sábado, 20 de novembro de 2021

Contos do Sábado na Usina: Machado de Assis: MISS DOLLAR II:



Quais as razões que induziram o Dr. Mendonça a fazer coleção de cães, é coisa que ninguém podia dizer; uns queriam que fosse simplesmente paixão por esse símbolo da fidelidade ou do servilismo; outros pensavam antes que, cheio de profundo desgosto pelos homens, Mendonça achou que era de boa guerra adorar os cães.

Fossem quais fossem as razões, o certo é que ninguém possuía mais bonita e variada coleção do que ele. Tinha-os de todas as raças, tamanhos e cores. Cuidava deles como se fossem seus filhos; se algum lhe morria ficava melancólico. Quase se pode dizer que, no espírito de Mendonça, o cão pesava tanto como o amor, segundo uma expressão célebre: tirai do mundo o cão, e o mundo será um ermo.

O leitor superficial conclui daqui que o nosso Mendonça era um homem excêntrico. Não era. Mendonça era um homem como os outros; gostava de cães como outros gostam de flores. Os cães eram as suas rosas e violetas; cultivava-os com o mesmíssimo esmero. De flores gostava também; mas gostava delas nas plantas em que nasciam: cortar um jasmim ou prender um canário parecia- lhe idêntico atentado.

Era o Dr. Mendonça homem de seus trinta e quatro anos, bem apessoado, maneiras francas e distintas. Tinha-se formado em medicina e tratou algum tempo de doentes; a clínica estava já adiantada quando sobreveio uma epidemia na capital; o Dr. Mendonça inventou um elixir contra a doença; e tão excelente era o elixir, que o autor ganhou um bom par de contos de réis. Agora exercia a medicina como amador. Tinha quanto bastava para si e a família. A família compunha-se dos animais citados acima.

Na memorável noite em que se desencaminhou Miss Dollar, voltava Mendonça para casa quando teve a ventura de encontrar a fugitiva no Rocio. A cadelinha entrou a acompanhá-lo, e ele, notando que era animal sem dono visível, levou-a consigo para os Cajueiros.

Apenas entrou em casa examinou cuidadosamente a cadelinha. Miss Dollar era realmente um mimo; tinha as formas delgadas e graciosas da sua fidalga raça; os olhos castanhos e aveludados pareciam exprimir a mais completa felicidade deste mundo, tão alegres e serenos eram. Mendonça contemplou-a e examinou minuciosamente. Leu o dístico do cadeado que fechava a coleira, e convenceu-se finalmente de que a cadelinha era animal de grande estimação da parte de quem quer que fosse dono dela.

- Se não aparecer o dono, fica comigo, disse ele entregando Miss Dollar ao moleque encarregado dos cães.

Tratou o moleque de dar comida a Miss Dollar, enquanto Mendonça planeava um bom futuro à nova hóspede, cuja família devia perpetuar-se na casa.


O plano de Mendonça durou o que duram os sonhos: o espaço de uma noite. No dia seguinte, lendo os jornais, viu o anúncio transcrito acima, prometendo duzentos mil-réis a quem entregasse a cadelinha fugitiva. A sua paixão pelos cães deu-lhe a medida da dor que devia sofrer o dono ou dona de Miss Dollar, visto que chegava a oferecer duzentos mil-réis de gratificação a quem apresentasse a galga. Conseqüentemente resolveu restituí-la, com bastante mágoa do coração.

Chegou a hesitar por alguns instantes; mas afinal venceram os sentimentos de probidade e compaixão, que eram o apanágio daquela alma. E, como se lhe custasse despedir-se do animal, ainda recente na casa, dispôs-se a levá-lo ele mesmo, e para esse fim preparou-se. Almoçou, e depois de averiguar bem se Miss Dollar havia feito a mesma operação, saíram ambos de casa com direção a Matacavalos.

Naquele tempo ainda o barão do Amazonas não tinha salvo a independência das repúblicas platinas, mediante a vitória de Riachuelo, nome com que depois a câmara municipal crismou a rua de Matacavalos. Vigorava, portanto, o nome tradicional da rua, que não queria dizer coisa nenhuma de jeito.

A casa que tinha o número indicado no anúncio era de bonita aparência e indicava certa abastança nos haveres de quem lá morasse. Antes mesmo que Mendonça batesse palmas no corredor, já Miss Dollar, reconhecendo os pátrios lares, começava a pular de contente e a soltar uns sons alegres e guturais que, se houvesse entre os cães literatura, deviam ser um hino de ação de graças.

Veio um moleque saber quem estava; Mendonça disse que vinha restituir a galga fugitiva. Expansão do rosto do moleque, que correu a anunciar a boa nova. Miss Dollar, aproveitando uma fresta, precipitou-se pelas escadas acima. Dispunha-se Mendonça a descer, pois estava cumprida a sua tarefa, quando o moleque voltou dizendo-lhe que subisse e entrasse para a sala.

Na sala não havia ninguém. Algumas pessoas, que têm salas elegantemente dispostas, costumam deixar tempo de serem estas admiradas pelas visitas, antes de as virem cumprimentar. É possível que esse fosse o costume dos donos daquela casa, mas desta vez não se cuidou em semelhante coisa, porque mal o médico entrou pela porta do corredor surgiu de outra interior uma velha com Miss Dollar nos braços e a alegria no rosto.

-  Queira ter a bondade de sentar-se, disse ela designando uma cadeira a Mendonça.

-   A minha demora é pequena, disse o médico sentando-se. Vim trazer-lhe a cadelinha que está comigo desde ontem...

-  Não imagina que desassossego causou cá em casa a ausência de Miss Dollar...

-   Imagino, minha senhora; eu também sou apreciador de cães, e se me faltasse um sentiria profundamente. A sua Miss Dollar...

-  Perdão! interrompeu a velha; minha não; Miss Dollar não é minha, é de minha sobrinha.

- Ah!...

-  Ela aí vem.

Mendonça levantou-se justamente quando entrava na sala a sobrinha em questão. Era uma moça que representava vinte e oito anos, no pleno desenvolvimento da sua beleza, uma dessas mulheres que anunciam velhice tardia e imponente. O vestido de seda escura dava singular realce à cor imensamente branca da sua pele. Era roçagante o vestido, o que lhe aumentava a majestade do porte e da estatura. O corpinho do vestido cobria-lhe todo o colo; mas adivinhava-se por baixo da seda um belo tronco de mármore modelado por escultor divino. Os cabelos castanhos e naturalmente ondeados estavam penteados com essa simplicidade caseira, que é a melhor de todas as modas conhecidas; ornavam-lhe graciosamente a fronte como uma coroa doada pela natureza. A extrema brancura da pele não tinha o menor tom cor-de-rosa que lhe fizesse harmonia e contraste. A boca era pequena, e tinha uma certa expressão imperiosa. Mas a grande distinção daquele rosto, aquilo que mais prendia os olhos, eram os olhos; imaginem duas esmeraldas nadando em leite.

Mendonça nunca vira olhos verdes em toda a sua vida; disseram-lhe que existiam olhos verdes, ele sabia de cor uns versos célebres de Gonçalves Dias; mas até então os olhos verdes eram para ele a mesma coisa que a fênix dos antigos. Um dia, conversando com uns amigos a propósito disto, afirmava que se alguma vez encontrasse um par de olhos verdes fugiria deles com terror.


-  Por quê? perguntou-lhe um dos circunstantes admirado.

-   A cor verde é a cor do mar, respondeu Mendonça; evito as tempestades de um; evitarei as tempestades dos outros.

Eu deixo ao critério do leitor esta singularidade de Mendonça, que de mais a mais é preciosa, no sentido de Molière.

Contos do Sábado na Usina: Olavo Bilac: O DEFUNTO:



O grave professor, aprumando sobre o nariz os óculos de ouro, começa a sua lição. Grave, grave, o professor Mac-Leley! calvo, vermelho, possuindo nas bochechas flácidas algumas falripas raras e grisalhas, o velho inglês é a circunspeção em pessoa. Sempre trajado severamente — calças negras, colete negro, rodaque de alpaca negra, gravata negra de três voltas... Grave, grave, o professor Mac-Leley!

Levanta-se, tosse duas vezes, passeia pela sala um olhar minucioso, e principia. Os meninos, em semicírculo, agitam-se, mexem-se, dispõe-se a ouvir a palavra do mestre, que vai fazer a lição de cousas. Justamente um dos alunos faltou: morrera-lhe um tio. E o circunspeto Mac-Leley aproveita a ocasião para ensinar à classe o que é um defunto, o que é a morte, o que é a vida, o que é um cadáver...

 

   Quando cessa o funcionamento de um órgão, meninos, diz-se que este órgão está morto. O corpo humano é um conjunto de órgãos... O funcionamento de todos esses órgãos é a vida. Se os órgãos não funcionam mais, o homem morre, é um defunto, é um cadáver...

 

(Mas... que é aquilo? Pelos bancos da classe passa, contínuo e mal disfarçado, um risinho alegre. Toda classe ri, tomada de uma alegria irresistível...)

 

  Meninos! continua o grave Mac-Leley — quando o corpo morre, começa a decomposição...


(O riso da classe continua também. Todos cochicham, todos se estorcem, todos se agitam nos bancos. O velho mestre enrubesce, atrapalha-se, sem saber o que provoca aquela alegria. Mas, sem parar, com a voz trêmula, prossegue).

 

  E quando há a decomposição, há a infecção e...

 

(O grave Mac-Leley, pobre! Pobre grave Mac-Leley! Baixa os olhos, mira-se, examina-se, fica trêmulo... Malditos botões! Malditos botões! Também as calças são tão antigas! Malditos botões! Malditos botões!... E o grave Mac-Leley está sobre brasas, e é quase sem voz que conclui o seu período.)

 

    Meninos... Quando há decomposição há infecção... e... por isso... por isso... é que é costume deixar a janela aberta... quando há defunto em casa...

Contos do Sábado na Usina: A Promessa VII:



Os dias que antecederam o regresso dos rapazes à sede da guarnição tinham sido de chuvas torrenciais. Na serra, principalmente, havia chovido muito. E, avolumado pelos riachos da montanha, o rio Araçá rolava agora transformado em torrente, arrastando galhos de árvores e moitas de aninga no turbilhão das suas águas escachoantes. Comprimido pelas ribanceiras, que ia lambendo numa volúpia furiosa de sátiro, fazia vertigem vê- lo. De quando em quando, um ruído cavo alarmava os moradores ribeirinhos. Era a queda de um barranco, de uma barreira da margem, que logo se dissolvia em rodopios, na retorta diabólica daquelas águas.

 A viagem estava marcada para as nove da manhã seguinte. Amorosa, meiga, solicita, Maria Inácia passou todo o dia ao lado do filho, extremando- se em cuidados, em meiguice, em desvelos. Beijava- o de instante a instante, abraçando-o com toda a força da sua fraqueza, como se quisesse apegar-se a ele, e não o soltar mais.

 À  noite houve uma festa de despedida em casa de um dos licenciados. Maria Inácia ficou em casa, ajoelhada diante do oratório, rezando. Pela madrugada, o João entrou. Vinha suado, cansado, exausto de dançar.

 - Despe-te, meu filho, e dorme, - disse-lhe a velha, abençoando-o.

Os galos amiudavam. Uma brisa fresca sacudia as árvores, fazendo estalar no chão os pingos da chuva acumulados nas folhas. Pé ante pé, o xale ao ombro, Maria Inácia entrou no quarto do João. Ajoelhou-se à sua cabeceira, beijou-lhe a testa, os cabelos, a mão abandonada para fora da cama. Ergueu-se, tomando o rumo da porta, e, de lá, enviando um último olhar ao filho adormecido, saiu como uma sombra.

À   margem do rio, parou, olhando a torrente. As águas gorgolejavam sinistramente lá em baixo, no escuro. Ajoelhou-se, persignou-se, e balbuciou, trêmula, a oração dos mortos. Chegou o xale mais para o corpo magro, num arrepio. E, fechando os olhos, deixou-se rolar, como um fardo, pelo declive da ribanceira ... Só dois dias depois, três léguas abaixo da vila, entre duas pedras, foi pescado o cadáver. As mãos, que tanto haviam rezado, tinham sido, já, devoradas pelos peixes.