sexta-feira, 29 de abril de 2022



Quiron volveu-se à destra e a Nesso forte
— “Torna atrás” — disse — “e serve-lhes de guia:
99 Que outro bando o caminho lhes não corte!” —
Já partimos na fida companhia,
As ondas costeando rubras, quentes,
102 Donde agudo estridor ao ar subia.
Té os cílios no sangue os padecentes Eu vi. 
Disse o Centauro: — “São tiranos
105 Truculentos e em roubo preminentes.
“Chora-se aqui por feitos desumanos. 
Alexandre aqui está, Dionísio antigo 
108 Que gemer fez Sicília tantos anos.
“De negra coma, aqui sofre o castigo Azzolino; 
e o que está, louro, ao seu lado 
111 Obizzio d'Este, ao qual (verdade eu digo)
“Roubara a vida o pérfido enteado”. — 
E o Vate, a quem voltei-me, assim dizia:
114 — “O segundo lugar me é reservado”. —
Pouco além parou Nesso: olhar queria 
Uma turba, que, estando submergida, 
117 Toda a cabeça para fora erguia,
Disse, indicando uma alma retraída: 
“Perante Deus um coração ferira,
120 Que inda Londres venera estremecida”. —
A cabeça vi de outros, que subira 
Do rio à superfície e o inteiro busto,
123 Suas feições no mundo eu distinguira:
Ia baixando o sangue até que a custo 
Os pés cobria a quem passar quisesse: 
126 O fosso ali vencemos já sem custo.
“Se desta parte o borbulhão parece 
Do rio escassear, eu te asseguro”
129 — Disse Nesso — “que mais engrossa e desce
“Na parte oposta até juntar-se ao escuro Pego em que, 
como hás visto, a tirania 132 As penas dá no seu tormento duro.
“A divina justiça lá crucia
Esse Átila, que açoite foi da terra,
135 Pirro e Sexto; e redobrar-se a agonia
“Dos dois Renatos, que tamanha guerra Fizeram nas estradas, salteando,
— O Pazzo e o de Corneto”. — E a fala cerra.
139 Voltou depois do rio o vau passando.

Contos do Sábado na Usina: Alcântara Machado: GUERRA CIVIL:




Em Caguaçu os revolucionários. Em São Tiago os legalistas. Entre os dois indiferente o rio Jacaré. O delegado regional de Boniteza mandara recolher as barcas e as margens só podiam mesmo estreitar relações no infinito. De dia não acontecia nada. Os inimigos caçavam jararacas esperando ataques que não vinham. Por isso esperavam sossegados. Inutilmente os urubus no vôo lindo deles se cansavam indo e vindo de bico esfomeado. Os guerreiros gozavam de perfeita saúde. 
De noite tinha o silêncio. Qualquer barulho assustava. Os soldados de guarda se preparavam para morrer no seu posto de honra. Mas era estalo de árvores. Ou correria de bicho. A madrugada se levantava sem novidades. Por isso a luta entre irmãos decorria verdadeiramente fraternal. 
Porém uma manhã chegou a Boniteza a notícia de que do lado de Caguaçu qualquer coisa de muito grave se preparava. Tropas marchavam na direção do rio trazendo canhões, carros de combate, grande provisão de gases asfixiantes comprada na Argentina, aeroplanos, bombas de dinamite, granadas de mão e dinheiro, todos esses elementos de vitória. Um engenheiro russo construiria em dois tempos uma ponte sobre o Jacaré e o resto seria uma corrida fácil até a capital do país. Desta vez a cousa iria mesmo. 
Boniteza se surpreendeu mas não se acovardou. Com rapidez e entusiasmo começou a preparar tudo para a defesa. Ao longo do rio se abriu uma trincheira inexpugnável. Caminhões descarregaram tropas em todos os pontos. As metralhadoras foram ajustadas, os fuzis engraxados, os caixotes de munições abertos. Costureiras solícitas pregaram botões nas fardas das praças mais relaxadas. Nas barbearias os vidros de loção estrangeira se esvaziaram na cabeça dos sargentos. Era de guerra o ar que se respirava. 
A noite encontrou os combatentes a postos. Na trincheira eles velavam apoiados nos fuzis. Sentinelas foram destacadas para vigiar a margem inimiga. Entre elas o sorteado Leônidas Cacundeiro. 
Era infeliz porque sofria de dor de dentes crônica, piscava sem parar e gaguejava. Foi para o seu posto de observação, deitou-se de barriga num cobertor velho. Só o busto meio erguido, ficou olhando na frente dele de fuzil na mão. Tinha ordens severas: vulto que aparecesse era mandar tiro nele. Sem discutir. 
Leônidas Cacundeiro deu de pensar. Pensava uma cousa, o ventinho frio jogava o pensamento fora, pensava outra. Tudo quieto. Ainda bem que havia luar. Do alto da ribanceira ele examinava as águas do Jacaré. Ou então erguia o olhar e descobria nas nuvens a cabeleira de um maestro, um cachorro sem rabo, duas velhinhas, pessoas conhecidas. 
Agora o frio era o frio da madrugada. O Doutor Adelino costumava dizer: Quando vocês sentirem frio pensem no Pólo Norte e sentirão logo calor. Pensou no Pólo Norte. Lembranças vagas de uma fita vista há muito tempo. Gelo e gelo e mais gelo. No meio do gelo um naviozinho encalhado. Homens barbudos, jogando fumaça pela boca, encapotados e enluvados, com cachorros felpudos. Duas barracas à esquerda. E aquela branquidão. Forçou bem o olhar. Um urso pardo com duas bandeirinhas. Um urso em pé com uma bandeirinha na pata direita, outra bandeirinha na pata esquerda. Nenhuma arma. 
Deu um berro: - Alto! 
Ficou em posição de tiro. O soldado não podia mesmo dar um passo à frente senão caía no rio. Começou a mexer com os braços. Levantava uma bandeirinha, abaixava outra, levantava as duas. 
Leônidas pensou: - Que negócio será aquele? 
Foi chamar o sargento. O sargento veio, olhou muito, disse: - Que negócio será aquele? Vá chamar o tenente! 
Leônidas foi chamar o tenente, veio correndo com ele. O tenente limpou os óculos com o lenço de seda, verificou se o revólver estava armado, olhou muito, falou coçando a nuca: - Que negócio será aquele? Vá chamar o major! 
Leônidas partiu em busca do major. No acampamento não estava. Foi até Boniteza. Encontrou um cabo. O cabo mandou Leônidas bater na casa da viúva Dona Birigüi ao lado do Correio. O major apareceu na janela com má vontade. Resmungou: - Já vou. Leônidas comboiou o major até o rio, o major teve uma conferência com o tenente, subiu num pé de pitanga, falou lá de cima: - Que negócio será aquele? Vá chamar o comandante! 
O anspeçada primeiro não queria acordar o comandante. Eram ordens. Leônidas insistiu firme e o comandante teve de pular da cama. Leônidas fazendo continência explicou o caso. O coronel disse: 
- Às seis estou lá. 
Eram cinco, Leônidas voltou com o recado. O major, o tenente, o sargento estavam nervosos. De vez em quando um deles chegava mais perto da margem e o soldado do outro lado recomeçava a ginástica: bandeirinha na frente, bandeirinha atrás, bandeirinha apontando o céu, bandeirinha apontando o chão. Ia repetindo com uma paciência desgraçada. 
Então já havia passarinhos cantando, barulho de vida em Boniteza, só a cara amarrotada dos insones não resplendia na luz da manhãzinha. Toques de cometa chegavam de longe despedaçados. Na banda de lá do Jacaré o homem da bandeirinha habitava sozinho a paisagem com uma vontade louca de tomar café bem quente e bem forte. Era a hora da raiva e todos se espreguiçavam com o sol que chegava. 
O Coronel Jurupari ouviu calado a narração do estranho caso. Fez em seguida duas ou três perguntas hábeis com o intuito de esclarecê-lo tanto quanto possível. Chamou de lado o major e o tenente, os três discutiram muito, emitiram suas opiniões sobre assuntos de estratégia e balística que pareciam oportunos naquela emergência, fumaram vários cigarros. Afinal o coronel entre o major e o tenente avançou até a margem de binóculo em punho. Assim que ele assentou o binóculo, da outra banda do Jacaré recomeçou a dança das bandeirinhas. O coronel olhando. A sua primeira observação foi: - É um cabo e não tem má cara. Depois de uns minutos veio a segunda: - Hoje é dor de cabeça na certa com este noroeste. A terceira alimentou ainda mais a já angustiosa incerteza dos presentes: - Mas que negócio será aquele? Daí a uns instantes repetiu: - Mas que diabo de negócio será mesmo aquele? Porém acrescentou numa ordem para o Leônidas: - Vá chamar o sinaleiro! 
O sinaleiro veio chupando o nariz. Olhou, deu uma risadinha, tirou um papel e um lápis do bolso traseiro da calça, ajoelhou-se com uma perna só, pôs o papel na coxa da outra, passou a ponta do lápis na língua, começou a tomar nota. Dava uma espiada, as bandeirinhas se mexiam, escrevia. O Coronel Jumpari, o major, o tenente, o sargento e o sorteado Leônidas Cacundeiro esperavam o resultado de armas na mão e ansiedade nos olhos. 
O sinaleiro se levantou, ficou em posição de sentido e com voz pausada e firme leu a mensagem enviada pelos revolucionários de Caguaçu: Saúde e Fraternidade. 
O coronel mandou responder agradecendo e retribuindo. Ex-corde.

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo: VINGANÇA A Lúcio Esteves:



Quando madame D’Arbois chegou ao Rio de Janeiro, escriturada numa troupe parisiense que fez as delícias dos freqüentadores do Cassino Franco Brésilien, muitos rapazes se apaixonaram por ela. Dizia-se que madame D’Arbois resistia heroicamente a todas as seduções, guardando absoluta fidelidade ao marido, um cabotin qualquer, que ficara em França, esperando filosoficamente que ela voltasse da América endinheirada e feliz.
O jovem comendador Cardoso, que não acreditava em Penélopes de bastidores, e era, em questões eróticas, de uma diplomacia insigne, com tanta habilidade soube levar água ao seu moinho, que, ao cabo de dois meses, vivia maritalmente com madame D’Arbois. 
Por esse tempo dissolveu-se a troupe, e o jovem comendador Cardoso aproveitou o ensejo para pedir à amiga que abandonasse o teatro. Nada lhe faltaria em casa dele, que era negociante e rico. Ela aceitou depois de muito hesitar, impondo como condição, que ele estabeleceria ao marido, em Paris, uma pequena mesada de quinhentos francos. 
Durante um ano as delícias dessa mancebia não foram perturbadas pela mais leve contrariedade. O jovem comendador Cardoso e madame D’Arbois pareciam talhados um para o outro. Ele era um homem simpático, de trinta anos, pouco instruído é verdade, mas senhor desses hábitos sociais que até certo ponto dispensam a educação literária. Ela era uma mulher bonita alegre, quase espirituosa, e uma senhora dona de casa, econômica e asseada como todas as francesas. Que mais poderiam desejar?... 
Tudo cansa. Ao cabo de um ano, madame D’Arbois começou a sentir nostalgia dos bastidores. Demais a mais, aconteceu que o empresário da melhor companha brasileira de operetas, mágicas e revistas, lhe ofereceu um vantajoso contrato. convidando-a, nada mais nem menos, para substituir a estrela de maior grandeza que então brilhava no firmamento do teatro fluminense, estrela que se retirava temporariamente para a Europa. 
O jovem comendador Cardos pôs os pés à parede. Que não, que não, que não! A Lolotte - madame D’Arbois chamava-se Charlotte - não precisava trabalhar para viver! Que o não aborrecessem!... 
— Mas non, mas non! Il ne s’agite poin d’argent, mon pauvre chéri, obtemperava Lolotte; je sens que je ferais une grosse maladie si je ne rétourne pau au theathre! Eh bien... voyons... sois gentil... Il faut que tu y consentes... 
Um negociante, compadre do empresário, foi ter com o jovem comendador Cardoso, de quem era amigo íntimo e interveio com muito emprnho. 
— Que diabo! consente, Cardosinho, consente! Se não lhe fazes a vontade, ela contraria-se, e não há nada pior que uma mulher contrariada. Depois, vê lá; não é nada, não é nada, mas sempre são seiscentos bagarotes que a pequena mete no Banco todos os meses! Não vá tu privá-la deste pecúlio. 
Este último argumento foi irresistível. Mês e meio depois, madame d’Arbois estreava-se no papel de protagonista de uma opereta. 
Foi completo o seu triunfo. Ela falava um português fantástico, e na cantoria desafinava que era um horror, mas o público, o magnânimo público fluminense, fechou os olhos a esses defeitos, e aplaudiu-a freneticamente. Madame d’Arbois teve que repetir três vezes certas coplas cuja letra ninguém percebia, mas eram cantadas com um movimento de quadris capaz de entontecer um santo. 
Razão tinha o jovem comendador Cardoso em não querer que a amiga voltasse para o teatro. Dentro de pouco tempo notou nas suas maneiras uma diferença enorme. A diva contrariava-se visivelmente quando ele, cansado de esperá-la no saguão do teatro, penetrava até o camarim. 
Uma vez encontrou lá dentro, familiarmente sentado, o Lopes, o primeiro ator cômico da companhia. que logo se retirou, dizendo: 
— Adeusinho, comendador; vim cá restituir à colega o rouge que lhe pedira emprestado. 
Ele não podia desconfiar do Lopes. Era este um artista de talento, e o público estimava-o deveras, mas a Lolotte poderia lá gostar de um homem tão feio, tão desdentado e tão pouco cuidadosa da sua roupa! 
Entretanto, uma carta anônima, escrita com letra de mulher, tudo lhe disse. A primeira atriz cantora e o primeiro ator cômico encontravam-se quase todos os dias, depois do ensaio, em casa de uma corista perto do teatro. 
Um dia, o jovem comendador Cardoso, depois de se haver posto em observação numa casa que ficava em frente à da hospitaleira corista, saiu, atravessou a rua e entrou na sala das entrevistas. Lolotte estava sentada, de pernas cruzadas, a fumar um cigarro turco; o Lopes de pé, em ceroulas. 
O primeiro ator cômico, ao ver o jovem comendador Cardoso, não perdeu o sangue frio, e começou a fingir que estava a ensaiar: 
— É como vos digo, princesa Briolanja; o rei, vosso pai, não acredita nas palavras da Fada das Safiras, e quer absolutamente encontrar nos seus reinos um mancebo, fidalgo ou vilão, que vença o Dragão Vermelho, e vos despose!... 
Mas o jovem comendador Cardoso não engoliu a pílula, e disse, dirigindo-se à princesa Briolanja, que continuava a fumar os eu cigarro turco: 
— Bem; estou satisfeito; vi o que queria ver. Fique-se com o senhor Lopes, que realmente é digno da 
senhora! 
E saiu arrebatadamente. 
— E agora? perguntou o cômico. 
— Oh! ele voltará! afirmou ela, carregando os erres, entre uma baforada de fumo. E foram deitar-se. 
O jovem comendador Cardoso não voltou, e madame d’Arbois ficou bastante contrariada, porque o ator 
Lopes tinha numerosa família - mulher e filhos - e não lhe dava um vintém. Demais, ela bem depressa fartou-se desse amores reles. Que doidice a sua: trocar por aquele tipo um rapaz rico, inteligente, simpático e generoso! 
Acresce que a opereta, recebida com grande entusiasmo durante as trinta primeiras representações, já não atraía o público; o teatro ficava agora todas as noites vazio e o empresário já devia um mês de ordenados à companhia... 
A primeira representação da peça que estava em ensaios, a tal em que entravam a Fada das Safiras e o Dragão Vermelho, devia ser dada em benefício do Lopes, e esse espetáculo era ansiosamente esperado. O beneficiado via-se doido para atender aos numerosos pedidos de bilhetes. Nos jornais apareciam todos os dias grandes reclames à “festa artística”, anunciada também pelas esquinas em vistosos cartazes, onde esse nome - LOPES - se destacava em enormes caracteres vermelhos. 
Chegou a noite do espetáculo. As sete horas e meia as torrinhas, os corredores e o jardim do teatro já estavam apinhados. Uma hora depois, a sala transbordava, e todo aquela gente abanava-se com leques, ventarolas, lenços e programas, bufando de calor. Os espectadores das torrinhas batiam com os pés e as bengalas. e dirigiam chufas aos da platéia e dos camarotes, talvez com a idéia de se vingarem de os ver em lugares menos incômodos. Os críticos teatrais estavam a postos. Os músicos afinavam os instrumentos; um garoto apregoava o retrato e a biografia do glorioso Lopes; as conversações cruzavam-se; e todos esses ruídos juntos produziam um barulho ensurdecedor e terrível. 
De repente, ouviu-se o agudo som de uma sineta, ao mesmo tempo em que uma campainha elétrica retinia longamente, e a sala, até então quase escura, aparecia numa intensidade de luz, arrancando um prolongado O......o....oh!.... das torrinhas... Eram nove horas. 
Restabelecido o silêncio, o regente da orquestra subiu vagarosamente para o seu lugar, abriu a partitura, falou em voz baixa a alguns músicos, bateu três pancadas na estante, levantou a batuta, e fez executar a ouverture. 
Terminada esta, naturalmente esperavam todos que o pano subisse, mas não subiu. Passaram-se alguns minutos. 
Começou o público a impacientar-se, batendo com os pés. A pateada cresceu. Uma ordenança foi destacada do camarote da polícia para o palco. O beneficiado, vestido de escudeiro de mágica, surdiu no proscênio e foi recebido com uma salva de palmas. Mas de todos os lados fizeram Psiu! psiu! - e o barulho cessou. 
— Respeitável público, disse o primeiro ator cômico - o espetáculo não pode ter começo, porque a atriz madame d’Arbois, incumbida de um dos principais papéis, até agora não apareceu no teatro. Rogo-vos humildemente que espereis alguns minutos mais, e me perdoeis esta falta, inteiramente alheia à minha vontade. 
Este cavaco foi acolhido com outra salva de palmas. O Lopes retirou-se, cumprimentado e agradecendo para a esquerda, para a direita, para cima, para baixo, e os comentários, os risos, as imprecações e os gracejos começaram num vozerio atroador. 
De vez em quando saíam da caixa do teatro, ou para lá entravam, correndo pelo corredor, pessoas azafamadas, espavoridas, - empregados da contra-regra, costureiras, etc., - mandadas à procura de madame d’Arbois. 
Passava das nove e meia quando o Lopes, coagido pela polícia, veio de novo ao proscênio declarar que, não se achando madame d’Arbois no teatro nem na casa de sua residência, ficava o espetáculo transferido para quando se anunciasse. 
Desta vez não houve palmas que saudassem o primeiro ator cômico. 
A saída dos espectadores fez-se no meio de uma confusão indescritível. Muitos exigiram que lhes fosse restituído o dinheiro, e promoveram desordem na bilheteria. Foi necessária a intervenção da polícia. Só às onze horas pode ser restabelecida a ordem e fechado o teatro. 
Onde estava madame d’Arbois? 
No dia do espetáculo ela acabara de jantar, e, reclinada na sua espreguiçadeira, relia mais uma vez o interessante papel de princesa Briolanja que devia representar essa noite, quando lhe trouxeram uma carta do jovem comendador Cardoso. 
— Ah! ah! pensou a francesa com um sorriso de triunfo, voltou ou não voltou? E abriu a carta: 
“Lolotte - Escreveste-me, pedindo que te perdoasse. Perdôo-te, mas sob uma condição: deixarás de representar hoje no benefício do homem que foi o causador da nossa separação, ou, por outra, nunca mais representarás. Só assim serei para ti o mesmo que já fui. Se aceitas, mete-te no carro que aí te irá buscar às sete horas da noite, e vai ter comigo no Hotel Laroche, no alto da Tijuca, onde estou passando uns dias, e onde ficarás em minha companhia. Se não, não. - Cardoso. 
A princesa Briolanla leu e releu este bilhete. Era o perdão, era o descanso, era a fortuna, que lhe traziam aquelas letras. Deixando e comparecer ao espetáculo, ela praticava uma ação feia, provocava um escândalo inaudito, mas isso que lhe importava, se saía do teatro e ia outra vez estar de casa e pucarinha com aquele homem distinto a quem tantos favores e tanto afeto devia? 
Pouco depois da hora aprazada, Lolotte entrou no discreto coupé que a esperava à porta de casa, e chegou ao Hotel Laroche precisamente na ocasião em que o Lopes desesperado, apelava para a paciência do público. 
Ao entrar no hotel, madame d’Arbois perguntou a um criado: 
— O comendador Cardoso? 
— Não está, mas deixou um bilhete para a madame d’Arbois. É a senhora? 
— Sim, sou eu. 
E a desgraçada leu o seguinte: 
“Caíste como um patinho, minha toleirona. Estou vingado de ti e do teu Lopes. Volta para ele; é tão pulha, que talvez te aceite ainda. - Cardoso.

Contos do Sábado na Usina: Humberto Campos:

 




O seringueiro 

VI 
Qual dos dois falou primeiro, não se poderia, talvez, descobrir. E ainda menos o que teria primeiro lembrado ao outro o insulto que constituía, perante Deus, a presença, ali, daquele estranho, tão despreocupado e tão rico, precisamente no dia em eles, tendo perdido todos os haveres, representados pelo gado morto de sede e pelo roçado destruído na fogueira do sol inclemente, pretendiam abandonar, a pé, aquelas terras adustas, afim de se unir em Sobral aos milhares de retirantes que viviam da caridade pública. A verdade é que, cerca de meia-noite, quando se não ouvia na cabana escura senão o roncar compassado do viajante e, lá fora, em torno à casa, o chocalho dos animais por ele trazidos, os dois, marido e mulher, penetraram, pé ante pé, na sala pequena. Um baque surdo, e fofo, um gemido abafado, um barulho de líquido em jorro, estremecimentos de um corpo que cessa de viver, e foi tudo. Minutos depois a enxada do antigo lavrador cavava, na escuridão da noite, atrás do curral vazio, uma cova estreita e rasa. E nela desaparecia, para sempre, com a rede em que adormecera, o paraoara feliz. Tiradas as peias dos animais, foram estes espantados para longe, afim de afastar suspeitas, se estas surgissem. Acesa uma vela de carnaúba, contaram os dois, de mãos sôfregas, no interior da casa, o dinheiro encontrado nos bolsos do assassinado. Havia quatro contos e duzentos mil réis. 
Vamos ver a bagagem, - convidou o marido, com tremores na voz, como quem começa a despertar de um sonho terrível. 
Abertas as malas foi examinado, às pressas, o que nelas havia. Cortes de chita, espelhos, anéis, broches baratos, vidros de perfume, pentes, miudezas para presentes humildes. E latas de conservas, e doces. E roupas novas, algumas não vestidas ainda. De repente, no meio de tudo, um papel, uma conta, que talvez esclarecesse a identidade do morto. 
- Lê tu, que sabes, - pediu o caboclo, passando a conta à mulher. 
A sertaneja soletrou o primeiro nome. Soletrou o segundo, até o meio. Os lábios tremiam-lhe, como uma flor murcha acossada pelo vento. O papel caiu-lhe da mão, e a vela depois, apagando-se. E foi no escuro que ela, o estupor estampado na face, se atirou ao pescoço do companheiro. 
- Vicente, meu marido da minh 'alma! - exclamou. 
E agarrada ao esposo, num grito de desespero, os olhos escancarados na treva: 
- Era... meu irmão!... 
Humberto de Campos

Contos do Sábado na Usina: Machado de Assis: Luís Soares V:



O plano de Luís Soares estava feito.

Tratava-se de abater as armas pouco a pouco, simulando-se vencido diante da influência de Adelaide. A circunstância da riqueza tornava necessária toda a discrição. A transição devia ser lenta. Cumpria ser diplomata.

Os leitores terão visto que, apesar de certa argúcia da parte de Soares, não tinha ele a perfeita compreensão das coisas, e por outro lado o seu caráter era indeciso e vário.

Hesitara em casar com Adelaide quando o tio lhe falou nisso, quando era certo que viria a obter mais tarde a fortuna do major. Dizia então que não tinha vocação de papagaio. A situação agora era a mesma; aceitava uma fortuna mediante uma prisão. É verdade que se esta resolução era contrária à primeira, podia ter causa o cansaço que lhe ia produzindo a vida que levava. Além de que, desta vez, a riqueza não se fazia esperar: era entregue logo depois do consórcio.

-   Trezentos contos, pensava o rapaz, é quanto basta para eu ser mais do que fui. O que não hão de dizer os outros!

Antevendo uma felicidade que era certa para ele, Soares começou o assédio da praça, aliás praça rendida.

Já o rapaz procurava os olhos da prima, já os encontrava, já lhes pedia aquilo que recusara até então, o amor da moça. Quando, à mesa, as suas mãos se encontravam, Soares tinha o cuidado de demorar o contato, e se a moça retirava a sua mão, o rapaz nem por isso desanimava. Quando se encontrava a sós com ela, não fugia como outrora, antes lhe dirigia alguma palavra, a que Adelaide respondia com fria polidez.

-  Quer vender o peixe caro, pensava Soares.

Uma vez atreveu-se a mais. Adelaide tocava piano quando ele entrou sem que ela o visse. Quando a moça acabou, Soares estava por trás dela.

-  Que lindo! disse o rapaz; deixe-me beijar-lhe essas mãos inspiradas.

A moça olhou séria para ele, pegou no lenço que pusera sobre o piano, e saiu sem dizer palavra. Esta cena mostrou a Soares toda a dificuldade da empresa; mas o rapaz confiava em si, não porque se reconhecesse capaz de grandes energias, mas por espécie de esperança na sua boa estrela.

-   É difícil subir a corrente, disse ele, mas sobe-se. Não se fazem Alexandres na conquista de praças desarmadas.

Contudo as desilusões iam-se sucedendo, e o rapaz, se o não alentasse a idéia da riqueza, teria abatido as armas.

Um dia lembrou-se de escrever-lhe uma carta. Lembrou-se de que era difícil expor-lhe de viva voz tudo quanto sentia; mas que uma carta, por muito ódio que ela lhe tivesse, sempre seria lida.

Adelaide devolveu a carta pelo moleque da casa que lha havia entregue.

A segunda carta teve a mesma sorte. Quando mandou a terceira, o moleque não a quis receber.


Luiz Soares teve um instante de desengano. Indiferente à moça, já começava a odiá-la; se casasse com ela era provável que a tratasse como inimigo mortal.

A situação tornava-se ridícula para ele; ou antes, já o era há muito, mas Soares só então o compreendeu. Para escapar ao ridículo, resolveu dar um golpe final, mas grande. Aproveitou a primeira ocasião que pôde, e fez uma declaração positiva à moça, cheia de súplicas, de suspiros, talvez de lágrimas. Confessou os seu erros; reconheceu que não a havia compreendido; mas arrependera-se e confessava tudo. A influência dela acabara por abatê-lo.

-  Abatê-lo! disse ela; não compreendo. A que influência alude?

-   Bem sabe; à influência da sua beleza, do seu amor... Não suponha que lhe estou mentindo. Sinto- me hoje tão apaixonado que era capaz de cometer um crime!

-  Um crime?

-   Não é crime o suicídio? De que me serviria a vida sem o seu amor? Vamos, fale! A moça olhou para ele durante alguns instantes sem dizer palavra.

O rapaz ajoelhou-se.

-   Ou seja a morte, ou seja a felicidade, disse ele, quero recebê-la de joelhos. Adelaide sorriu e soltou lentamente estas palavras:

-   Trezentos contos! É muito dinheiro para comprar um miserável. E deu-lhe as costas.

Soares ficou petrificado. Durante alguns minutos conservou-se na mesma posição, com os olhos fitos na moça que se afastava lentamente. O rapaz dobrava-se ao peso da humilhação. Não previra tão cruel desforra da parte de Adelaide. Nem uma palavra de ódio, nem um indício de raiva; apenas um calmo desdém, um desprezo tranqüilo e soberano. Soares sofrera muito quando perdeu a fortuna; mas agora que o seu orgulho foi humilhado, a sua dor foi infinitamente maior.

Pobre rapaz!

A moça foi para dentro. Parece que contava com aquela cena; porque entrando em casa, foi logo procurar o tio, e declarou-lhe que, apesar de quanto venerava a memória do pai, não podia obedecer-lhe, e desistia do casamento.

-  Mas não o amas tu? perguntou-lhe o major.

-  Amei-o.

-  Amas a outro?

-  Não.

-  Então explica-te.

Adelaide expôs francamente o procedimento de Soares desde que ali entrara, a mudança que fizera, a sua ambição, a cena do jardim. O major ouviu atentamente a moça, procurou desculpar o sobrinho, mas no fundo ele acreditava que Soares era um mau-caráter.

Este, depois que pôde refrear a sua cólera, entrou em casa e foi despedir-se do tio até o dia seguinte. Pretextou que tinha um negócio urgente.

Contos do Sábado na Usina: Camilo Castelo Branco:

 


I


Marta era filha de um lavrador mediano que tinha em Pernambuco um irmão rico de quem dizia o diabo. Chamava-lhe ladrão porque, no espaço de vinte anos, lhe mandara três moedas, com os seguintes encargos: à mãe
6$000 réis fortes, às almas do Purgatório, de Negrelos, 3$000 réis também fortes, que lhos prometera quando embarcou, e o resto para ele –
A rapariga conversou diversos mancebos, uns da lavoura, outros da arte, e, afinal, quando o pai lhe negociava o casamento com um pedreiro, mestre-de-obras, muito endinheirado e já maduro, apareceu o José Dias, filho de um lavrador rico de Vilalva, a namoriscá-la. Este rapaz estudava latim para clérigo; mas, como era fraco, de poucas carnes e amarelo, o cirurgião disse ao pai que o moço não lhe fazia bem puxar pelas memórias. Os padres do Minho, naquele tempo, não puxavam quase nada pelas memórias; ordenavam-se tão alheios às faculdades da alma que, sem memória nem entendimento, e às vezes sem vontade, eram sofríveis sacerdotes, davam poucas silabadas no Missal e liam os salmos do Breviário com uma grande incerteza do que queria dizer o penitente David. Pois, assim mesmo, sendo tão fácil a ordenação – uma coisa que se fazia com uma perna às costas, diziam certos vigários – sem precisão absoluta de puxar pelas memórias, o Joaquim Dias quis tirar o filho do latim que lhe ensinava um egresso da Ordem Terceira, o Frei Roque. Este padre-mestre tinha uma irmã paralítica: sabia ler, e prendas de costura, marcava, fizera um pavão de missanga, não desconhecia o croché e ensinava raparigas para se distrair.
No quinteiro do padre-mestre Roque foi que o José de Vilalva se afez a reparar na Marta de Prazins, uma rapariga muito alva, magrinha, de cabelo atado, muito limpa, com a sua saia de chita amarela com dois folhos, jaqueta de fazenda azul com o forro dos punhos escarlates, muito séria com propósito de mulher e ares muito sonsos
– diziam as outras, que lhe chamavam a songuinha. Os outros estudantes, rapazolas vermelhaços, refeitos, grandes parvajolas, com grandes nacos de boroa nas algibeiras das véstias de saragoça de varas, e os vemos Virgílios ensebados em saquitos de estopa suja, diziam graçolas a Marta – chamavam-lhe boa pequena, franga e peixão. O José Dias, arredado do grupo dos trocistas alvares, via-a passar silenciosa, indiferente aos gracejos, olhos no chão, e um grande resguardo na barra da saia quando subia a escada. Os rapazes, aqueles embriões de abades, como a escada de pedra era íngreme e aberta do lado do quinteiro, punham-se a espreitar as pernas das alunas da paralítica, pela maior parte raparigas entre doze e dezasseis anos, muito musculosas, com pés grandes e os tecidos repuxados e cheios pelo exercício dos carretos nas safras da lavoura.
Marta ia nos catorze quando o pai a quis tirar da mestra. Chegara-lhe aos ouvidos que os estudantes, má canalha, lhe impeticavam com a filha. Queixou-se a Frei Roque. O egresso, resfolegando honradas cóleras e pulverizações de esturrinho, mandou enfileirar os gargajolas na quadra da aula, e chamou a Marta.
– Qual foi destes tratantes o que implicou contigo. cachopa? – perguntou o padremestre olhando-a por cima dos óculos, orbiculares, com as hastes oxidadas de um cobre antigo. E, apontando para o primeiro da fileira que era o José de Vilalva:
– Foi este?
– Esse nunca me disse nada – respondeu com a voz trémula, toda vermelha, a rapariga.
– Foi este?
Marta não ergueu os olhos nem respondeu.
– Então, moça? qual foi dos nove? Diz lá. Tu que te queixaste é que algum embarrou por ti.
– Eu não me queixei... – murmurou a interrogada.
Verdadeiramente ela não se queixara. Foi o Zeferino, o filho do alferes da Lamela, o mestre-pedreiro que andando a construir um canastro na eira do padre-mestre, observara que os estudantes rentavam à cachopa, e ajeitavam-se em atitudes abrejeiradas, como de quem espreita, quando ela subia a escada.
O denunciante ao pai de Marta foi ele, o pedreiro abastado, não porque o espicaçassem nessa denúncia o zelo dos bons costumes, e um justo ódio às concupiscentes espionagens dos rapazes, mas porque gostava, deveras, da moça. Ele passava já dos trinta e dois e era a primeira vez que sentia no coração as alvoradas do amor. Frei Roque, averiguado o caso, advertiu o pedreiro que não fosse má-lingua, que não andasse a difamar os seus discípulos, que se preparavam para o sacerdócio – uma coisa séria. O episódio acabaria assim menos mal, se dois dos estudantes, que se preparavam para o sacerdócio, mais fortes no fueiro que nas conjugações, desistissem de o moer a pauladas, uma noite num pinhal. O mestre-de-obras iniciou-se pelo martírio obscuro num amor que principiava bastante mal. Ele nunca soube ao certo quem lhe batera, e atribuiu a sova a émulos na arte, covardes e misteriosos, por causa da construção de uma igreja que ele desdenhara, citando as regras do Vignola. Vinha a ser o desastre uma tunda por motivos de arquitectura – um martírio de artista. Invejas. Por causa da Arte padecera o seu colega Afonso Domingues, o arquitecto da Batalha, e João de Castilho, o do convento de Tomar, e já tinha padecido seu mestre, o Manuel Chasco, a quem inimigos quebraram a cabeça na feira dos 21, porque ele, desfazendo na obra de um colega, dissera que o botaréu de um cunhal estava torto.
Passado tempo, Marta saiu pronta da mestra. Lia a cartilha do Salamondi e o Grito das Almas, decifrava menos mal uma sentenças velhas, que havia na casa de Prazins, monumentos das ruínas de antigas demandas, e escrevia regularmente. A primeira carta que escreveu por pauta foi para o tio de Pernambuco, o tio Feliciano. Pedia- lhe a sua bênção e duas moedas de ouro para umas arrecadas. Era o pai que lhe ditava a carta, cheia de lástimas mendigas, mentirosas, historietas velhacas de penhoras, as grandes décimas, a ferrugem das oliveiras, o bicho da batata, o gorgulho que pegara no milho, muitas alicantinas.
– Que era a ver se o ladrão mandava alguma coisa – dizia ele, pondo cuspo na obreia vermelha para fechar
a carta.
A segunda carta que ela escreveu, já sem pauta, foi a José Dias, ao estudante, que já não estudava por causa
das memórias nocivas à sua saúde fraca, um pelém.
original.
Neste tempo já o Zeferino da Lamela se tinha declarado com o Simeão de Prazins, de um modo quase
– Você quanto deve, ó tio Simeão? – perguntou.
– Quanto devo? Você quer pagar-me as dívidas?
– Pode ser. Você deve à Irmandade de Nossa Senhora de Negrelos um conto e cem mil-réis; você deve de tornas a seu irmão quatrocentos. Há-de andar lá para um conto e quinhentos, p'ra riba que não p'ra baixo.
– É isso; você sabe a minha vida melhor que eu a sua – um conto e quinhentos e pico.
– Quanto é o pico?
– Obra de dez moedas, mais pinto menos pinto. Miudezas na loja ao mercador e um restito da vaca amarela que comprei ao Tarraxa na feira dos 13.
– Você quer fazer um cambalacho? – tornou o pedreiro recuando o chapéu para a nuca e pondo-lhe as mãos espalmadas com força nos ombros.
– Se pintar... Já sei o que você quer... Não me serve. Você quer comprar-me o lameiro da azenha – não
vendo.
– Eu ainda lhe não disse o que queria, tio Simeão. Olhe bem para mim. Você está a falar c'um home. Pago-
lhe as dívidas, você não fica a dever nada, e eu caso com a sua Marta. Pode dar os bens ao outro filho que eu não lhe quero uma de X.
– Você fala sério, ó sor Zeferino?
– Se falo sério?! Então você não sabe com quem é que trata.
– Ora bem – entendamo-nos – é a rapariga que você quer, a rapariga estreme, sem dote nem escritura?
– Eu não tenho senão uma palavra. Já lhe disse que sim.
– A rapariga é sua.
Negociara a filha com o Zeferino como tinha negociado com o Tarraxa a vaca amarela na feira dos 13. Eis um caso esquisito de aldeia que pela torpeza parece acontecido numa cidade culta. Conversou-se este diálogo debaixo de um castanheiro frondoso, com um pavilhão de folhagem gorjeado de pássaros, com uns tons de luz esverdeada, na doce placidez crepuscular de uma tarde de Agosto, entre dois homens de tamancos, arremangados, com os peitos cabeludos a negrejar de entre os peitilhos da camisa surrada de suor e poeira, brutos no gesto e na frase. Análogas passagens, com estilo pouco melhor, têm sido dramatizadas nas salas, entre homens da melhor polpa e casca social – uns que mandaram ensinar às filhas os verbos franceses e são assinantes do Journal des Dames que marca às meninas a baliza até onde pode chegar o arrojo da língua francesa e os seus mais avançados destinos. Da outra parte, homens ricos, de fígado ingurgitado, fatigados, sedentos de senhoras finas que ponham no luxo das suas salas os tons vivos da carne constelada de diamantes. É o epílogo de vinte anos de lavra dura, o substrato da compra de negras a milhares: – comprar uma branca, das que o amor pobre e o talento estéril não podem negociar. O contrato feito em Prazins – eis a diferença – por parte do pedreiro era um heroísmo: dava o seu dinheiro por aquela mulher; daria mais depressa o seu sangue. Era uma paixão das que não pegam com os dentes anavalhados em corações civilizados, quase desfeitos. Ora, os pedreiros que vêm de além-mar, e se vestiram no Pool ou no Keil, não amam nem cumpram assim. Fazem o dote económico, comezinho à esposa. Compram uma máquina de propagação, condicionalmente. Se, extinto o comprador, a máquina, não deteriorada, tiver pretendente, o substituto que a compre. O defunto prefere que a sua viúva, adelgaçada e espiritualizada por jejuns, lhe converse com a alma.

Contos do Sábado na Usina: Olavo Bilac: A ENGUIA:




Ao alvorecer, na pequenina aldeia, à beira-mar, padre João, ainda estremunhado de sono, vai seguindo a praia branca, a caminho da igrejinha, que parece ao longe, clara e alegre, levantando no nevoeiro a sua torre esbelta. Lá vai o bom pároco dizer a sua missa e pregar o seu sermão de quaresma... Velho e gordo, muito velho e muito gordo, padre João é muito amado de toda a gente do lugar. E os pescadores que o vêm, vão deixando as redes e vão também seguindo para a igreja. E o bom pároco abençoa as suas ovelhas, e vai sorrindo, sorrindo, com aquele sorriso todo bondade e todo indulgência... À porta da igreja, a Sra. Tomásia, velha devota que o adora, vem ao encontro dele: 
— Padre João! Aqui está um regalo que lhe quero oferecer para o seu almocinho de hoje... 
E tira do cabaz uma enguia, uma soberba enguia, grossa e apetitosa, viva, remexendo-se. 
— Deus te pague, filha! — diz o bom padre, — e os seus olhos fulguram, cheios de júbilo e gula. E segura a enguia, e vai entrando com ela na mão, seguido da velha devota. Que bela enguia! e padre João apalpa voluptuosamente o peixe... 
Mas já aí vem o sacristão. A igreja está cheia... A missa vai começar... Que há de fazer o padre João da sua formosa enguia? Deixá-la ali, expô-la ao apetite do padre Antônio, que também é guloso? Padre João não hesita: levanta a batina e com um barbante amarra a enguia em roda da cintura. 
A missa acaba. Padre João, comovido e grave, sobe ao púlpito rústico da igreja. E a sua voz pausada começa a narrar a delícia da abstinência e das privações: é preciso amar a Deus... é preciso evitar as torpezas do mundo... é preciso fugir das tentações da carne... E o auditório ouve com recolhimento a palavra suave do seu bom pároco. 
Mas, de repente, que é aquilo? Os homens abrem os olhos espantados; remexem-se as mulheres, levantando curiosamente os olhares para o púlpito... É que, na barriga do padre João, debaixo da batina, alguma coisa grossa está bolindo... E já na multidão de fiéis correm uns risinhos abafados... 
Padre João compreende. Pobre pároco! pobre pároco atrapalhado! cora até a raiz dos cabelos, balbucia, fica tonto e confuso. Depois, cria coragem e, vencendo a vergonha, exclama: 
— Não é nada do que pensais, filhas! Não é carne! É peixe! É peixe! Não é carne!... 
E sacode no ar, com a mão tremula, a enguia da senhora Tomásia...

A Divina Comédia: Dante Aliguieri:



No espaço, a que o penhasco é sobranceiro, 
Centauros correm, setas agitando,
57 Como soíam no viver primeiro.
Descer nos vendo, pára o ardido bando. 
Três de entre eles então nos demandaram, 
60 Os arcos e arremessos preparando.
Os brados de um de longe nos soaram:
— “Vós, que desceis, dizei a pena vossa;
63 De lá falai, ou tiros se disparam!” —
Virgílio respondeu: — “Resposta nossa 
Terá Quiron de perto, sem demora.
66 Sempre te dana a pressa que te apossa”. —
Tocou-me e disse: — “Quem nos fala agora 
É Nesso, o que morreu por Dejanira;
69 Mas se vingou de quem fatal lhe fora.
“Esse do meio, que o seu peito mira, 
Aio de Aquiles, é Quiron famoso;
72 Esse outro é Folo, sempre aceso em ira”. —
Aos mil em volta ao rio sanguinoso As almas seteavam, 
que excediam,
75 Mais do que é dado, o líquido horroroso.
Àqueles monstros que ágeis se moviam, 
Chegamo-nos. Quiron com seta ajeita
78 Os cabelos, que os lábios lhe encobriam.
Quando desta arte a larga boca afeita, Disse à companha: 
— “Haveis já reparado
81 Que move aquele tudo, em que os pés deita?
“Nunca assim pés de morto hão caminhado”. 
O Guia meu, que junto já lhe estava
84 Do peito, onde era um ser noutro enleado,
— “Vivo está, vem comigo” — lhe tornava 
— “A visitar o val maldito, escuro
87 Para cumprir dever, que lho ordenava.
“Deixando de cantar o hosana puro 
Alguém me há cometido o cargo novo. 
90 Não é ladrão, nem eu esp'rito impuro:
Em nome do poder, por quem eu movo
Os passos meus em tão medonha estrada,
93 Envia algum, que escolhas no teu povo,
“Por nos mostrar a parte acomodada
Ao vau, e no seu dorso haver transporte
96 Quem não é sombra ao vôo aparelhada”.

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Sexta na Usina: Petas da Rede: Rogério Mosco:



 INVISÍVEL

Há algo de diferente no ar...

Um não-sei-quê

Que me deixa aflito

Um ar de melancolia

E nem sei o que é…

Mas…

Há algo de diferente no ar

O dia nasceu como sempre

O sol ainda está ali

As nuvens passeiam tranquilas

As folhas continuam

Cobrindo o chão

Mas…

Há algo de diferente no ar

Não sei se no tom do silêncio

Na ausência

De letras... palavras…

Frases…

Rabiscadas pelos muros

Ou na distância de algo

Que na verdade

Nunca esteve perto

Mas…

Há algo de diferente no ar

Talvez seja fruto

Dá solidão das ruas

Ou na forma

Que vento passa

Por entre  prédios desabitados

Mas…

Há algo de diferente no ar

Pode ser apenas

A  falta

Do eco de nossas vozes

Do barulho

Dos nossos passos

Ou mesmo

A inexistência

Dos nossos reflexos

Nas paredes envidraçadas

Não sei ao certo

Só sei

Que há algo de diferente no ar…

Rogério Mosco

Sexta na Usina: Poetisas da Rede: Gonzalez Jr:

 


"A Criança que habita em nós"

A criança que habita em cada um de nós.

Uma criança presa num corpo de adulto.

Com a saudade do tempo que era criança.

E com medo de tentar ser feliz.

Sonhos...

Brincadeiras..

Doces.

Tudo que uma criança deseja,mas coragem não deixa.

Se liberte desse adulto e viva sua vida.

Passa para seus filhos(as) e sobrinhos(as)...

Os momentos bons que viveu no passado curtindo com eles a cada instante.

Para que eles sempre possa recordar de você e de suas lembranças.

Não deixa o preconceito e o medo tirar sua vida e sua alegria de reviver seus momentos de criança.

Porque depois não adianta chorar por não ter coragem de tentar.

Levaremos conosco só as lembranças.

Se liberte e viva a cada instante.

A vida é uma só.

Direitos autorais reservados ao autor:

José Antônio Gonzalez De Oliveira Junior

10/10/20

(Gonzalez Jr)

Sexta na Usina: Poetas da Rede: Paulo Caldas:

  


Fazedores de Histórias

Fazedores de histórias

Personagens que saem das folhas, sentem

Felizes, têm em si sonhos

Lhes dão vida, vivenciam

Expressam sentimentos

Partilham o seu olhar, mostram este dom

Amar a escrita em si, fazer poesia

Nascer como uma semente, crescer

Neste amanhecer, de ver o mundo florescer

Enaltece o Ser, sua plenitude

Enobrece quem carece, engrandece

Com sua mão, dá vida, agradece

Os livros, entram em nós, permanece

Eleva pensamentos, transforma momentos

Faz da vida, magia, sonhar

Viver, sentir feliz, renascer de esperança

Pensar, florir, nossa janela da alma

Deixar entrar, luz, cor, sabor, amor

Renovar vidas, neste querer, abraçar

Compreender, corresponder, comunicar

Onde o imaginário acontece, sente, vive

Feliz dia mundial dos escritores

Paulo Caldas 13.10.2020

Sexta na Usina: Poetas da Rede: Cleber da Silva:


 

Unidos Eternamente

Te escolhi e te escolheria mil vezes,

Mesmo com as nossas brigas,

Com os nossos desentendimentos,

Te escolheria milhões de vezes...

Teus lados negativos juntos com os meus nos fazem ser este casal forte e único...

Somos assim unidos nas lágrimas,

Unidos nas brigas,

Grudados na hora de amar nos tornamos um...

Te escolheria e te escolho,

Para viver a eternidade comigo,

Porque o para sempre não nos cabe,

O para sempre um dia acaba,

A eternidade está a espera da gente,

Te amo!

Cleber da Silva