Quais
as razões que induziram o Dr. Mendonça a fazer coleção de cães, é coisa que
ninguém podia dizer; uns queriam que fosse simplesmente paixão por esse símbolo
da fidelidade ou do servilismo;
outros pensavam antes que, cheio de profundo
desgosto pelos homens,
Mendonça achou que era de boa guerra adorar os cães.
Fossem quais fossem
as razões, o certo é que ninguém possuía mais bonita e variada coleção do que ele. Tinha-os de todas as raças, tamanhos
e cores. Cuidava
deles como se fossem seus filhos; se algum lhe morria ficava melancólico.
Quase se pode dizer que, no espírito de Mendonça, o cão pesava tanto como o
amor, segundo uma expressão célebre: tirai do mundo o cão, e o mundo será um ermo.
O leitor
superficial conclui daqui que o nosso Mendonça era um homem excêntrico. Não
era. Mendonça era um homem como os outros; gostava de cães como outros gostam
de flores. Os cães eram as suas rosas e violetas; cultivava-os com o mesmíssimo
esmero. De flores gostava também; mas gostava delas nas plantas em que nasciam:
cortar um jasmim ou prender um canário parecia- lhe idêntico atentado.
Era o Dr. Mendonça
homem de seus trinta e quatro anos, bem apessoado, maneiras francas e
distintas. Tinha-se formado em medicina e tratou algum tempo de doentes; a
clínica estava já adiantada quando sobreveio uma epidemia na capital; o Dr.
Mendonça inventou um elixir contra a doença; e tão excelente era o elixir, que
o autor ganhou um bom par de contos de réis. Agora exercia a medicina como
amador. Tinha quanto bastava para si e a família. A família compunha-se dos
animais citados acima.
Na memorável
noite em que se desencaminhou Miss Dollar, voltava Mendonça para casa quando
teve a ventura de encontrar a fugitiva no Rocio. A cadelinha entrou a
acompanhá-lo, e ele, notando que era animal sem dono visível, levou-a consigo
para os Cajueiros.
Apenas entrou em
casa examinou cuidadosamente a cadelinha. Miss Dollar era realmente um mimo;
tinha as formas delgadas e graciosas da sua fidalga raça; os olhos castanhos e
aveludados pareciam exprimir a mais completa felicidade deste mundo, tão
alegres e serenos eram. Mendonça contemplou-a e examinou minuciosamente. Leu o
dístico do cadeado que fechava a coleira, e convenceu-se finalmente de que a
cadelinha era animal de grande estimação da parte de quem quer que fosse dono
dela.
- Se não aparecer o
dono, fica comigo, disse ele entregando Miss Dollar ao moleque encarregado dos
cães.
Tratou o moleque de
dar comida a Miss Dollar, enquanto Mendonça planeava um bom futuro à nova
hóspede, cuja família devia perpetuar-se na casa.
O plano de Mendonça
durou o que duram os sonhos: o espaço de uma noite. No dia seguinte, lendo os
jornais, viu o anúncio transcrito acima, prometendo duzentos mil-réis a quem
entregasse a cadelinha fugitiva. A sua paixão pelos cães deu-lhe a medida da
dor que devia sofrer o dono ou dona de Miss Dollar, visto que chegava a
oferecer duzentos mil-réis de gratificação a quem apresentasse a galga.
Conseqüentemente resolveu restituí-la, com bastante mágoa do coração.
Chegou a hesitar
por alguns instantes; mas afinal venceram os sentimentos de probidade e
compaixão, que eram o apanágio daquela alma. E, como se lhe custasse
despedir-se do animal, ainda recente na casa, dispôs-se a levá-lo ele mesmo, e
para esse fim preparou-se. Almoçou, e depois de averiguar bem se Miss Dollar
havia feito a mesma operação, saíram ambos de casa com direção a Matacavalos.
Naquele tempo ainda
o barão do Amazonas não tinha salvo a independência das repúblicas platinas,
mediante a vitória de Riachuelo, nome com que depois a câmara municipal crismou
a rua de Matacavalos. Vigorava, portanto, o nome tradicional da rua, que não queria
dizer coisa nenhuma de jeito.
A casa que tinha o
número indicado no anúncio era de bonita aparência e indicava certa abastança
nos haveres de quem lá morasse. Antes mesmo que Mendonça batesse palmas no
corredor, já Miss Dollar, reconhecendo os pátrios lares, começava a pular de
contente e a soltar uns sons alegres e guturais que, se houvesse entre os cães
literatura, deviam ser um hino de ação de graças.
Veio um moleque
saber quem estava; Mendonça disse que vinha restituir a galga fugitiva.
Expansão do rosto do moleque, que correu a anunciar a boa nova. Miss Dollar,
aproveitando uma fresta, precipitou-se pelas escadas acima. Dispunha-se
Mendonça a descer, pois estava cumprida a sua tarefa, quando o moleque voltou
dizendo-lhe que subisse e entrasse para a sala.
Na sala não havia
ninguém. Algumas pessoas, que têm salas elegantemente dispostas, costumam
deixar tempo de serem estas admiradas pelas visitas, antes de as virem
cumprimentar. É possível que esse fosse o costume dos donos daquela casa, mas
desta vez não se cuidou em semelhante coisa, porque mal o médico entrou pela
porta do corredor surgiu de outra interior uma velha com Miss Dollar nos braços
e a alegria no rosto.
- Queira ter a bondade
de sentar-se, disse ela designando uma cadeira a Mendonça.
-
A minha demora
é pequena, disse o médico
sentando-se. Vim trazer-lhe a cadelinha que está
comigo desde ontem...
- Não imagina que
desassossego causou cá em casa a ausência de Miss Dollar...
-
Imagino, minha senhora;
eu também sou apreciador de cães, e se me faltasse um sentiria
profundamente. A sua Miss Dollar...
- Perdão! interrompeu
a velha; minha não; Miss Dollar não é minha, é de minha sobrinha.
- Ah!...
- Ela aí vem.
Mendonça
levantou-se justamente quando entrava na sala a sobrinha em questão. Era uma
moça que representava vinte e oito anos, no pleno desenvolvimento da sua
beleza, uma dessas mulheres que anunciam velhice tardia e imponente. O vestido
de seda escura dava singular realce à cor imensamente branca da sua pele. Era
roçagante o vestido, o que lhe aumentava a majestade do porte e da estatura. O
corpinho do vestido cobria-lhe todo o colo; mas adivinhava-se por baixo da seda
um belo tronco de mármore modelado por escultor divino. Os cabelos castanhos e
naturalmente ondeados estavam penteados com essa simplicidade caseira, que é a
melhor de todas as modas conhecidas; ornavam-lhe graciosamente a fronte como
uma coroa doada pela natureza. A extrema brancura da pele não tinha o menor tom
cor-de-rosa que lhe fizesse harmonia e contraste. A boca era pequena, e tinha
uma certa expressão imperiosa. Mas a grande distinção daquele rosto, aquilo que
mais prendia os olhos, eram os olhos; imaginem duas esmeraldas nadando em
leite.
Mendonça nunca vira
olhos verdes em toda a sua vida; disseram-lhe que existiam olhos verdes, ele
sabia de cor uns versos célebres de Gonçalves Dias; mas até então os olhos
verdes eram para ele a mesma coisa que a fênix dos antigos. Um dia, conversando
com uns amigos a propósito disto, afirmava que se alguma vez encontrasse um par
de olhos verdes fugiria deles com terror.
- Por quê?
perguntou-lhe um dos circunstantes admirado.
-
A cor verde é a cor do mar, respondeu
Mendonça; evito as tempestades de um; evitarei
as tempestades dos outros.
Eu deixo ao
critério do leitor esta singularidade de Mendonça, que de mais a mais é
preciosa, no sentido de Molière.
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