sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Projeto Contos Do Sábado Na Usina:Marquês de Sade: O marido padre:Conto provençal





Entre a cidade de Menerbe, no condado de Avinhão, e a de Apt, em Provença, há um pequeno convento de carmelitas isolado, denominado Saint-Hilaire, assentado no cimo de uma montanha onde até mesmo às cabras é difícil o pasto; esse pequeno sítio é aproximadamente como a cloaca de todas as comunidades vizinhas aos carmelitas; ali, cada uma delas relega o que a desonra, de onde não é difícil inferir quão puro deve ser o grupo de pessoas que freqüenta essa casa. Bêbados, devassos, sodomitas, jogadores; são esses, mais ou menos, os nobres integrantes desse grupo, reclusos que, nesse asilo escandaloso, o quanto podem ofertam a Deus almas que o mundo rejeita. Perto dali, um ou dois castelos e o burgo de Menerbe, o qual se acha apenas a uma légua de Saint-Hilaire - eis todo o mundo desses bons religiosos que, malgrado sua batina e condição, estão, entretanto, longe de encontrar abertas todas as portas de quantos estão à sua volta.
Havia muito o padre Gabriel, um dos santos desse eremitério, cobiçava certa mulher de Menerbe, cujo marido, um rematado corno, chamava-se Rodin. A mulher dele era uma moreninha, de vinte e oito anos, olhar leviano e nádegas roliças, a qual parecia constituir em todos os aspectos lauto banquete para um monge. No que tange ao sr. Rodin, este era homem bom, aumentando o seu patrimônio sem dizer nada a ninguém: havia sido negociante de panos, magistrado, e era, pois, o que se poderia chamar um burguês honesto; contudo, não muito seguro das virtudes de sua cara-metade, era ele sagaz o bastante para saber que o verdadeiro modo de se opor às enormes protuberâncias que ornam a cabeça de um marido é dar mostras de não desconfiar de os estar usando; estudara para tornar-se padre, falava latim como Cícero, e jogava bem amiúde o jogo de damas com o padre Gabriel que, cortejador astuto e amável, sabia que é preciso adular um pouco o marido de cuja mulher se deseja possuir. Era um verdadeiro modelo dos filhos de Elias, esse padre Gabriel: dir-se-ia que toda a raça humana podia tranqüilamente contar com ele para multiplicar-se; um legítimo fazedor de filhos, espadaúdo, cintura de uma alna* , rosto perverso e trigueiro, sobrancelhas como as de Júpiter, tendo seis pés de altura e aquilo que é a característica principal de um carmelita, feito, conforme se diz, segundo os moldes dos mais belos jumentos da província. A que mulher um libertino assim não haveria de agradar soberbamente? Desse modo, esse homem se prestava de maneira extraordinária aos propósitos da sra. Rodin, que estava muito longe de encontrar tão sublimes qualidades no bom senhor que os pais lhe haviam dado por esposo. Conforme já dissemos, o sr. Rodin parecia fazer vistas grossas a tudo, sem ser, por isso, menos ciumento, nada dizendo, mas ficando por ali, e fazendo isso nas diversas vezes em que o queriam bem longe. Entretanto, a ocasião era boa. A ingênua Rodin simplesmente havia dito a seu amante que apenas aguardava o momento para corresponder aos desejos que lhe pareciam fortes demais para que continuasse a opor-lhes resistência, e padre Gabriel, por seu turno, fizera com que a sra. Rodin percebesse que ele estava pronto a satisfazê-la... Além disso, num breve momento em que Rodin fora obrigado a sair , Gabriel mostrara à sua encantadora amante uma dessas coisas que fazem com que uma mulher se decida, por mais que hesite... só faltava, portanto, a ocasião.
Num dia em que Rodin saiu para almoçar com seu amigo de Saint-Hilaire, com a idéia de o convidar para uma caçada, e depois de ter esvaziado algumas garrafas de vinho de Lanerte, Gabriel imaginou encontrar na circunstância o instante propício à realização dos seus desejos.
* Antiga medida de comprimento de três palmos. (N. dos T.)
- Oh, por Deus, senhor magistrado, - diz o monge ao amigo - como estou contente de vos ver hoje! Não poderíeis ter vindo num momento mais oportuno do que este; ando às voltas com um caso da maior importância, no qual haveríeis de ser a mim de serventia sem par.
- Do que se trata, padre?
- Conheceis Renoult, de nossa cidade.
- Renoult, o chapeleiro.
- Precisamente.
- E então?
- Pois bem, esse patife me deve cem écus* , e acabo de saber que ele se acha às portas da falência; talvez agora, enquanto vos falo, ele já tenha abandonado o Condado... preciso muitíssimo correr até lá, mas não posso fazê-lo.
- O que vos impede?
- Minha missa, por Deus! A missa que devo celebrar; antes a missa fosse para o diabo, e os cem écus voltassem para o meu bolso.
- Não compreendo: não vos podem fazer um favor?
- Oh, na verdade sim, um favor! Somos três aqui; se não celebrarmos todos os dias três missas, o superior, que nunca as celebra, nos denunciaria à Roma; mas existe um meio de me ajudardes, meu caro; vede se podeis fazê-lo; só depende de vós.
- Por Deus! De bom grado! Do que se trata?
- Estou sozinho aqui com o sacristão; as duas primeiras missas foram celebradas, nossos monges já saíram, ninguém suspeitará do ardil; os fiéis serão poucos, alguns camponeses, e quando muito, talvez, essa senhorazinha tão devota que mora no castelo de... a meia légua daqui; criatura angélica que, à força da austeridade, julga poder reparar todas as estroinices do marido; creio que me dissestes que estudastes para ser padre.
- Certamente.
- Pois bem, deveis ter aprendido a rezar a missa.
- Faço-o como um arcebispo.
- Ó meu caro e bom amigo! - prossegue Gabriel lançando-se ao pescoço de Rodin - são dez horas agora; por Deus, vesti meu hábito, esperai soar a décima primeira hora; então celebrai a missa, suplico-vos; nosso irmão sacristão é um bom diabo, e nunca nos trairá; àqueles que julgarem não me reconhecer, dir-lhes-emos que é um novo monge, quanto aos outros, os deixaremos em erro; correrei ao encontro de Renoult, esse velhaco, darei cabo dele ou recuperarei meu dinheiro, estando de volta em duas horas. O senhor me aguardará, ordenará que grelhem os linguados, preparem os ovos e busquem o vinho; na volta, almoçaremos, e a caça... sim, meu amigo, a caça creio que há de ser boa dessa vez: segundo se disse, viu-se pelas redondezas um animal de chifres, por Deus! Quero que o agarremos, ainda que tenhamos de nos defender de vinte processos do senhor da região!
- Vosso plano é bom - diz Rodin - e, para vos fazer um favor, não há, decerto, nada que eu não faça; contudo, não haveria pecado nisso?
- Quanto a pecados, meu amigo, nada direi; haveria algum, talvez, em executar-se mal a coisa; porém, ao fazer isso sem que se esteja investido de poderes para tanto, tudo o que dissentes e nada são a mesma coisa. Acreditai em mim; sou casuísta, não há em tal conduta o que se possa chamar pecado venial.
- Mas seria preciso repetir a liturgia?
- E como não? Essas palavras são virtuosas apenas em nossa boca, mas também esta é virtuosa em nós... reparai, meu amigo, que se eu pronunciasse tais palavras deitado em cima de vossa mulher, ainda assim eu havia de metamorfosear em deus o templo onde sacrificais... Não, não, meu caro; só nós possuímos a virtude da transubstanciação; pronunciaríeis vinte mil vezes as palavras, e nunca faríeis descer algo dos céus; ademais, bem amiúde conosco a cerimônia fracassa por completo; e, aqui, é a fé que faz tudo; com um pouco de fé transportaríamos montanhas, vós sabeis, Jesus Cristo o disse, mas quem não tem fé nada faz...
* Antiga moeda francesa. (N. dos T.)
eu, por exemplo, se nas vezes em que realizo a cerimônia penso mais nas moças ou nas mulheres da assembléia do que no diabo dessa folha de pão que revolvo em meus dedos, acreditais que faço algo acontecer? Seria mais fácil eu crer no Alcorão que enfiar isso na minha cabeça. Vossa missa será, portanto, quase tão boa quanto a minha; assim, meu caro, agi sem escrúpulo, e, sobretudo, tende coragem.
- Pelos céus, - diz Rodin - é que tenho uma fome devoradora! Ainda faltam duas horas para o almoço!
- E o que vos impede de comer um pouco? Aqui tendes alguma coisa.
- E a tal missa que é preciso celebrar?
- Por Deus! O que há de mal nisso? Acreditais que Deus se há de macular mais caindo numa barriga cheia em vez de numa vazia? O diabo me carregue se não é a mesma coisa a comida estar em cima ou embaixo! Meu caro, se eu dissesse em Roma todas as vezes que almoço antes de celebrar minha missa, passaria minha vida na estrada. Além disso, não sois padre, nossas regras não vos podem constranger; ireis tão-somente dar certa imagem da missa, não ireis celebrá-Ia; conseqüentemente, podereis fazer tudo o que quiserdes antes ou depois, inclusive beijar vossa mulher, caso ela aqui estivesse; não se trata de agir como eu; não é celebrar, nem consumar o sacrifício.
- Prossigamos - diz Rodin - hei de fazê-lo, Podeis ficar tranqüilo.
- Bem - diz Gabriel, dando uma escapadela, depois de fazer boas recomendações do amigo ao sacristão... - contai comigo, meu caro; antes de duas horas estarei aqui - e, satisfeito, o monge vai embora.
Não é difícil imaginar que ele chega apressado à casa da mulher do magistrado; que ela se admira de vê-lo, julgando-o em companhia de seu marido; que ela lhe pergunta a razão de visita tão imprevista.
- Apressemo-nos, minha cara - diz o monge, esbaforido - apressemo-nos! Temos para nós apenas um instante... um copo de vinho, e mãos à obra!
- Mas, e quanto a meu marido?
- Ele celebra a missa.
- Celebra a missa?
- Pelo sangue de Cristo, sim, mimosa - responde o carmelita, atirando a sra. Rodin ao leito - sim, alma pura, fiz de seu marido um padre, e, enquanto o farsante celebra um mistério divino, apressemo-nos em levar a cabo um profano...
O monge era vigoroso; a uma mulher, era difícil opor-se-lhe quando ele a agarrava: suas razões, por sinal, eram tão convincentes... ele se põe a persuadir a sra. Rodin, e, não se cansando de fazê-lo a uma jovem lasciva de vinte e oito anos, com um temperamento típico da gente de Provença, repete algumas vezes suas demonstrações.
- Mas, meu anjo - diz, enfim, a beldade, perfeitamente persuadida - sabeis que se esgota o tempo... devemos nos separar: se nossos prazeres devem durar apenas o tempo de uma missa, talvez ele já esteja há muito no ite missa est.
- Não, não, minha querida - diz o carmelita, apresentando outro argumento à sra. Rodin -, deixai estar, meu coração, temos todo o tempo do mundo! Uma vez mais, minha cara amiga, uma vez mais! Esses noviços não vão tão rápido quanto nós... uma vez mais, vos peço! Apostaria que o corno ainda não ergueu a hóstia consagrada.
Todavia, mister foi que se despedissem, não sem promessas de se reverem; tracejaram novos ardis, e Gabriel foi encontrar-se com Rodin; este havia celebrado a missa tão bem quanto um bispo.
- Apenas o quod aures - diz ele - embaraçou-me um pouco; eu queria comer em vez de beber, mas o sacristão fez com que eu me recompusesse; e quanto aos cem écus, padre?
- Recuperei-os, meu filho; o patife quis resistir, peguei de um forcado, dei-lhe umas pauladas, juro-vos, na cabeça e noutras partes.
Entretanto, a diversão termina; nossos dois amigos vão à caça e, ao regressar, Rodin conta à sua mulher o favor que prestou a Gabriel.
- Celebrei a missa - dizia o grande tolo, rindo com todas as forças - sim, pelo corpo de Cristo! Eu celebrava a missa como um verdadeiro vigário, enquanto nosso amigo media as espáduas de Renoult com um forcado... Ele dava com a vara; que dizeis disso, minha vida? Colocava galhos na fronte; ah! boa e querida mãezinha! como essa história é engraçada, e como os cornos me fazem rir! E vós, minha amiga, o que fazíeis enquanto eu celebrava a missa?

- Ah! meu amigo - responde a mulher - parecia inspiração dos céus! Observai de que modo nos ocupavam de todo, a um e a outro, as coisas do céu, sem que disso suspeitássemos; enquanto celebráveis a missa, eu entoava essa bela oração que a Virgem dirige a Gabriel quando este fora anunciar-lhe que ela ficaria grávida pela intervenção do Espírito Santo. Assim seja, meu amigo! Seremos salvos, com toda certeza, enquanto ações tão boas nos ocuparem a ambos ao mesmo tempo.

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo: A PRAIA DE SANTA LUZIA:



Maurício casara-se muito cedo, aos dezenove anos, e era feliz, porque ia completar os vinte e quatro sem ter o menor motivo de queixa contra vida conjugal. 
Justiça se lhe faça: era marido exemplaríssimo em terra tão perigosa para os rapazes de sua idade. Tinha essa virtude burguesa, que as mulheres amantes colocam acima dos sentimentos mais elevados: era caseiro. Ia para a repartição às nove horas, e às quatro estava em casa, invariavelmente. Só por exceção saía à noite, mas acompanhado por sua mulher. Adorava-a. 
Adorava-a, mas um dia... 
Não! não precipitemos o conto; procedamos com método: 
Maurício exercia na Alfândega um modesto emprego de escriturário, e, como residisse nas proximidades do Passeio Público, e era por natureza comodista e ordenado, tomava sistematicamente, às nove horas, o bondinho que contornava parte do morro do castelo, e ia despejá-lo no Carceler, perto da repartição. 
Habitou-se a atravessar todas as manhãs dos dias úteis a praia de Santa Luzia, e, afinal, tanto se apaixonara por esse sítio, realmente belo, que por coisa alguma renunciaria ao inocente prazer de contemplá-lo com tão rigorosa pontualidade. 
Num dia as montanhas da outra banda pareciam desfazerem-se em nuvens tênues e azuladas, confundindo-se com o horizonte longínquo; noutro, violentamente batidas pelo sol, tinham contornos enérgicos e destacavam-se no fundo cerúleo da tela maravilhosa. O outeiro da Glória, a fortaleza de Villegaignon, a ponte pedregosa do Arsenal de Guerra, - tudo isso encantava o nosso Maurício pelos seus diversos e sucessivos aspectos de coloração. Era ali e só ali que notava e lhe comprazia a volubilidade característica da natureza fluminense - moça faceira que cada dia inventa novos enfeites e arrebiques. 
E o belo e opulento arvoredo defronte da Santa Casa? Como era agradável atravessar a sombra daquelas árvores frondosas e venerandas, cuja seiva parece alimentada por tantas vidas que se extinguem no hospital fronteiro! 
A praia de Santa Luzia de tal modo o extasiava, que, ao passar pelo Necrotério, Maurício descobria-se, mas desviava os olhos para que o espetáculo da morte não lhe desfizesse a boa e consoladora impressão do espetáculo da vida. 
Notava com desgosto que outros passageiros do bondinho estendiam o pescoço, voltando-se para inspecionar a lúgubre capelinha. Pela expressão de curiosidade satisfeita, ou de contrariedade, que ele claramente lia no rosto desses passageiros, adivinhava se havia ou não cadáveres lá dentro. 
Um velhote, com quem se encontrava assiduamente no bondinho, e já o cumprimentava, de uma feita o aborreceu bastante, dizendo-lhe, depois de olhar para o Necrotério: 
— Três hóspedes! 
Foi morar para a rua de Santa Luzia, numa casinha baixa, de porta e janela, certa família pobre, de que fazia parte uma lindíssima rapariga dos seus dezoito anos, morena, desse moreno purpúreo, que deve ser a cor dos anjos do céu. 
Maurício via-a todas as manhãs, e não desviava os olhos, como defronte do Necrotério; pelo contrário, incluiu-a na lista dos prodígios naturais que o deslumbravam todos os dias. A morena ficou fazendo parte integrante do panorama, em concorrência com a serra dos Órgãos, o outeiro da Glória, o ilhote de Villegaignon e as árvores da Misericórdia. 
Aquele olhar cronométrico, infalível, à mesma hora, no mesmíssimo instante, acabou por impressionar a morena. 
Pouco tardou para que entre o bondinho e a janela se estabelecesse ligeira familiaridade. uma dia a 
moça teve um gesto de cabeça, quase imperceptível, e Maurício instintivamente levou a mão ao chapéu. Daí por diante nunca mais deixou de cumprimentá-la. 
Quinze dia depois, ela acompanhou o cumprimento por um sorriso enfeitado pelos mais belos dentes do mundo, e isso lhe revelou, a ele, que a beleza de tão importante acessório do seu panorama também variava de aspecto. 
Maurício correspondeu ao sorriso, maquinalmente, com os dois lábios curvados por uma simpatia irresistível, - e se os dois jovens já se não viam sem se cumprimentar, de então em diante não se cumprimentavam sem sorrir um para o outro. 
Um dia o cumprimento mudou inesperadamente de forma; ela disse adeus com a mãozinha, agitando os dedos, com muita sem cerimônia, como o faria a algum amigo íntimo. Ele imitou-a, num movimento natural, espontâneo. quase inconsciente. 
Estavam as coisas neste ponto - o fogo ao pé da pólvora - quando um dia, depois do cumprimento e do sorriso habitual, um moleque saltou levípede à plataforma do bondinho, e entregou uma carta à Maurício. 
— Esta que Sinházinha mandou. 
O moço, muito surpreso e um pouco vexado, pois percebeu que o velhote, o tal da pilhéria dos três hóspedes, e dois estudantes de medicina riam à socapa, guardou a carta no bolso, e só foi abri-la Alfândega. 
“Me escreva e me diga como chama-se em que ano está e cuando se forma, e quero saber se gostas de mim por paçatempo ou se pedes a minha mão a minha família, que é meu Pay, minha Mãy e um irmão. Desta que lhe ama, - Adélia.” 
Maurício caiu das nuvens, e só então reparou que cometera uma monstruosidade. Nunca lhe passara pela cabeça idéias de namoro, amava muito sua mulher, a mãe do seu filho, e era incapaz de traí-la, desencaminhando uma pobre menina que o supunha solteiro e estudante, e era para ele apenas um acessório do seu panorama. 
Aquela carta surpreendera-o tanto, como se a própria fortaleza de Villegaignon lhe perguntasse: — Quando te casas comigo? - ou a ermida da Glória lhe dissesse: — Pede-me a papai!... 
Nas ocasiões difíceis Maurício consultava o seu chefe de seção, que o apreciava muito. Expôs-lhe francamente o caso, e perguntou-lhe: 
— Que devo fazer? 
— Uma coisa muito simples: nunca mais passar pela praia de Santa Luzia. Olhe que o menos que pode arranjar é uma tunda de pau! 
— Mas o senhor não imagina o sacrifício que me aconselha! A praia de Santa Luzia entrou de tal forma nos meus hábitos, que hoje até me parece indispensável à existência; Por amor de Deus, não me prive da praia de Santa Luzia. 
— Nesse caso, diga-lhe francamente que é casado. 
— Dizer-lhe... Mas como? 
— Amanhã, quando passar, em vez de cumprimentá-la, mostre-lhe o seu anel de casamento. Ela compreenderá. 
Maurício cumpriu a recomendação à risca, e Adélia viu perfeitamente a grossa aliança de ouro. Mas no dia seguinte a moça esperou-o ainda mais satisfeita e risonha que na véspera - e o moleque, 
trepando pela segunda vez à plataforma do carro, entregou a Maurício outra cartinha. 
— Que diabo! pensou ele, guardando a epístola. Ela sorria. Vaidade feminina, não é outra coisa... Sorria para que eu não a supusesse despeitada. As mulheres são assim. Faço idéia da descompostura que aqui está escrita! 
Enganava-se: 
“Meu amor - Vejo que você já comprou sua Aliansa e eu também ontem mesmo incomendei a minha, amanhã paça a pé e me diz cuando formas-te e cuando pedes-me a meu Pay. Nem çei o teu nome. Tua até morrer, Adélia. 
Maurício tomou - pudera! - a heróica e sublime resolução de se privar da praia de Santa Luzia.

Contos do Sábado na Usina: Machado de Assis: LINHA RETA E LINHA CURVA III:

 

Tinham-se passado oito dias depois do que acabo de narrar. Tito, como o temos visto até aqui, estava no terreno do primeiro dia. Passeava, lia, conversava e parecia inteiramente alheio aos planos que se tramavam em roda dele. Durante esse tempo foi apenas duas vezes à casa de Emília, uma com a família de Azevedo, outra com Diogo. Nestas visitas era sempre o mesmo, frio, indiferente, impassível. Não havia olhar, por mais sedutor e significativo, que o abalasse; nem a idéia de que andava no pensamento da viúva era capaz de animá-lo. - Por que, ao menos, se não é capaz de amar, não procura entreter um desses namoros de sala, que tanto lisonjeiam a vaidade dos homens? Esta pergunta era feita por Emília a si mesma, sob a impressão da estranheza que lhe causava a indiferença do rapaz. Ela não compreendia que Tito pudesse conservar-se de gelo diante dos seus encantos. Mas infelizmente era assim. Cansada de trabalhar em vão, a viúva determinou dar um golpe mais decisivo. Encaminhou a conversa para as doçuras do casamento e lamentou o estado de sua viuvez. O casal Azevedo era para ela o tipo da perfeita felicidade conjugal. Apresentava-o aos olhos de Tito como um incentivo para quem queria ser venturoso na terra. Nada, nem a tese, nem a hipótese, nada moveu a frieza de Tito. 

 83 Emília jogava um jogo perigoso. Era preciso decidir entre os seus desejos de vingar o sexo e as conveniências da sua posição; mas ela era de um caráter imperioso; respeitava muito os princípios de sua moral severa, mas não acatava do mesmo modo as conveniências de que a sociedade cercava essa moral. A vaidade impunha-se no espírito dela, com força prodigiosa. Assim que a bela viúva foi usando todos os meios que era lícito empregar para fazer apaixonar Tito. Mas, apaixonado ele, o que faria ela? A pergunta é ociosa; desde que ela o tivesse aos pés, trataria de conservá-lo aí fazendo parelha ao velho Diogo. Era o melhor troféu que uma beleza altiva pode ambicionar. Uma manhã, oito dias depois das cenas referidas no capítulo anterior, apareceu Diogo em casa de Azevedo. Tinham aí acabado de almoçar; Azevedo subira para o gabinete, a fim de aviar alguma correspondência para a corte; Adelaide achava-se na sala do pavimento térreo. Diogo entrou com uma cara contristada, como nunca se lhe vira. Adelaide correu para ele. - Que é isso? perguntou ela. - Ah! minha senhora... sou o mais infeliz dos homens! - Por quê? Venha sentar-se... Diogo sentou-se, ou antes deixou-se cair na cadeira que Adelaide lhe ofereceu. Esta tomou lugar ao pé dele, animou-o a contar as suas mágoas. - Então que há? - Duas desgraças, respondeu ele. A primeira em forma de sentença. Perdi mais uma demanda. É uma desgraça isto, mas não é nada... - Pois há maior?... - Há. A segunda desgraça foi em forma de carta. - De carta? perguntou Adelaide. - De carta. Veja isto. Diogo tirou da carteira uma cartinha cor-de-rosa, cheirando à essência de magnólia. Adelaide leu a carta para si. Quando ela acabou, perguntou-lhe o velho: - Que me diz a isto? - Não compreendo, respondeu Adelaide. - Esta carta é dela. - Sim, e depois? - É para ele. - Ele quem? - Ele! o diabo! o meu rival! o Tito! - Ah! - Dizer-lhe o que senti quando apanhei esta carta, é impossível. Nunca tremi na minha vida! Mas quando li isto, não sei que vertigem se apoderou de mim. Ando tonto! A cada passo como que desmaio... Ah! - Ânimo! disse Adelaide. - É isto mesmo que eu vinha buscar... é uma consolação, uma animação. Soube que estava aqui e estimei achá-la só... Ah! quanto sinto que o estimável seu marido esteja vivo... porque a melhor consolação era aceitar V. Ex. um coração tão mal compreendido. - Felizmente ele está vivo. Diogo soltou um suspiro e disse: - Felizmente! E depois de um silêncio continuou: - Tive duas idéias: uma foi o desprezo; mas desprezá-los é pô-los em maior liberdade e ralar-me de dor e de vergonha; a segunda foi o duelo... é melhor... eu mato... ou... - Deixe-se disso. - É indispensável que um de nós seja riscado do número dos vivos. - Pode ser engano... 

 84 - Mas não é engano, é certeza. - Certeza de quê? Diogo abriu o bilhete e disse: - Ora, ouça: "Se ainda não me compreendeu é bem curto de penetração. Tire a máscara e eu me explicarei. Esta noite tomo chá sozinha. O importuno Diogo não me incomodará com as suas tolices. Dê-me a felicidade de vê-lo e admirá-lo. - Emília." - Mas que é isto? - Que é isto? Ah! se fosse mais do que isto já eu estava morto! Pude pilhar a carta, e a tal entrevista não se deu... - Quando foi escrita a carta? - Ontem. - Tranqüilize-se. É capaz de guardar um segredo? O que lhe vou dizer é grave. Mas só a sua aflição me faz falar. Posso afirmar-lhe que esta carta é uma pura caçoada. Trata-se de vingar o nosso sexo ultrajado; trata-se de fazer com que Tito se apaixone... nada mais. Diogo estremeceu de alegria. - Sim? perguntou ele. - É pura verdade. Mas veja lá, isto é segredo. Se lho descobri foi por vê-lo aflito. Não nos comprometa. - Isso é sério? insistiu Diogo. - Como quer que lho diga? - Ah! que peso me tirou! Pode estar certa de que o segredo caiu num poço. Oh! muito me hei de rir... muito me hei de rir... Que boa inspiração tive em vir falar-lhe! Diga-me, posso dizer a D. Emília que sei tudo? - Não! - É então melhor que não me dê por achado... - Sim. - Muito bem! Dizendo estas palavras o velho Diogo esfregava as mãos e piscava os olhos. Estava radiante. Quê! ver o suposto rival sendo vítima dos laços da viúva! Que glória! que felicidade! Nisto estava quando à porta do interior apareceu Tito. Acabava de levantar-se da cama. - Bom dia, D. Adelaide, disse ele dirigindo-se para a mulher de Azevedo. Depois sentando-se e voltando a cara para Diogo: - Bom dia, disse. Está hoje alegre... Tirou a sorte grande? - A sorte grande? perguntou Diogo. Tirei... tirei... - Dormiu bem? perguntou Adelaide a Tito. - Como um justo que sou. Tive sonhos cor-de-rosas: sonhei com o Sr. Diogo. - Ah! sonhou comigo? murmurou entre dentes o velho namorado. Coitado! tenho pena dele! - Mas onde está Azevedo? perguntou Tito a Adelaide. - Anda de passeio. - Já? - Pois então. Onze horas. - Onze horas! É verdade, acordei muito tarde. Tinha duas visitas para fazer: uma a D. Emília... - Ah! disse Diogo. - De que se espanta, meu caro? - De nada! de nada! - Bom; vou mandar pôr o seu almoço, disse Adelaide. Os dois ficaram sós. Tito acendeu um cigarro de palha; Diogo afetava grande distração, mas olhava sorrateiramente para o moço. Este, apenas soltou duas fumaças, voltou-se para o velho e disse: - Como vão os seus amores? - Que amores? - Os seus, a Emília... Já lhe fez compreender toda a imensidade da paixão que o devora? 

 85 - Qual... Preciso de algumas lições... Se mas quisesse dar? - Eu? Está sonhando! - Ah! eu sei que o senhor é forte... É modesto, mas é forte... e até fortíssimo! Ora, eu sou realmente um aprendiz... Tive há pouco a idéia de desafiá-lo. - A mim? - É verdade, mas foi uma loucura de que me arrependi... - Além de que não é uso em nosso país... - Em toda a parte é uso vingar a honra. - Bravo, D. Quixote! - Ora, eu acreditava-me ofendido na honra. - Por mim? - Mas emendei a mão; reparei que era antes eu quem ofendia pretendendo lutar com um mestre, eu simples aprendiz... - Mestre de quê? - Dos amores! Oh! eu sei que é mestre... - Deixe-se disso... eu não sou nada... o Sr. Diogo, sim; o senhor vale um urso, vale mesmo dois. Como havia de eu... Ora!... Aposto que teve ciúmes? - Exatamente. - Mas era preciso não me conhecer; não sabe das minhas idéias? - Homem, às vezes é pior. - Pior, como? - As mulheres não deixam uma afronta sem castigo... As suas idéias são afrontosas... Qual será o castigo? Paro aqui... paro aqui... - Onde vai? - Vou sair. Adeus. Não se lembre mais da minha desastrada idéia do duelo... - Que está acabado... Ah! o senhor escapou de boa! - De quê? - De morrer. Eu enfiava-lhe a espada por esse abdome... com um gosto... com um gosto só comparável ao que tenho de abraçá-lo vivo e são! Diogo riu-se com um riso amarelo. - Obrigado, obrigado. Até logo! - Venha cá, onde vai? Não se despede de D. Adelaide? - Eu já volto, disse Diogo travando do chapéu e saindo precipitadamente. Tito ainda o acompanhou com os olhos. - Este sujeito, disse o moço consigo quando se viu só, não tem nada de original. Aquela opinião a respeito das mulheres não é dele... Melhor... já se conspira; é o que me convém. Hás de vir! hás de vir! Um criado alemão veio anunciar a Tito que o almoço estava preparado. Tito ia entrando quando assomou à porta a figura de Azevedo. - Ora, graças a Deus! O meu amigo não se levanta com o sol. Estás com olhos de quem acaba de dormir. - É verdade, e vou almoçar. Dirigiram-se os dois para dentro, onde a mesa estava posta à espera de Tito. - Almoças outra vez? perguntou Tito. - Não. - Pois então vais ver como se come. Tito sentou-se à mesa; Azevedo estirou-se num sofá. - Onde foste? perguntou Tito. - Fui passear... Compreendi que é preciso ver e admirar o que é indiferente, para apreciar e ver melhor aquilo que faz a felicidade íntima do coração. - Ah! sim? Bem vês que até a felicidade por igual fatiga! Afinal sempre a razão do meu lado. 

 86 - Talvez. Apesar de tudo, quer-me parecer que já intentas entrar na família dos casados. - Eu? - Tu, sim. - Por quê? - Mas, dize, é ou não verdade? - Qual, verdade! - O que sei, é que uma destas tardes em que adormeceste lendo, não sei que livro, ouvi-te pronunciar em sonhos, com a maior ternura, o nome de Emília. - Deveras? perguntou Tito mastigando. - É exato. Concluí que se sonhavas com ela é que a tinhas no pensamento, e se a tinhas no pensamento é que a amavas. - Concluíste mal. - Mal? - Concluíste como um marido de cinco meses. Que prova um sonho? - Prova muito! - Não prova nada! Pareces velha supersticiosa... - Mas enfim, alguma coisa há por força... Serás capaz de me dizeres o que é? - Homem, podia dizer-te alguma coisa se não fosses casado... - Que tem que eu seja casado? - Tem tudo. Seria indiscreto sem querer e até sem saber. À noite, entre um beijo e um bocejo, o marido e a mulher abrem um para o outro a bolsa das confidências. Sem pensares, podes deitar tudo a perder. - Não digas isso. Vamos lá. Há novidade? - Não há nada. - Confirmas as minhas suspeitas. Gostas da Emília. - Ódio não lhe tenho, é verdade. - Gostas. E ela merece. É uma boa senhora, de não vulgar beleza, possuindo as melhores qualidades. Talvez preferisses que não fosse viúva?... - Sim; é natural que se embale dez vezes por dia na lembrança dos dois maridos que já exportou para o outro mundo... à espera de exportar o terceiro... - Não é dessas... - Afianças? - Quase que posso afiançar. - Ah! meu amigo, disse Tito levantando-se da mesa e indo acender um charuto, toma o conselho de um tolo: nunca afiances nada, principalmente em tais assuntos. Entre a prudência discreta, e a cuja confiança não é lícito duvidar, a escolha está decidida nos próprios termos da primeira. O que podes tu afiançar a respeito de Emília? Não a conheces melhor do que eu. Há quinze dias que nos conhecemos, e eu já lhe leio no interior; estou longe de atribuir-lhe maus sentimentos, mas tenho a certeza de que não possui as raríssimas qualidades que são necessárias à exceção. Que sabes tu? - Realmente, eu não sei nada. - Não sabes nada! disse Tito consigo. - Falo pelas minhas impressões. Parecia-me que um casamento entre vocês ambos não vinha fora de propósito. - Se me falas outra vez em casamento, saio. - Pois só a palavra? - A palavra, a idéia, tudo. - Entretanto, admiras e aplaudes o meu casamento... - Ah! eu aplaudo nos outros muitas coisas de que não sou capaz de usar. Depende da vocação... Adelaide apareceu à porta da sala de jantar. A conversa cessou entre os dois rapazes. - Trago-lhes uma notícia. - Que notícia? perguntaram-lhe os dois. 

 87 - Recebi um bilhete de Emília... Pede-nos que vamos lá amanhã, porque... - Por quê? perguntou Azevedo. - Talvez dentro de oito dias se retire para a cidade. - Ah! disse Tito com a maior indiferença deste mundo. - Apronta as tuas malas, disse Azevedo a Tito. - Por quê? - Não segues os passos da deusa? - Não zombes, cruel amigo! Quando não... - Anda lá... Adelaide sorriu ouvindo estas palavras. Daí a meia hora Tito subiu para o gabinete em que Azevedo tinha os livros. Ia, dizia, ler as Confissões de Santo Agostinho. - Que repentina viagem é esta? perguntou Azevedo à sua mulher. - Tens muito empenho em saber? - Tenho. - Pois bem. Olha que é segredo. Eu não sei positivamente, mas creio que é uma estratégia. - Estratégia? Não entendo. - Eu te digo. Trata-se de prender o Tito. - Prender? - Estás hoje tão bronco! Prender pelos laços do amor... - Ah! - Emília julgou que deve fazê-lo. É só para brincar. No dia em que ele se declarar vencido fica ela vingada do que ele disse contra o sexo. - Não está mau... E tu entras nesta estratégia... - Como conselheira. - Trama-se então contra um amigo, um alter ego. - Tá, tá, tá. Cala a boca. Não vás fazer abortar o plano. Azevedo riu-se a bandeiras despregadas. No fundo achava engraçada a punição premeditada ao pobre Tito. A visita que Tito disse ter de fazer à viúva naquele dia, não se realizou. Diogo, que apenas saíra da casa de Azevedo, ciente das intenções da viúva, fora para casa desta esperar o rapaz, embalde lá esteve durante o dia, embalde jantou, embalde aborreceu a tarde inteira tanto a Emília como à tia; Tito não apareceu. Mas, à noite, à hora em que Diogo, já vexado de tanta demora na casa da moça, tratava de sair, anunciou-se a chegada de Tito. Emília estremeceu; mas esse movimento escapou a Diogo. Tito entrou na sala onde se achavam Emília, a tia, e Diogo. - Não contava com a sua visita, disse a viúva. - Eu sou assim; apareço quando não me esperam. Sou como a morte e a sorte grande. - Agora é a sorte grande, disse Emília. - Que número é o seu bilhete, minha senhora? - Número doze, isto é, doze horas que tenho tido o prazer de ter hoje aqui o Sr. Diogo... - Doze horas! exclamou Tito voltando-se para o velho. - Sem que ainda o nosso bom amigo nos contasse uma história... - Doze horas! repetiu Tito. - Que admira, meu caro senhor? perguntou Diogo. - Acho um pouco estirado... - As horas contam-se quando são aborrecidas... Peço para me retirar... E dizendo isto, Diogo travou do chapéu para sair lançando um olhar de despeito e ciúme para a viúva. - Que é isso? perguntou esta. Onde vai? 

 88 - Dou asas às horas, respondeu Diogo ao ouvido de Emília; vão correr depressa agora. - Perdôo-lhe e peço que se sente. Diogo sentou-se. A tia de Emília pediu licença para retirar-se alguns minutos. Ficaram os três. - Mas então, disse Tito, nem ao menos uma história contou? - Nenhuma. Emília lançou um olhar a Diogo como para tranqüilizá-lo. Este, mais calmo então, lembrou-se do que Adelaide lhe havia dito, e voltou às boas. - Afinal de contas, disse ele consigo, o caçoado é ele. Eu sou apenas o meio de prendê-lo... Contribuamos para que se lhe tire a proa. - Nenhuma história, continuou Emília. - Pois olhe, eu sei muitas, disse Diogo com intenção. - Conte uma de tantas que sabe, disse Tito. - Nada! Por que não conta o senhor? - Se faz empenho... - Muito... muito, disse Diogo piscando os olhos. Conte lá, por exemplo, a história do taboqueado, a história das imposturas do amor, a história dos viajantes encouraçados; vá, vá. - Não, vou contar a história de um homem e de um macaco. - Oh! disse a viúva. - É muito interessante, disse Tito. Ora, ouçam... - Perdão, interrompeu Emília, será depois do chá. - Pois sim. Daí a pouco servia-se o chá aos três. Findo ele, Tito tomou a palavra e começou a história: História de um homem e de um macaco "Não longe da vila ***, no interior do Brasil, morava há uns vinte anos um homem de trinta e cinco anos, cuja vida misteriosa era o objeto das conversas das vilas próximas e o objeto do terror que experimentavam os viajantes que passavam na estrada a dois passos da casa. "A própria casa era já de causar apreensões ao espírito menos timorato. Vista de longe nem parecia casa, tão baixinha era. Mas quem se aproximasse conheceria aquela construção singular. Metade do edifício estava ao nível do chão e metade abaixo da terra. Era entretanto uma casa solidamente construída. Não tinha porta nem janelas. Tinha um vão quadrado que servia ao mesmo tempo de janela e de porta. Era por ali que o misterioso morador entrava e saía. "Pouca gente o via sair, não só porque ele raras vezes o fazia, como porque o fazia em horas impróprias. Era nas horas da lua cheia que o solitário deixava a residência para ir passear nos arredores. Levava sempre consigo um grande macaco, que acudia pelo nome de Calígula. "O macaco e o homem, o homem e o macaco, eram dois amigos inseparáveis, dentro e fora de casa, na lua nova. "Mil visões corriam a respeito deste misterioso solitário. "A mais geral é que era um feiticeiro. Havia uma que o dava por doido; outra por simplesmente atacado de misantropia. "Esta última versão tinha por si duas circunstâncias: a primeira era não constar nada de positivo que fizesse reconhecer no homem hábitos de feiticeiro ou alienado; a segunda era a amizade que ele parecia votar ao macaco e o horror com que fugia ao olhar dos homens. Quando a gente se aborrece dos homens toma sempre a afeição dos animais, que têm a vantagem de não discorrer, nem intrigar. "O misterioso... É preciso dar-lhe um nome: chamemo-lo Daniel. Daniel preferia o macaco, e não falava a mais homem algum. Algumas vezes os viajantes que passavam pela estrada ouviam partir de dentro da casa gritos do macaco e do homem; era o homem que afagava o macaco. "Como se alimentavam aquelas duas criaturas? Houve quem visse um dia de manhã abrir-se a porta, sair o macaco e voltar pouco depois com um embrulho na boca. O tropeiro que presenciava esta cena quis descobrir onde ia o macaco buscar aquele embrulho que levava sem dúvida os 

 89 alimentos dos dois solitários. Na manhã seguinte introduziu-se no mato; o macaco chegou à hora do costume, e dirigiu-se para um tronco de árvore; havia sobre esse tronco um grande galho, que o bicho atirou ao chão. Depois, introduzindo as mãos no interior do velho tronco, tirou um embrulho igual ao da véspera e partiu. "O tropeiro persignou-se, e tão apreensivo ficou com a cena que acabava de presenciar que não a contou a ninguém. "Durava esta existência três anos. "Durante esse tempo o homem não envelhecera. Era o mesmo que no primeiro dia. Longas barbas ruivas e cabelos grandes caídos para trás. Usava um grande casaco de baeta, tanto no inverno, como no verão. Calçava botas e não usava chapéu. "Era impossível aos passageiros e aos moradores das vizinhanças penetrar na casa do solitário. Não o será decerto para nós, minha bela senhora, e meu caro amigo. "A casa divide-se em duas salas e um quarto. Uma sala é para jantar; a outra é... a de visitas. O quarto é ocupado pelos dois moradores, Daniel e Calígula. "As duas salas são de iguais dimensões; o quarto é uma metade da sala. A mobília da primeira sala compõe-se de dois sujos bancos encostados à parede, uma mesa baixa no centro. O chão é assoalhado. Pendem das paredes dois retratos: um de moça, outro de velho. A moça é uma figura angélica e deliciosa. O velho inspirava respeito e admiração. Das outras duas paredes pendem, de um lado uma faca de cabo de marfim, e do outro uma mão de defunto, amarela e seca. "A sala de jantar tem apenas uma mesa e dois bancos. "A mobília do quarto resume-se num grabato em que dorme Daniel. Calígula estende-se no chão, junto à cabeceira do dono. "Tal é a mobília da casa. "A casa, que de fora parece não ter capacidade suficiente para conter um homem em pé, é contudo suficiente, visto estar, como disse, entranhada no chão. "Que vida terão passado aí dentro o macaco e o homem, no espaço de três anos? Não saberei dizêlo. "Quando Calígula traz de manhã o embrulho, Daniel divide a comida em duas porções, uma para o almoço, outra para o jantar. Depois homem e macaco sentam-se em face um do outro na sala de jantar e comem irmãmente as duas refeições. "Quando chega a lua cheia saem os dois solitários, como já disse, todas as noites, até a época em que a lua passa a ser minguante. Saem às dez horas, pouco mais ou menos, e voltam pouco mais ou menos às duas horas da madrugada. Quando entram Daniel tira a mão do finado que pende da parede e dá com ela duas bofetadas em si próprio. Feito isto, vai deitar-se; Calígula acompanha-o. "Uma noite, era no mês de junho, época de lua cheia, Daniel preparou-se para sair. Calígula deu um pulo e saltou à estrada. Daniel fechou a porta, e lá se foi com o macaco estrada acima. "A lua, inteiramente cheia, projetava os seus reflexos pálidos e melancólicos na vasta floresta que cobria colinas próximas, e clareava toda a vasta campina que rodeava a casa. "Só se ouvia ao longe o murmúrio de uma cachoeira, e ao perto o piar de algumas corujas, e o chilrar de uma infinidade de grilos espalhados na planície. "Daniel caminhava pausadamente, levando um pau debaixo do braço, e acompanhado do macaco, que saltava do chão aos ombros de Daniel e dos ombros de Daniel para o chão. "Mesmo sem a forma lúgubre que tinha aquele lugar por causa da residência do solitário, qualquer pessoa que encontrasse àquela hora Daniel e o macaco corria risco de morrer de medo. Daniel, extremamente magro e alto, tinha em si um ar lúgubre. Os cabelos da barba e da cabeça, crescidos em abundância, faziam a sua cabeça ainda maior do que era. Sem chapéu era uma cabeça verdadeiramente satânica. "Calígula, que nos outros dias era um macaco ordinário, tomava, naquelas horas de passeio noturno, um ar tão lúgubre e tão misterioso como o de Daniel. "Havia já uma hora que os dois solitários tinham saído de casa. A casa ficara já um pouco longe. Nada mais natural do que chegar a polícia nessa ocasião, tomar a entrada da casa e reconhecer o 

 90 mistério. Mas a polícia, apesar dos meios que tinha à sua disposição, não se animava a investigar no mistério que o povo reputava diabólico. Também a polícia é humana, e nada do que é humano lhe é desconhecido. "Havia uma hora, disse eu, que os dois passeadores tinham saído de casa. Começavam então a subir uma pequena colina..." Tito foi interrompido por um bocejo do velho Diogo. - Quer dormir? perguntou o rapaz. - É o que vou fazer. - Mas a história? - A história é muito divertida. Até aqui só temos visto duas coisas, um homem e um macaco; perdão... temos mais dois, um macaco e um homem. É muito divertida! Mas, para variar, o homem vai sair e fica o macaco. Dizendo estas palavras com uma raiva cômica, Diogo travou do chapéu e saiu. Tito soltou uma gargalhada. - Mas vamos ao fim da história... - Que fim, minha senhora? Eu já estava em talas por não saber como continuar... Era um meio de servi-la. Vejo que é um velho aborrecido... - Não é, está enganado. - Ah! não? - Divirto-me com ele. O que não impede que a presença do senhor me dê infinito prazer... - V. Ex. disse agora uma falsidade. - Qual foi? - Disse que lhe era agradável a minha conversa. Ora, isso é falso como tudo quanto é falso... - Quer um elogio? - Não, falo franco. Eu nem sei como Vossa Excelência me atura; desabrido, maçante, chocarreiro, sem fé em coisa alguma, sou um conversador muito pouco digno de ser desejado. É preciso ter uma grande soma de bondade para ter expressões tão benévolas... tão amigas... - Deixe esse ar de mofa, e... - Mofa, minha senhora? - Ontem eu e minha tia tomamos chá sozinhas! sozinhas!... - Ah! - Contava que o senhor viesse aborrecer-se uma hora conosco... - Qual aborrecer... Eu lhe digo: o culpado foi o Ernesto. - Ah! foi ele? - É verdade; deu comigo aí em casa de uns amigos, éramos quatro ao todo, rolou a conversa sobre o voltarete e acabamos por formar mesa. Ah! mas foi uma noite completa! Aconteceu-me o que me acontece sempre: ganhei! - Está bom. - Pois olhe, ainda assim eu não jogava com pixotes; eram mestres de primeira força: um principalmente; até às onze horas a fortuna pareceu desfavorecer-me, mas dessa hora em diante desandou a roda para eles e eu comecei a assombrar... pode ficar certa de que os assombrei. Ah! é que eu tenho diploma... mas que é isso, está chorando? Emília tinha com efeito o lenço nos olhos. Chorava? É certo que quando tirou o lenço dos olhos, tinha-os úmidos. Voltou-se contra a luz e disse ao moço: - Qual... pode continuar. - Não há mais nada; foi só isto, disse Tito. - Estimo que a noite lhe corresse feliz... - Alguma coisa... - Mas a uma carta responde-se; por que não respondeu à minha? disse a viúva. - À sua qual? - A carta que lhe escrevi pedindo que viesse tomar chá conosco? 

 91 - Não me lembro. - Não se lembra? - Ou, se recebi essa carta, foi em ocasião que a não pude ler, e então esqueci, esqueci-a em algum lugar... - É possível: mas é a última vez... - Não me convida mais para tomar chá? - Não. Pode arriscar-se a perder distrações melhores. - Isso não digo: a senhora trata bem a gente, e em sua casa passam-se bem as horas... Isto é com franqueza. Mas então tomou chá sozinha? E o Diogo? - Descartei-me dele. Acha que ele seja divertido? - Parece que sim... É um homem delicado; um tanto dado às paixões, é verdade, mas sendo esse um defeito comum, acho que nele não é muito digno de censura. - O Diogo está vingado. - De quê, minha senhora? Emília olhou fixamente para Tito e disse: - De nada! E levantando-se dirigiu-se para o piano. - Vou tocar, disse ela; não o aborrece? - De modo nenhum. Emília começou a tocar; mas era uma música tão triste que infundia certa melancolia no espírito do moço. Este, depois de algum tempo, interrompeu com estas palavras: - Que música triste! - Traduzo a minha alma, disse a viúva. - Anda triste? - Que lhe importam as minhas tristezas? - Tem razão, não me importam nada. Em todo o caso não é comigo? Emília levantou-se e foi para ele. - Acha que lhe hei de perdoar a desfeita que me fez? disse ela. - Que desfeita, minha senhora? - A desfeita de não vir ao meu convite! - Mas eu já lhe expliquei... - Paciência! O que sinto é que também nesse voltarete estivesse o marido de Adelaide. - Ele retirou-se às dez horas, e entrou um parceiro novo, que não era de todo mau. - Pobre Adelaide! - Mas se eu lhe digo que ele se retirou às dez horas... - Não devia ter ido. Devia pertencer sempre à sua mulher. Sei que estou falando a um descrido; não pode calcular a felicidade e os deveres do lar doméstico. Viverem duas criaturas uma para outra, confundidas, unificadas; pensar, aspirar, sonhar a mesma coisa; limitar o horizonte nos lhos de cada uma, sem outra ambição, sem inveja de mais nada. Sabe o que é isto? - Sei... É o casamento por fora. - Conheço alguém que lhe provava aquilo tudo... - Deveras? Quem é essa fênix? - Se lho disser, há de mofar; não digo. - Qual mofar! Diga lá, eu sou curioso. - Não acredita que haja alguém que possa amá-lo? - Pode ser... - Não acredita que alguém, por despeito, por outra coisa que seja, tire da originalidade do seu espírito os influxos de um amor verdadeiro, mui diverso do amor ordinário dos salões; um amor capaz de sacrifício, capaz de tudo? Não acredita! - Se me afirma, acredito; mas... - Existe a pessoa e o amor. 

 92 - São então duas fênix. - Não zombe. Existem... Procure... - Ah! isso há de ser mais difícil: não tenho tempo. E supondo que achasse, de que me servia? Para mim é perfeitamente inútil. Isso é bom para outros; para o Diogo, por exemplo... - Para o Diogo? A bela viúva pareceu ter um assomo de cólera. Depois de um silêncio disse: - Adeus! Desculpe, estou incomodada. - Então, até amanhã! Dizendo o que, Tito apertou a mão de Emília e saiu tão alegre e descuidoso como se saísse de um jantar de anos. Emília, apenas ficou só, caiu numa cadeira e cobriu o rosto. Estava nessa posição havia cinco minutos, quando assomou à porta a figura do velho Diogo. O rumor que o velho fez entrando despertou a viúva. - Ainda aqui! - É verdade, minha senhora, disse Diogo aproximando-se, é verdade. Ainda aqui, por minha infelicidade... - Não entendo... - Não saí para casa. Um demônio oculto me impeliu para cometer um ato infame. Cometi-o, mas tirei dele um proveito; estou salvo. Sei que me não ama. - Ouviu? - Tudo. E percebi. - Que percebeu, meu caro senhor? - Percebi que a senhora ama o Tito. - Ah! - Retiro-me, portanto, mas não quero fazê-lo sem que ao menos fique sabendo de que saio com ciência de que não sou amado; e que saio antes de me mandarem embora. Emília ouviu as palavras de Diogo com a maior tranqüilidade. Enquanto ele falava teve tempo de refletir no que devia dizer. Diogo estava já a fazer o seu último cumprimento, quando a viúva lhe dirigiu a palavra. - Ouça-me, Sr. Diogo. Ouviu bem, mas percebeu mal. Já que pretende ter sabido... - Já sei; vem dizer que há um plano assentado de zombar com aquele moço... - Como sabe? - Disse-mo D. Adelaide. - É verdade. - Não creio. - Por quê? - Havia lágrimas nas suas palavras. Ouvi-as com a dor n’alma. Se soubesse como eu sofria! A bela viúva não pôde deixar de sorrir ao gesto cômico de Diogo. Depois, como ele parecesse mergulhado em meditação sombria, disse: - Engana-se, tanto que volto para a cidade. - Deveras? - Pois acredita que um homem como aquele possa inspirar qualquer sentimento sério? Nem por sombras! Estas palavras foram ditas no tom com que Emília costumava persuadir aquele eterno namorado. Isso e mais um sorriso, foi quanto bastou para acalmar o ânimo de Diogo. Daí a alguns minutos estava ele radiante. - Olhe, e para desenganá-lo de uma vez vou escrever um bilhete ao Tito... - Eu mesmo o levarei, disse Diogo louco de contente. - Pois sim! - Adeus, até amanhã. Tenha sonhos cor-de-rosa, e desculpe os meus maus modos. Até amanhã. O velho beijou graciosamente a mão de Emília e saiu. 

Contos do Sábado na Usina: Olavo Bilac: OS ANJOS:

 
 


No atelier do pintor Álvaro, a palestra vai animada. Lá está o poeta Carlos, muito aprumado, muito elegante, encostado a um buffet renaissance, sacudindo o pé em que a polaina branca irradia, mordendo o seu magnífico Henry Clay de três mil réis. Mais adiante, o escultor Júlio, amorosamente inclinado para a viscondessinha de Mirantes e namoradamente mirando o seu belo colo desnudado, faz-lhe uma preleção sobre o amor e a beleza: e ela, agitando com indolência o leque japonês, sorri, e crava nele os olhos maliciosos, deixando-o admirar sem escrúpulo o seu colo, — como para o desafiar a dizer se a própria Vênus de Milo o possui tão branco e tão puro... No sofá, o romancista Henrique discute música de Wagner com Alberto, — o maestro famoso, cujo último poema sinfônico acaba de fazer um ruidoso sucesso. São 5 horas da tarde. Serve-se o chá, em lindas taças de porcelana chinesa; e, nos cálices de cristal, brilha o tom aceso do rhum da Jamaica. Agora, parece que Júlio, o escultor, arriscou um galanteio mais forte. Porque a viscondessinha, corada, morde os lábios e, para disfarçar a sua comoção, contempla um quadro grande, que está na parede do atelier, cópia de Raphael. Júlio, falando baixo, inclina-se mais, ainda mais: 
— Então, viscondessa, então? 
 Ela, para desviar a conversa, pergunta uma banalidade: 
 — Diga-me, senhor Álvaro, o senhor, que é pintor, deve saber isso... Porque é que, em todos os quadros, os anjos são representados só com cabeça e asas? 
 De canto a canto da sala, suspende-se a conversa. Álvaro, sorrindo, responde: 
 — Nada mais fácil, viscondessa... queremos assim indicar que os anjos só têm espírito; damo-lhes unicamente a cabeça em que reside o pensamento, e a asa que é o símbolo da imaterialidade... 
 Mas o poeta Carlos, puxando uma longa fumaça de seu cheiroso Henri Clay, adianta-se até o meio da sala: 
 — Não é só isso, Álvaro, não é só isso... Vou dar à viscondessa a verdadeira explicação do caso... 
 Tomou um gole de rhum, e continuou: 
 — Antigamente, nos primitivos tempos da Bíblia, os anjos não tinham apenas cabeças e asas: tinham braços, pernas e tudo. Depois do incêndio de Gomorra, foi que Deus os privou de todo o resto do corpo, deixando-lhes apenas a cabeça que é a sede do pensamento e a asa que é o símbolo da imaterialidade.... — Depois do incêndio de Gomorra? — perguntaram todos — porque? — Já vão ver! 
 E Carlos, dirigindo-se a uma estante, tirou uma Bíblia, abriu-a e leu: 
 — IX. Então, como as abominações daquela cidade maldita indignassem ao Senhor, mandou ele que dois Anjos fossem converter os perversos e aconselharlhes que se deixassem de abusar das torpezas da carne. X. E foram os Anjos, e bateram às portas da cidade. IX. E os habitantes foram tão infames, que os deixaram entrar, e assim que os tiveram dentro, também os violentaram, abusando deles..." 
 Houve um silêncio constrangido no atelier... 
 — Aí está. E o Senhor, incendiou a cidade, e, para evitar que os anjos continuassem a estar expostos a essas infâmias determinou que, dali em diante, eles só tivessem cabeças e asas... 
 A viscondessinha, dando um muxoxo, murmurou: 
 — Shoking! 

Contos do Sábado na Usina: Olavo Bilac: O PECADO:





 A Anacleta ia caminho da igreja, muito atrapalhada, pensando no modo porque havia de dizer ao confessor os seus pecados... Teria a coragem de tudo? E a pobre Anacleta tremia só com a idéia de contar a menor daquelas cousas ao severo padre Roxo, um padre terrível, cujo olhar de coruja punha um frio na alma da gente. E a desventurada ia quase chorando de desespero, quando, já perto da igreja, encontrou a comadre Rita. Abraços, beijos... E lá ficam as duas, no meio da praça, ao sol, conversando. 
 — Venho da igreja, comadre Anacleta, venho da igreja... Lá me confessei com o padre Roxo, que é um santo homem... — Ai! comadre! — gemeu a Anacleta — também para lá vou... e se soubesse com que medo! Nem sei se terei a ousadia de dizer os meus pecados... Aquele padre é tão rigoroso... — Histórias, comadre, histórias! — exclamou a Rita — vá com confiança e verá que o padre Roxo não é tão mal como se diz... — Mas é que meus pecados são grandes... — E os meus então, filha? Olhe: disse-os todos e o Sr. padre Roxo me ouviu com toda a indulgência... — Comadre Rita, todo o meu medo é da penitência que ele me há de impor, comadre Rita... — Qual penitência, comadre?! — diz a outra, rindo — as penitências que ele impõe são tão brandas!... Quer saber? contei-lhe que ontem o José Ferrador me deu um beijo na boca... um grande pecado, não é verdade? Pois sabe a penitência que o padre Roxo me deu?... mandou-me ficar com a boca de molho na pia de água benta durante cinco minutos... — Ai! que estou perdida, senhora comadre, ai! que estou perdida! — desata a gritar a Anacleta, rompendo num pranto convulsivo — Ai! que estou perdida! 
 A comadre Rita, espantada, tenta em vão sossegar a outra: 
 — Vamos, comadre! que tem? então que é isso? sossegue! tenha modos! que é isso que tem? 
 E a Anacleta, chorando sempre: 
 — Ai, comadre! é que, se ele me dá a mesma penitência que deu á senhora, — não sei o que hei de fazer! — Porque, filha? porque? — Porque... porque... afinal de contas... eu não sei como é que... hei de tomar um banho de assento na pia!... 
 
 
 Fim