sexta-feira, 9 de julho de 2021

Contos do Sábado na Usina: Olavo Bilac: A COSTURA :



Tão bonita, tão bem feita, dona de tão lindos olhos e de formoso sorriso, a Maroca, — mas tão tola!... Aos dezessete anos, tinha a ingenuidade das crianças de mama; e o seu coração só entendia o amor dos gatos, das bonecas, de quantos brinquedos inocentes podem interessar a alma de uma criança. A mãe, lavadeira e engomadeira de fama, dizia sempre ao seu compadre e vizinho Manoel Tesoura, — alfaiate de bairros: 
— Olhe, compadre! Esta é que não me dá trabalho nenhum: a pobre pequena nem sabe o que é namorar! Quando a deixo em casa com o irmão pequeno, saio com a alma tão tranqüila como se a deixasse guardada por todo um batalhão... Virtude e inocência até ali, compadre! 
E o Manoel Tesoura, piscando o olho, respondia: 
— Assim é que elas se querem, comadre, assim é que elas se querem... Isto de raparigas, — quanto mais sabidas, mais difíceis de guardar... 
De fato, quando a velha ia ao rio lavar a sua roupa, a Maroca ficava sozinha, brincando com o irmão, o Antonico, que só tinha seis anos. E tão inocente era ela como ele. E, às vezes, o Manoel Tesoura vinha ali passar um bocado de tempo a conversar com a rapariga, e trazia a sua agulha, e as suas fazendas, e as suas linhas, e ficava a admirar aquela mocidade e aquela inocência. 
E foi um dia, a velha lavadeira, ao voltar do rio com a roupa molhada, achou sozinho em casa o pequeno, que dormia. Chamou: 
— Maroca! Maroca! 
Nada... Saiu, foi à casa do alfaiate, bateu à porta: 
— Compadre! compadre! 
Nada... Já preocupada, voltou a casa, acordou o Antonico: 
— Que é da mana, filho? 
E o pequeno, estremunhado: 
— Mana saiu, foi-se embora com seu Manoel... Seu Manoel coseu ela, coseu, coseu, e depois disse a ela que era mais melhor ir-se embora juntos, por que mamãe não havia de gostar de ver ela cosida... 
— Cosida? Como foi que seu Manoel podia coser a mana, filho? 
— Coseu, mamãe, coseu bem cosida, sim senhora. Coseu bem cosida com uma agulha muito grossa... Até seu Manoel coseu ela com dois novelos de linha! 
Até seu Manoel me pediu que eu suspendesse os novelos dele, mamãe!...

Contos do Sábado na Usina: Moacyr Scliar: Zap:


 


Não faz muito que temos esta nova TV com controle remoto, mas devo dizer que se trata agora de um instrumento sem o qual eu não saberia viver. Passo os dias sentado na velha poltrona, mudando de um canal para outro - uma tarefa que antes exigia certa movimentação, mas que agora ficou muito fácil. Estou num canal, não gosto - zap, mudo para outro. Não gosto de novo - zap, mudo de novo. Eu gostaria de ganhar em dólar num mês o número de vezes que você troca de canal em uma hora, diz minha mãe. Trata-se de uma pretensão fantasiosa, mas pelo menos indica disposição para o humor, admirável nessa mulher. Sofre, minha mãe. Sempre sofreu: infância carente, pai cruel etc. Mas o seu sofrimento aumentou muito quando meu pai a deixou. Já faz tempo; foi logo depois que nasci, e estou agora com treze anos. Uma idade em que se vê muita televisão, e em que se muda de canal constantemente, ainda que minha mãe ache isso um absurdo. Da tela, uma moça sorridente pergunta se o caro telespectador já conhece certo novo sabão em pó. Não conheço nem quero conhecer, de modo que - zap - mudo de canal. "Não me abandone, Mariana, não me abandone!" Abandono, sim. Não tenho menor remorso, em se tratando de novelas: zap, e agora é um desenho, que eu já vi duzentas vezes, e - zap - um homem falando. Um homem, abraçado à guitarra elétrica, fala a uma entrevistadora. É um roqueiro. Aliás, é o que está dizendo, que é um roqueiro, que sempre foi e sempre será um roqueiro. Tal veemência se justifica, porque ele não parece um roqueiro. É meio velho, tem cabelos grisalhos, rugas, falta-lhe um dente. É o meu pai. É sobre mim que fala. Você tem um filho, não tem?, pergunta a apresentadora, e ele, meio constrangido - situação pouco admissível para um roqueiro de verdade -, diz que sim, que tem um filho, só que não o vê há muito tempo. Hesita um pouco e acrescenta: você sabe, eu tinha de fazer uma opção, era a família ou o rock. A entrevistadora, porém, insiste chata, ela): mas o seu filho gosta de rock? Que você saiba, seu filho gosta de rock? Ele se mexe na cadeira; o microfone, preso à desbotada camisa, roça-lhe o peito, produzindo um desagradável e bem audível rascar. Sua angústia é compreensível; aí está, num programa local e de baixíssima audiência - e ainda tem de passar pelo vexame de uma pergunta que o embaraça e à qual não sabe responder. E então ele me olha. Vocês dirão que não, que é para a câmera que ele olha; aparentemente é isso, aparentemente ele está olhando para a câmera, como lhe disseram para fazer; mas na realidade é a mim que ele olha, sabe que em algum lugar, diante de uma tevê, estou a fitar seu rosto atormentado, as lágrimas me correndo pelo rosto; e no meu olhar ele procura a resposta à pergunta da apresentadora: você gosta de rock? Você gosta de mim? Você me perdoa? - mas aí comete um erro, um engano mortal: insensivelmente, automaticamente, seus dedos começam a dedilhar as cordas da guitarra, é o vício do velho roqueiro, do qual ele não pode se livrar nunca, nunca. Seu rosto se ilumina - refletores que se acendem? - e ele vai dizer que sim, que seu filho ama o rock tanto quanto ele, mas nesse momento - zap - aciono o controle remoto e ele some. Em seu lugar, uma bela e sorridente jovem que está - à exceção do pequeno relógio que usa no pulso

- nua, completamente nua.


Contos do Sábado na Usina: Marina Colasanti :A nova dimensão do escritor Jeffrey:


Quando o coágulo de sangue explodiu na cabeça de Jeffrey Curtam, algo nele foi cortado, como uma mangueira ou um caule. E o seu pensamento viu-se subitamente decepado do corpo. Sem espanto, porque a dor lancinante não teve sequer o tempo de traduzir-se em grito antes que aquela estranha guilhotina o truncasse na boca. Passado isso, nada mais havia a não ser a nova dimensão. 
- O Dr. Jewett acha que não há esperança - repetia a enfermeira em voz baixa, aos eventuais visitantes. - O Sr. Curtam poderá viver indefinidamente, mas não tornará a ver. Nem se mexerá, nem pensará. Apenas respirará. 
De fato, Jeffrey respirava. Os pulmões, egoisticamente alheios à situação do restante do corpo, continuavam exercendo sua tarefa com a mesma fiel regularidade com que durante tantos anos lhe haviam fornecido aquele ar indispensável para que se levantasse a cada manhã, e a cada manhã se barbeasse dando a partida para mais um dia, que haveria de catapultá-lo da mesa de refeições para a mesa de trabalho, diante da máquina de escrever e dos contos que produzia para alimentar o próprio corpo, e com ele os próprios pulmões encarregados de fornecer aquele ar indispensável para. Jeffrey teria ficado orgulhoso dos seus pulmões, se apenas se desse conta de que funcionavam, ou sequer de que os tinha. Mas, apesar do corpo de Jeffrey continuar possuindo pulmões e outros órgãos em perfeito estado de funcionamento, seu cérebro os desconhecia e comportava-se como se deles não necessitasse. Assim como não necessitava da visão ou da audição. Cortadas as ligações que o haviam ancorado ao resto do corpo, o cérebro de Jeffrey Curtam não dava mais ordens. E os médicos, enganados pelo silêncio dessa voz de comando, haviam decretado sua morte, entretanto, emparedado na caixa craniana cujos orifícios a ruptura havia vedado com sangue espesso como chumbo, o cérebro pensava. Talvez fosse mais correto dizer que luzia. Pois nada do que havia vivido até então se assemelhava à luz límpida e pura por ele agora gerada na óssea escuridão da sua caverna. Jeffrey Curtam havia-se livrado para sempre da escravidão da coerência. Sua mente, solta, tudo se permitia, tudo realizava. 
Aos poucos, a camada de pintura branca que cobria a casa de Jeffrey entrou em entendimento definitivo com o sol e com a chuva, fundindo sua obediência a ambos numa única tonalidade cinzenta, que somente sob as calhas permitia-se escurecer. Começou a descascar. Enormes escamas quebradiças 
abriam-se feito conchas na velha superfície, entregando a madeira ao tempo, sem que pérola rolasse. 
Crescia a grama ao redor, manchada aqui e acolá pelas lascas mais frágeis que em constante outono desprendiam-se das paredes e caíam volteando, enquanto na imobilidade do corpo de Jeffrey, outro movimento se processava. Vinda dos pés - ou seria da nuca? - a paralisia que já lhe havia tomado os membros rastejava por dentro, buscando alcançar-lhe o coração. Na cidadezinha, todos se referiam a ele como se já estivesse morto. E todas as manhãs, sua mulher o barbeava e lavava, mudando-o, ela mesma, da cama para a cadeira e da cadeira para a cama, falando-lhe como se fala a um cão amigo, embora sem ter sequer a esperança da resposta ou reconhecimento de que um cão é capaz. Nada lhe vinha daquele corpo, além do hábito. Mas Roxanne falava sem esforço, com a mesma doçura dos primeiros dias, evitando perguntar-se se o fazia para evitar seu próprio silêncio ou se para preencher com suas palavras o silêncio que dele parecia emanar. Sem que ela pudesse ouvir, por trás dos cabelos ralos e quase brancos, por trás da pele apergaminhada, por trás da espessa barreira dos ossos, um silêncio cheio de sons e palavras tecia sua sinfonia no cérebro de Jeffrey. Nunca mais ele havia precisado se expressar de forma audível ou legível. Nunca mais ele havia pensado para outros. Pensando só para si, seguia o fio sinuoso e inquebrável dos seus desejos, deixando-se escorrer por ele como em água, sem saltos ou fraturas. A fabulação, que havia sido sua forma de viver, tornava-se sua vida. E ali deitado, imóvel, Jeffrey criava e costurava, uma após a outra, as imagens da longa narrativa. Um neurologista - fama convocada para validar o que vários outros já haviam afirmado - tentou convencer Roxanne de que era inútil dispensar tamanho cuidado ao enfermo. "Se Jeffrey tivesse consciência do seu estado", disse em voz autoritariamente piedosa, "desejaria morrer. Desejaria libertar-se da prisão do próprio corpo. Mas Jeffrey não desejava morrer. Assim como não desejava livrar-se do próprio corpo. Esse corpo que, sem movimentos, atrofiava-se aos poucos sobre a cama, não lhe era prisão. Nem lhe fazia falta. Antes, havia sido necessário ocupar-se dele, vigiar seus alarmas, suas dores, seus sintomas, lutar diariamente para atender sua fome inesgotável, protegê-lo. Antes havia sido imperioso servi-lo, e às suas exigências. Talvez então lhe fosse mais prisão do que agora, quando, impedido o contato entre o pensamento e suas carnes, eram elas que o serviam. 
De alguma forma, poderia-se dizer que Jeffrey não tinha consciência do seu estado. Mas isso, não porque estivesse impedido de percebê-lo. E sim porque, na longa travessia na qual seu pensamento estava empenhado, o fato de não falar ou mover-se parecia tão menor que se via excluído. Jamais, olhando o vivo cadáver do marido, suspeitaria Roxanne da intensa movimentação que o habitava. Sem gesto que o cansasse, Jeffrey não dormia, seu estado era um só. E nesse estado, de absoluta entrega e absoluta atenção, ele mudava de tempo e de país, dialogava com os vivos e agia com os mortos, dançava como nunca havia dançado, cavalgava, respirava no fundo da água, e voava, voava. Longas vezes, enfastiado talvez da tanta agitação, o cérebro de Jeffrey deixava-se ficar, girando apenas ao redor de um pensamento, envolvendo-o nos fios prateados das suas idéias, aprumando-lhe as formas e o sentido, até ve-lo crescer, tão intenso como se a vida não lhe tivesse sido dada ali, mas apenas explodisse naquele momento, carga milenar que desde sempre trazia consigo. Erguiam-se então na pálida atmosfera do quarto as invisíveis torres, e os sinos badalavam ensurdecedores no cérebro de Jeffrey. Sem que seu som cortasse o ar pesado do cheiro de remédios. Os anos haviam devorado o seguro de Jeffrey. Roxanne fora obrigada a vender uma parte da terra atrás da casa, depois a abrir mão de uma faixa de jardim à direita. Uma hipoteca tornara-se inevitável. E no entanto, como nos primeiros dias, quando a doença se manifestara e ainda parecia possível reverter o destino, ela continuava a amar o marido. Amava, em verdade, aquele homem que havia antes, e que ela teimava em sobrepor a esta pálida coisa cada dia menor e mais leve, coisa quase humana que ainda transportava da cama para a cadeira e da cadeira para a cama, como se carregasse um fardo ou um feto. 
- Que mais posso eu fazer? - perguntava-se puxando de leve as cortinas, não fosse o sol bater sobre o pobre rosto que, único movimento perceptível, parecia voltar-se sempre em direção à luz. Uma luz quente derramava-se sobre as imagens dos pensamentos de  Jeffrey, naquela tarde em que, pela primeira vez depois de tanto tempo, sentiu que seu corpo o chamava. Desobstruíam-se os ouvidos, sons alheios aos seus lhe chegavam como ruído de cachoeira, ou vento, ou cantoria. As placas ósseas da sua fronte, as maçãs do seu rosto abriam-se como batentes empurrados por dentro e o sol, com intensidade nunca antes alcançada, vinha expulsá-lo da caverna. 
O fio do pensamento de Jeffrey lançou-se para aquela luz.  Roxanne, que cochilava na cadeira ao pé da cama, acordou sobressaltada.  Estendeu a mão para tocar o marido. Não foi preciso. Antes mesmo  de olhá-lo, soube que estava sozinha na casa. Recolheu a mão ao colo, segurou-a com a outra, e deixou-se ficar. O sol se pôs. O perfume dos lilases pareceu enlouquecer as cigarras, o coaxar das rãs pairou sobre o peitoril da janela.  Só então Roxanne levantou-se.


Contos do Sábado na Usina: Machado de Assis: IV - LATET ANGUIS:




O passeio da baronesa durou pouco mais de meia hora. O sol começava a aquecer, e apesar de ser bastante sombreada a chácara, o calor aconselhava à boa senhora que se recolhesse. Guiomar deu-lhe o braço, e ambas, seguindo pelo mesmo caminho, guiaram para casa. 
— Parece muito tarde, Guiomar, disse a baronesa ao cabo de alguns segundos. 
— E é, madrinha. Demorei-me hoje mais do que costumo, por causa de um encontro que tive aqui na chácara. 
— Um encontro? 
— Um homem. 
— Algum ladrão? perguntou a madrinha parando. 
— Não, senhora, respondeu Guiomar sorrindo, não era ladrão. A minha mestra de colégio... sabe que morreu? 
— Quem disse isso? 
— O sobrinho, o tal sujeito que encontrei aqui hoje. 
— Você está zombando comigo! Um homem na chácara? 
— Não era bem na chácara, mas no jardim do Dr. Luís Alves. Estava encostado à cerca; trocamos algumas palavras. 
A baronesa olhou para ela alguns segundos. 
— Mas, menina, isso não é bonito. Que diriam se os vissem?... Eu não diria nada, porque conheço o que você vale, e sei a discrição que Deus lhe deu. — Mas as aparências... Que qualidade de homem é esse sobrinho? 
Interrompeu- as uma mulher de quarenta e quatro a quarenta e cinco anos, alta e magra, cabelo entre louro e branco, olhos azuis, asseadamente vestida, a Sra. Oswald, — ou mais britanicamente, Mrs. Oswald, — dama de companhia da baronesa, desde alguns anos. Mrs. Oswald conhecera a baronesa em 1846; viúva e sem família, aceitou as propostas que esta lhe fez. Era mulher inteligente e sagaz, dotada de boa índole e serviçal. Antes da ida de Guiomar para a companhia da madrinha, era Mrs. Oswald a alma da casa; a presença de Guiomar, que a baronesa amava extremosamente, alterou um pouco a situação. 
— São nove horas! disse de longe a inglesa; pensei que hoje não queriam voltar para casa. O calor está forte; e a senhora baronesa sabe que não é conveniente expor-se aos ardores do sol, sobretudo neste tempo de epidemias. 
— Tem razão, Mrs. Oswald; mas Guiomar tardou hoje tanto em ir buscar-me, que o passeio começou tarde. 
— Por que me não mandou chamar? 
— Estava talvez a dormir, ou entretida com o seu Walter Scott... 
— Milton, emendou gravemente a inglesa; esta manhã foi dedicada a Milton. Que imenso poeta, D. Guiomar! 
— Tamanho como este calor, observou Guiomar sorrindo. Apertemos o passo e lá dentro a ouviremos com melhor disposição. 
Foram as três andando, subiram a escada e entraram na sala de jantar, que era vasta, com seis janelas para a chácara. Dali seguiram para uma saleta, onde a baronesa sentou-se na sua poltrona, a escapar a hora do almoço. Guiomar saiu para ir cuidar da toilette; e a baronesa que desde alguns minutos estivera cabisbaixa e pensativa, olhou fixamente para Mrs. 
Oswald, sem dizer palavra. 
Era ela uma senhora de cinqüenta anos, refeita, vestida com esse alinho e esmero da velhice, que é um resto da elegância da mocidade. Os cabelos, cor de prata fosca, emolduravam-lhe o rosto sereno, algum tanto arrugado, não por desgostos, que os não tivera, mas pelos anos. Os olhos luziam de muita vida, e eram a parte mais juvenil do rosto. 
Tendo casado cedo, coube-lhe a boa fortuna de ser igualmente feliz desde o dia do noivado até o da viuvez. A viuvez custara-lhe muito; mas já lá iam alguns anos, e da crua dor que tivera ficara-lhe agora a consolação da saudade. 
— Chegue-se mais perto; preciso falar-lhe a sós, disse ela à inglesa, que se achava a alguns passos de distância. 
Mrs. Oswald foi até a porta espreitar se viria alguém e voltou a sentar-se ao pé da baronesa. A baronesa estava outra vez pensativa, com as mãos cruzadas no regaço e os olhos no chão. 
Estiveram as duas ali silenciosas alguns dois ou três minutos. A baronesa despertou enfim das reflexões, e voltou-se para a inglesa: 
— Mrs. Oswald, disse ela, parece estar escrito que não serei completamente feliz. Nenhum sonho me falhou nunca; este, porém, não passará de sonho, e era o mais belo de minha velhice. 
— Mas por que desespera? disse a inglesa. Tenha ânimo, e tudo se há de arranjar. Pela minha parte, oxalá pudesse contribuir para a completa felicidade desta família, a quem devo tantos e tamanhos benefícios. 
— Benefícios! 
— E que outra coisa são os seus carinhos, a proteção que me tem dado, a confiança... 
— Está bom, está bom, interrompeu afetuosamente a baronesa; falemos de outra coisa. 
— Dela, não é? Diz-me o coração que com alguma paciência tudo se alcançará. Todos os meios se hão de tentar; e todos eles são bons se se trata de fazer a felicidade sua e dela. Bem está o que bem acaba, disse um poeta nosso, homem de juízo. Por enquanto só vejo um obstáculo: a pouca disposição... 
— Só esse? 
— Que outro mais? 
— Talvez outro, disse a baronesa abaixando a voz; pode ser que não, mas tão infeliz sou neste meu desejo, que há de vir a ser obstáculo, talvez. 
— Mas que é? 
— Um homem, um moço, não sei quem, sobrinho da mestra que foi de Guiomar... Ela mesma contou-me tudo há pouco. 
— Tudo o quê? 
— Não sei se tudo; mas enfim disse-me que, estando a passear na chácara, vira o tal sobrinho da mestra, junto à cerca do Dr. Luís Alves, e ficara a conversar com ele. Que será isto, Mrs. Oswald? Algum amor que continua ou recomeça agora, — agora, que ela já não é a simples herdeira da pobreza de seus pais, mas a minha filha, a filha do meu coração. 
A comoção da baronesa ao proferir estas palavras era tal, que Mrs. 
Oswald pegou-lhe afetuosamente das mãos e procurou confortá-la com outras palavras de esperança e confiança. Disse-lhe, além disso, que o simples conversar com esse homem, que aliás nenhuma delas conhecia, não era razão para supor uma paixão anterior. 
— Enfim, concluiu a inglesa, custa-me crer que ela ame a alguém neste mundo. Por enquanto estou que não gosta de ninguém, e a nossa vantagem não é outra senão essa. Sua afilhada tem uma alma singular; passa facilmente do entusiasmo à frieza, e da confiança ao retraimento. Há de vir a amar, mas não creio que tenha grandes paixões, ao menos duradouras. Em todo o caso, posso responder-lhe atualmente pelo seu coração, como se tivesse a chave na minha algibeira. 
A baronesa abanou a cabeça. 
— Quanto a esse homem, continuou Mrs. Oswald, saberemos quem é ele, e que relações de afeto houve no passado. 
— Parece-lhe possível? 
— Naturalmente! 
A inglesa proferiu esta única palavra com a segurança necessária para serenar o ânimo da boa senhora, que ficou algum tempo a olhar pasnada para ela, como quem refletia. 
— Há ocasiões, disse enfim a baronesa ao cabo de alguns segundos de silêncio, há ocasiões em que eu quase chego a sentir remorsos do amor que tenho a Guiomar. Ela veio preencher na minha vida o vácuo deixado por aquela pobre Henriqueta, a filha das minhas entranhas, que a morte levou consigo, para mal de sua mãe. Se havia de ser infeliz, melhor é que a chore morta, com a esperança de a ir encontrar no céu. Mas não lhe quis mais, nem talvez tanto, como a esta criança, que levei à pia, e de quem Deus me fez mãe... 
A baronesa calou-se; ouvira passos no corredor. 
Guiomar, embora tivesse ido vestir-se e aprimorar-se, com tão singelos meios o fizera, que não desdizia daquele matinal desalinho em que o leitor a viu no capítulo anterior. O penteado era um capricho seu, expressamente inventado para realçar a um tempo a abundância dos cabelos e a senhoril beleza da testa. As pontas bordadas de um colarinho de cambraia dobravam-se faceiramente sobre o azul do vestido de glacê, talhado e ornado com uma simplicidade artística. Isto, e pouco mais, era toda a moldura do painel, — um dos mais belos painéis que havia por aqueles tempos em toda a Praia de Botafogo. 
— Viva a minha rainha de Inglaterra! exclamou Mrs. Oswald quando a viu assomar à porta da saleta. 
E Guiomar sorriu com tanta satisfação e gozo ao ouvir-lhe esta saudação familiar, que um observador atento hesitaria em dizer se era aquilo simples vaidade de moça, ou se alguma coisa mais. 
A baronesa pôs os olhos na afilhada, uns olhos amorosos e tristes, em que a moça reparou, e que a tornaram séria durante alguns rápidos segundos. Mas sorriu depois; e pegando das mãos da madrinha deu-lhe dois beijos no rosto, com tanta ternura e tão sincera, que a boa senhora sorriu de contentamento. 
— Não precisa falar, disse Guiomar, já sei que me acha bonita. É o que me diz todos os dias, com risco de me perder, porque se eu acabo vaidosa, adeus, minhas encomendas, ninguém mais poderá comigo. 
Guiomar disse isto com tanta graça e singeleza, que a madrinha não pôde deixar de rir, e a melancolia acabou de todo. A sineta do almoço chamou-as a outros cuidados, e a nós também, amigo leitor. Enquanto as três almoçam, relanceemos os olhos ao passado, e vejamos quem era esta Guiomar, tão gentil, tão buscada e tão singular, como dizia Mrs. Oswald.

Contos do Sábado na Usina: João Silvério Trevisan: Dois corpos que caem:



Por simples acaso, dois desconhecidos encontraram-se despencando juntos do alto do Edifício Itália, no centro de São Paulo.

-   Oi - disse o primeiro, no alvoroçado início da queda. - Eu me chamo João. E você?

-   Antônio - gritou o segundo, perfurando furiosamente o espaço. E, só pra matar o tempo do mergulho, começaram a conversar.

-   O que você faz aqui? - perguntou Antônio.

-   Estou me matando - respondeu João. - E você?

-   Que coincidência! Eu também. Espero que desta vez dê certo, porque é minha décima tentativa. anos venho tentando. Mas tem sempre um amigo, um desconhecido e até bombeiro que impede. Você afinal está se matando por quê?

-   Por amor - respondeu João, sentindo o vento frio no rosto. - Eu, que amava tanto, fui trocado por um homem de olhos azuis. Infelizmente só tenho estes corriqueiros olhos castanhos...

-   E não lhe parece insensato destruir a vida por algo tão efêmero como o amor? - ponderou Antônio, sentindo a zoada que o acompanhava à morte.

-   Justamente. Trata-se de uma vingança da insensatez contra a lógica

-   gritou João num tom quase triunfante. - Em geral é a vida que destrói o amor. Desta vez, decidi que o amor acertaria contas com a vida!

-   Poxa - exclamou Antônio - você fez do amor uma panacéia!

-   Antes fosse - replicou João, com um suspiro. - Duvidoso como é, o amor me provocou dores horríveis. Nunca se sabe se o que chamamos amor é desamparo, solidão doentia ou desejo incontrolável de dominação. O que na verdade me seduz é que o amor destrói certezas com a mesma incomparável transparência com que o caos significante enfrenta a insignificância da ordem. Não, o amor não é solução para a vida. Mas é culminância. Morrer por ele me trouxe paz. Ante o vertiginoso discurso, ambos tentaram sorrir contra a gravidade.

-   E você, como se sente? - perguntou João a Antônio.

-   Oh, agora estou plenamente satisfeito.

-   Então por que busca a morte?

-   Bom - respondeu Antônio - me assustou descobrir um fiasco primordial: que a razão tem demônios que a própria razão desconhece. Daí, preferi mergulhar de vez no mistério.

-   Sim, da razão conheço demasiados horrores. Mas que mistério é esse tão importante a ponto de merecer sua vida?

-   Não sei - respondeu Antônio. - Mistério é mistério.

-   Mas morto você não desvendará o mistério! - protestou João.

-   Por isso mesmo. O fundamental no mistério é aguçar contradições, e não desvendar. Matar-me, por exemplo, é bom na medida que me torna parte do enigma e, de certo modo, o agudiza. Tem a ver com a fé, que gera energias para a vida. Ou para a história, quem sabe...

-   Taí um negócio que perdi: a fé. Deus para mim... - e João engasgou.

-   Ora - revidou Antônio vivamente. - A fé nada tem a ver com Deus, que se reduziu a uma pobre estrela anã de energias tão concentradas que já nem sai do lugar. Deus desistiu de entender os homems, e virou também indagador. Sem Deus nem Razão, a única fé possível é mergulhar neste abismo do mistério total.

-   Mas para isso é preciso ao menos saber onde está o mistério - insistiu João com os cabelos drapejando ao vento.

-   Ué, o mistério está em mim, por exemplo, que me mato para coincidir comigo mesmo. Mas há mistério também em você: seu morrer de amor é o mais impossível ato de fé. Graças a ele, você participa do mistério. Porque se apaixonou pelos abismos. João olhou com olhos estatelados, ao compreender. E Antônio, que já faiscava na semi-realidade da vertigem, gritou com todas as forças:

-   Há sobretudo este mistério maior de estarmos, na mesma hora e local, cometendo o mesmo gesto absurdo e despencando para a mesma incerteza, por puro acaso. Além de cúmplices, a intensidade deste mergulho nos tornou visionários. Você não vê diante de si o desconhecido? É que já estamos perfurando a treva. E como tudo de fato reluzia, João também ergueu a voz:

-   Sim, sim. É espantoso o brilho do absurdo.

-   E agora - disse Antônio bem diante do rosto de João - falemos um pouco da permanência. Você gosta dos meus olhos azuis? Foi quundo os dois corpos se estatelaram na Avenida São Luiz.