sexta-feira, 29 de abril de 2022

Contos do Sábado na Usina: Humberto Campos:

 




O seringueiro 

VI 
Qual dos dois falou primeiro, não se poderia, talvez, descobrir. E ainda menos o que teria primeiro lembrado ao outro o insulto que constituía, perante Deus, a presença, ali, daquele estranho, tão despreocupado e tão rico, precisamente no dia em eles, tendo perdido todos os haveres, representados pelo gado morto de sede e pelo roçado destruído na fogueira do sol inclemente, pretendiam abandonar, a pé, aquelas terras adustas, afim de se unir em Sobral aos milhares de retirantes que viviam da caridade pública. A verdade é que, cerca de meia-noite, quando se não ouvia na cabana escura senão o roncar compassado do viajante e, lá fora, em torno à casa, o chocalho dos animais por ele trazidos, os dois, marido e mulher, penetraram, pé ante pé, na sala pequena. Um baque surdo, e fofo, um gemido abafado, um barulho de líquido em jorro, estremecimentos de um corpo que cessa de viver, e foi tudo. Minutos depois a enxada do antigo lavrador cavava, na escuridão da noite, atrás do curral vazio, uma cova estreita e rasa. E nela desaparecia, para sempre, com a rede em que adormecera, o paraoara feliz. Tiradas as peias dos animais, foram estes espantados para longe, afim de afastar suspeitas, se estas surgissem. Acesa uma vela de carnaúba, contaram os dois, de mãos sôfregas, no interior da casa, o dinheiro encontrado nos bolsos do assassinado. Havia quatro contos e duzentos mil réis. 
Vamos ver a bagagem, - convidou o marido, com tremores na voz, como quem começa a despertar de um sonho terrível. 
Abertas as malas foi examinado, às pressas, o que nelas havia. Cortes de chita, espelhos, anéis, broches baratos, vidros de perfume, pentes, miudezas para presentes humildes. E latas de conservas, e doces. E roupas novas, algumas não vestidas ainda. De repente, no meio de tudo, um papel, uma conta, que talvez esclarecesse a identidade do morto. 
- Lê tu, que sabes, - pediu o caboclo, passando a conta à mulher. 
A sertaneja soletrou o primeiro nome. Soletrou o segundo, até o meio. Os lábios tremiam-lhe, como uma flor murcha acossada pelo vento. O papel caiu-lhe da mão, e a vela depois, apagando-se. E foi no escuro que ela, o estupor estampado na face, se atirou ao pescoço do companheiro. 
- Vicente, meu marido da minh 'alma! - exclamou. 
E agarrada ao esposo, num grito de desespero, os olhos escancarados na treva: 
- Era... meu irmão!... 
Humberto de Campos

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