sexta-feira, 15 de julho de 2022

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo:

 




O CONTRABANDO 

A Valentim Magalhães 

III 
Na quinta feira aprazada Geraldo saiu da repartição às horas do costume e foi direto para casa. Não se calcula o espanto da cozinheira e do José quando o patrão lhes disse: Janto hoje fora. 
O macambúzio foi ao seu quarto, mudou de roupa, lançou um olhar saudoso ao retrato da filha e saiu. 
Uma hora depois entrava em casa de Tavares, em Botafogo, e caía-lhe a alma aos pés: na sala, sentados aqui e ali, fazendo roda ao dono da casa, estavam quatro sujeitos e cinco mulheres elegantemente vestidas, empoadas, pintadas e cheias de jóias e brilhantes. 
Geraldo estacou entre os umbrais da porta e teve um movimento retroativo em presença de tantas 
cocottes; mas o Tavares desprendeu-se dos braços de uma delas, a mais bonita, e foi buscá-lo com um abraço. 
— Bravo! Cá está o homem! Agora não falta mais nenhum! Estão reunidos seis amigos de quarenta anos. Nascemos todos em 1851. — Conhecem-se? 
Dos quatro sujeitos, Geraldo apenas conhecia um, o Eduardo Távora, doutor em medicina, que fora também seu condiscípulo no colégio Marinho. O Tavares apresentou-lhe os outros: o visconde do Sabugal, opulento banqueiro que há seis anos ainda era moço de padaria, - o doutor Bandeira, advogado, - e o Mora, um rapaz português, muito ativo mas muito pândego que tinha deitado fora duas fortunas, e desfrutava agora a terceira, que era a maior. 
Seguiu-se a apresentação das cocottes. O Tavares principiou pela mais bonita: — Mademoiselle Georgina, madame Tavares até amanhã ali pelas onze horas o mais tardar; uma parisiense que nunca pôs os pés em Paris; nasceu e cresceu em Bordeaux, e de lá veio o ano passado, contratada para as Folie-Bergères do beco do Império. Não fala uma palavra de português e não tem medo da febre amarela. 
Geraldo cumprimentou mademoiselle Georgina com muito acanhamento. 
— Conchita e Mercedes, ambas espanholas de Buenos Aires, como a outra é parisiense de Bordeaux, - duas moscas varejeiras, atraídas pelo mel do Encilhamento dos macaquitos. — A sinhá paulista que deu a volta a todas as cabeças em São Paulo e está conquistando todos os corações na Capital Federal. — Angelina - chapeau bas!, - a italiana mais bonita que tem pisado nas terras de Santa Cruz! 
E baixinho, ao ouvido de Geraldo: 
— É das nossas. Nasceu também antes do golpe de Estado... 
O viúvo estava atônito. Ele apertara a mão às cinco mulheres, e cada uma delas lhe impregnara um perfume diverso. 
Chamou Tavares ao vão de uma janela, e disse-lhe: 
— Armaste-me uma cilada. Vou fazer triste figura entre essas tipas. Não sirvo para isto. 
— Ora deixa-te de luxos! Que mal podem elas fazer-te? 
— Nenhum. 
— Mandei buscá-las para enfeitarem a mesa. Faze de conta que são flores... 
— Que flores!... 
— Elas são cinco e nós somos seis. Sobra um, que és tu. Uma vez que o gênero não te agrada, fica isolado. Tua alma tua palma. 
Às sete horas passaram todos à sala de jantar. Os cavalheiros deram os braços às damas. Geraldo ia sozinho, no couce desse batalhão de Cythera. 
A mesa, uma mesa circular, de doze talheres, resplandecia entre flores e frutos, numa profusão de luzes que se refletiam nos cristais multicores. 
O Tavares sentou-se entre a francesa e a italiana; o visconde ficou entre esta e Conchita, e junto da Conchita o Mota, e ao pé do Mota o nosso Geraldo que deixou entre si e a Mercedes uma cadeira vazia; junto da Mercedes ficou o doutor Bandeira, tendo à sua direita a sinhá e entre esta e mademoiselle Georgina tomou o lugar o doutor Távora. 
O Mota protestou contra a cadeira vazia: 
— Isto não está direito: somos seis homens e cinco senhoras! 
— Estamos no Paraguai! exclamou o doutor Távora. 
— Uma sensaboria, obtemperou Tavares, madame Bertin ficou de trazer seis raparigas e só trouxe cinco. Eu pu-la imediatamente a andar, e disse-lhe que não voltasse aqui sem a sexta. Conto que a traga. Se vier, há de sentar-se ali entre o Mota e o Geraldo. 
Acabada a sopa, discretamente regada por um delicioso Madeira seco, abriu-se uma porta e apareceu na porta a figura encarquilhada da tal madame Bertin, uma francesa que brilhou entre o mulherio galante do Rio de Janeiro de 1855 a 1860, e exerce agora a ignóbil profissão de medianeira de amores fáceis. 
A entrada da velha foi ruidosamente acolhida com palmas batidas por vinte mãos, que vinte e duas seriam se Geraldo não se abstivesse dessa manifestação. 
— Mas que é isto?... a senhora veio só?!... perguntou o Tavares, arregalando uns olhos furibundos. 
— Não; ela está na saleta; é ainda muito acanhada. 
O Tavares ergueu-se e foi à saleta. Voltou, conduzindo pela mão uma rapariga morena, muito envergonhada, com os olhos postos no chão, e tão nova, tão nova, que certamente não tinha ainda vinte anos. 
— Foi o que pude encontrar, ponderou madame Bertin durante a curta ausência do Tavares. 
— Passa para a outra cadeira, disse logo o Mota a Geraldo; a pequena deve ficar sentada entre nós dois. 
Entretenha-se o amigo com ela, porque eu cá estou muito ocupado com a Conchita. 
Geraldo obedeceu enfiado, e o Tavares conduziu a recém chegada até a cadeira vazia. 
— Quanto à senhora, disse o Tavares retomando o seu lugar e dirigindo-se a madame Bertin, vá lá para a copa; coma e beba à vontade! 
— Sim, aduziu o visconde; aqui não há lugar para mais ninguém... não queremos ser treze à mesa... 
— E demais, acrescentou o Mota, não podem tomar parte neste jantar pessoas que tenham mais de quarenta anos. 
Todos se riram e madame Mertin desapareceu. 
Depois dos dois primeiros pratos, acompanhados o primeiro por um rico Sauternes e o segundo por um riquíssimo Pommard, notou Geraldo que cada um dos comensais se ocupava muito particularmente de uma das suas vizinhas. O Tavares bebia pelo copo de mademoiselle Georgina. O doutor Távora passara o braço em volta da cintura da sinhá. O advogado segredava não sei o que ao ouvido da Mercedes, que revirava languidamente os olhos. O Mota cantarolava um trecho de zarzuela, tamborilando nas costas de Conchita. O visconde, que se queixava do calor, entrelaçava os dedos nos de Angelina. Só Geraldo e a última chegada se conservavam sisudos, como se assistissem a um banquete de muita cerimônia. 
— Então que é isso, Geraldo? vociferou o Tavares. Não dizes palavra a essa pobre moça?... não lhe fazes a corte? Sê romano em Roma, meu velho! Esquece-te dos teus velhos desgosto! Transforma-te! 
Geraldo, efetivamente, começava a sentir a necessidade de transformar-se, para não ser ridículo. 
— Como se chama? perguntou à sua vizinha, num tom de voz brando e carinhoso. 
— Laura. 
— É filha mesmo daqui? 
— Sou de Resende. 
— Já não tem pai nem mãe? 
— Ânimo, Geraldo! vociferou o Tavares. 
— Tenho mãe; meu pai morreu quando eu era pequenina. 
— Vive em companhia de sua mãe? 
A moça estranhou a pergunta, e volveu para o seu interlocutor uns olhos muito espantados. Depois caiu em si, refletiu que a curiosidade do outro era uma coisa muito natural, e respondeu: 
— Não, senhor. 
— Com quem vive então? 
— Vivo sozinha. Eu era casada, mas deixei meu marido. 
— Por que? 
— Porque não gostava dele. Mamãe obrigou-me a casar contra a vontade. Eu gostava de um moço que me tirou do meu marido, me trouxe para o Rio de Janeiro e me abandonou no hotel. Não conheço ninguém nesta terra e se não fosse madame Bertin... 
A conversação continuou por algum tempo, nesse terreno simples e inocente; continuaria ainda se o punch à la romaine que no menu, delicadamente impresso em ventarolas de seda, figurava como o coup du milieu, não se combinasse com o Madeira, o Sauternes e o Pammard para a transformação de Geraldo. Porque, digamo-lo, o nosso viúvo, como todos os homens melancólicos, gostava de fazer honra aos bons vinhos. 
Às nove horas, quando estourou a champanha, todos os convivas, inclusive a bisonha Laura, fumavam magníficos cigarros egípcios, - “dos que fuma o quediva”, observava o Tavares, que não perdia ensejo de encarecer os eu regabofe. A sala enchia-se de fumo. O doutor Bandeira e a Mercedes beijavam-se descaradamente. A sinhá, para ficar mais à vontade, pedia ao doutor Távora que lhe desabotoasse o corpinho. O Tavares ia buscar com os lábios as uvas que mademoiselle Georgina prendia entre os dentes, e dizia-lhe umas coisas num francês capaz de fazer tremer de indignação a sombra de Bossuet. O Mota, embriagado, recostava-se no colo da Conchita, que o penteava com os dedos. O visconde, que se pusera em mangas de camisa, abraçava, voluptuosamente a italiana, e gaguejava um brinde “ao nosso Anfitrião”, brinde a que ninguém prestava ouvidos. Geraldo e Laura, de mãos dadas, faziam protestos de não se separarem naquela noite. 

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