"Releio passivamente, recebendo o que
sinto como uma inspiração e um livramento, aquelas
frases simples de Caeiro, na referência
natural do que resulta do pequeno tamanho de sua
aldeia. Dali, diz ele, porque é pequena,
pode ver-se mais do mundo do que da cidade; e por
isso a aldeia é maior que a cidade...
"Porque eu sou do tamanho do que
vejo
E não do tamanho da minha
altura."
Frases como estas, que parecem crescer sem
vontade que as houvesse dito, limpam-me de toda
a metafísica que espontaneamente acrescento
à vida. Depois de as ler, chego à minha janela
sobre a rua estreita, olho o grande céu e
os muitos astros, e sou livre com um esplendor alado
cuja vibração me estremece no corpo todo.
"Sou do tamanho do que vejo!"Cada
vez que penso esta frase com toda a atenção dos meus
nervos, ela me parece mais destinada a
reconstruir consteladamente o universo. "Sou do
tamanho do que vejo!" Que grande posse
mental vai desde o poço das emoções profundas até
às altas estrelas que se reflectem nele e,
assim, em certo modo, ali estão.
E já agora, consciente de saber ver, olho a
vasta metafísica objectiva dos céus todos com uma
segurança que me dá vontade de morrer
cantando. "Sou do tamanho do que vejo!" E o vago
luar, inteiramente meu, começa a estragar
de vago o azul meio-negro do horizonte.
Tenho vontade de erguer os braços e gritar
coisas de uma selvageria ignorada, de dizer
palavras aos mistérios altos, de afirmar
uma nova personalidade larga aos grandes espaços da
matéria vazia.
Mas recolho-me e abrando-me. "Sou do
tamanho do que vejo!" E a frase fica sendo-me a
alma inteira, encosto a ela todas as
emoções que sinto, e sobre mim, por dentro, como sobre a
cidade por fora, cai a paz indecifrável do
luar duro que começa largo com o anoitecer."
* * *
Do Livro do Desassossego - Bernardo Soares
Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa)
Fonte: http://www.cfh.ufsc.br/~magno/