(L
́uomo del Fiori in Boca)
Tradução:
Eduardo Muniz & Alvaro Pilares
PERSONAGENS:
O pacifico freguês e o homem da flor na boca
ATO
ÚNICO
CENA
– Noite de verão. Uma pequena rua solitária que acaba numa avenida. Ao fundo,
entre os galhos das arvores, aparecem os candeeiros elétricos acesos. No prédio
de esquina da pequena rua, à esquerda, um pobre café noturno, com mesinhas e
cadeiras de passeio fracamente iluminadas pelo candeeiro aceso, à beira do
mesmo passeio. Diante da casa da direita uma lâmpada acesa. No ângulo da ultima
casa da esquerda que faz esquina com a avenida outro candeeiro aceso.
Quase
no fim do dialogo, na altura indicada no texto, aparecerá por duas vezes um
vulto de mulher, vestida de preto, com um velho chapéu enfeitado com penas já
sem frescura.
É
um pouco mais de meia noite. Em alguns intervalos da peça ouvir-se-á um som
distante tilintante de um bandolim. Quando o pano sobe, aparece o Homem da Flor
na Boca sentado numa das mesas, observando demoradamente e em silencio um
Pacifico Freguês que na mesa ao lado chupa com um canudo um refrigerante.
O
HOMEM: Pelo que vejo, o senhor, um homem pacifico e metódico... perdeu o trem?
O
FREGUÊS: Por um minuto, sabe? Chego na estação e lá o vejo, fugindo diante de
mim.
O
HOMEM: Podia ter corrido atrás dele!
O
FREGUÊS: Podia! É engraçado, eu sei! Se eu não tivesse que carregar todos
aqueles embrulhos e embrulhinhos... Mais carregado que um burro! Mas as
mulheres... sabe como é – pedindo sempre encomendas e não param. Você acredita
que quando desci do carro, eu levei três minutos só para arrumar nos dedos os
barbantes de todos os pacotes: dois em cada dedo.
O
HOMEM: Gostaria de ter visto isso. Sabe o que eu faria no seu lugar? Teria
deixado tudo no carro.
O
FREGUÊS: E minha mulher? E as minhas filhas? E todas as amigas delas?
O
HOMEM: Iam gritar muito, e eu ia me divertir com isso.
O
FREGUÊS: Talvez o senhor não saiba como se tornam as mulheres quando estão de
férias.
O
HOMEM: Ora! Sei, e muito bem! Digo isso justamente por saber. Todas dizem que
não precisam de nada.
O
FREGUÊS: Nada? Elas são até capazes de dizer que vão viajar pra fora só com a
intenção de economizar. Depois assim que chegam em alguma cidadezinha aqui por
perto, quanto mais feia, suja e miserável for, mais elas insistem em
enfeitá-la caprichando nos figurinos acessórios. Ora, as mulheres, meu caro
senhor! Mas a final, é a profissão delas!...”Se você desse um pulo até a
cidade, meu amor!... Eu estava precisando realmente disso... disso...
daquilo... e também você podia... se não se incomoda (engraçado esse: ”se não
se incomoda”, não acha?)... Já que você vai pra lá, quando passar em
frente...”- Mas, minha querida, como é que você quer que eu faça tudo isso em
apenas em três horas? – “Ora, o que é que tem? Você pega um táxi...” – O pior
é que eu achava que só ia demorar três horas e não trouxe a chave de casa.
O
HOMEM: Essa é muito boa! E depois?
O
FREGUÊS: Ora, depois eu deixei aquele montão de encomendas e fui jantar num
restaurante; depois, eu fui ao teatro pra dar uma espairecida. Lá estava muito
quente. Na saída me perguntei: E agora, vou fazer o que? Já passa da meia noite
e às quatro da manhã eu tenho que pegar o primeiro trem, então nem vale a pena
ir deitar. E vim até aqui. Este café não fecha, né?
O
HOMEM: Não fecha, não senhor! (PAUSA) E, então, deixou todos os seus pacotes na
estação?
O
FREGUÊS: Porque me pergunta isso? Por acaso não estão seguros lá? Estavam
todos tão bem embrulhados e...
O
HOMEM: Não, não digo isso! Muito bem embrulhados, calculo: Com aquela arte
especial dos vendedores, de embrulhar os objetos que vendem... (PAUSA) Que
mãos! Uma bela folha de papel dobrada, vermelha, polida... que só de olha-la já
é um prazer...Tão lisa, que até dá vontade de encostá-la no rosto para
sentir o seu toque delicado... Estendem a folha sobre o balcão, e depois, com
elegância e desembaraço, colocam em cima, precisamente no meio, o tecido fino,
bem dobrado. Levantam primeiro de baixo, com o dorso da mão, uma ponta da folha
de papel; dorso da mão, uma ponta de papel: até lhe fazem uma pequena prega,
supérflua, só por amor à arte. Então, dobram de um lado e do outro, em
triângulo, a folha de papel, e viram por baixo as duas pontas; estendem uma das
mãos para o rolo de fita; puxam o necessário para atar o embrulho. E atam tão
rapidamente que nem temos tempo de admirar a habilidade do empregado, e já nos
apresentam o embrulho feito, com o nó pronto pra levarmos pendurado nos dedos.
O
FREGUÊS: Percebo que o senhor dedicou muita atenção aos empregados das
lojas...
O
HOMEM: Eu? Meu caro amigo, eu passo dias inteiros observando-os! Sou capaz de
ficar mais de uma hora, parado, olhando pra dentro das lojas através das
vitrines. Chego a esquecer de mim. Parece que sou, e realmente gostaria de ser,
aquele tecido de seda... aquele cetim... a fita vermelha, ou azul, que as
vendedoras das lojas, depois de a medirem com o metro... já viu como fazem?
Enrolam no polegar em forma de oito, antes de embrulhar. (PAUSA) Observo o
cliente ou a cliente que sai da loja com o embrulho na mão, ou numa sacola, ou
debaixo do braço... Sigo- os com os olhos, até sumirem da minha vista... fico
imaginando... - Ah, quantas coisas imagino!, o senhor não faz ideia! (PAUSA,
DEPOIS PARA SI) Mas me ajuda, isso me ajuda.
O
FREGUÊS: (PAUSA) Desculpe... o que é que lhe ajuda?
O
HOMEM: Me agarrar assim – quero dizer, com a imaginação – à vida. Como uma
planta trepadeira nas grades de um portão... (PAUSA) Ah, nunca deixar a
imaginação descansar, nem um instante sequer: - Aderir, aderir com ela,
continuamente, à vida dos outros... – mas não à vida de gente que conheço!
Não! Não! A essa não! Eu sinto por ela... uma repugnância, se o senhor soubesse!
Um nojo! Aderir à vida dos estranhos, em volta dos quais a minha imaginação
pode trabalhar livremente; mas isso não é um capricho meu, muito pelo
contrario, levando em consideração as menores peculiaridades descobertas neste
ou naquele estranho. E se soubesse quanto e como ela trabalha! Dependendo até
onde consigo aprofundar, vejo até mesmo a casa deste ou daquele indivíduo;
vivo lá dentro; me sinto dentro dela, até sinto o cheiro... sabe? Aquela
espécie de cheiro particular de cada casa! Da sua, da minha... – mas na nossa,
nos já não sentimos mais, porque já é o cheiro da nossa própria vida...Não sei
se eu tô sendo claro. Ah, pelo visto sim e...
O
FREGUÊS: Sim, porque...quero dizer: deve ser realmente muito prazeroso para o
senhor imaginar todas essas coisas...
O
HOMEM: (COM EVIDENTE FADIGA DEPOIS DE PENSAR UM INSTANTE)- Prazeroso? Pra mim?
O
FREGUÊS: Quer dizer... calculo...
O
HOMEM: Me diz uma coisa. Já foi consultar algum médico de renome?
O
FREGUÊS: Eu não! Por que? Não estou doente!
O
HOMEM: Não se assuste! Só tô perguntando para saber se já viu, no consultório
desses grandes médicos, a sala onde os clientes esperam a sua vez de serem
atendidos.
O
FREGUÊS: Já vi, sim. Tive de acompanhar uma vez uma das minhas filhas, que
sofria dos nervos, e...
O
HOMEM: Muito bem. Não me interessa saber. Só me interessam aquelas salas...
(PAUSA) Já reparou nelas? Um sofá de tom escuro, desses antigos... as cadeiras
estofadas, muitas vezes desiguais... Tudo comprado de ocasião, de segunda mão,
colocadas ali para os clientes; não pertencem ao lugar. Já o médico tem na sua
casa rica e bela, uma outra sala, para ele e para as amigas da esposa. Imagine
como destoaria uma das suas cadeiras ou poltronas se fosse trazida para cá,
para o lugar reservado aos clientes, a quem basta esses moveis sem pretensões,
decentes, sóbrios. Queria saber se o senhor, quando foi com a sua filha,
reparou bem na poltrona ou na cadeira onde se sentou enquanto esperava.
O
FREGUÊS: Eu não, com francamente...
O
HOMEM: É verdade: o senhor não estava doente... (PAUSA). Mas nem todos os
doentes reparam naquilo, mergulhados como estão no pensamento da sua própria
doença... (PAUSA) E, no entanto, quantas vezes alguns deles estão ali, atentos,
observando os movimentos ansiosos dos dedos que fazem sinais inúteis, no braço
puído daquela cadeira em que estão sentados!...Pensam e não veem. Mas que
efeito faz. Quando saímos da consulta, e voltamos a atravessar a sala, vendo de
novo a cadeira onde há pouco estávamos sentados, à espera da sentença do
nosso mal ainda ignorado! Ocupada por outro paciente, também ele com a sua
doença secreta; ou ali, vazia, impassível, à espera de um outro qualquer que
vai ocupá-la... (PAUSA) Mas o que estávamos falando?... Ah, sim, é verdade...
O prazer da imaginação. – Não sei bem porque me lembrei logo de uma das
cadeiras dessas salas dos médicos, onde os pacientes estão à espera da
consulta...
O
FREGUÊS: Sim... realmente...
O
HOMEM… Não vê a relação? Nem eu. Mas é que certos laços ligando imagens entre
si longínquas, são tão particulares a cada um de nós, e determinados por causas
e experiências tão singulares, que deixaríamos de nos compreender se, ao
falarmos, não nos inibíssemos de utilizá-los. Nada mais lógico, por vezes, do
que estas analogias. Mas a relação pode talvez ser esta, repare: – “Teriam
prazer, aquelas cadeiras, em imaginar quem é o paciente que vai sentar-se
nelas, à espera da consulta? Que doença ele tem? Para onde ele vai? O que
fará depois da consulta?” Nenhum prazer. E assim eu também: Nenhum! Entram e
saem os clientes e elas, pobres cadeiras, estão lá à espera de serem ocupadas.
Pois bem, a minha é uma ocupação parecida. Ora me ocupa este, ora aquele.
Neste momento está me ocupando o senhor, e creia que não sinto prazer algum
com o trem que perdeu, com a família que espera o espera na cidadezinha de
ferias, com todas as reclamações que eu imagino que tenha...
O
FREGUÊS: Ai, tantas, nem calcula!
O
HOMEM: Dê graças a Deus que não passam de reclamações. (PAUSA) Existem coisas
piores, meu amigo. Eu lhe digo que tenho necessidade de me agarrar com a
imaginação à vida alheia; mas assim, sem prazer, sem me interessar de maneira
alguma, muito pelo contrário... pelo contrário... para sentir a irritação da
vida, para julgá-la estúpida e inútil, tanto que realmente não deve importar
muito a ninguém perdê-la. (RAIVOSAMENTE) E isso é necessário que a gente
perceba, sabe? Com provas e exemplos contínuos, implacavelmente. Porque, meu
caro senhor, não sabemos de que é feito esse desejo de viver, mas existe,
existe! Todos a sentimos aqui, como uma angustia na garganta, o gosto da vida
que nunca se satisfaz, que nunca se pode satisfazer, porque a vida, no próprio
ato de a vivermos, é tão gulosa de si própria, que não se deixa saborear. O
sabor está no passado, que permanece vivo dentro de nós. É daí que nos vem o
desejo de viver, das recordações que nos mantém presos. Mas presos a que? A
esta estupidez... a estas lamentações... a tantas ilusões absurdas... a tantas
amarguras que nos ocupam... Sim! Esta, que foi uma estupidez!... Aquela, que
foi uma lamentação... e posso até dizer: essa que agora parece ser uma
desventura, uma verdadeira desventura... daquí a quatro, cinco, dez anos, quem
sabe que gosto virão a ter...que gosto virão a ter as próprias lágrimas de
hoje?... E a vida, por Deus, só a ideia de a perdermos... especialmente quando
se sabe que é uma questão de dias...(NESTE MOMENTO APARECE O VULTO DA MULHER
VESTIDA DE PRETO, ESPREITANDO A ESQUINA.) Pronto... está vendo? Ali, ali,
naquela esquina...Então não vê um vulto de mulher? – Já se escondeu!
O
FREGUÊS: Quem? Quem era?
O
HOMEM: Não viu? Se escondeu.
O
FREGUÊS: Uma mulher?
O
HOMEM: Sim. Minha mulher.
O
FREGUÊS: Ah! Sua esposa?
O
HOMEM: (DEPOIS DE UMA PAUSA) Vigia-me de longe. E acredite, tenho vontade de ir
até ela e mandá-la embora a pontapés! Mas seria inútil... É como uma dessas
cadelas sem dono, teimosas, que quanto mais pontapés nós damos, mais grudam nos
nossos calcanhares. (PAUSA) O que aquela mulher está sofrendo por mim, o
senhor nem pode imaginar. Já não come, não dorme... Segue-me dia e noite,
assim, à distancia. Se pelo menos tentasse escovar aquele cabelo... aqueles
vestidos... – Já não parece uma mulher, mas um trapo velho. O cabelo
empoeirado. E tem apenas trinta e quatro anos! (PAUSA) Sinto uma raiva tão
grande que não imagina. Às vezes a pego nos ombros e grito na sua cara: –
Estúpida, imbecil! – E sacudo-a. Aceita tudo. Fica parada, olhando pra mim, com
uns olhos.. .com uns olhos que, juro pra você, fazem-me subir aos dedos um
desejo selvagem de estrangulá-la. Mas nada. Espera que me afaste, para
recomeçar a me seguir de longe. (DE NOVO A MULHER TORNA A ESPREITAR) Olha, olha,
espreitou outra vez aquela esquina!
O
FREGUÊS: Pobre senhora!
O
HOMEM: Que pobre senhora! Percebe o que ela queria? Queria que eu ficasse em
casa, muito calmo, muito quieto, descansando no meio dos seus carinhos;
admirando a ordem perfeita de todos os cômodos, da beleza de todos os móveis,
aquele silêncio de espelho que havia antes na minha casa, medido pelo tique-
taque do relógio de pendulo da sala de jantar. – Era isso que ela queria! E eu
pergunto a você, para lhe fazer compreender o absurdo... Não! Que estou
dizendo? “O absurdo?” – a macabra ferocidade dessa pretensão! Eu pergunto se
julga possível que as casas de Avezzano, as casas da Messina, se tivessem tido
conhecimento do terremoto que em breve as iriam derrubar, teriam conseguido
ficar muito sossegadas sob o luar, ordenadas em fileiras, ao longo das ruas e
das praças, obedecendo ao plano regulador da Comissão Organizadora da Câmara
Municipal. Casas, por Deus, de pedra e madeira, e também elas teriam fugido!
Imagine então os habitantes de Avezzano, os habitantes da Messina, a
despirem-se plácidos, para se deitarem, dobrando as roupas, pondo os sapatos
diante da porta, e enfiando-se depois debaixo dos cobertores, gozando a
brancura fresca dos lençóis bem lavados, com a consciência de que, dentro de
algumas horas, morreriam. Parece-lhe possível?
O
FREGUÊS: Mas por acaso, a sua esposa...
O
HOMEM: Deixe-me falar! Se a morte, meu amigo, fosse como um daqueles insetos
esquisitos, repugnantes, que pousam em cima de nós, sem percebermos... O senhor
vai passando pela rua; outro pedestre, de repente o faz parar, e com toda
cautela, com os dedos estendidos, lhe diz: “Perdão amigo, com licença. Vossa
excelência tem a morte em cima de si!” E, com os tais dedos estendidos,
pega-lhe e atira com ela para longe... Então seria magnifico! Mas a morte não
é como um desses insetos repugnantes. Quantos daqueles que passeiam tranquilos
e sem preocupações, talvez a tragam em cima em si; ninguém a vê; e eles vão
tranquilamente planejando seu dia de amanhã e depois de amanhã. Ora, eu, meu
caro senhor... (LEVANTA-SE) Vem!... vem mais pra cá... (CONDUZ O FREGUÊS PARA
JUNTO DO CANDEEIRO ACESO)...Quero mostrar uma coisa...Olhe aqui, debaixo do
bigode... Aqui, está vendo? Não vê que linda tuberosidade violácea? Sabe como
se chama isso? Ah, um nome muito doce, mais doce que um rocambole: –
Epitelioma, é assim que se chama. Pronuncie, verá que doçura: Epitelioma... A
morte, percebe? Passou por mim. Pôs esta flor na boca, e disse: - “Fica com
ela, querido: voltarei a passar por aqui dentro de oito ou dez meses!” (PAUSA).
E agora me diz, se com essa flor na boca, eu podia ficar em casa tranquilo e
sossegado, como desejava aquela infeliz. Eu grito com ela: - Ah, então, você
quer que eu te beije? – Sim, me beija! – Mas sabe o que ela fez?: Com um
alfinete, a semana passada, fez um arranhão aqui no lábio superior, e depois
agarrou minha cabeça e queria me beijar... me beijar na boca... Porque diz que
quer morrer comigo... (PAUSA) Está louca... (RAIVOSAMENTE) Em casa é que eu
não fico! Preciso estar atrás das vitrines das lojas, admirando a habilidade
dos vendedores. Porque, o senhor compreende, se por momentos sinto um vazio
dentro de mim... compreende, posso até matar, como se nada fosse, uma pessoa
que nem sequer conheço... sacar uma arma e matar um sujeito que, como o senhor,
tenha apenas perdido o trem... (RINDO) Não, não se assuste, meu caro senhor,
estou brincando! (PAUSA) Eu vou embora (PAUSA) Eu me mataria primeiro (PAUSA)
Mas existem, nesta altura do ano, certos damascos tão bons... De que maneira
costuma comê-los? Com a boca toda, não é? Abre-se pelo meio; depois apertamos
com os dedos até escorrer o sumo... como dois lábios carnudos... Que delícia!
(RI. PAUSA) Meus respeitos à sua distinguida esposa e às suas filhas que estão
de férias. (PAUSA) Eu as imagino vestidas de branco ou de azul celeste, numa
linda ladeira, sob a sombra. (PAUSA) E talvez possa me fazer um favor, amanhã
de manhã, quando chegar. Imagino que a cidadezinha estará perto da estação. –
Ao romper do dia, poderá fazer o caminho a pé. – O primeiro ramo de ervas que
encontrar ao longo da estação, repare bem nele. Conte os fios de erva por mim.
Quantos fios contar, tantos serão os dias que ainda terei que viver. Mas
escolhe um bem grande, pelo amor de Deus! (RI.) Boa noite, meu caro senhor.
AFASTA-SE
CANTAROLANDO, DE BOCA FECHADA. A ÁRIA QUE O BANDOLIM TOCA, AO LONGE. MAS ANTES
DE CHEGAR À ESQUINA DA DIREITA, LEMBRA-SE DE QUE A MULHER ESTÁ LÁ À SUA
ESPERA. ENTAO RECUA UNS PASSOS, ATRAVESSA A RUA E DOBRA A ESQUINA DO OUTRO
LADO, SEGUIDO PELO O OLHAR DO PACÍFICO FREGUÊS, QUASE PETRIFICADO.)
FIM
Postado
por Marcelo Antinori às 13:38 Nenhum comentário:
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sábado,
18 de julho de 2015
56
– O ex-mágico da Taberna Minhota – M. Rubião
Murilo
Rubião (1916-1991) escritor mineiro nascido em Carmo de Minas. Andou pelo
jornalismo, pela politica e até pelo serviço diplomático. Seus contos são
considerados como exemplos de literatura fantástica, mas para mim, o que mais
impressiona é o bom humor com o qual ele conta suas historias... ainda que
sejam tristes.
O
ex-mágico da Taberna Minhota
Murilo
Rubião
Inclina,
Senhor, o teu ouvido, e ouve-me;
porque eu sou desvalido e pobre.
(Salmos.
LXXXV, I)
Hoje sou
funcionário público e este não é o meu desconsolo maior.
Na
verdade, eu não estava preparado para o sofrimento. Todo homem, ao atingir
certa idade, pode perfeitamente enfrentar a avalanche do tédio e da amargura,
pois desde a meninice acostumou-se às vicissitudes, através de um processo
lento e gradativo de dissabores.
Tal
não aconteceu comigo. Fui atirado à vida sem pais, infância ou juventude.
Um
dia dei com os meus cabelos ligeiramente grisalhos, no espelho da Taberna
Minhota. A descoberta não me espantou e tampouco me surpreendi ao retirar do
bolso o dono do restaurante. Ele sim, perplexo, me perguntou como podia ter
feito aquilo.
O
que poderia responder, nessa situação, uma pessoa que não encontrava a menor
explicação para sua presença no mundo? Disse-lhe que estava cansado. Nascera
cansado e entediado.
Sem
meditar na resposta, ou fazer outras perguntas, ofereceu-me emprego e passei
daquele momento em diante a divertir a freguesia da casa com os meus passes
mágicos.
O
homem, entretanto, não gostou da minha prática de oferecer aos espectadores
almoços gratuitos, que eu extraía misteriosamente de dentro do paletó.
Considerando não ser dos melhores negócios aumentar o número de fregueses sem o
consequente acréscimo nos lucros, apresentou-me ao empresário do Circo-Parque
Andaluz, que, posto a par das minhas habilidades, propôs contratar-me. Antes,
porém, aconselhou-o que se prevenisse contra os meus truques, pois ninguém
estranharia se me ocorresse a ideia de distribuir ingressos graciosos para os
espetáculos.
Contrariando
as previsões pessimistas do primeiro patrão, o meu comportamento foi exemplar.
As minhas apresentações em público não só empolgaram multidões como deram
fabulosos lucros aos donos da companhia.
A
plateia, em geral, me recebia com frieza, talvez por não me exibir de casaca e
cartola. Mas quando, sem querer, começava a extrair do chapéu coelhos, cobras,
lagartos, os assistentes vibravam. Sobretudo no último número, em que eu fazia
surgir, por entre os dedos, um jacaré. Em seguida, comprimindo o animal pelas
extremidades, transformava-o numa sanfona. E encerrava o espetáculo tocando o
Hino Nacional da Cochinchina. Os aplausos estrugiam de todos os lados, sob o
meu olhar distante.
O
gerente do circo, a me espreitar de longe, danava-se com a minha indiferença
pelas palmas da assistência. Notadamente se elas partiam das criancinhas que me
iam aplaudir nas matinês de domingo. Por que me emocionar, se não me causavam
pena aqueles rostos inocentes, destinados a passar pelos sofrimentos que
acompanham o amadurecimento do homem? Muito menos me ocorria odiá-las por terem
tudo que ambicionei e não tive: um nascimento e um passado.
Com
o crescimento da popularidade a minha vida tornou-se insuportável.
Às
vezes, sentado em algum café, a olhar cismativamente o povo desfilando na
calçada, arrancava do bolso pombos, gaivotas, maritacas. As pessoas que se
encontravam nas imediações, julgando intencional o meu gesto, rompiam em
estridentes gargalhadas. Eu olhava melancólico para o chão e resmungava contra
o mundo e os pássaros.
Se,
distraído, abria as mãos, delas escorregavam esquisitos objetos. A ponto de me
surpreender, certa vez, puxando da manga da camisa uma figura, depois outra.
Por fim, estava rodeado de figuras estranhas, sem saber que destino lhes dar.
Nada
fazia. Olhava para os lados e implorava com os olhos por um socorro que não
poderia vir de parte alguma.
Situação
cruciante.
Quase
sempre, ao tirar o lenço para assoar o nariz, provocava o assombro dos que
estavam próximos, sacando um lençol do bolso. Se mexia na gola do paletó, logo
aparecia um urubu. Em outras ocasiões, indo amarrar o cordão do sapato, das
minhas calças deslizavam cobras. Mulheres e crianças gritavam. Vinham guardas,
ajuntavam-se curiosos, um escândalo. Tinha de comparecer à delegacia e ouvir
pacientemente da autoridade policial ser proibido soltar serpentes nas vias
públicas.
Não
protestava. Tímido e humilde mencionava a minha condição de mágico, reafirmando
o propósito de não molestar ninguém.
Também,
à noite, em meio a um sono tranquilo, costumava acordar sobressaltado: era um
pássaro ruidoso que batera as asas ao sair do meu ouvido.
Numa
dessas vezes, irritado, disposto a nunca mais fazer mágicas, mutilei as mãos.
Não adiantou. Ao primeiro movimento que fiz, elas reapareceram novas e
perfeitas nas pontas dos tocos de braço. Acontecimento de desesperar qualquer
pessoa, principalmente um mágico enfastiado do ofício.
Urgia
encontrar solução para o meu desespero. Pensando bem, concluí que somente a
morte poria termo ao meu desconsolo.
Firme
no propósito, tirei dos bolsos uma dúzia de leões e, cruzando os braços,
aguardei o momento em que seria devorado por eles. Nenhum mal me fizeram.
Rodearam-me, farejaram minhas roupas, olharam a paisagem, e se foram.
Na
manhã seguinte regressaram e se puseram, acintosos, diante de mim.
—
O que desejam, estúpidos animais?! — gritei, indignado.
Sacudiram
com tristeza as jubas e imploraram-me que os fizesse desaparecer:
— Este mundo é
tremendamente tedioso — concluíram.
Não
consegui refrear a raiva. Matei-os todos e me pus a devorá-los. Esperava
morrer, vítima de fatal indigestão.
Sofrimento
dos sofrimentos! Tive imensa dor de barriga e continuei a viver.
O
fracasso da tentativa multiplicou minha frustração. Afastei-me da zona urbana e
busquei a serra. Ao alcançar seu ponto mais alto, que dominava escuro abismo,
abandonei o corpo ao espaço.
Senti
apenas uma leve sensação da vizinhança da morte: logo me vi amparado por um
paraquedas. Com dificuldade, machucando-me nas pedras, sujo e estropiado,
consegui regressar à cidade, onde a minha primeira providência foi adquirir uma
pistola.
Em
casa, estendido na cama, levei a arma ao ouvido. Puxei o gatilho, à espera do
estampido, a dor da bala penetrando na minha cabeça.
Não
veio o disparo nem a morte: a máuser se transformara num lápis.
Rolei
até o chão, soluçando. Eu, que podia criar outros seres, não encontrava meios
de libertar-me da existência.
Uma
frase que escutara por acaso, na rua, trouxe-me nova esperança de romper em
definitivo com a vida. Ouvira de um homem triste que ser funcionário público
era suicidar-se aos poucos.
Não
me encontrava em condições de determinar qual a forma de suicídio que melhor me
convinha: se lenta ou rápida. Por isso empreguei-me numa Secretaria de Estado.
1930,
ano amargo. Foi mais longo que os posteriores à primeira manifestação que tive
da minha existência, ante o espelho da Taberna Minhota.
Não
morri, conforme esperava. Maiores foram as minhas aflições, maior o meu
desconsolo.
Quando
era mágico, pouco lidava com os homens -o palco me distanciava deles. Agora,
obrigado a constante contato com meus semelhantes, necessitava compreendê-los,
disfarçar a náusea que me causavam.
O
pior é que, sendo diminuto meu serviço, via -me na contingência de permanecer à
toa horas a fio. E o ócio levou-me à revolta contra a falta de um passado. Por
que somente eu, entre todos os que viviam sob os meus olhos, não tinha alguma
coisa para recordar? Os meus dias flutuavam confusos, mesclados com pobres
recordações, pequeno saldo de três anos de vida.
O
amor que me veio por uma funcionária, vizinha de mesa de trabalho, distraiu-me
um pouco das minhas inquietações.
Distração
momentânea. Cedo retornou o desassossego, debatia-me em incertezas. Como me
declarar à minha colega? Se nunca fizera uma declaração de amor e não tivera
sequer uma experiência sentimental!
1931
entrou triste, com ameaças de demissões coletivas na Secretaria e a recusa da
datilógrafa em me aceitar. Ante o risco de ser demitido, procurei acautelar
meus interesses. (Não me importava o emprego. Somente temia ficar longe da
mulher que me rejeitara, mas cuja presença me era agora indispensável.)
Fui
ao chefe da seção e lhe declarei que não podia ser dispensado, pois, tendo dez
anos de casa, adquirira estabilidade no cargo.
Fitou-me
por algum tempo em silêncio. Depois, fechando a cara, disse que estava atônito
com meu cinismo. Jamais poderia esperar de alguém, com um ano de trabalho, ter
a ousadia de afirmar que tinha dez.
Para
lhe provar não ser leviana a minha atitude, procurei nos bolsos os documentos
que comprovavam a lisura do meu procedimento. Estupefato, deles retirei apenas
um papel amarrotado — fragmento de um poema inspirado nos seios da datilógrafa.
Revolvi,
ansioso, todos os bolsos e nada encontrei.
Tive
que confessar minha derrota. Confiara demais na faculdade de fazer mágicas e
ela fora anulada pela burocracia.
Hoje,
sem os antigos e miraculosos dons de mago, não consigo abandonar a pior das
ocupações humanas. Falta-me o amor da companheira de trabalho, a presença de
amigos, o que me obriga a andar por lugares solitários. Sou visto muitas vezes
procurando retirar com os dedos, do interior da roupa, qualquer coisa que
ninguém enxerga, por mais que atente a vista.
Pensam
que estou louco, principalmente quando atiro ao ar essas pequeninas coisas.
Tenho
a impressão de que é uma andorinha a se desvencilhar das minhas mãos. Suspiro
alto e fundo.
Não
me conforta a ilusão. Serve somente para aumentar o arrependimento de não ter
criado todo um mundo mágico.
Por
instantes, imagino como seria maravilhoso arrancar do corpo lenços vermelhos,
azuis, brancos, verdes. Encher a noite com fogos de artifício. Erguer o rosto
para o céu e deixar que pelos meus lábios saísse o arco-íris. Um arco-íris que
cobrisse a Terra de um extremo a outro. E os aplausos dos homens de cabelos
brancos, das meigas criancinhas.