sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

contos Do Sábado Na Usina:Monteiro Lobato:Negrinha:

Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha
escura, de cabelos ruços e olhos assustados.
Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos
cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre
escondida, que a patroa não gostava de crianças.
Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada
dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu.
Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali
bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo.
Uma virtuosa senhora em suma - "dama de grandes virtudes apostólicas,
esteio da religião e da moral", dizia o reverendo.
Ótima, a dona Inácia.
Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne
viva. Viúva sem filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne, e por
isso não suportava o choro da carne alheia. Assim, mal vagia, longe, na
cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa:
- Quem é a peste que está chorando aí?
Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da
criminosa abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos
do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões de desespero.
- Cale a boca, diabo!
No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre,
ou frio, desses que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer...
Assim cresceu Negrinha- magra, atrofiada, com os olhos eternamente
assustados. Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada
apontapés. Não compreendia a idéia dos grandes. Batiam-lhe sempre, por
ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra provocava
ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava. Com
pretextos de que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa
senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta.
- Sentadinha aí, e bico, hein?
Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas.
- Braços cruzados, já, diabo!
Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o
tempo corria. E o relógio batia uma, duas, três, quatro, cinco horas - um
cuco tão engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo abrir a janela e cantar as
horas com a bocarra vermelha, arrufando as asas. Sorria-se então por dentro,
feliz um instante.
Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar
trancinhas sem fim.
Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de
carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto
gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo -
não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo
houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande
novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim - por sinal que achou
linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que
não teria um gostinho só na vida - nem esse de personalizar a peste...
O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam
nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo. Sua pobre
carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões a mesma atração que o ímã
exerce para o aço. Mãos em cujos nós de dedos comichasse um cocre, era
mão que se descarregaria dos fluidos em sua cabeça. De passagem. Coisa de
rir e ver a careta...
A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha
da escravidão, fora senhora de escravos - e daquelas ferozes, amigas de ouvir
cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo - essa
indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia! "Qualquer
coisinha": uma mucama assada ao forno porque se engraçou dela o senhor;
uma novena de relho porque disse: "Como é ruim, a sinhá!"...
O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da
alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis.
Inocente derivativo:
- Aí! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...
Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade.
Cocres: mão fechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco
do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a concha (bom! bom!
bom! gostoso de dar) e o a duas mãos, o sacudido. A gama inteira dos
beliscões: do miudinho, com a ponta da unha, à torcida do umbigo,
equivalente ao puxão de orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos,
pontapés e safanões a uma - divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível,
cortante: para "doer fino" nada melhor!
Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha
um castigo maior para desobstruir o fígado e matar as saudades do bom
tempo. Foi assim com aquela história do ovo quente.
Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha -
coisa de rir - um pedacinho de carne que ela vinha guardando para o fim.
A criança não sofreou a revolta - atirou-lhe um dos nomes com que a
mimoseavam todos os dias.
- "Peste?" Espere aí! Você vai ver quem é peste - e foi contar o caso
à patroa.
Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de derivativos. Sua cara
iluminou-se.
- Eu curo ela! - disse, e desentalando do trono as banhas foi para a
cozinha, qual perua choca, a rufar as saias.
- Traga um ovo.
Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e de mãos à
cinta, gozando-se na prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera.
Seus olhos contentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a um
canto, aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo chegou
a ponto, a boa senhora chamou:
- Venha cá!
Negrinha aproximou-se.
- Abra a boca!
Negrinha abriu a boca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então,
com uma colher, tirou da água "pulando" o ovo e zás! na boca da pequena.
E antes que o urro de dor saísse, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo
arrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só.
Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois:
- Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste?
E a virtuosa dama voltou contente da vida para o trono, a fim de receber
o vigário que chegava.
- Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando
aquela pobre órfã, filha da Cesária - mas que trabalheira me dá!
- A caridade é a mais bela das virtudes cristãs, minha senhora -
murmurou o padre.
- Sim, mas cansa...
- Quem dá aos pobres empresta a Deus.
A boa senhora suspirou resignadamente.
- Inda é o que vale...
Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas
suas, pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho
de plumas.
Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa
como dois anjos do céu - alegres, pulando e rindo com a vivacidade de
cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa
de vê-la armada para desferir contra os anjos invasores o raio dum castigo
tremendo.
Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime
brincar? Estaria tudo mudado - e findo o seu inferno - e aberto o céu?
No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil,
fascinada pela alegria dos anjos.
Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão
no umbigo, e nos ouvidos, o som cruel de todos os dias: "Já para o seu lugar,
pestinha! Não se enxerga.
Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral -
sofrimento novo que se vinha acrescer aos já conhecidos - a triste criança
encorujou-se no cantinho de sempre.
- Quem é, titia? - perguntou uma das meninas, curiosa.
- Quem há de ser? - disse a tia, num suspiro de vítima. - Uma
caridade minha. Não me corrijo, vivo criando essas pobres de Deus... Uma
órfã. Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem por aí afora.
- Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! - refletiu com suas
lágrimas, no canto, a dolorosa martirzinha, que até ali só brincara em
imaginação com o cuco.
Chegaram as malas e logo:
- Meus brinquedos! - reclamaram as duas meninas.
Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos.
Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha arregalava os olhos.
Nunca imaginara coisa assim tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é
aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que falava mama ... que
dormia...
Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer
sabia o nome desse brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança
artificial.
- É feita?... - perguntou, extasiada.
E dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala
a providenciar sobre a arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão,
o ovo quente, tudo, e aproximou-se da criatura de louça. Olhou-a com
assombrado encanto, sem jeito, sem ânimo de pegá-la.
As meninas admiraram-se daquilo.
- Nunca viu boneca?
- Boneca? - repetiu Negrinha. - Chama-se Boneca?
Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.
- Como é boba! - disseram. - E você como se chama?
- Negrinha.
As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da
bobinha perdurava, disseram, apresentando-lhe a boneca:
- Pegue!
Negrinha olhou para os lados, ressabiada, com o coração aos pinotes.
Que ventura, santo Deus! Seria possível? Depois pegou a boneca. E muito
sem jeito, como quem pega o Senhor menino, sorria para ela e para as
meninas, com assustados relanços de olhos para a porta. Fora de si,
literalmente... era como se penetrara no céu e os anjos a rodeassem, e um
filhinho de anjo lhe tivesse vindo adormecer ao colo. Tamanho foi o seu enlevo que
não viu chegar a patroa, já de volta. Dona Inácia entreparou, feroz, e esteve
uns instantes assim, apreciando a cena.
Mas era tal a alegria das hóspedes ante a surpresa extática de Negrinha,
e tão grande a força irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração
afinal bambeou. E pela primeira vez na vida foi mulher. Apiedou-se.
Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido, passando-lhe num
relance pela cabeça a imagem do ovo quente e hipóteses de castigos ainda
piores. E incoercíveis lágrimas de pavor assomaram-lhe aos olhos.
Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada
do mundo - estas palavras, as primeiras que ela ouviu, doces, na vida:
- Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja lá, hein?
Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror.
Mas não viu mais a fera antiga. Compreendeu vagamente e sorriu.
Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foi naquela surrada carinha...
Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma - na
princesinha e na mendiga. E para ambos é a boneca o supremo enlevo. Dá
a natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o momento da boneca
- preparatório -, e o momento dos filhos - definitivo. Depois disso, está
extinta a mulher.
Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma
alma. Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que
desabrochava, afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura
de ente humano. Cessara de ser coisa - e doravante ser-lhe-ia impossível
viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!
Assim foi - e essa consciência a matou.
Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e
a casa voltou ao ramerrão habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se
outra, inteiramente transformada.
Dona Inácia, pensativa, já a não atazanava tanto, e na cozinha uma
criada nova, boa de coração, amenizava-lhe a vida.
Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita. Mal comia e
perdera a expressão de susto que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos,
cismarentos.
Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do
seu doloroso inferno, envenenara-a.
Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... Acalentara, dias seguidos, a
linda boneca loura, tão boa, tão quieta, a dizer mamã, a cerrar os olhos para
dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação. Desabrochara-se de alma.
Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem
dono. Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio
rodeou-a de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos... E bonecas
anjos remoinhavam-lhe em torno, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada
por aquelas mãozinhas de louça - abraçada, rodopiada.
Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida,
confusamente, num disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última
vez o cuco lhe apareceu de boca aberta.
Mas, imóvel, sem rufar as asas.
Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou...
E tudo se esvaiu em trevas.
Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha
de terceira - uma miséria, trinta quilos mal pesados...
E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma
cômica, na memória das meninas ricas.
- "Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?"
Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia.
- "Como era boa para um cocre!..."

***

Projeto contos do Sábado Na Usina:Luigi Pirandello: O Homem da Flor na Boca:


(L ́uomo del Fiori in Boca)
Tradução: Eduardo Muniz & Alvaro Pilares

PERSONAGENS: O pacifico freguês e o homem da flor na boca

ATO ÚNICO
CENA – Noite de verão. Uma pequena rua solitária que acaba numa avenida. Ao fundo, entre os galhos das arvores, aparecem os candeeiros elétricos acesos. No prédio de esquina da pequena rua, à esquerda, um pobre café noturno, com mesinhas e cadeiras de passeio fracamente iluminadas pelo candeeiro aceso, à beira do mesmo passeio. Diante da casa da direita uma lâmpada acesa. No ângulo da ultima casa da esquerda que faz esquina com a avenida outro candeeiro aceso.
Quase no fim do dialogo, na altura indicada no texto, aparecerá por duas vezes um vulto de mulher, vestida de preto, com um velho chapéu enfeitado com penas já sem frescura.
É um pouco mais de meia noite. Em alguns intervalos da peça ouvir-se-á um som distante tilintante de um bandolim. Quando o pano sobe, aparece o Homem da Flor na Boca sentado numa das mesas, observando demoradamente e em silencio um Pacifico Freguês que na mesa ao lado chupa com um canudo um refrigerante.
O HOMEM: Pelo que vejo, o senhor, um homem pacifico e metódico... perdeu o trem?
O FREGUÊS: Por um minuto, sabe? Chego na estação e lá o vejo, fugindo diante de mim.
O HOMEM: Podia ter corrido atrás dele!
O FREGUÊS: Podia! É engraçado, eu sei! Se eu não tivesse que carregar todos aqueles embrulhos e embrulhinhos... Mais carregado que um burro! Mas as mulheres... sabe como é – pedindo sempre encomendas e não param. Você acredita que quando desci do carro, eu levei três minutos só para arrumar nos dedos os barbantes de todos os pacotes: dois em cada dedo.
O HOMEM: Gostaria de ter visto isso. Sabe o que eu faria no seu lugar? Teria deixado tudo no carro.
O FREGUÊS: E minha mulher? E as minhas filhas? E todas as amigas delas?
O HOMEM: Iam gritar muito, e eu ia me divertir com isso.
O FREGUÊS: Talvez o senhor não saiba como se tornam as mulheres quando estão de férias.
O HOMEM: Ora! Sei, e muito bem! Digo isso justamente por saber. Todas dizem que não precisam de nada.
O FREGUÊS: Nada? Elas são até capazes de dizer que vão viajar pra fora só com a intenção de economizar. Depois assim que chegam em alguma cidadezinha aqui por perto, quanto mais feia, suja e miserável for, mais elas insistem em enfeitá-la caprichando nos figurinos acessórios. Ora, as mulheres, meu caro senhor! Mas a final, é a profissão delas!...”Se você desse um pulo até a cidade, meu amor!... Eu estava precisando realmente disso... disso... daquilo... e também você podia... se não se incomoda (engraçado esse: ”se não se incomoda”, não acha?)... Já que você vai pra lá, quando passar em frente...”- Mas, minha querida, como é que você quer que eu faça tudo isso em apenas em três horas? – “Ora, o que é que tem? Você pega um táxi...” – O pior é que eu achava que só ia demorar três horas e não trouxe a chave de casa.
O HOMEM: Essa é muito boa! E depois?
O FREGUÊS: Ora, depois eu deixei aquele montão de encomendas e fui jantar num restaurante; depois, eu fui ao teatro pra dar uma espairecida. Lá estava muito quente. Na saída me perguntei: E agora, vou fazer o que? Já passa da meia noite e às quatro da manhã eu tenho que pegar o primeiro trem, então nem vale a pena ir deitar. E vim até aqui. Este café não fecha, né?
O HOMEM: Não fecha, não senhor! (PAUSA) E, então, deixou todos os seus pacotes na estação?
O FREGUÊS: Porque me pergunta isso? Por acaso não estão seguros lá? Estavam todos tão bem embrulhados e...
O HOMEM: Não, não digo isso! Muito bem embrulhados, calculo: Com aquela arte especial dos vendedores, de embrulhar os objetos que vendem... (PAUSA) Que mãos! Uma bela folha de papel dobrada, vermelha, polida... que só de olha-la já é um prazer...Tão lisa, que até dá vontade de encostá-la no rosto para sentir o seu toque delicado... Estendem a folha sobre o balcão, e depois, com elegância e desembaraço, colocam em cima, precisamente no meio, o tecido fino, bem dobrado. Levantam primeiro de baixo, com o dorso da mão, uma ponta da folha de papel; dorso da mão, uma ponta de papel: até lhe fazem uma pequena prega, supérflua, só por amor à arte. Então, dobram de um lado e do outro, em triângulo, a folha de papel, e viram por baixo as duas pontas; estendem uma das mãos para o rolo de fita; puxam o necessário para atar o embrulho. E atam tão rapidamente que nem temos tempo de admirar a habilidade do empregado, e já nos apresentam o embrulho feito, com o nó pronto pra levarmos pendurado nos dedos.
O FREGUÊS: Percebo que o senhor dedicou muita atenção aos empregados das lojas...
O HOMEM: Eu? Meu caro amigo, eu passo dias inteiros observando-os! Sou capaz de ficar mais de uma hora, parado, olhando pra dentro das lojas através das vitrines. Chego a esquecer de mim. Parece que sou, e realmente gostaria de ser, aquele tecido de seda... aquele cetim... a fita vermelha, ou azul, que as vendedoras das lojas, depois de a medirem com o metro... já viu como fazem? Enrolam no polegar em forma de oito, antes de embrulhar. (PAUSA) Observo o cliente ou a cliente que sai da loja com o embrulho na mão, ou numa sacola, ou debaixo do braço... Sigo- os com os olhos, até sumirem da minha vista... fico imaginando... - Ah, quantas coisas imagino!, o senhor não faz ideia! (PAUSA, DEPOIS PARA SI) Mas me ajuda, isso me ajuda.
O FREGUÊS: (PAUSA) Desculpe... o que é que lhe ajuda?
O HOMEM: Me agarrar assim – quero dizer, com a imaginação – à vida. Como uma planta trepadeira nas grades de um portão... (PAUSA) Ah, nunca deixar a imaginação descansar, nem um instante sequer: - Aderir, aderir com ela, continuamente, à vida dos outros... – mas não à vida de gente que conheço! Não! Não! A essa não! Eu sinto por ela... uma repugnância, se o senhor soubesse! Um nojo! Aderir à vida dos estranhos, em volta dos quais a minha imaginação pode trabalhar livremente; mas isso não é um capricho meu, muito pelo contrario, levando em consideração as menores peculiaridades descobertas neste ou naquele estranho. E se soubesse quanto e como ela trabalha! Dependendo até onde consigo aprofundar, vejo até mesmo a casa deste ou daquele indivíduo; vivo lá dentro; me sinto dentro dela, até sinto o cheiro... sabe? Aquela espécie de cheiro particular de cada casa! Da sua, da minha... – mas na nossa, nos já não sentimos mais, porque já é o cheiro da nossa própria vida...Não sei se eu tô sendo claro. Ah, pelo visto sim e...
O FREGUÊS: Sim, porque...quero dizer: deve ser realmente muito prazeroso para o senhor imaginar todas essas coisas...
O HOMEM: (COM EVIDENTE FADIGA DEPOIS DE PENSAR UM INSTANTE)- Prazeroso? Pra mim?
O FREGUÊS: Quer dizer... calculo...
O HOMEM: Me diz uma coisa. Já foi consultar algum médico de renome?
O FREGUÊS: Eu não! Por que? Não estou doente!
O HOMEM: Não se assuste! Só tô perguntando para saber se já viu, no consultório desses grandes médicos, a sala onde os clientes esperam a sua vez de serem atendidos.
O FREGUÊS: Já vi, sim. Tive de acompanhar uma vez uma das minhas filhas, que sofria dos nervos, e...
O HOMEM: Muito bem. Não me interessa saber. Só me interessam aquelas salas... (PAUSA) Já reparou nelas? Um sofá de tom escuro, desses antigos... as cadeiras estofadas, muitas vezes desiguais... Tudo comprado de ocasião, de segunda mão, colocadas ali para os clientes; não pertencem ao lugar. Já o médico tem na sua casa rica e bela, uma outra sala, para ele e para as amigas da esposa. Imagine como destoaria uma das suas cadeiras ou poltronas se fosse trazida para cá, para o lugar reservado aos clientes, a quem basta esses moveis sem pretensões, decentes, sóbrios. Queria saber se o senhor, quando foi com a sua filha, reparou bem na poltrona ou na cadeira onde se sentou enquanto esperava.
O FREGUÊS: Eu não, com francamente...
O HOMEM: É verdade: o senhor não estava doente... (PAUSA). Mas nem todos os doentes reparam naquilo, mergulhados como estão no pensamento da sua própria doença... (PAUSA) E, no entanto, quantas vezes alguns deles estão ali, atentos, observando os movimentos ansiosos dos dedos que fazem sinais inúteis, no braço puído daquela cadeira em que estão sentados!...Pensam e não veem. Mas que efeito faz. Quando saímos da consulta, e voltamos a atravessar a sala, vendo de novo a cadeira onde há pouco estávamos sentados, à espera da sentença do nosso mal ainda ignorado! Ocupada por outro paciente, também ele com a sua doença secreta; ou ali, vazia, impassível, à espera de um outro qualquer que vai ocupá-la... (PAUSA) Mas o que estávamos falando?... Ah, sim, é verdade... O prazer da imaginação. – Não sei bem porque me lembrei logo de uma das cadeiras dessas salas dos médicos, onde os pacientes estão à espera da consulta...
O FREGUÊS: Sim... realmente...
O HOMEM… Não vê a relação? Nem eu. Mas é que certos laços ligando imagens entre si longínquas, são tão particulares a cada um de nós, e determinados por causas e experiências tão singulares, que deixaríamos de nos compreender se, ao falarmos, não nos inibíssemos de utilizá-los. Nada mais lógico, por vezes, do que estas analogias. Mas a relação pode talvez ser esta, repare: – “Teriam prazer, aquelas cadeiras, em imaginar quem é o paciente que vai sentar-se nelas, à espera da consulta? Que doença ele tem? Para onde ele vai? O que fará depois da consulta?” Nenhum prazer. E assim eu também: Nenhum! Entram e saem os clientes e elas, pobres cadeiras, estão lá à espera de serem ocupadas. Pois bem, a minha é uma ocupação parecida. Ora me ocupa este, ora aquele. Neste momento está me ocupando o senhor, e creia que não sinto prazer algum com o trem que perdeu, com a família que espera o espera na cidadezinha de ferias, com todas as reclamações que eu imagino que tenha...
O FREGUÊS: Ai, tantas, nem calcula!
O HOMEM: Dê graças a Deus que não passam de reclamações. (PAUSA) Existem coisas piores, meu amigo. Eu lhe digo que tenho necessidade de me agarrar com a imaginação à vida alheia; mas assim, sem prazer, sem me interessar de maneira alguma, muito pelo contrário... pelo contrário... para sentir a irritação da vida, para julgá-la estúpida e inútil, tanto que realmente não deve importar muito a ninguém perdê-la. (RAIVOSAMENTE) E isso é necessário que a gente perceba, sabe? Com provas e exemplos contínuos, implacavelmente. Porque, meu caro senhor, não sabemos de que é feito esse desejo de viver, mas existe, existe! Todos a sentimos aqui, como uma angustia na garganta, o gosto da vida que nunca se satisfaz, que nunca se pode satisfazer, porque a vida, no próprio ato de a vivermos, é tão gulosa de si própria, que não se deixa saborear. O sabor está no passado, que permanece vivo dentro de nós. É daí que nos vem o desejo de viver, das recordações que nos mantém presos. Mas presos a que? A esta estupidez... a estas lamentações... a tantas ilusões absurdas... a tantas amarguras que nos ocupam... Sim! Esta, que foi uma estupidez!... Aquela, que foi uma lamentação... e posso até dizer: essa que agora parece ser uma desventura, uma verdadeira desventura... daquí a quatro, cinco, dez anos, quem sabe que gosto virão a ter...que gosto virão a ter as próprias lágrimas de hoje?... E a vida, por Deus, só a ideia de a perdermos... especialmente quando se sabe que é uma questão de dias...(NESTE MOMENTO APARECE O VULTO DA MULHER VESTIDA DE PRETO, ESPREITANDO A ESQUINA.) Pronto... está vendo? Ali, ali, naquela esquina...Então não vê um vulto de mulher? – Já se escondeu!
O FREGUÊS: Quem? Quem era?
O HOMEM: Não viu? Se escondeu.
O FREGUÊS: Uma mulher?
O HOMEM: Sim. Minha mulher.
O FREGUÊS: Ah! Sua esposa?
O HOMEM: (DEPOIS DE UMA PAUSA) Vigia-me de longe. E acredite, tenho vontade de ir até ela e mandá-la embora a pontapés! Mas seria inútil... É como uma dessas cadelas sem dono, teimosas, que quanto mais pontapés nós damos, mais grudam nos nossos calcanhares. (PAUSA) O que aquela mulher está sofrendo por mim, o senhor nem pode imaginar. Já não come, não dorme... Segue-me dia e noite, assim, à distancia. Se pelo menos tentasse escovar aquele cabelo... aqueles vestidos... – Já não parece uma mulher, mas um trapo velho. O cabelo empoeirado. E tem apenas trinta e quatro anos! (PAUSA) Sinto uma raiva tão grande que não imagina. Às vezes a pego nos ombros e grito na sua cara: – Estúpida, imbecil! – E sacudo-a. Aceita tudo. Fica parada, olhando pra mim, com uns olhos.. .com uns olhos que, juro pra você, fazem-me subir aos dedos um desejo selvagem de estrangulá-la. Mas nada. Espera que me afaste, para recomeçar a me seguir de longe. (DE NOVO A MULHER TORNA A ESPREITAR) Olha, olha, espreitou outra vez aquela esquina!
O FREGUÊS: Pobre senhora!
O HOMEM: Que pobre senhora! Percebe o que ela queria? Queria que eu ficasse em casa, muito calmo, muito quieto, descansando no meio dos seus carinhos; admirando a ordem perfeita de todos os cômodos, da beleza de todos os móveis, aquele silêncio de espelho que havia antes na minha casa, medido pelo tique- taque do relógio de pendulo da sala de jantar. – Era isso que ela queria! E eu pergunto a você, para lhe fazer compreender o absurdo... Não! Que estou dizendo? “O absurdo?” – a macabra ferocidade dessa pretensão! Eu pergunto se julga possível que as casas de Avezzano, as casas da Messina, se tivessem tido conhecimento do terremoto que em breve as iriam derrubar, teriam conseguido ficar muito sossegadas sob o luar, ordenadas em fileiras, ao longo das ruas e das praças, obedecendo ao plano regulador da Comissão Organizadora da Câmara Municipal. Casas, por Deus, de pedra e madeira, e também elas teriam fugido! Imagine então os habitantes de Avezzano, os habitantes da Messina, a despirem-se plácidos, para se deitarem, dobrando as roupas, pondo os sapatos diante da porta, e enfiando-se depois debaixo dos cobertores, gozando a brancura fresca dos lençóis bem lavados, com a consciência de que, dentro de algumas horas, morreriam. Parece-lhe possível?
O FREGUÊS: Mas por acaso, a sua esposa...
O HOMEM: Deixe-me falar! Se a morte, meu amigo, fosse como um daqueles insetos esquisitos, repugnantes, que pousam em cima de nós, sem percebermos... O senhor vai passando pela rua; outro pedestre, de repente o faz parar, e com toda cautela, com os dedos estendidos, lhe diz: “Perdão amigo, com licença. Vossa excelência tem a morte em cima de si!” E, com os tais dedos estendidos, pega-lhe e atira com ela para longe... Então seria magnifico! Mas a morte não é como um desses insetos repugnantes. Quantos daqueles que passeiam tranquilos e sem preocupações, talvez a tragam em cima em si; ninguém a vê; e eles vão tranquilamente planejando seu dia de amanhã e depois de amanhã. Ora, eu, meu caro senhor... (LEVANTA-SE) Vem!... vem mais pra cá... (CONDUZ O FREGUÊS PARA JUNTO DO CANDEEIRO ACESO)...Quero mostrar uma coisa...Olhe aqui, debaixo do bigode... Aqui, está vendo? Não vê que linda tuberosidade violácea? Sabe como se chama isso? Ah, um nome muito doce, mais doce que um rocambole: – Epitelioma, é assim que se chama. Pronuncie, verá que doçura: Epitelioma... A morte, percebe? Passou por mim. Pôs esta flor na boca, e disse: - “Fica com ela, querido: voltarei a passar por aqui dentro de oito ou dez meses!” (PAUSA). E agora me diz, se com essa flor na boca, eu podia ficar em casa tranquilo e sossegado, como desejava aquela infeliz. Eu grito com ela: - Ah, então, você quer que eu te beije? – Sim, me beija! – Mas sabe o que ela fez?: Com um alfinete, a semana passada, fez um arranhão aqui no lábio superior, e depois agarrou minha cabeça e queria me beijar... me beijar na boca... Porque diz que quer morrer comigo... (PAUSA) Está louca... (RAIVOSAMENTE) Em casa é que eu não fico! Preciso estar atrás das vitrines das lojas, admirando a habilidade dos vendedores. Porque, o senhor compreende, se por momentos sinto um vazio dentro de mim... compreende, posso até matar, como se nada fosse, uma pessoa que nem sequer conheço... sacar uma arma e matar um sujeito que, como o senhor, tenha apenas perdido o trem... (RINDO) Não, não se assuste, meu caro senhor, estou brincando! (PAUSA) Eu vou embora (PAUSA) Eu me mataria primeiro (PAUSA) Mas existem, nesta altura do ano, certos damascos tão bons... De que maneira costuma comê-los? Com a boca toda, não é? Abre-se pelo meio; depois apertamos com os dedos até escorrer o sumo... como dois lábios carnudos... Que delícia! (RI. PAUSA) Meus respeitos à sua distinguida esposa e às suas filhas que estão de férias. (PAUSA) Eu as imagino vestidas de branco ou de azul celeste, numa linda ladeira, sob a sombra. (PAUSA) E talvez possa me fazer um favor, amanhã de manhã, quando chegar. Imagino que a cidadezinha estará perto da estação. – Ao romper do dia, poderá fazer o caminho a pé. – O primeiro ramo de ervas que encontrar ao longo da estação, repare bem nele. Conte os fios de erva por mim. Quantos fios contar, tantos serão os dias que ainda terei que viver. Mas escolhe um bem grande, pelo amor de Deus! (RI.) Boa noite, meu caro senhor.
AFASTA-SE CANTAROLANDO, DE BOCA FECHADA. A ÁRIA QUE O BANDOLIM TOCA, AO LONGE. MAS ANTES DE CHEGAR À ESQUINA DA DIREITA, LEMBRA-SE DE QUE A MULHER ESTÁ LÁ À SUA ESPERA. ENTAO RECUA UNS PASSOS, ATRAVESSA A RUA E DOBRA A ESQUINA DO OUTRO LADO, SEGUIDO PELO O OLHAR DO PACÍFICO FREGUÊS, QUASE PETRIFICADO.)
FIM


Postado por Marcelo Antinori às 13:38 Nenhum comentário:
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sábado, 18 de julho de 2015
56 – O ex-mágico da Taberna Minhota – M. Rubião
Murilo Rubião (1916-1991) escritor mineiro nascido em Carmo de Minas. Andou pelo jornalismo, pela politica e até pelo serviço diplomático. Seus contos são considerados como exemplos de literatura fantástica, mas para mim, o que mais impressiona é o bom humor com o qual ele conta suas historias... ainda que sejam tristes.


O ex-mágico da Taberna Minhota
Murilo Rubião

Inclina, Senhor, o teu ouvido, e ouve-me;
 porque eu sou desvalido e pobre.
(Salmos. LXXXV, I)
Hoje sou funcionário público e este não é o meu desconsolo maior.
Na verdade, eu não estava preparado para o sofrimento. Todo homem, ao atingir certa idade, pode perfeitamente enfrentar a avalanche do tédio e da amargura, pois desde a meninice acostumou-se às vicissitudes, através de um processo lento e gradativo de dissabores.


Tal não aconteceu comigo. Fui atirado à vida sem pais, infância ou juventude.


Um dia dei com os meus cabelos ligeiramente grisalhos, no espelho da Taberna Minhota. A descoberta não me espantou e tampouco me surpreendi ao retirar do bolso o dono do restaurante. Ele sim, perplexo, me perguntou como podia ter feito aquilo.


O que poderia responder, nessa situação, uma pessoa que não encontrava a menor explicação para sua presença no mundo? Disse-lhe que estava cansado. Nascera cansado e entediado.


Sem meditar na resposta, ou fazer outras perguntas, ofereceu-me emprego e passei daquele momento em diante a divertir a freguesia da casa com os meus passes mágicos.


O homem, entretanto, não gostou da minha prática de oferecer aos espectadores almoços gratuitos, que eu extraía misteriosamente de dentro do paletó. Considerando não ser dos melhores negócios aumentar o número de fregueses sem o consequente acréscimo nos lucros, apresentou-me ao empresário do Circo-Parque Andaluz, que, posto a par das minhas habilidades, propôs contratar-me. Antes, porém, aconselhou-o que se prevenisse contra os meus truques, pois ninguém estranharia se me ocorresse a ideia de distribuir ingressos graciosos para os espetáculos.


Contrariando as previsões pessimistas do primeiro patrão, o meu comportamento foi exemplar. As minhas apresentações em público não só empolgaram multidões como deram fabulosos lucros aos donos da companhia.


A plateia, em geral, me recebia com frieza, talvez por não me exibir de casaca e cartola. Mas quando, sem querer, começava a extrair do chapéu coelhos, cobras, lagartos, os assistentes vibravam. Sobretudo no último número, em que eu fazia surgir, por entre os dedos, um jacaré. Em seguida, comprimindo o animal pelas extremidades, transformava-o numa sanfona. E encerrava o espetáculo tocando o Hino Nacional da Cochinchina. Os aplausos estrugiam de todos os lados, sob o meu olhar distante.


O gerente do circo, a me espreitar de longe, danava-se com a minha indiferença pelas palmas da assistência. Notadamente se elas partiam das criancinhas que me iam aplaudir nas matinês de domingo. Por que me emocionar, se não me causavam pena aqueles rostos inocentes, destinados a passar pelos sofrimentos que acompanham o amadurecimento do homem? Muito menos me ocorria odiá-las por terem tudo que ambicionei e não tive: um nascimento e um passado.


Com o crescimento da popularidade a minha vida tornou-se insuportável.


Às vezes, sentado em algum café, a olhar cismativamente o povo desfilando na calçada, arrancava do bolso pombos, gaivotas, maritacas. As pessoas que se encontravam nas imediações, julgando intencional o meu gesto, rompiam em estridentes gargalhadas. Eu olhava melancólico para o chão e resmungava contra o mundo e os pássaros.


Se, distraído, abria as mãos, delas escorregavam esquisitos objetos. A ponto de me surpreender, certa vez, puxando da manga da camisa uma figura, depois outra. Por fim, estava rodeado de figuras estranhas, sem saber que destino lhes dar.


Nada fazia. Olhava para os lados e implorava com os olhos por um socorro que não poderia vir de parte alguma.


Situação cruciante.


Quase sempre, ao tirar o lenço para assoar o nariz, provocava o assombro dos que estavam próximos, sacando um lençol do bolso. Se mexia na gola do paletó, logo aparecia um urubu. Em outras ocasiões, indo amarrar o cordão do sapato, das minhas calças deslizavam cobras. Mulheres e crianças gritavam. Vinham guardas, ajuntavam-se curiosos, um escândalo. Tinha de comparecer à delegacia e ouvir pacientemente da autoridade policial ser proibido soltar serpentes nas vias públicas.



Não protestava. Tímido e humilde mencionava a minha condição de mágico, reafirmando o propósito de não molestar ninguém.


Também, à noite, em meio a um sono tranquilo, costumava acordar sobressaltado: era um pássaro ruidoso que batera as asas ao sair do meu ouvido.


Numa dessas vezes, irritado, disposto a nunca mais fazer mágicas, mutilei as mãos. Não adiantou. Ao primeiro movimento que fiz, elas reapareceram novas e perfeitas nas pontas dos tocos de braço. Acontecimento de desesperar qualquer pessoa, principalmente um mágico enfastiado do ofício.



Urgia encontrar solução para o meu desespero. Pensando bem, concluí que somente a morte poria termo ao meu desconsolo.


Firme no propósito, tirei dos bolsos uma dúzia de leões e, cruzando os braços, aguardei o momento em que seria devorado por eles. Nenhum mal me fizeram. Rodearam-me, farejaram minhas roupas, olharam a paisagem, e se foram.


Na manhã seguinte regressaram e se puseram, acintosos, diante de mim.


— O que desejam, estúpidos animais?! — gritei, indignado.


Sacudiram com tristeza as jubas e imploraram-me que os fizesse desaparecer:
— Este mundo é tremendamente tedioso — concluíram.


Não consegui refrear a raiva. Matei-os todos e me pus a devorá-los. Esperava morrer, vítima de fatal indigestão.


Sofrimento dos sofrimentos! Tive imensa dor de barriga e continuei a viver.


O fracasso da tentativa multiplicou minha frustração. Afastei-me da zona urbana e busquei a serra. Ao alcançar seu ponto mais alto, que dominava escuro abismo, abandonei o corpo ao espaço.


Senti apenas uma leve sensação da vizinhança da morte: logo me vi amparado por um paraquedas. Com dificuldade, machucando-me nas pedras, sujo e estropiado, consegui regressar à cidade, onde a minha primeira providência foi adquirir uma pistola.


Em casa, estendido na cama, levei a arma ao ouvido. Puxei o gatilho, à espera do estampido, a dor da bala penetrando na minha cabeça.


Não veio o disparo nem a morte: a máuser se transformara num lápis.


Rolei até o chão, soluçando. Eu, que podia criar outros seres, não encontrava meios de libertar-me da existência.



Uma frase que escutara por acaso, na rua, trouxe-me nova esperança de romper em definitivo com a vida. Ouvira de um homem triste que ser funcionário público era suicidar-se aos poucos.


Não me encontrava em condições de determinar qual a forma de suicídio que melhor me convinha: se lenta ou rápida. Por isso empreguei-me numa Secretaria de Estado.



1930, ano amargo. Foi mais longo que os posteriores à primeira manifestação que tive da minha existência, ante o espelho da Taberna Minhota.


Não morri, conforme esperava. Maiores foram as minhas aflições, maior o meu desconsolo.


Quando era mágico, pouco lidava com os homens -o palco me distanciava deles. Agora, obrigado a constante contato com meus semelhantes, necessitava compreendê-los, disfarçar a náusea que me causavam.


O pior é que, sendo diminuto meu serviço, via -me na contingência de permanecer à toa horas a fio. E o ócio levou-me à revolta contra a falta de um passado. Por que somente eu, entre todos os que viviam sob os meus olhos, não tinha alguma coisa para recordar? Os meus dias flutuavam confusos, mesclados com pobres recordações, pequeno saldo de três anos de vida.


O amor que me veio por uma funcionária, vizinha de mesa de trabalho, distraiu-me um pouco das minhas inquietações.


Distração momentânea. Cedo retornou o desassossego, debatia-me em incertezas. Como me declarar à minha colega? Se nunca fizera uma declaração de amor e não tivera sequer uma experiência sentimental!


1931 entrou triste, com ameaças de demissões coletivas na Secretaria e a recusa da datilógrafa em me aceitar. Ante o risco de ser demitido, procurei acautelar meus interesses. (Não me importava o emprego. Somente temia ficar longe da mulher que me rejeitara, mas cuja presença me era agora indispensável.)


Fui ao chefe da seção e lhe declarei que não podia ser dispensado, pois, tendo dez anos de casa, adquirira estabilidade no cargo.


Fitou-me por algum tempo em silêncio. Depois, fechando a cara, disse que estava atônito com meu cinismo. Jamais poderia esperar de alguém, com um ano de trabalho, ter a ousadia de afirmar que tinha dez.


Para lhe provar não ser leviana a minha atitude, procurei nos bolsos os documentos que comprovavam a lisura do meu procedimento. Estupefato, deles retirei apenas um papel amarrotado — fragmento de um poema inspirado nos seios da datilógrafa.


Revolvi, ansioso, todos os bolsos e nada encontrei.


Tive que confessar minha derrota. Confiara demais na faculdade de fazer mágicas e ela fora anulada pela burocracia.


Hoje, sem os antigos e miraculosos dons de mago, não consigo abandonar a pior das ocupações humanas. Falta-me o amor da companheira de trabalho, a presença de amigos, o que me obriga a andar por lugares solitários. Sou visto muitas vezes procurando retirar com os dedos, do interior da roupa, qualquer coisa que ninguém enxerga, por mais que atente a vista.


Pensam que estou louco, principalmente quando atiro ao ar essas pequeninas coisas.


Tenho a impressão de que é uma andorinha a se desvencilhar das minhas mãos. Suspiro alto e fundo.


Não me conforta a ilusão. Serve somente para aumentar o arrependimento de não ter criado todo um mundo mágico.




Por instantes, imagino como seria maravilhoso arrancar do corpo lenços vermelhos, azuis, brancos, verdes. Encher a noite com fogos de artifício. Erguer o rosto para o céu e deixar que pelos meus lábios saísse o arco-íris. Um arco-íris que cobrisse a Terra de um extremo a outro. E os aplausos dos homens de cabelos brancos, das meigas criancinhas.