sexta-feira, 15 de julho de 2022

Concursos literarios:

 




A Revista Fluxos é um espaço de reflexão e debate sobre temas diversos, com foco em Arte e Literatura. Ela é, por enquanto, exclusivamente virtual e está à disposição no blog A Liter Ação, com uma tiragem trimestral e totalmente gratuita.

A chamada para a próxima edição está aberta até 12 de agosto de 2022.

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Contos do Sábado na Usina: Camilo Castelo Branco:

 


VI


Na residência do abade Marcos Rebelo, em São Gens de Calvos, havia uma sala com alcova e janelas sobre uma horta arborizada. As pereiras, macieiras e abrunheiros principiavam a florir. Era no começo de Abril. Ali, naquelas frígidas alturas, sopram as ventanias mordentes de Barroso, do Gerês, e gelam a seiva nos troncos filtrados da neve e das cristalizações glaciais. Fazia frio. Na saleta caiada, muito excrementícia de moscaria, com tecto de castanho esfumaçado e o pavimento lurado do caruncho, havia a um lado duas caixas de cereais, no outro algumas cadeiras velhas de nogueira de diversos feitios, esfarpeladas no assento; nas paredes duas litografias – o retrato de D. João VI, com o olho velhaco e o beiço belfo, e o marquês de Pombal, sentado com o decreto da expulsão dos jesuítas, apontando parlapatonamente para a barra onde alvejam panos de navios que levam os expulsos. Na velha cal esburacada e emporcalhada de escarros secos de antigas catarrais, destacavam molduras de carvalho com dois painéis a óleo cheios de gretas, S. Jerónimo no deserto, com uma cara aflita, de tique doloroso, e Santo António de Pádua, num sadio en bon point, um bom sorriso ingénuo, com o Menino Jesus sentado, muito nutrido, numa bola que os hagiólogos diziam ser o globo terráqueo. No centro da quadra estava uma banca de pinho pintada a ocre, com uma coberta de cama, de chita vermelha, com araras, franjada de requifes de lã variegada. Ao lado da banca, uma cadeira de sola, com espaldar em relevo e pregaria amarela com verdete; do outro lado havia um fogareiro de ferro com brasas e uma cesta de verga cheia de carvão. Entre as duas pequenas janelas de rótulas interiores e cachorros de pedra, trabalhava estrondosamente um relógio de parede, com os frisos do mostrador sem vidro, cheios de moscas mortas, penduradas por uma perna, de ventres brancos muito inchados e as asas abertas.
Dez horas. Abriu-se então a porta da alcova, que rangeu ligeiramente na couceira desengonçada, e saiu um sujeito de mediana estatura, ombros largos, barba toda com raras cãs, olhos brilhantes, pálido-trigueiro, um nariz adunco. Representava entre trinta e seis e quarenta anos. Sentou-se à braseira e preparou um cigarro, vagarosamente, que acendeu na aresta chamejante de uma brasa. Com o cigarro ao canto dos lábios e um olho fechado pelo contacto agro do fumo, foi abrir uma das vidraças, e pôs fora a mão a sondar a temperatura. Coxeava um pouco. Recolheu a mão com desagrado e fechou a janela. Vinha subindo a escada de comunicação com a cozinha uma mulher idosa, em mangas de camisa, meias azuis de lã e ourelos achinelados. Pediu licença para entrar, fez uma mesura de joelhos sem curvar o tronco, e perguntou:
– Vossa Majestade passou bem?
– Optimamente, Senhorinha, passei muito bem.
– Estimo muito, Real Senhor. O Senhor Abade foi chamado às oito horas para confessar uma freguesa que está a morrer de uma queda, e deixou dito que pusesse o almoço a Vossa Majestade, se ele não chegasse às nove e meia.
– Quando quiser, Senhorinha, quando quiser, visto que o abade deu essas ordens e quem manda aqui é ele.
Da cozinha vaporava um perfume de salpicão frito com ovos. Sua Majestade farejava com as narinas anelantes num forte apetite. A criada voltou com toalha, guardanapo, louça da índia, talheres de prata, e uma travessa coberta. Sua Majestade, muito familiar, tirou de sobre a mesa uns cadernos escritos, cosidos com seda escarlate, e um grande tinteiro de chumbo com penas de pato.
– Ora Vossa Majestade a incomodar-se! Valha-me Deus! eu tiro isso, Real Senhor! Não que uma coisa assim! Um rei a..
E o Real Senhor:
– Ande lá, Senhorinha, que eu ajudo. Um rei é um homem como qualquer homem.
– Credo! faz muita diferença... mesmo muita... Ela descobriu a travessa a rir-se:
– Vossa Majestade diz que gosta..
– Sardinhas de escabeche? Se gosto!... Vamos a elas, que estão a dizer – comeime. E atirou-se às sardinhas com uma sofreguidão pelintra.
Depois, serviu-lhe rodelas de salpicão com ovos. Sua Majestade gostava muito destas comezanas nacionais. Já tinha comido tripas, e dizia que no exílio se lembrara muitas vezes desta saborosa iguaria com feijão branco e chispe, que tinha comido em Braga. O abade de Calvos sensibilizava-se até às lágrimas quando via el-rei a esbrugar uma unha de porco e a limpar as régias barbas oleosas das gorduras suínas. O terceiro prato era vitela assada. A Senhorinha trazia-lha no espeto, porque Sua Majestade gostava de ir trinchando finas talhadas, enquanto a cozinheira, de cócoras ao pé do fogareiro, conservava o espeto sobre o brasido, a rechinar, a lourejar. Bebeu harmonicamente o real hóspede um vinho branco antigo, da lavra de um fidalgo de Braga, proprietário do Douro, que estava no segredo do ditoso abade de Calvos – capelão-mor de el-rei e dom prior eleito de Guimarães.
A criada assistia muito jovial àquela deglutição formidável, e dizia particularmente ao abade: – Este senhor, pelo que come, parece que tem passado muitas fominhas! Ninguém há-de crer o que Sua Majestade atafulha naquele bandulho! – e dizia que lhe dava vontade de chorar, lembrando-se das lazeiras que ele tinha apanhado; porque o abade contava que lera no Deus o quer, do visconde de Arlincourt, que o Sr. D. Miguel, em Roma, não tinha às vezes 10 réis de seu para almoçar uma xícara de leite. E, perguntando a el-rei se era verdade aquilo – que sim, que chegara a essa extremidade; mas que preferia a fome a ceder os seus direitos e a felicidade dos seus vassalos pelos sessenta contos anuais que lhe ofereceram da Casa do Infantado, e que ele rejeitara.
Por fim, vinha o café. As fatias eram torradas ali, no fogareiro. Sua Majestade barrava-as de manteiga nacional – preferia a manteiga do seu Pais, como a vitela, e o lombo do porco no salpicão português, e o pé do porco nas tripas também portuguesas – tudo do seu País. Que rei, que patriota! – meditava o abade de Priscos, bispo eleito de Coimbra, esmoncando-se e aparando as lágrimas ternas no alcobaça.
No fim do copioso almoço, el-rei fumava charutos espanhóis, de contrabando; desabotoava o colete, dava arrotos, repoltreava-se na cadeira de sola um pouco desconfortável, e vaporava grande colunas de fumo que se espiralavam até ao tecto.
A Senhorinha veio à beira de el-rei, e disse baixinho:
– Saberá Vossa Majestade que está ali o Sr. Trocatles.
– O...?
– Ai! já me esquecia... o Senhor Visconde..
– Que suba.
O sujei-to que entrou era o Torcato Nunes, uni sargento do exército realista, de São Gens. O rei ergueu-se e fecharam-se na alcova.
A cozinheira dizia em baixo à outra criada de fora:
– Ó coisa! Mal diria eu que ainda havia de chamar visconde ao safardana do Trocatles! E a outra, benzendo-se:
– Não que ele, o mundo sempre dá voltas! Veja você! aquele moinante que me pediu uma vez dois patacos para cigarros, e por sinal que nunca mos pagou!
– Pois vês aí! Foi ele o primeiro que conheceu o Sr. D. Miguel, é o que foi, e Sua Majestade gosta muito dele. Foi feliz o diabo do homem! Aquilo vai a governo, tu verás; e já ouvi dizer que o sobrinho dele, o padre Zé da Eira, o de Rio Caldo, que é zanagra, está cónego. Limparam-se da carepa, é o que é. A mulher dele já botou no domingo passado a sua saia e jaqué de pano azul.
– E que rico pano!
– Pois vês aí...
Entrava nesta conjuntura o abade, esfadigado, suarento – que levasse o Diabo a freguesia, que pouco tempo havia de aturar maçadas daquelas, para confessar uma bêbeda de uma velha que tinha bebido de mais na feira da Póvoa e caíra de um valado abaixo. E ele? – perguntava – almoçou bem?
– Ora! não há que perguntar, senhor! Aquilo, salvo seja, é como a cal de uma azenha. É quanto lhe deitarem para a tripa. Coisa assim! Subiu agora para lá o Munes. Ai! já me esquecia, é Senhor Abade! Olhe que na vila já perguntaram se cá na casa estavam hóspedes, porque vinham para cá muitas comidas. Que não vão eles pegar a desconfiar.. Esta pergunta à moça traz água no bico.
– E tu que respondeste, moça?
– Que vinham por cá jantar uns senhores padres, que agora era tempo de confesso...
– Andaste bem.
Quando o padre Marcos Rebelo subia à sala, pedindo licença a meio da escada, já o rei e o visconde vinham saindo da alcova – um, aprumado na atitude da majestade, o outro, na do respeito, muito composto.
– Pede licença na sua casa, Dom Prior? – disse el-rei.
O Dom Prior de Guimarães genuflectiu a perna direita; o soberano apressou-se a erguê-lo.
– Nada de etiquetas, já lho disse dúzias de vezes.
– Não posso nem devo proceder de outra maneira, senhor!
– Pode e deve que o mando eu.
E o abade, inclinando-se com os braços em cruz sobre a batina:
– Saberá Vossa Majestade que o Sr. Capitão-Mor de Santa Marta, a quem Vossa Real Majestade fez barão de Bouro...
– Bem sei... aquele amável cavalheiro...
– Perfeito cavalheiro – atestou o Nunes.
– Escreveu-me a carta que tenho a honra de depositar nas mãos de Vossa Majestade. El-rei leu alto:
Amigo Dom Prior de Guimarães. – Um realista do concelho de Famalicão chegou há pouco a esta casa, a fim de que eu escrevesse ao meu nobre e velho amigo para obter de S. M. licença para lho apresentar como portador de uma carta do Sr. Vasco Cerveira Lobo, morgado de Quadros, e tenente-coronel que foi do regimento de dragões de Chaves. Diz ele que o Sr. D. Miguel fora amigo pessoal do dito tenentecoronel, e por isso entende, e eu também, que será muito do real agrado do nosso rei e senhor receber a carta deste legitimista que nos pode ser muito útil, já pelo seu nome, como também pela sua riqueza. Ouvidas as ordens de S. M. F., queira transmitir-mas...
– Estou-me recordando – dizia o príncipe pausando as suas reminiscências – Cerveira Lobo.., tenente- coronel de dragões... O Cerveira, o meu amigo Cerveira...
– Que foi prisioneiro na Chamusca, quando o Urbano se passou para os liberais, com a cavalaria e mais o coronel de dragões, o Albuquerque – lembrou o Nunes, o visconde Munes –, Vossa Majestade lembra-se?
– Perfeitamente. Dom Prior, queira escrever ao barão a dizer-lhe que espero ansiosamente a carta do meu amigo Cerveira.
Enquanto o abade ia ao seu quarto escrever, o hóspede disse ao ouvido do outro:
– Isto cone mal..
– Porquê?
– Se o homem cá vem, o meu grande amigo.
– Recebe-lo como o teu grande amigo...
– Se me fala em particularidades...
– Ele não sabe falar em particularidades. É uma besta, muito rico, e disse-me o morgado do Tanque, de Braga, seu primo, que está sempre bêbedo. Nem ele cá vem, tu verás... Eu até acho que as coisas correm perfeitamente. – Ouviam-se os passos do abade. – Tem dinheiro, ele tem muito dinheiro, ouviste?
Entrou o abade.
– Só duas palavras. – E leu: – Sua Majestade recebe com muito prazer a carta do Sr. Tenente-Coronel Cerveira Lobo.
– Muito bem – aprovou el-rei. – Hoje à noite, com todos os resguardos que urgem as cautelas.
– Um homem, o Caneta de Braga, o chapeleiro, com uma carta – anunciou Senhorinha – só a entrega em mão própria ao Senhor Abade.
Que entrasse.
O rei e o visconde meteram-se à alcova, simulando receios.
Era uma carta do abade de Priscos, bispo eleito de Coimbra. Tinha a honra de enviar a el-rei cem peças, donativo que as senhoras Botelhas, de Braga, ofereciam de joelhos a S. M. F., e diziam que todos os seus haveres estavam às ordens de el-rei seu senhor.
E entregou dois grossos cartuchos, cintados por fitas cruzadas de seda escarlate. E o Caneta muito pontual:
– Queria um recibinho, se lhe não custa, reverendo Senhor Abade.
– Venha daí que eu passo-lhe o recibo.
Os dois saíram da alcova. Os rolos estavam sobre a mesa. Eles tinham ouvido falar em recibo. O visconde Nunes, esgazeando os olhos, foi apalpar o embrulho, e muito baixinho:
– Arame! Pesa que tem diabo! É ouro! Começa a pingadeira! Vês?
O outro arregalou os olhos e deitou a língua de fora quanto lhe foi possível. Nem parecia um rei!

Contos do Sábado na Usina: Machado de Assis: Frei Simão IV:

 



Frei Simão de Santa Águeda foi obrigado a ir à província natal em missão religiosa, tempos depois dos fatos que acabo de narrar. 
Preparou-se e embarcou. 
A missão não era na capital, mas no interior. Entrando na capital, pareceu-lhe dever ir visitar seus pais. Estavam mudados física e moralmente. Era com certeza a dor e o remorso de terem precipitado seu filho à resolução que tomou. Tinham vendido a casa comercial e viviam de suas rendas. 
Receberam o filho com alvoroço e verdadeiro amor. Depois das lágrimas e das consolações, vieram ao fim da viagem de Simão. 
- A que vens tu, meu filho? 
- Venho cumprir uma missão do sacerdócio que abracei. Venho pregar, para que o rebanho do Senhor não se arrede nunca do bom caminho. 
- Aqui na capital? 
- Não, no interior. Começo pela vila de ***. 
Os dois velhos estremeceram; mas Simão nada viu. No dia seguinte partiu Simão, não sem algumas instâncias de seus pais para que ficasse. Notaram eles que seu filho nem de leve tocara em Helena. Também eles não quiseram magoá-lo falando em tal assunto. 
Daí a dias, na vila de que falara frei Simão, era um alvoroço para ouvir as prédicas do missionário. A velha igreja do lugar estava atopetada de povo. 
À hora anunciada, frei Simão subiu ao púlpito e começou o discurso religioso. Metade do povo saiu aborrecido no meio do sermão. A razão era simples. Avezado à pintura viva dos caldeirões de Pedro Botelho e outros pedacinhos de ouro da maioria dos pregadores, o povo não podia ouvir com prazer a linguagem simples, branda, persuasiva, a que serviam de modelo as conferências do fundador da nossa religião. 
O pregador estava a terminar, quando entrou apressadamente na igreja um par, marido e mulher: ele, honrado lavrador, meio remediado com o sítio que possuía e a boa vontade de trabalhar; ela, senhora estimada por suas virtudes, mas de uma melancolia invencível. 
Depois de tomarem água benta, colocaram-se ambos em lugar donde pudessem ver facilmente o pregador. 
Ouviu-se então um grito, e todos correram para a recém-chegada, que acabava de desmaiar. Frei Simão teve de parar o seu discurso, enquanto se punha termo ao incidente. Mas, por uma aberta que a turba deixava, pôde ele ver o rosto da desmaiada. 
Era Helena. 
No manuscrito do frade há uma série de reticências dispostas em oito linhas. Ele próprio não sabe o que se passou. Mas o que se passou foi que, mal conhecera Helena, continuou o frade o discurso. 
Era então outra coisa: era um discurso sem nexo, sem assunto, um verdadeiro delírio. A consternação foi geral.

Contos do Sábado na Usina: Humberto de Campos:



VINGANÇA 
Quando o caboclo Amâncio tomou por arrendamento as últimas quatro estradas de seringueiras do major Nataniel, Francisco das Chagas, cearense chegado há três anos do Canindé, já se achava estabelecido nas quatro outras que lhe ficavam vizinhas, e que faziam parte, todas, do seringal "Bom Sucesso". As madeiras que ele ia sangrar haviam descansado dois cortes e deviam dar bastante leite naquele verão. Essa vantagem ia custar-lhe, todavia, duplo trabalho inicial, com a limpa dos vãos obstruídos pela vegetação, e com a construção de outra barraca, por haver tombado, já, transformando -se em um monte de palha podre, aquela em que vivera o seu antecessor. Levantá-la-ia, entretanto, no mesmo lugar, para aproveitar o porto e os pés de cará, tornados selvagens pelo abandono. Dois dias de foice, desbastando os arbustos novos, poupar-lhe-iam quatro semanas de machado. 
Ao fim de uma quinzena, quando as chuvas deixaram de fustigar a floresta, e o rio começou a baixar, estava o Amâncio na sua barraca de bossú a paxiuba, cujas paredes e cobertura de palha nova, a transformavam, quando batida de sol, em uma caixa de ouro, arrepiada de arabescos bizarros. Amarrada à frondosa e torta gameleira do porto, a "montaria" dançava ao sabor da correnteza e do vento, afrouxando e esticando a corda. E na barraca, ou no terreiro, a Mariana, cantarolando ininteligivelmente o dia todo, e a encher com a sedução bárbara do sexo aquele verde palmo do Deserto. 
A mudança, do seringal "Maranguape" para o "Bom Sucesso", a que se abalançara o Amâncio, fora involuntariamente causada pela rapariga. Legitimamente casada, por um padre em desobriga, com o velho índio Martinho, ficara, quando este morreu, em mãos do mulato Isidoro, que assumira perante o coronel Dondon, proprietário das estradas que o índio ocupava, a responsabilidade da dívida do defunto. Quando o mulato foi assassinado pelo 
preto Leôncio, o coronel Dondon recolheu a rapariga ao barracão, como garantia da conta do finado. E como ele, Amâncio, possuía saldo na casa, ficou com a Mariana, e, para evitar a continuação das relações estabelecidas entre ela e o coronel, encerrou as suas transações com este, e mudou de patrão, levando a cabocla. 
Mariana não era, positivamente, nem bonita, nem moça. Índia de raça pura, era gorda, e baixa, com a mesma largura nos ombros e nos quadris, e devia andar pelos quarenta anos. O rosto redondo, sombreado e gorduroso, apresentava uma testa estreita, coroada de cabelos lisos e luzidios, que lhe desciam até à cintura. Tinha nariz chato, e olhos pequenos e negros, ligeiramente convergentes. A boca de tamanho regular e lábios finos, deixava em exposição, quando ria, as gengivas arroxeadas, em cuja orla corria uma fieira de dentes pontiagudos, cortados em bico de serra. Vestia, quase sempre, por gosto hereditário, saia e casaco de chita vermelha, os quais, anunciando-a de longe, davam a impressão de uma guará de penas rubras, pousando na proa das "montarias" ou pescando à beira do rio. Não tinha beleza nem graça. Mas era mulher, naquelas regiões em que há uma para dois mil homens, e, só por isso, era desejada, e por ser desejada, vivia contente, exprimindo o seu contentamento em melopéias, cujas palavras só ela entendia. 
Achava- se o Amâncio instalado, já, há uma semana, na sua barraca nova, quando, uma tarde, o Chagas passou pelo seu porto, remando sozinho. A Mariana estava à margem do rio, de cócoras, lavando roupa, e, como de costume, cantarolando para si mesma. A saia, arregaçada até os joelhos, deixava à mostra as pernas morenas e grossas, iguais e sólidas como dois toros de madeira cortados no mesmo tronco. Ao defrontar o porto, levou o cearense a mão ao chapéu de carnaúba, em sinal de respeito. A cabocla respondeu ao cumprimento, e continuou a esfregar a roupa, mas sem olhar para o sabão. O jacumã do seringueiro roncou forte, rasgando a água. E quando a "montaria" do Chagas desapareceu na curva do rio, em que as margens eram dois muros de vegetação compacta, Mariana ainda esfregava o mesmo punho de camisa. Os seus olhos tortos acompanhavam o remador como dois novelos de linha preta cujas pontas se achassem amarradas à popa da embarcação, a qual, na sua marcha, os fosse pouco a pouco desenrolando. 
Nessa tarde, até à noite, Mariana não cantarolou mais. No dia seguinte, porém, ao entardecer, passou a cantar alto, sentiu-se mais contente do que dantes. Soturno e desconfiado, o Amâncio, em quem não haviam desaparecido ainda a agudeza e perspicácia do selvagem primitivo, não custou a adivinhar o que se passava nas horas em que se achava ausente. Rara era a tarde em que não descobria, na ribanceira do porto, marca de uma proa de "montaria". E rara, também, a em que não encontrava a chaleira quente, com os vestígios de que, pouco antes da sua chegada, se tinha feito café. E se os olhos não lhe dissessem essas cousas, a alma lhe teria dito outras equivalentes, pois que, ao chegar à barraca, não encontrava mais as mesmas carícias gulosas, os mesmos abraços vibrantes de animalidade. Antes de descobrir os passos do Chagas na areia molhada do seu porto, ou a terra frouxa do seu terreiro, já o caboclo os havia adivinhado no coração de Mariana. O coração das mulheres que amam em segredo e pecado é como os troncos que têm abelhas: basta que alguém lhes chegue o ouvido para escutar a zoada lá dentro. 
Dias depois dessa descoberta, o Amâncio começou a aproximar-se, com boas maneiras, do Francisco das Chagas. Ao encontrá-lo no rio, parava de remar, detinha a marcha da "montaria" e, cofiando no queixo a barbicha escura e rala, punha- se a conversar sobre o tempo, sobre o rendimento das seringueiras, ou sobre a queda crescente do preço da 
borracha no barracão, dando sinais inequívocos de que lhe era agradável a sua camaradagem. Convidado por mais de uma vez, o cearense começou a freqüentar a barraca do Amâncio, com a presença deste, que se mostrava sempre comunicativo e obsequioso, servindo- lhe, conforme a demora, uma xícara de café ou um gole de aguardente. Até que, um dia, ficou combinada entre os dois aquela "espera" aos veados no igarapé dos Mutuns. 
- Você vem mesmo, homem de Deus? - indagou o caboclo, como quem duvida. 
- Venho, "seu" compadre; eu já não disse? Só se Deus Noss'enhor e São Francisco das Chagas do Canindé não quiserem. 
E tocou no chapéu, num sinal de devoção. 
Ao entardecer do dia aprazado, armado cada um com o seu rifle e levando a tiracolo a corda com que deviam trazer a caça graúda, meteram-se ambos na "montaria" Chagas e penetraram, meia légua rio acima, no estreito caminho dágua, remando com lentidão. A floresta começava a mergulhar na noite, e parecia em êxtase para esse mistério. A quietação era absoluta. Ouvia-se o estalar dos ramos secos, a queda dos açaís maduros no espelho dágua, e o ruído dos jacumãs, ferindo a superfície lisa do igarapé. Há uma hora de transição, na selva, em que os animais do dia já se recolheram e em que os da noite ainda não estão acordados. Hora de trégua; hora de armistício dos seres e das coisas selvagens. E era essa hora que soava no relógio imenso da Natureza quando o Chagas e o Amâncio encalharam a "montaria" numa sapopemba, e percorreram os cem metros que os separavam da árvore em cuja fronde se deviam esconder, à espera dos veados que aí vinham comer as frutas miúdas caídas durante o dia. Só um pouco mais tarde, com o aparecimento da primeira estrela, os sapos romperam com a sua orquestra, enchendo a noite de milhões de vozes confusas, como se todos os troncos, todos os galhos, todas as raízes, todas as folhas, se transformassem de súbito em bárbaros instrumentos musicais. 
Vencendo a vegetação rasteira e luxuriante das terras baixas e quase alagadas, chegaram os caçadores a um lugar mais alto, onde um bacurizeiro erguia a fronde elegante no meio de outras árvores de porte menor, cujo fruto era particularmente procurado pelos veados da região. Subiram, o Amâncio primeiro, o Chagas em seguida. Escolheram, para refúgio, um galho alto e sólido, aberto em forquilha e afogado em folhagem densa, de outra árvore que invadia com as suas ramagens a sombra do bacurizeiro. E a escuridão envolveu tudo, aumentando os rumores circunstantes. 
Escachados no galho escolhido, os dois caçadores trocavam apenas uma ou outra palavra. Sentia-se, porém, que um e outro estendiam por longe os fios do próprio pensamento, à semelhança de cigarras que lançassem o canto através do espaço, levando-o a distâncias que desconhecem. E o pensamento do nordestino errava, às vezes, tão distante dali, que ele nem se apercebia do movimento leve das mãos do companheiro, o qual acabava de amarrar uma das pontas da sua corda ao galho da árvore, e começava a experimentar, entre as folhas, um laço corredio e seguro, que havia na outra extremidade. 
Noite alta, já, escutaram, os dois, o urro de uma onça, do lado oposto ao igarapé. E logo duas brasas esverdeadas se acenderam na treva. Duas outras fulgiram, pouco atrás. E a selva como que se calou apavorada, com a presença dos felinos sanguinários e hostis. Aproveitando a atenção com que o companheiro perscrutava a escuridão ameaçadora, o Amâncio aproximou- se dele e, docente, passou-lhe por um dos pés, apertando-o de leve, o laço que havia feito na corda. De súbito, reunindo toda a sua força nos braços, o caboclo levou as mãos ambas aos peitos do cearense, lançando-o fora do galho. Um berro de surpresa e de dor alarmou a solidão, a corda esticou num estalo, o bacurizeiro estremeceu sacudido, e um corpo ficou bailando no ar, no escuro, a pouco mais de dois metros acima do solo. Ao grito apavorado e apavorante do homem, as onças fugiram, espantadas, em saltos elásticos, entre o estrépito seco de galhos e cipós rebentados na passagem. 
- Ai!... Ai!... Ai!... Amâncio... Pelo amor de Deus... me salve!... Ai!... ai!... Amâncio, por que você fez isso?... Que é que eu lhe fiz, Amâncio .... Ai, meu São Francisco do Canindé!... 
Quieto, o caboclo conservou-se calado. Os dois rifles, que se achavam entre a folhagem, estavam nas suas mãos. Podia descer, e ir-se embora; a sua vingança ainda não estava, entretanto, terminada. O Chagas soltou alguns gritos estrangulados, pedindo socorro. Compreendendo, porém, a inutilidade desse esforço naquela solidão em que o homem era a mais estranha das sombras, voltou a gemer, espaçadamente. Estava de cabeça para baixo e, com o deslocamento da perna, impossibilitado de alcançar a corda com as mãos, para salvar-se. E gemia há mais de uma hora quando luziram, de novo, a treva, os olhos da onça. Chagas gritou, para afugentá-la; mas a ameaça, em vez de amedrontar, incentivou o felino, que marchou, agachando-se, na direção do bacurizeiro. Outras onças urraram perto. Seis, oito, dez olhos verdes luziram na escuridão. De súbito, a primeira onça deu um salto, alcançando com os dentes e com uma das patas o corpo do seringueiro. Um grito de terror e de angústia espalhou-se pela mata. Mas as feras não fugiram. Pelo contrário, acorreram em bando, como se tivessem adivinhado, pela voz estrangulada da vítima, que ela estava sem defesa. E foi horrível, então, o que Amâncio presenciou, ou, antes. percebeu, imóvel, do seu esconderijo. As ouças, em saltos enormes, disputavam-se os pedaços da carne do Chagas. Numa dança de corpos que se chocavam no ar, e de urros de raiva, estraçalhavam elas, no espaço, os membros do seringueiro. O galho em que se achava o Amâncio era sacudido, abalado pelas feras, quando estas alcançavam a corda, nos seus saltos rápidos e seguros, que se cruzavam na sombra. Segurando-se para não cair, o caboclo ouvia a queda do sangue na terra, como de um pote pequeno cuja água se derrama. Em certo momento, a corda parou de esticar, e o galho de ser agitado pelos felinos. Arrastando membros inteiros para as moitas próximas, as onças devoravam, rosnando, os pedaços que haviam arrebatado umas às outras. O Amâncio ouvia, perfeitamente, o roer dos ossos. Ao fim de algumas horas, os sapos deixaram de coaxar. As onças, satisfeitas, afastaram -se, para beber e dormir. A selva aquietava-se, como se lhe passassem a mão pelo imenso dorso verde, numa grande carícia voluptuosa. Uma claridade tênue varou as folhas. Pipilou o primeiro pássaro. Outros responderam. Com os dois rifles a tiracolo o Amâncio desceu do bacurizeiro. Ao chegar em baixo, olhou a corda. 
Da extremidade desta, preso pelo tornozelo, pendia, sangrento e sujo, esfiapando as cartilagens, o pé esquerdo do Chagas, cuja roupa, reduzida a farrapos estraçalhados e sangrentos, jazia espalhada em torno, entre folhas machucadas e empapadas de sangue, de mistura com fragmentos de carne e pedaços de ossos roídos.

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo:

 




O CONTRABANDO 

A Valentim Magalhães 

III 
Na quinta feira aprazada Geraldo saiu da repartição às horas do costume e foi direto para casa. Não se calcula o espanto da cozinheira e do José quando o patrão lhes disse: Janto hoje fora. 
O macambúzio foi ao seu quarto, mudou de roupa, lançou um olhar saudoso ao retrato da filha e saiu. 
Uma hora depois entrava em casa de Tavares, em Botafogo, e caía-lhe a alma aos pés: na sala, sentados aqui e ali, fazendo roda ao dono da casa, estavam quatro sujeitos e cinco mulheres elegantemente vestidas, empoadas, pintadas e cheias de jóias e brilhantes. 
Geraldo estacou entre os umbrais da porta e teve um movimento retroativo em presença de tantas 
cocottes; mas o Tavares desprendeu-se dos braços de uma delas, a mais bonita, e foi buscá-lo com um abraço. 
— Bravo! Cá está o homem! Agora não falta mais nenhum! Estão reunidos seis amigos de quarenta anos. Nascemos todos em 1851. — Conhecem-se? 
Dos quatro sujeitos, Geraldo apenas conhecia um, o Eduardo Távora, doutor em medicina, que fora também seu condiscípulo no colégio Marinho. O Tavares apresentou-lhe os outros: o visconde do Sabugal, opulento banqueiro que há seis anos ainda era moço de padaria, - o doutor Bandeira, advogado, - e o Mora, um rapaz português, muito ativo mas muito pândego que tinha deitado fora duas fortunas, e desfrutava agora a terceira, que era a maior. 
Seguiu-se a apresentação das cocottes. O Tavares principiou pela mais bonita: — Mademoiselle Georgina, madame Tavares até amanhã ali pelas onze horas o mais tardar; uma parisiense que nunca pôs os pés em Paris; nasceu e cresceu em Bordeaux, e de lá veio o ano passado, contratada para as Folie-Bergères do beco do Império. Não fala uma palavra de português e não tem medo da febre amarela. 
Geraldo cumprimentou mademoiselle Georgina com muito acanhamento. 
— Conchita e Mercedes, ambas espanholas de Buenos Aires, como a outra é parisiense de Bordeaux, - duas moscas varejeiras, atraídas pelo mel do Encilhamento dos macaquitos. — A sinhá paulista que deu a volta a todas as cabeças em São Paulo e está conquistando todos os corações na Capital Federal. — Angelina - chapeau bas!, - a italiana mais bonita que tem pisado nas terras de Santa Cruz! 
E baixinho, ao ouvido de Geraldo: 
— É das nossas. Nasceu também antes do golpe de Estado... 
O viúvo estava atônito. Ele apertara a mão às cinco mulheres, e cada uma delas lhe impregnara um perfume diverso. 
Chamou Tavares ao vão de uma janela, e disse-lhe: 
— Armaste-me uma cilada. Vou fazer triste figura entre essas tipas. Não sirvo para isto. 
— Ora deixa-te de luxos! Que mal podem elas fazer-te? 
— Nenhum. 
— Mandei buscá-las para enfeitarem a mesa. Faze de conta que são flores... 
— Que flores!... 
— Elas são cinco e nós somos seis. Sobra um, que és tu. Uma vez que o gênero não te agrada, fica isolado. Tua alma tua palma. 
Às sete horas passaram todos à sala de jantar. Os cavalheiros deram os braços às damas. Geraldo ia sozinho, no couce desse batalhão de Cythera. 
A mesa, uma mesa circular, de doze talheres, resplandecia entre flores e frutos, numa profusão de luzes que se refletiam nos cristais multicores. 
O Tavares sentou-se entre a francesa e a italiana; o visconde ficou entre esta e Conchita, e junto da Conchita o Mota, e ao pé do Mota o nosso Geraldo que deixou entre si e a Mercedes uma cadeira vazia; junto da Mercedes ficou o doutor Bandeira, tendo à sua direita a sinhá e entre esta e mademoiselle Georgina tomou o lugar o doutor Távora. 
O Mota protestou contra a cadeira vazia: 
— Isto não está direito: somos seis homens e cinco senhoras! 
— Estamos no Paraguai! exclamou o doutor Távora. 
— Uma sensaboria, obtemperou Tavares, madame Bertin ficou de trazer seis raparigas e só trouxe cinco. Eu pu-la imediatamente a andar, e disse-lhe que não voltasse aqui sem a sexta. Conto que a traga. Se vier, há de sentar-se ali entre o Mota e o Geraldo. 
Acabada a sopa, discretamente regada por um delicioso Madeira seco, abriu-se uma porta e apareceu na porta a figura encarquilhada da tal madame Bertin, uma francesa que brilhou entre o mulherio galante do Rio de Janeiro de 1855 a 1860, e exerce agora a ignóbil profissão de medianeira de amores fáceis. 
A entrada da velha foi ruidosamente acolhida com palmas batidas por vinte mãos, que vinte e duas seriam se Geraldo não se abstivesse dessa manifestação. 
— Mas que é isto?... a senhora veio só?!... perguntou o Tavares, arregalando uns olhos furibundos. 
— Não; ela está na saleta; é ainda muito acanhada. 
O Tavares ergueu-se e foi à saleta. Voltou, conduzindo pela mão uma rapariga morena, muito envergonhada, com os olhos postos no chão, e tão nova, tão nova, que certamente não tinha ainda vinte anos. 
— Foi o que pude encontrar, ponderou madame Bertin durante a curta ausência do Tavares. 
— Passa para a outra cadeira, disse logo o Mota a Geraldo; a pequena deve ficar sentada entre nós dois. 
Entretenha-se o amigo com ela, porque eu cá estou muito ocupado com a Conchita. 
Geraldo obedeceu enfiado, e o Tavares conduziu a recém chegada até a cadeira vazia. 
— Quanto à senhora, disse o Tavares retomando o seu lugar e dirigindo-se a madame Bertin, vá lá para a copa; coma e beba à vontade! 
— Sim, aduziu o visconde; aqui não há lugar para mais ninguém... não queremos ser treze à mesa... 
— E demais, acrescentou o Mota, não podem tomar parte neste jantar pessoas que tenham mais de quarenta anos. 
Todos se riram e madame Mertin desapareceu. 
Depois dos dois primeiros pratos, acompanhados o primeiro por um rico Sauternes e o segundo por um riquíssimo Pommard, notou Geraldo que cada um dos comensais se ocupava muito particularmente de uma das suas vizinhas. O Tavares bebia pelo copo de mademoiselle Georgina. O doutor Távora passara o braço em volta da cintura da sinhá. O advogado segredava não sei o que ao ouvido da Mercedes, que revirava languidamente os olhos. O Mota cantarolava um trecho de zarzuela, tamborilando nas costas de Conchita. O visconde, que se queixava do calor, entrelaçava os dedos nos de Angelina. Só Geraldo e a última chegada se conservavam sisudos, como se assistissem a um banquete de muita cerimônia. 
— Então que é isso, Geraldo? vociferou o Tavares. Não dizes palavra a essa pobre moça?... não lhe fazes a corte? Sê romano em Roma, meu velho! Esquece-te dos teus velhos desgosto! Transforma-te! 
Geraldo, efetivamente, começava a sentir a necessidade de transformar-se, para não ser ridículo. 
— Como se chama? perguntou à sua vizinha, num tom de voz brando e carinhoso. 
— Laura. 
— É filha mesmo daqui? 
— Sou de Resende. 
— Já não tem pai nem mãe? 
— Ânimo, Geraldo! vociferou o Tavares. 
— Tenho mãe; meu pai morreu quando eu era pequenina. 
— Vive em companhia de sua mãe? 
A moça estranhou a pergunta, e volveu para o seu interlocutor uns olhos muito espantados. Depois caiu em si, refletiu que a curiosidade do outro era uma coisa muito natural, e respondeu: 
— Não, senhor. 
— Com quem vive então? 
— Vivo sozinha. Eu era casada, mas deixei meu marido. 
— Por que? 
— Porque não gostava dele. Mamãe obrigou-me a casar contra a vontade. Eu gostava de um moço que me tirou do meu marido, me trouxe para o Rio de Janeiro e me abandonou no hotel. Não conheço ninguém nesta terra e se não fosse madame Bertin... 
A conversação continuou por algum tempo, nesse terreno simples e inocente; continuaria ainda se o punch à la romaine que no menu, delicadamente impresso em ventarolas de seda, figurava como o coup du milieu, não se combinasse com o Madeira, o Sauternes e o Pammard para a transformação de Geraldo. Porque, digamo-lo, o nosso viúvo, como todos os homens melancólicos, gostava de fazer honra aos bons vinhos. 
Às nove horas, quando estourou a champanha, todos os convivas, inclusive a bisonha Laura, fumavam magníficos cigarros egípcios, - “dos que fuma o quediva”, observava o Tavares, que não perdia ensejo de encarecer os eu regabofe. A sala enchia-se de fumo. O doutor Bandeira e a Mercedes beijavam-se descaradamente. A sinhá, para ficar mais à vontade, pedia ao doutor Távora que lhe desabotoasse o corpinho. O Tavares ia buscar com os lábios as uvas que mademoiselle Georgina prendia entre os dentes, e dizia-lhe umas coisas num francês capaz de fazer tremer de indignação a sombra de Bossuet. O Mota, embriagado, recostava-se no colo da Conchita, que o penteava com os dedos. O visconde, que se pusera em mangas de camisa, abraçava, voluptuosamente a italiana, e gaguejava um brinde “ao nosso Anfitrião”, brinde a que ninguém prestava ouvidos. Geraldo e Laura, de mãos dadas, faziam protestos de não se separarem naquela noite. 

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo:

 




O CONTRABANDO 

A Valentim Magalhães IV 

Às onze horas, quando os convivas se levantaram da mesa, Geraldo, ébrio de vinho e de volúpia, apoiou-se à cadeira para não cair. Foi para a saleta, e Laura acompanhou-o até um divã, onde se sentaram, ambos, de mãos dadas, ele saboreando um havana, ela fumando, por obrigação, desajeitadamente, outro cigarro dos que fuma o quediva. 
O visconde e os doutores desapareceram com as vizinhas respectivas. Só ficaram Geraldo e o Mota, - tão bêbado este, que o Tavares mandou preparar-lhe o quarto de hóspedes. Conchita afetuosa e solícita, ofereceu- se para fazer-lhe companhia durante a noite. 
O Tavares aproximou-se de Geraldo, a rir-se: 
— Deitaste as manguinhas de fora, hein, meu santarrão? Geraldo limitou-se a sorrir, lançando uma baforada de fumo. 
— Olha, eu quis ser gentil para contigo, continuou o Tavares; mandei aparelhar a vitória, para acompanhares a pequena à casa dela... ou à tua... 
— À minha, redargüiu Geraldo; ela já me disse que ainda não tem casa...