sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Projeto Contos do Sábado na Usina: Machado de Assis: O RELÓGIO DE OURO.


 Agora contarei a história do relógio de ouro. Era um grande cronômetro,
inteiramente novo, preso a uma elegante cadeia. Luís Negreiros tinha
muita razão em ficar boquiaberto quando viu o relógio em casa, um
relógio que não era dele, nem podia ser de sua mulher. Seria ilusão dos
seus olhos? Não era; o relógio ali estava sobre uma mesa da alcova, a
olhar para ele, talvez tão espantado, como ele, do lugar e da situação.
Clarinha não estava na alcova quando Luís Negreiros ali entrou. Deixou-se
ficar na sala, a folhear um romance, sem corresponder muito nem pouco
ao ósculo com que o marido a cumprimentou logo à entrada. Era uma
bonita moça esta Clarinha, ainda que um tanto pálida, ou por isso
mesmo. Era pequena e delgada; de longe parecia uma criança; de perto,
quem lhe examinasse os olhos, veria bem que era mulher como poucas.
Estava molemente reclinada no sofá, com o livro aberto, e os olhos no
livro, os olhos apenas, porque o pensamento, não tenho certeza se estava
no livro, se em outra parte. Em todo o caso parecia alheia ao marido e ao
relógio.
Luís Negreiros lançou mão do relógio com uma expressão que eu não me
atrevo a descrever. Nem o relógio, nem a corrente eram dele; também
não eram de pessoas suas conhecidas. Tratava-se de uma charada. Luís
Negreiros gostava de charadas, e passava por ser decifrador intrépido;
mas gostava de charadas nas folhinhas ou nos jornais. Charadas
palpáveis ou cronométricas, e sobretudo sem conceito, não as apreciava
Luís Negreiros.
Por esse motivo, e outros que são óbvios, compreenderá o leitor que o
esposo de Clarinha se atirasse sobre uma cadeira, puxasse raivosamente
os cabelos, batesse com o pé no chão, e lançasse o relógio e a corrente
para cima da mesa. Terminada esta primeira manifestação de furor, Luís
Negreiros pegou de novo nos fatais objetos, e de novo os examinou. Ficou
na mesma. Cruzou os braços durante algum tempo e refletiu sobre o
caso, interrogou todas as suas recordações, e concluiu no fim de tudo
que, sem uma explicação de Clarinha qualquer procedimento fora baldado
ou precipitado.
Foi ter com ela.
Clarinha acabava justamente de ler uma página e voltava a folha com o
ar indiferente e tranqüilo de quem não pensa em decifrar charadas de
cronômetro. Luís Negreiros encarou-a; seus olhos pareciam dois
reluzentes punhais.
— Que tens? perguntou a moça com a voz doce e meiga que toda a gente
concordava em lhe achar.
Luís Negreiros não respondeu à interrogação da mulher; olhou algum
tempo para ela; depois deu duas voltas na sala, passando a mão pelos
cabelos, por modo que a moça de novo lhe perguntou:
 — Que tens?
Luís Negreiros parou defronte dela.
— Que é isto? disse ele tirando do bolso o fatal relógio e apresentando-lho
diante dos olhos. Que é isto? repetiu ele com voz de trovão.
Clarinha mordeu os beiços e não respondeu. Luís Negreiros esteve algum
tempo com o relógio na mão e os olhos na mulher, a qual tinha os seus
olhos no livro. O silêncio era profundo. Luís Negreiros foi o primeiro que o
rompeu, atirando estrepitosamente o relógio ao chão, e dizendo em
seguida à esposa:
— Vamos, de quem é aquele relógio?
Clarinha ergueu lentamente os olhos para ele, abaixou-os depois, e
murmurou:
— Não sei.
Luís Negreiros fez um gesto como de quem queria esganá-la; conteve-se.
A mulher levantou-se, apanhou o relógio e pô-lo sobre uma mesa
pequena. Não se pôde conter Luís Negreiros. Caminhou para ela, e,
segurando-lhe nos pulsos com força, lhe disse:
— Não me responderás, demônio? Não me explicarás esse enigma?
Clarinha fez um gesto de dor, e Luís Negreiros imediatamente lhe soltou
os pulsos que estavam arrochados. Noutras circunstâncias é provável que
Luís Negreiros lhe caísse aos pés e pedisse perdão de a haver machucado.
Naquela, nem se lembrou disso; deixou-a no meio da sala e entrou a
passear de novo, sempre agitado, parando de quando em quando, como
se meditasse algum desfecho trágico.
Clarinha saiu da sala.
Pouco depois veio um escravo dizer que o jantar estava na mesa.
— Onde está a senhora?
— Não sei, não, senhor.
Luís Negreiros foi procurar a mulher, achou-a numa saleta de costura,
sentada numa cadeira baixa, com a cabeça nas mãos a soluçar. Ao ruído
que ele fez na ocasião de fechar a porta atrás de si, Clarinha levantou a
cabeça, e Luís Negreiros pôde ver-lhe as faces úmidas de lágrimas. Esta
situação foi ainda pior para ele que a da sala. Luís Negreiros não podia
ver chorar uma mulher, sobretudo a dele. Ia enxugar-lhe as lágrimas com
um beijo, mas reprimiu o gesto, e caminhou frio para ela; puxou uma
cadeira e sentou-se em frente de Clarinha.
— Estou tranqüilo, como vês, disse ele, responde-me ao que te perguntei
com a franqueza que sempre usaste comigo. Eu não te acuso nem
suspeito nada de ti. Quisera simplesmente saber como foi parar ali aquele
relógio. Foi teu pai que o esqueceu cá?
— Não.
— Mas então...
— Oh! não me perguntes nada! exclamou Clarinha; ignoro como esse
relógio se acha ali... Não sei de quem é... deixa-me.
— É demais! urrou Luís Negreiros, levantando-se e atirando a cadeira ao
chão.
Clarinha estremeceu, e deixou-se ficar aonde estava. A situação tornava-
se cada vez mais grave; Luís Negreiros passeava cada vez mais agitado,
revolvendo os olhos nas órbitas, e parecendo prestes a atirar-se sobre a
infeliz esposa. Esta, com os cotovelos no regaço e a cabeça nas mãos,
tinha os olhos encravados na parede. Correu assim cerca de um quarto de
hora. Luís Negreiros ia de novo interrogar a esposa, quando ouviu a voz
do sogro, que subia as escadas gritando:
— Ó seu Luís! ó seu malandrim!
— Aí vem teu pai! disse Luís Negreiros; logo me pagarás.
Saiu da sala de costura e foi receber o sogro, que já estava no meio da
sala, fazendo viravoltas com o chapéu de sol, com grande risco das jarras
e do candelabro.
— Vocês estavam dormindo? perguntou o Sr. Meireles tirando o chapéu e
limpando a testa com um grande lenço encarnado.
— Não, senhor, estávamos conversando...
— Conversando?... repetiu Meireles.
E acrescentou consigo:
“Estavam de arrufos... é o que há de ser”.
— Vamos justamente jantar, disse Luís Negreiros. Janta conosco?
— Não vim cá para outra coisa, acudiu Meireles; janto hoje e amanhã
também. Não me convidaste, mas é o mesmo.
— Não o convidei?...
— Sim, não fazes anos amanhã?
— Ah! é verdade...
Não havia razão aparente para que, depois destas palavras ditas com um
tom lúgubre, Luís Negreiros repetisse, mas desta vez com um tom
descomunalmente alegre:
— Ah! é verdade!...
Meireles, que já ia pôr o chapéu num cabide do corredor, voltou-se
espantado para o genro, em cujo rosto leu a mais franca, súbita e
inexplicável alegria.
— Está maluco! disse baixinho Meireles.
— Vamos jantar, bradou o genro, indo logo para dentro, enquanto
Meireles seguindo pelo corredor ia ter à sala de jantar.
Luís Negreiros foi ter com a mulher na sala de costura, e achou-a de pé,
compondo os cabelos diante de um espelho:
— Obrigado, disse.
A moça olhou para ele admirada.
— Obrigado, repetiu Luís Negreiros; obrigado e perdoa-me.
Dizendo isto, procurou Luís Negreiros abraçá-la; mas a moça, com um
gesto nobre, repeliu o afago do marido e foi para a sala de jantar.
— Tem razão! murmurou Luís Negreiros.
Daí a pouco achavam-se todos três à mesa do jantar, e foi servida a sopa,
que Meireles achou, como era natural, de gelo. Ia já fazer um discurso a
respeito da incúria dos criados, quando Luís Negreiros confessou que toda
a culpa era dele, porque o jantar estava há muito na mesa. A declaração
apenas mudou o assunto do discurso, que versou então sobre a terrível
coisa que era um jantar requentado, — qui ne valut jamais rien.
Meireles era um homem alegre, pilhérico, talvez frívolo demais para a
idade, mas em todo o caso interessante pessoa. Luís Negreiros gostava
muito dele, e via correspondida essa afeição de parente e de amigo, tanto
mais sincera quanto que Meireles só tarde e de má vontade lhe dera a
filha. Durou o namoro cerca de quatro anos, gastando o pai de Clarinha
mais de dois em meditar e resolver o assunto do casamento. Afinal deu a
sua decisão, levado antes das lágrimas da filha que dos predicados do
genro, dizia ele.
A causa da longa hesitação eram os costumes pouco austeros de Luís
Negreiros, não os que ele tinha durante o namoro, mas os que tivera
antes e os que poderia vir a ter depois. Meireles confessava
ingenuamente que fora marido pouco exemplar, e achava que por isso
mesmo devia dar à filha melhor esposo do que ele. Luís Negreiros
desmentiu as apreensões do sogro; o leão impetuoso dos outros dias,
tornou-se um pacato cordeiro. A amizade nasceu franca entre o sogro e o
genro, e Clarinha passou a ser uma das mais invejadas moças da cidade.
E era tanto maior o mérito de Luís Negreiros quanto que não lhe faltavam
tentações. O diabo metia-se às vezes na pele de um amigo e ia convidá-lo
a uma recordação dos antigos tempos. Mas Luís Negreiros dizia que se
recolhera a bom porto e não queria arriscar-se outra vez às tormentas do
alto mar.
Clarinha amava ternamente o marido, e era a mais dócil e afável criatura
que por aqueles tempos respirava o ar fluminense. Nunca entre ambos se
dera o menor arrufo; a limpidez do céu conjugal era sempre a mesma e
parecia vir a ser duradoura. Que mau destino lhe soprou ali a primeira
nuvem?
Durante o jantar Clarinha não disse palavra — ou poucas dissera, ainda
assim as mais breves e em tom seco.
“Estão de arrufo, não há dúvida”, pensou Meireles ao ver a pertinaz
mudez da filha. “Ou a arrufada é só ela, porque ele parece-me lépido.”
Luís Negreiros efetivamente desfazia-se todo em agrados, mimos e
cortesias com a mulher, que nem sequer olhava em cheio para ele. O
marido já dava o sogro a todos os diabos, desejoso de ficar a sós com a
esposa, para a explicação última, que reconciliaria os ânimos. Clarinha
não parecia desejá-lo; comeu pouco e duas ou três vezes soltou-se-lhe do
peito um suspiro.
Já se vê que o jantar, por maiores que fossem os esforços, não podia ser
como nos outros dias. Meireles sobretudo achava-se acanhado. Não era
que receasse algum grande acontecimento em casa; sua idéia é que sem
arrufos não se aprecia a felicidade, como sem tempestade não se aprecia
o bom tempo. Contudo, a tristeza da filha sempre lhe punha água na
fervura.
Quando veio o café, Meireles propôs que fossem todos três ao teatro; Luís
Negreiros aceitou a idéia com entusiasmo. Clarinha recusou secamente.
— Não te entendo hoje, Clarinha, disse o pai com um modo impaciente.
Teu marido está alegre e tu pareces-me abatida e preocupada. Que tens?
Clarinha não respondeu; Luís Negreiros, sem saber o que havia de dizer,
tomou a resolução de fazer bolinhas de miolo de pão. Meireles levantou
os ombros.
— Vocês lá se entendem, disse ele. Se amanhã, apesar de ser o dia que
é, vocês estiverem do mesmo modo, prometo-lhes que nem a sombra me
verão.
— Oh! há de vir, ia dizendo Luís Negreiros, mas foi interrompido pela
mulher que desatou a chorar.
O jantar acabou assim triste e aborrecido. Meireles pediu ao genro que
lhe explicasse o que aquilo era, e este prometeu que lhe diria tudo em
ocasião oportuna.
Pouco depois saía o pai de Clarinha protestando de novo que, se no dia
seguinte os achasse do mesmo modo, nunca mais voltaria à casa deles, e
que se havia coisa pior que um jantar frio ou requentado, era um jantar
mal digerido. Este axioma valia o de Boileau, mas ninguém lhe prestou
atenção.
Clarinha fora para o quarto; o marido, apenas se despediu do sogro, foi
ter com ela. Achou-a sentada na cama, com a cabeça sobre uma
almofada, e soluçando. Luís Negreiros ajoelhou-se diante dela e pegou-
lhe numa das mãos.
— Clarinha, disse ele, perdoa-me tudo. Já tenho a explicação do relógio;
se teu pai não me fala em vir jantar amanhã, eu não era capaz de
adivinhar que o relógio era um presente de anos que tu me fazias.
Não me atrevo a descrever o soberbo gesto de indignação com que a
moça se pôs de pé quando ouviu estas palavras do marido. Luís Negreiros
olhou para ela sem compreender nada. A moça não disse uma nem duas;
saiu do quarto e deixou o infeliz consorte mais admirado que nunca.
“Mas que enigma é este?” perguntava a si mesmo Luís Negreiros. “Se não
era um mimo de anos, que explicação pode ter o tal relógio?”
A situação era a mesma que antes do jantar. Luís Negreiros assentou de
descobrir tudo naquela noite. Achou, entretanto, que era conveniente
refletir maduramente no caso e assentar numa resolução que fosse
decisiva. Com este propósito recolheu-se ao seu gabinete, e ali recordou
tudo o que se havia passado desde que chegara à casa. Pesou friamente
todas as razões, todos os incidentes, e buscou reproduzir na memória a
expressão do rosto da moça, em toda aquela tarde. O gesto de indignação
e a repulsa quando ele a foi abraçar na sala de costura, eram a favor
dela; mas o movimento com que mordera os lábios no momento em que
ele lhe apresentou o relógio, as lágrimas que lhe rebentaram à mesa, e
mais que tudo o silêncio que ela conservava a respeito da procedência do
fatal objeto, tudo isso falava contra a moça.
Luís Negreiros, depois de muito cogitar, inclinou-se à mais triste e
deplorável das hipóteses. Uma idéia má começou a enterrar-se-lhe no
espírito, à maneira de verruma, e tão fundo penetrou, que se apoderou
dele em poucos instantes. Luís Negreiros era homem assomado quando a
ocasião o pedia. Proferiu duas ou três ameaças, saiu do gabinete e foi ter
com a mulher.
Clarinha recolhera-se de novo ao quarto. A porta estava apenas cerrada.
Eram nove horas da noite. Uma pequena lamparina alumiava
escassamente o aposento. A moça estava outra vez assentada na cama,
mas já não chorava; tinha os olhos fitos no chão. Nem os levantou
quando sentiu entrar o marido.
 Houve um momento de silêncio.
Luís Negreiros foi o primeiro que falou.
— Clarinha, disse ele, este momento é solene. Responde-me ao que te
pergunto desde esta tarde?
A moça não respondeu.
 — Reflete bem, Clarinha, continuou o marido. Podes arriscar a tua vida.
A moça levantou os ombros.
 Uma nuvem passou pelos olhos de Luís Negreiros. O infeliz marido lançou
as mãos ao colo da esposa e rugiu:
 — Responde, demônio, ou morres!
Clarinha soltou um grito.
 — Espera! disse ela.
Luís Negreiros recuou.
 — Mata-me, disse ela, mas lê isto primeiro. Quando esta carta foi ao teu
escritório já te não achou lá: foi o que o portador me disse.
Luís Negreiros recebeu a carta, chegou-se à lamparina e leu estupefato
estas linhas:
 Meu nhonhô. Sei que amanhã fazes anos; mando-te esta lembrança.
 Tua Iaiá.
 Assim acabou a história do relógio de ouro.

 Histórias da Meia-Noite
Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873

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