sexta-feira, 9 de julho de 2021

Contos do Sábado na Usina: Machado de Assis: IV - LATET ANGUIS:




O passeio da baronesa durou pouco mais de meia hora. O sol começava a aquecer, e apesar de ser bastante sombreada a chácara, o calor aconselhava à boa senhora que se recolhesse. Guiomar deu-lhe o braço, e ambas, seguindo pelo mesmo caminho, guiaram para casa. 
— Parece muito tarde, Guiomar, disse a baronesa ao cabo de alguns segundos. 
— E é, madrinha. Demorei-me hoje mais do que costumo, por causa de um encontro que tive aqui na chácara. 
— Um encontro? 
— Um homem. 
— Algum ladrão? perguntou a madrinha parando. 
— Não, senhora, respondeu Guiomar sorrindo, não era ladrão. A minha mestra de colégio... sabe que morreu? 
— Quem disse isso? 
— O sobrinho, o tal sujeito que encontrei aqui hoje. 
— Você está zombando comigo! Um homem na chácara? 
— Não era bem na chácara, mas no jardim do Dr. Luís Alves. Estava encostado à cerca; trocamos algumas palavras. 
A baronesa olhou para ela alguns segundos. 
— Mas, menina, isso não é bonito. Que diriam se os vissem?... Eu não diria nada, porque conheço o que você vale, e sei a discrição que Deus lhe deu. — Mas as aparências... Que qualidade de homem é esse sobrinho? 
Interrompeu- as uma mulher de quarenta e quatro a quarenta e cinco anos, alta e magra, cabelo entre louro e branco, olhos azuis, asseadamente vestida, a Sra. Oswald, — ou mais britanicamente, Mrs. Oswald, — dama de companhia da baronesa, desde alguns anos. Mrs. Oswald conhecera a baronesa em 1846; viúva e sem família, aceitou as propostas que esta lhe fez. Era mulher inteligente e sagaz, dotada de boa índole e serviçal. Antes da ida de Guiomar para a companhia da madrinha, era Mrs. Oswald a alma da casa; a presença de Guiomar, que a baronesa amava extremosamente, alterou um pouco a situação. 
— São nove horas! disse de longe a inglesa; pensei que hoje não queriam voltar para casa. O calor está forte; e a senhora baronesa sabe que não é conveniente expor-se aos ardores do sol, sobretudo neste tempo de epidemias. 
— Tem razão, Mrs. Oswald; mas Guiomar tardou hoje tanto em ir buscar-me, que o passeio começou tarde. 
— Por que me não mandou chamar? 
— Estava talvez a dormir, ou entretida com o seu Walter Scott... 
— Milton, emendou gravemente a inglesa; esta manhã foi dedicada a Milton. Que imenso poeta, D. Guiomar! 
— Tamanho como este calor, observou Guiomar sorrindo. Apertemos o passo e lá dentro a ouviremos com melhor disposição. 
Foram as três andando, subiram a escada e entraram na sala de jantar, que era vasta, com seis janelas para a chácara. Dali seguiram para uma saleta, onde a baronesa sentou-se na sua poltrona, a escapar a hora do almoço. Guiomar saiu para ir cuidar da toilette; e a baronesa que desde alguns minutos estivera cabisbaixa e pensativa, olhou fixamente para Mrs. 
Oswald, sem dizer palavra. 
Era ela uma senhora de cinqüenta anos, refeita, vestida com esse alinho e esmero da velhice, que é um resto da elegância da mocidade. Os cabelos, cor de prata fosca, emolduravam-lhe o rosto sereno, algum tanto arrugado, não por desgostos, que os não tivera, mas pelos anos. Os olhos luziam de muita vida, e eram a parte mais juvenil do rosto. 
Tendo casado cedo, coube-lhe a boa fortuna de ser igualmente feliz desde o dia do noivado até o da viuvez. A viuvez custara-lhe muito; mas já lá iam alguns anos, e da crua dor que tivera ficara-lhe agora a consolação da saudade. 
— Chegue-se mais perto; preciso falar-lhe a sós, disse ela à inglesa, que se achava a alguns passos de distância. 
Mrs. Oswald foi até a porta espreitar se viria alguém e voltou a sentar-se ao pé da baronesa. A baronesa estava outra vez pensativa, com as mãos cruzadas no regaço e os olhos no chão. 
Estiveram as duas ali silenciosas alguns dois ou três minutos. A baronesa despertou enfim das reflexões, e voltou-se para a inglesa: 
— Mrs. Oswald, disse ela, parece estar escrito que não serei completamente feliz. Nenhum sonho me falhou nunca; este, porém, não passará de sonho, e era o mais belo de minha velhice. 
— Mas por que desespera? disse a inglesa. Tenha ânimo, e tudo se há de arranjar. Pela minha parte, oxalá pudesse contribuir para a completa felicidade desta família, a quem devo tantos e tamanhos benefícios. 
— Benefícios! 
— E que outra coisa são os seus carinhos, a proteção que me tem dado, a confiança... 
— Está bom, está bom, interrompeu afetuosamente a baronesa; falemos de outra coisa. 
— Dela, não é? Diz-me o coração que com alguma paciência tudo se alcançará. Todos os meios se hão de tentar; e todos eles são bons se se trata de fazer a felicidade sua e dela. Bem está o que bem acaba, disse um poeta nosso, homem de juízo. Por enquanto só vejo um obstáculo: a pouca disposição... 
— Só esse? 
— Que outro mais? 
— Talvez outro, disse a baronesa abaixando a voz; pode ser que não, mas tão infeliz sou neste meu desejo, que há de vir a ser obstáculo, talvez. 
— Mas que é? 
— Um homem, um moço, não sei quem, sobrinho da mestra que foi de Guiomar... Ela mesma contou-me tudo há pouco. 
— Tudo o quê? 
— Não sei se tudo; mas enfim disse-me que, estando a passear na chácara, vira o tal sobrinho da mestra, junto à cerca do Dr. Luís Alves, e ficara a conversar com ele. Que será isto, Mrs. Oswald? Algum amor que continua ou recomeça agora, — agora, que ela já não é a simples herdeira da pobreza de seus pais, mas a minha filha, a filha do meu coração. 
A comoção da baronesa ao proferir estas palavras era tal, que Mrs. 
Oswald pegou-lhe afetuosamente das mãos e procurou confortá-la com outras palavras de esperança e confiança. Disse-lhe, além disso, que o simples conversar com esse homem, que aliás nenhuma delas conhecia, não era razão para supor uma paixão anterior. 
— Enfim, concluiu a inglesa, custa-me crer que ela ame a alguém neste mundo. Por enquanto estou que não gosta de ninguém, e a nossa vantagem não é outra senão essa. Sua afilhada tem uma alma singular; passa facilmente do entusiasmo à frieza, e da confiança ao retraimento. Há de vir a amar, mas não creio que tenha grandes paixões, ao menos duradouras. Em todo o caso, posso responder-lhe atualmente pelo seu coração, como se tivesse a chave na minha algibeira. 
A baronesa abanou a cabeça. 
— Quanto a esse homem, continuou Mrs. Oswald, saberemos quem é ele, e que relações de afeto houve no passado. 
— Parece-lhe possível? 
— Naturalmente! 
A inglesa proferiu esta única palavra com a segurança necessária para serenar o ânimo da boa senhora, que ficou algum tempo a olhar pasnada para ela, como quem refletia. 
— Há ocasiões, disse enfim a baronesa ao cabo de alguns segundos de silêncio, há ocasiões em que eu quase chego a sentir remorsos do amor que tenho a Guiomar. Ela veio preencher na minha vida o vácuo deixado por aquela pobre Henriqueta, a filha das minhas entranhas, que a morte levou consigo, para mal de sua mãe. Se havia de ser infeliz, melhor é que a chore morta, com a esperança de a ir encontrar no céu. Mas não lhe quis mais, nem talvez tanto, como a esta criança, que levei à pia, e de quem Deus me fez mãe... 
A baronesa calou-se; ouvira passos no corredor. 
Guiomar, embora tivesse ido vestir-se e aprimorar-se, com tão singelos meios o fizera, que não desdizia daquele matinal desalinho em que o leitor a viu no capítulo anterior. O penteado era um capricho seu, expressamente inventado para realçar a um tempo a abundância dos cabelos e a senhoril beleza da testa. As pontas bordadas de um colarinho de cambraia dobravam-se faceiramente sobre o azul do vestido de glacê, talhado e ornado com uma simplicidade artística. Isto, e pouco mais, era toda a moldura do painel, — um dos mais belos painéis que havia por aqueles tempos em toda a Praia de Botafogo. 
— Viva a minha rainha de Inglaterra! exclamou Mrs. Oswald quando a viu assomar à porta da saleta. 
E Guiomar sorriu com tanta satisfação e gozo ao ouvir-lhe esta saudação familiar, que um observador atento hesitaria em dizer se era aquilo simples vaidade de moça, ou se alguma coisa mais. 
A baronesa pôs os olhos na afilhada, uns olhos amorosos e tristes, em que a moça reparou, e que a tornaram séria durante alguns rápidos segundos. Mas sorriu depois; e pegando das mãos da madrinha deu-lhe dois beijos no rosto, com tanta ternura e tão sincera, que a boa senhora sorriu de contentamento. 
— Não precisa falar, disse Guiomar, já sei que me acha bonita. É o que me diz todos os dias, com risco de me perder, porque se eu acabo vaidosa, adeus, minhas encomendas, ninguém mais poderá comigo. 
Guiomar disse isto com tanta graça e singeleza, que a madrinha não pôde deixar de rir, e a melancolia acabou de todo. A sineta do almoço chamou-as a outros cuidados, e a nós também, amigo leitor. Enquanto as três almoçam, relanceemos os olhos ao passado, e vejamos quem era esta Guiomar, tão gentil, tão buscada e tão singular, como dizia Mrs. Oswald.

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