele porém não tinha pressa. Pra quê? dizia, não falta matéria-prima neste mundo. E brincando, haja povo na terra para desbastar a floresta amazônica. Às vezes fico imaginando o povo todo do mundo picando pauzinho. Seria a paz e a união dos homens. 
Eu tinha um certo medo de que vovô enjoasse do gratuito oficio e virasse um teórico do não fazer nada, absolutamente nada. Seu Bê, por exemplo, não tinha dessas cogitações, apenas ia aparando as suas fitas e caracóis. Vovô não tinha a pachorra e a tranqüilidade de seu Bê. Era exigente, ia ao armazém de seu Bernardino escolher as melhores madeiras, havia uma certa qualidade de pinho que era em si uma beleza. A madeira não podia ter olhos nem veios muito acentuados, nem mistura de tons. Quanto mais lisas e uniformes, melhor. Quem tem pressa não faz nada, dizia ele já agora conceituoso. Ele tinha a sua poética, a diferença entre ele e seu Bê é que seu Bê não tinha poética nenhuma, era um puro artista do nada. 
Com o passar do tempo, vovô Tomé viu que se aprende até certo ponto, depois é desaprender de tal maneira que cada dia se tenha diante de si o puro nada. 
E os anos passaram e eu me afastei de vovô Tomé. Fui para Belo 
Horizonte, onde fiz o meu curso superior sustentado por ele. É com remorso que me lembro de que lhe escrevi apenas umas minguadas cartas. Em 
nenhuma delas perguntei como ele ia na sua velha arte. Fiquei sabendo por uma carta de vovó Naninha que ele tinha morrido. 
Voltei imediatamente a Duas Pontes. Vovó Naninha disse que ele 
morrera de pé, feito queria, sem curtir leito de doente, à grande mesa da sala de jantar, tirando um enorme caracol. Tinha encontrado o seu nada. 
Vovó Naninha me deu o seu canivete preferido. Não sei o que fazer com ele, é de outra maneira que procuro o meu nada.