sexta-feira, 15 de julho de 2022

Contos do Sábado na Usina: Camilo Castelo Branco:

 


VI


Na residência do abade Marcos Rebelo, em São Gens de Calvos, havia uma sala com alcova e janelas sobre uma horta arborizada. As pereiras, macieiras e abrunheiros principiavam a florir. Era no começo de Abril. Ali, naquelas frígidas alturas, sopram as ventanias mordentes de Barroso, do Gerês, e gelam a seiva nos troncos filtrados da neve e das cristalizações glaciais. Fazia frio. Na saleta caiada, muito excrementícia de moscaria, com tecto de castanho esfumaçado e o pavimento lurado do caruncho, havia a um lado duas caixas de cereais, no outro algumas cadeiras velhas de nogueira de diversos feitios, esfarpeladas no assento; nas paredes duas litografias – o retrato de D. João VI, com o olho velhaco e o beiço belfo, e o marquês de Pombal, sentado com o decreto da expulsão dos jesuítas, apontando parlapatonamente para a barra onde alvejam panos de navios que levam os expulsos. Na velha cal esburacada e emporcalhada de escarros secos de antigas catarrais, destacavam molduras de carvalho com dois painéis a óleo cheios de gretas, S. Jerónimo no deserto, com uma cara aflita, de tique doloroso, e Santo António de Pádua, num sadio en bon point, um bom sorriso ingénuo, com o Menino Jesus sentado, muito nutrido, numa bola que os hagiólogos diziam ser o globo terráqueo. No centro da quadra estava uma banca de pinho pintada a ocre, com uma coberta de cama, de chita vermelha, com araras, franjada de requifes de lã variegada. Ao lado da banca, uma cadeira de sola, com espaldar em relevo e pregaria amarela com verdete; do outro lado havia um fogareiro de ferro com brasas e uma cesta de verga cheia de carvão. Entre as duas pequenas janelas de rótulas interiores e cachorros de pedra, trabalhava estrondosamente um relógio de parede, com os frisos do mostrador sem vidro, cheios de moscas mortas, penduradas por uma perna, de ventres brancos muito inchados e as asas abertas.
Dez horas. Abriu-se então a porta da alcova, que rangeu ligeiramente na couceira desengonçada, e saiu um sujeito de mediana estatura, ombros largos, barba toda com raras cãs, olhos brilhantes, pálido-trigueiro, um nariz adunco. Representava entre trinta e seis e quarenta anos. Sentou-se à braseira e preparou um cigarro, vagarosamente, que acendeu na aresta chamejante de uma brasa. Com o cigarro ao canto dos lábios e um olho fechado pelo contacto agro do fumo, foi abrir uma das vidraças, e pôs fora a mão a sondar a temperatura. Coxeava um pouco. Recolheu a mão com desagrado e fechou a janela. Vinha subindo a escada de comunicação com a cozinha uma mulher idosa, em mangas de camisa, meias azuis de lã e ourelos achinelados. Pediu licença para entrar, fez uma mesura de joelhos sem curvar o tronco, e perguntou:
– Vossa Majestade passou bem?
– Optimamente, Senhorinha, passei muito bem.
– Estimo muito, Real Senhor. O Senhor Abade foi chamado às oito horas para confessar uma freguesa que está a morrer de uma queda, e deixou dito que pusesse o almoço a Vossa Majestade, se ele não chegasse às nove e meia.
– Quando quiser, Senhorinha, quando quiser, visto que o abade deu essas ordens e quem manda aqui é ele.
Da cozinha vaporava um perfume de salpicão frito com ovos. Sua Majestade farejava com as narinas anelantes num forte apetite. A criada voltou com toalha, guardanapo, louça da índia, talheres de prata, e uma travessa coberta. Sua Majestade, muito familiar, tirou de sobre a mesa uns cadernos escritos, cosidos com seda escarlate, e um grande tinteiro de chumbo com penas de pato.
– Ora Vossa Majestade a incomodar-se! Valha-me Deus! eu tiro isso, Real Senhor! Não que uma coisa assim! Um rei a..
E o Real Senhor:
– Ande lá, Senhorinha, que eu ajudo. Um rei é um homem como qualquer homem.
– Credo! faz muita diferença... mesmo muita... Ela descobriu a travessa a rir-se:
– Vossa Majestade diz que gosta..
– Sardinhas de escabeche? Se gosto!... Vamos a elas, que estão a dizer – comeime. E atirou-se às sardinhas com uma sofreguidão pelintra.
Depois, serviu-lhe rodelas de salpicão com ovos. Sua Majestade gostava muito destas comezanas nacionais. Já tinha comido tripas, e dizia que no exílio se lembrara muitas vezes desta saborosa iguaria com feijão branco e chispe, que tinha comido em Braga. O abade de Calvos sensibilizava-se até às lágrimas quando via el-rei a esbrugar uma unha de porco e a limpar as régias barbas oleosas das gorduras suínas. O terceiro prato era vitela assada. A Senhorinha trazia-lha no espeto, porque Sua Majestade gostava de ir trinchando finas talhadas, enquanto a cozinheira, de cócoras ao pé do fogareiro, conservava o espeto sobre o brasido, a rechinar, a lourejar. Bebeu harmonicamente o real hóspede um vinho branco antigo, da lavra de um fidalgo de Braga, proprietário do Douro, que estava no segredo do ditoso abade de Calvos – capelão-mor de el-rei e dom prior eleito de Guimarães.
A criada assistia muito jovial àquela deglutição formidável, e dizia particularmente ao abade: – Este senhor, pelo que come, parece que tem passado muitas fominhas! Ninguém há-de crer o que Sua Majestade atafulha naquele bandulho! – e dizia que lhe dava vontade de chorar, lembrando-se das lazeiras que ele tinha apanhado; porque o abade contava que lera no Deus o quer, do visconde de Arlincourt, que o Sr. D. Miguel, em Roma, não tinha às vezes 10 réis de seu para almoçar uma xícara de leite. E, perguntando a el-rei se era verdade aquilo – que sim, que chegara a essa extremidade; mas que preferia a fome a ceder os seus direitos e a felicidade dos seus vassalos pelos sessenta contos anuais que lhe ofereceram da Casa do Infantado, e que ele rejeitara.
Por fim, vinha o café. As fatias eram torradas ali, no fogareiro. Sua Majestade barrava-as de manteiga nacional – preferia a manteiga do seu Pais, como a vitela, e o lombo do porco no salpicão português, e o pé do porco nas tripas também portuguesas – tudo do seu País. Que rei, que patriota! – meditava o abade de Priscos, bispo eleito de Coimbra, esmoncando-se e aparando as lágrimas ternas no alcobaça.
No fim do copioso almoço, el-rei fumava charutos espanhóis, de contrabando; desabotoava o colete, dava arrotos, repoltreava-se na cadeira de sola um pouco desconfortável, e vaporava grande colunas de fumo que se espiralavam até ao tecto.
A Senhorinha veio à beira de el-rei, e disse baixinho:
– Saberá Vossa Majestade que está ali o Sr. Trocatles.
– O...?
– Ai! já me esquecia... o Senhor Visconde..
– Que suba.
O sujei-to que entrou era o Torcato Nunes, uni sargento do exército realista, de São Gens. O rei ergueu-se e fecharam-se na alcova.
A cozinheira dizia em baixo à outra criada de fora:
– Ó coisa! Mal diria eu que ainda havia de chamar visconde ao safardana do Trocatles! E a outra, benzendo-se:
– Não que ele, o mundo sempre dá voltas! Veja você! aquele moinante que me pediu uma vez dois patacos para cigarros, e por sinal que nunca mos pagou!
– Pois vês aí! Foi ele o primeiro que conheceu o Sr. D. Miguel, é o que foi, e Sua Majestade gosta muito dele. Foi feliz o diabo do homem! Aquilo vai a governo, tu verás; e já ouvi dizer que o sobrinho dele, o padre Zé da Eira, o de Rio Caldo, que é zanagra, está cónego. Limparam-se da carepa, é o que é. A mulher dele já botou no domingo passado a sua saia e jaqué de pano azul.
– E que rico pano!
– Pois vês aí...
Entrava nesta conjuntura o abade, esfadigado, suarento – que levasse o Diabo a freguesia, que pouco tempo havia de aturar maçadas daquelas, para confessar uma bêbeda de uma velha que tinha bebido de mais na feira da Póvoa e caíra de um valado abaixo. E ele? – perguntava – almoçou bem?
– Ora! não há que perguntar, senhor! Aquilo, salvo seja, é como a cal de uma azenha. É quanto lhe deitarem para a tripa. Coisa assim! Subiu agora para lá o Munes. Ai! já me esquecia, é Senhor Abade! Olhe que na vila já perguntaram se cá na casa estavam hóspedes, porque vinham para cá muitas comidas. Que não vão eles pegar a desconfiar.. Esta pergunta à moça traz água no bico.
– E tu que respondeste, moça?
– Que vinham por cá jantar uns senhores padres, que agora era tempo de confesso...
– Andaste bem.
Quando o padre Marcos Rebelo subia à sala, pedindo licença a meio da escada, já o rei e o visconde vinham saindo da alcova – um, aprumado na atitude da majestade, o outro, na do respeito, muito composto.
– Pede licença na sua casa, Dom Prior? – disse el-rei.
O Dom Prior de Guimarães genuflectiu a perna direita; o soberano apressou-se a erguê-lo.
– Nada de etiquetas, já lho disse dúzias de vezes.
– Não posso nem devo proceder de outra maneira, senhor!
– Pode e deve que o mando eu.
E o abade, inclinando-se com os braços em cruz sobre a batina:
– Saberá Vossa Majestade que o Sr. Capitão-Mor de Santa Marta, a quem Vossa Real Majestade fez barão de Bouro...
– Bem sei... aquele amável cavalheiro...
– Perfeito cavalheiro – atestou o Nunes.
– Escreveu-me a carta que tenho a honra de depositar nas mãos de Vossa Majestade. El-rei leu alto:
Amigo Dom Prior de Guimarães. – Um realista do concelho de Famalicão chegou há pouco a esta casa, a fim de que eu escrevesse ao meu nobre e velho amigo para obter de S. M. licença para lho apresentar como portador de uma carta do Sr. Vasco Cerveira Lobo, morgado de Quadros, e tenente-coronel que foi do regimento de dragões de Chaves. Diz ele que o Sr. D. Miguel fora amigo pessoal do dito tenentecoronel, e por isso entende, e eu também, que será muito do real agrado do nosso rei e senhor receber a carta deste legitimista que nos pode ser muito útil, já pelo seu nome, como também pela sua riqueza. Ouvidas as ordens de S. M. F., queira transmitir-mas...
– Estou-me recordando – dizia o príncipe pausando as suas reminiscências – Cerveira Lobo.., tenente- coronel de dragões... O Cerveira, o meu amigo Cerveira...
– Que foi prisioneiro na Chamusca, quando o Urbano se passou para os liberais, com a cavalaria e mais o coronel de dragões, o Albuquerque – lembrou o Nunes, o visconde Munes –, Vossa Majestade lembra-se?
– Perfeitamente. Dom Prior, queira escrever ao barão a dizer-lhe que espero ansiosamente a carta do meu amigo Cerveira.
Enquanto o abade ia ao seu quarto escrever, o hóspede disse ao ouvido do outro:
– Isto cone mal..
– Porquê?
– Se o homem cá vem, o meu grande amigo.
– Recebe-lo como o teu grande amigo...
– Se me fala em particularidades...
– Ele não sabe falar em particularidades. É uma besta, muito rico, e disse-me o morgado do Tanque, de Braga, seu primo, que está sempre bêbedo. Nem ele cá vem, tu verás... Eu até acho que as coisas correm perfeitamente. – Ouviam-se os passos do abade. – Tem dinheiro, ele tem muito dinheiro, ouviste?
Entrou o abade.
– Só duas palavras. – E leu: – Sua Majestade recebe com muito prazer a carta do Sr. Tenente-Coronel Cerveira Lobo.
– Muito bem – aprovou el-rei. – Hoje à noite, com todos os resguardos que urgem as cautelas.
– Um homem, o Caneta de Braga, o chapeleiro, com uma carta – anunciou Senhorinha – só a entrega em mão própria ao Senhor Abade.
Que entrasse.
O rei e o visconde meteram-se à alcova, simulando receios.
Era uma carta do abade de Priscos, bispo eleito de Coimbra. Tinha a honra de enviar a el-rei cem peças, donativo que as senhoras Botelhas, de Braga, ofereciam de joelhos a S. M. F., e diziam que todos os seus haveres estavam às ordens de el-rei seu senhor.
E entregou dois grossos cartuchos, cintados por fitas cruzadas de seda escarlate. E o Caneta muito pontual:
– Queria um recibinho, se lhe não custa, reverendo Senhor Abade.
– Venha daí que eu passo-lhe o recibo.
Os dois saíram da alcova. Os rolos estavam sobre a mesa. Eles tinham ouvido falar em recibo. O visconde Nunes, esgazeando os olhos, foi apalpar o embrulho, e muito baixinho:
– Arame! Pesa que tem diabo! É ouro! Começa a pingadeira! Vês?
O outro arregalou os olhos e deitou a língua de fora quanto lhe foi possível. Nem parecia um rei!

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