sexta-feira, 16 de julho de 2021

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo: A COZINHEIRA I:




Araújo entrou em casa alegre como passarinho. Atravessou o corredor cantarolando a Mascote, penetrou na sala de jantar, e atirou para cima do aparador de vieux-chêne um grande embrulho quadrado; mas, de repente, deixou de cantarolar e ficou muito sério: a mesa não estava posta! Consultou o relógio: era cinco e meia.
— Então que é isto? São estas horas e a mesa ainda neste estado! - Maricas! Maricas entrou, arrastando lentamente uma elegante bata de seda. 
Araújo deu-lhe o beijo conjugal, que há três anos estalava todo dia à mesma hora, invariavelmente - e interpelou-a: 
— Então, o jantar 
— Pois sim, espera por ele! 
— Alguma novidade? 
— A Josefa tomou um pileque onça, e foi-se embora sem ao menos deitar as panelas no fogo! 
Araújo caiu aniquilado na cadeira de balanço. Já tardava! A Josefa servia-os há dois meses, e as outras cozinheiras não tinham lá parado nem oito dias! 
— Diabo! dizia ele irritadíssimo; diabo! 
E lembrava-se da terrível estopada que o esperava no dia seguinte: agarrar no Jornal do Comércio, meter-se num tílburi, e subir cinqüenta escadas à procura de uma cozinheira! 
Ainda da última vez tinha sido um verdadeiro inferno! — Papapá! — Quem bate! — Foi aqui que anunciaram uma cozinheira? — Foi, mas já está alugada. — Repetiu-se esta cena um ror de vezes! 
— Vai a uma agência, aconselhou Maricas. 
— Ora muito obrigado! - bem sabes o que temos sofrido com as tais agências. Não há nada pior. 
E enquanto Araújo, muito contrariado, agitava nervosamente a ponta do pé e dava pequenos estalidos de língua, Maricas abria o embrulho que ele ao entrar deixara sobre o aparador... 
— Oh! como é lindo! exclamou extasiada diante de uma magnífico chapéu de palha, com muitas fitas e muitas flores. Há de me ficar muito bem. Decididamente és um homem de gosto! 
E, sentando-se no colo de Araújo, agradecia-lhe com beijos e carícias o inesperado mimo. Ele deixava- se beijar friamente, repetindo sempre: 
— Diabo! diabo!... 
— Não te amofines assim por causa de uma cozinheira. 
— Dizes isso porque não és tu que vais correr a via sacra à procura de outra. 
— Se queres, irei; não me custa. 
— Não! Deus me livre de dar-te essa maçada. Irei eu mesmo. Ergueram-se ambos. Ele parecia agora mais resignado, e disse: 
— Ora, adeus! Vamos jantar num hotel! 
— Apoiado! Em qual há de ser? 
— No Daury. É o que está mais perto. Ir agora à cidade seria uma grande maçada. 
— Está dito: vamos ao Daury. 
— Vai te vestir 
fresca. 
Às oito horas da noite Araújo e Maricas voltaram do Daury perfeitamente jantados e puseram-se à 
Ela mandou iluminar a sala, e foi para o piano assassinar miseravelmente a marcha da Aída; ele, deitado 
num soberbo divã estofado, saboreando o seu Rondueles, contemplava uma finíssima gravura de Goupil, que enfeitava a parede fronteira, e lembrava-se do dinheirão que gastara para mobiliar a ornar aquele bonito chalé da rua do Matoso. 
Às dez horas recolheram-se ambos. Largo e suntuoso leito de jacarandá e pau-rosa, sob um dossel de seda, entre cortinas de rendas, oferecia-lhes o inefável conchego das suas colchas adamascadas. 
À primeira pancada da meia-noite, Araújo ergue-se de um salto, obedecendo a um movimento instintivo. Vestiu-se, pôs o chapéu, deu um beijo de despedida em Maricas, que dormia profundamente, e saiu de casa com mil cuidados para não despertá-la. 
A uns cinqüenta passos de distância, dissimulado na sombra, estava um homem cujo vulto se aproximou à medida que o dono da casa se afastava... 
Quando o som dos passos de Araújo se perdeu de todo no silêncio e ele desapareceu na escuridão da noite, o outro tirou uma chave do bolso, abriu a porta do chalé, e entrou... 
Na ocasião em que se voltava para fechar a porta, a luz do lampião fronteiro bateu-lhe em cheio no rosto; se alguém houvesse defronte, veria no misterioso noctívago um formoso rapaz de vinte anos. 
Entretanto, Araújo desceu a rua Matriz e Barros, subiu a de São Cristóvão, e um quarto de hora depois entrava numa casinha de aparência pobre.

Contos do Sábado na Usina: Machado de Assis: VII - UM RIVAL:



Não era a primeira vez que Mrs. Oswald aludia a alguma coisa que desagradava a Guiomar, nem a primeira que esta lhe respondia com a sequidão que o leitor viu no fim do 
capitulo anterior. A boa inglesa ficou séria e calada alguns dois ou três minutos, a olhar para Guiomar, aparentemente buscando interrogar-lhe o pensamento, mas na realidade sem saber como sair da situação. A moça rompeu o silêncio: 
— Está bom, disse ela sorrindo, não vejo razão para que se zangue comigo. 
— Não estou zangada, acudiu prontamente Mrs. Oswald. Zangada por quê? Pesa-me, decerto, que a natureza me não dê razão, e que uma aliança tão conveniente, para ambos, seja repelida pela senhora; mas se isto é motivo de desgosto, não pode sê-lo de zanga... 
— Desgosto? 
— Para mim... e naturalmente para ele. 
Guiomar respondeu com um simples sacudir de ombros, seco e rápido, como quem se lhe não dava do mal ou não acreditava nele. Mrs. Oswald não atinou qual destas impressões seria, e concluiu que fossem ambas. A moça, entretanto, pareceu arrepender-se daquele movimento; travou das mãos da inglesa, e com uma voz ainda mais doce e macia que de costume, lhe disse: 
— Veja o que é ser criança! Não parece que ainda em cima me zango com a senhora? 
— Parece. 
— Pois não é exato. Isto são caprichos de menina mal-educada. Dei para não gostar que me adorem... Minto; disso gosto eu; mas quisera que me adorassem somente, não lhe parece? 
E Guiomar acompanhou estas palavras com uma risadinha mimosa e uns gestos de criança travessa, que destoavam inteiramente da sua gravidade habitual. 
— Já sei, gosta de uma adoração como a do Dr. Estêvão, silenciosa e resignada, uma adoração... 
E Mrs. Oswald, que, como boa protestante que era, tinha a Escritura na ponta dos dedos, continuou por este modo, acentuando as palavras: 
— Uma adoração como a que devia inspirar José, filho de Jacó, que era belo como a senhora: "por ele as moças andavam por cima da cerca"... 
— Da cerca? perguntou Guiomar tornando-se seria. 
— Do muro, diz a Escritura, mas eu digo da cerca porque... nem eu sei por quê. Não core! Olhe que se denuncia. 
Guiomar corara deveras; mas era a altivez e o pundonor ofendido que lhe falavam no rosto. Olhou fria e longamente para a inglesa, com um desses olhares, que são, por assim dizer, um gesto da alma indignada. 
O que a irritava não era a alusão, que não valia muito, era a pessoa que a fazia, — inferior e mercenária. Mrs. Oswald percebeu isto mesmo; mordeu a ponta do lábio, mas transigiu com a moça. 
— Meu Deus! disse ela. Parece que se zangou por uma brincadeira à-toa. Bem sabe que eu não podia querer agravá-la; supô-lo é ofender-me a mim, — a mim, que também lhe tenho afeto de mãe... 
A última palavra aquietou o ânimo de Guiomar; ela tinha cedido ao impulso do seu caráter altivo, mas a razão veio depois, e o coração também, que não era mau. A inglesa, que possuía longa prática da vida e sabia ceder a tempo, uniu o gesto à palavra e chamou-a com os braços para si. 
Guiomar deixou-se ir, um pouco de má vontade, e a conversa teria acabado ali, se Mrs. 
Oswald não lhe dissesse com a mais doce voz que daquela garganta podia sair: 
— Convença-se de que eu sou importuna e indiscreta por afeição, e que a felicidade desta família é toda a ambição da minha alma. Não pode haver intenção melhor do que esta. Um conselho último, — último se me não consentir mais falar-lhe nisto; — eu creio que a senhora sonha talvez demais. Sonhará uns amores de romance, quase impossíveis? digo-lhe que faz mal, que é melhor, muito melhor contentar-se com a realidade; se ela não é brilhante como os sonhos, tem pelo menos a vantagem de existir. 
Guiomar cravara desta vez os olhos no chão, com a expressão vaga e morta de quem os apagou para as coisas externas. As palavras de Mrs. 
Oswald responder-lhe-iam acaso a alguma voz íntima? A inglesa prosseguiu na mesma ordem de idéias, sem que ela a interrompesse ou desse sinal de si. Quando ela acabou, Guiomar estremeceu, como se acordasse; levantou a cabeça, e lenta, e comovida, proferiu esta única resposta: 
— Talvez tenha razão, Mrs. Oswald, mas em todo o caso os sonhos são tão bons! 
Mrs. Oswald abanou a cabeça e saiu; Guiomar acompanhou-a com os olhos, a sorrir, satisfeita de si mesma, e a murmurar tão baixo que mal a ouvia o seu próprio coração: 
— Sonhos não, realidade pura. 
Suponho que o leitor estará curioso de saber quem era o feliz ou infeliz mortal, de quem as duas trataram no diálogo que precede, se é que já não suspeitou que esse era nem mais nem menos o sobrinho da baronesa, - aquele moço que apenas de passagem lhe apontei nas escadas do Ginásio. 
Era um rapaz de vinte e cinco a vinte e seis anos. Jorge chamava-se ele; não era feio mas a arte estragava um pouco a obra da natureza. O muito mimo empece a planta, disse o poeta, e esta máxima não é só aplicável à poesia, mas também ao homem. Jorge tinha um lindo bigode castanho, untado e retesado com excessivo esmero. Os olhos, claros e vivos, seriam mais belos, 
se ele não os movesse com afetação, às vezes feminina. 
O mesmo direi dos modos, que seriam fáceis e naturais, se os não tornasse tão alinhados e medidos. As palavras saíam-lhe lentas e contadas, como a fazer sentir toda a munificência do autor. Não as proferia como as demais pessoas; cada sílaba era por assim dizer espremida, sendo fácil ver ao cabo de alguns minutos, que ele fazia consistir toda a beleza de elocução nesse alongar do vocábulo. As idéias orçavam pelo modo de as exprimir; eram chochas por dentro, mas traziam uma côdea de gravidade pesadona, que dava vontade de ir espairecer o ouvido em coisas leves e folgazãs. 
Tais eram os defeitos aparentes de Jorge. Outros havia, e desses, o maior era um pecado mortal, o sétimo. O nome que lhe deixara o pai, e a influência da tia podiam servir-lhe nas mãos para fazer carreira em alguma coisa pública; ele, porém, preferia vegetar à toa, vivendo do pecúlio que dos pais herdara e das esperanças que tinha na afeição da baronesa. Não se lhe conhecia outra ocupação. 
Não obstante os defeitos apontados, havia nele qualidades boas; sabia dedicar-se, era generoso, incapaz de malfazer, e tinha sincero amor à velha parenta. A baronesa, pela sua parte, queria-lhe muito. Guiomar e ele eram as suas duas afeições principais, quase exclusivas. 
Tal era a pessoa cujos interesses defendia Mrs. Oswald, por amor da baronesa, e não menos de si própria. A baronesa também tinha os seus sonhos, como ela mesma disse, e esses eram deixar felizes aquelas duas crianças. Jorge pela sua parte estava disposto a estender o colo ao sacrifício; e, bem examinadas as coisas, talvez amasse sinceramente a moça. A diferença entre ele e Estêvão é que o seu amor era tão medido como os seus gestos, e tão superficial como as suas outras impressões. 
Do que aí fica dito, facilmente compreenderá o leitor que, dos dois namorados, só um percebeu logo o sentimento do outro. A alma de Estêvão andava-lhe nos olhos, enchendo-os de maneira que ele não podia ver nada mais além de Guiomar. 
Ao cabo de duas semanas a situação de Estêvão podia dizer-se menos má; na opinião dele era excelente. A baronesa soube quem ele era; Guiomar contara-lhe tudo; mas a inglesa, não menos que a observação própria, lhe mostrou que nenhum perigo corria Guiomar, e excluído o perigo, restavam as boas qualidades do bacharel, que de todo lhe caiu em graça. Mrs. 
Oswald navegou nas mesmas águas mansas, O próprio Jorge, naturalmente porque confiava em si, não temeu do rival, e pouco tardou que lhe abrisse os cancelos da sua gravidade. Que admira, pois, que a mesma Guiomar afrouxasse um pouco da primeira rigidez? 
Aquele bom rapaz tinha a salutar crendice da esperança, em que muita vez se resumem todas as bênçãos da vida. Pedia muito, como alma sequiosa que era, mas bem pouco bastava a contentá-lo. A imaginação multiplicava os zeros; com um grão de areia construiria um mundo. A afabilidade de uns e a cortesia de outros, tanto bastou para que ele se julgasse quase no termo de suas aspirações; e posto não lhe desse Guiomar uma só das animações de outro tempo, — que aliás tão frágeis eram, ainda assim acreditou ele piamente que o amor nascia, ou renascia, naquele rebelde coração. 
Guiomar, no meio das afeiçoes que a cercavam, sabia manter-se superior às esperanças de uns e às suspeitas de outros. Igualmente cortês, mas igualmente impassível para todos, movia os olhos com a serenidade da isenção, não namorados, nem sequer namoradores. Ela teria, se quisesse, a arte de Armida; saberia refrear ou aguilhoar os corações, conforme eles fossem impacientes ou tíbios; faltava-lhe porém o gosto, — ou melhor, sobrava-lhe o sentimento do que ela achava que era a sua dignidade pessoal.

 



Contos do Sábado na Usina: Machado de Assis: V - MENINICE:


Guiomar tivera humilde nascimento; era filha de um empregado subalterno não sei de que repartição do Estado, homem probo, que morreu quando ela contava apenas sete anos, legando à viúva o cuidado de a educar e manter. A viúva era mulher enérgica e resoluta, enxugou as lágrimas com a manga do modesto vestido, olhou de frente para a situação e determinou-se à luta e à vitória. 
A madrinha de Guiomar não lhe faltou naquele duro transe, e olhou por elas, como entendia que era seu dever. A solicitude, porém, não foi tão constante a princípio como veio a ser depois; outros cuidados de família lhe chamavam a atenção. 
Guiomar anunciava desde pequena as graças que o tempo lhe desabrochou e perfez. Era uma criaturinha galante e delicada, assaz inteligente e viva, um pouco travessa, decerto, mas muito menos do que é usual na infância. Sua mãe, depois que lhe morrera o marido, não tinha outro cuidado na terra, nem outra ambição mais, que a de vê-la prendada e feliz. 
Ela mesma lhe ensinou a ler mal, como ela sabia, — e a coser e bordar, e o pouco mais que possuía de seu ofício de mulher. Guiomar não tinha dificuldade nenhuma em reter o que a mãe lhe ensinava, e com tal afinco lidava por aprender, que a viúva, — ao menos nessa parte, — sentia-se venturosa. Hás de ser a minha doutora, dizia-lhe muita vez; e esta simples expressão de ternura alegrava a menina e lhe servia de incentivo à aplicação. 
A casa em que moravam era naturalmente modesta. Ali correu a infância, — mas solitária, o que é um pouco mais grave. A mãe, quando a via embebida nos jogos próprios da idade, infantilmente alegre, — mas de uma alegria que fazia mal a seus olhos de mãe, tão fundo lhe doía aquele viver, - a mãe sentia às vezes pularem-lhe as lágrimas dos olhos fora. A filha não as via, porque ela sabia escondê-las; mas adivinhava-as através da tristeza que lhe ficava no rosto. Só não adivinhava o motivo, mas bastava que fossem mágoas de sua mãe, para lhe descair também a alegria. 
Com o tempo, avultou outra causa de tristeza para a pobre viúva, ainda mais dolorosa que a primeira. Na idade apenas de dez anos, tinha Guiomar uns desmaios de espirito, uns dias de concentração e mudez, uma seriedade, a princípio intermitente e rara, depois freqüente e prolongada, que desdiziam da meninice e faziam crer à mãe que eram prenúncios de que Deus a chamava para si. Hoje sabemos que não eram. Seria acaso efeito daquela vida solitária e austera, que já lhe ia afeiçoando a alma e como que apurando as forças para as pugnas da vida? 
A primeira vez que esta gravidade da menina se lhe tornou mais patente foi uma tarde, em que ela estivera a brincar no quintal da casa. 
O muro do fundo tinha uma larga fenda, por onde se via parte da chácara pertencente a uma casa da vizinhança. A fenda era recente; e Guiomar acostumara-se a ir espairecer ali os olhos, já sérios e pensativos. Naquela tarde, como estivesse olhando para as mangueiras, a cobiçar talvez as doces frutas amarelas que lhe pendiam dos ramos, viu repentinamente aparecer-lhe diante, a cinco ou seis passos do lugar em que estava, um rancho de moças, todas bonitas, que arrastavam por entre as árvores os seus vestidos, e faziam luzir aos últimos raios do sol poente as jóias que as enfeitavam. Elas passaram alegres, descuidadas, felizes; uma ou outra lhe dispensou talvez algum afago; mas foram-se, e com elas os olhos da interessante pequena, que ali ficou largo tempo absorta, alheia de si, vendo ainda na memória o quadro que passara. 
Anoite veio, a menina recolheu-se pensativa e melancólica, sem nada explicar à solícita curiosidade da mãe. Que explicaria ela, se mal podia compreender a impressão que as coisas lhe deixavam? Mas, como a mãe entristecesse com aquilo, Guiomar domou o próprio espírito e fez-se tão jovial como nos melhores dias. 
Esta era ainda outra feição da menina; tinha uma força de vontade superior aos seus anos. Com ela, e a viveza intelectual que Deus lhe dera, logrou aprender tudo o que a mãe lhe ensinara, e melhor ainda do que ela o sabia, desde que o tempo lhe permitiu desenvolver os primeiros elementos. 
Aos treze anos ficou órfã; este fundo golpe em seu coração, foi o primeiro que ela verdadeiramente pôde sentir, e o maior que a fortuna lhe desfechou. Já então a madrinha a fizera entrar para um colégio, onde aperfeiçoava o que sabia e onde lhe ensinavam muita coisa mais. 
Vivia ainda então a filha da baronesa, uma interessante criança de treze anos, que era toda a alma e encanto de sua mãe. Guiomar visitava a casa da madrinha; a idade quase igual das duas meninas, a afeição que as ligava, a beleza e meiguice de Guiomar, a graciosa compostura de seus modos, tudo apertou entre a madrinha e a afilhada os laços puramente espirituais que as uniam antes. Guiomar correspondia aos sentimentos daquela segunda mãe; havia talvez em seu afeto, aliás sincero, um tal encarecimento que podia parecer simulação. O afeto era espontâneo; o encarecimento é que seria voluntário. 
Tinha a moça dezesseis anos quando passou para o colégio da tia de Estêvão, onde pareceu à baronesa se lhe poderia dar mais apurada educação. Guiomar manifestara então o desejo de ser professora. 
— Não há outro recurso, disse ela à baronesa quando lhe confiou esta aspiração. 
— Como assim? perguntou a madrinha. 
— Não há, repetiu Guiomar. Não duvido, nem posso negar o amor que a senhora me tem; mas a cada qual cabe uma obrigação, que se deve cumprir. A minha é... é ganhar o pão. 
Estas últimas palavras passaram-lhe pelos lábios como que à força. 
O rubor subiu-lhe às faces; dissera-se que a alma cobria o rosto de vergonha. 
— Guiomar! exclamou a baronesa. 
— Peço-lhe uma coisa honrosa para mim, respondeu Guiomar com simplicidade. 
A madrinha sorriu e aprovou-a com um beijo, — assentimento de boca, a que já o coração não respondia, e que o destino devia mudar. 
Pouco tempo depois padeceu a baronesa o golpe quase mortal a que aludiu no capítulo anterior. A filha morreu de repente, e o inopinado do desastre quase levou a mãe à sepultura. 
A afeição de Guiomar não se desmentiu nessa dolorosa situação. Ninguém mostrou sentir mais do que ela a morte de Henriqueta, ninguém consolou tão dedicadamente a infeliz que lhe sobrevivia. Eram ainda verdes os seus anos; todavia revelou ela a posse de uma alma igualmente terna e enérgica, afetuosa e resoluta. Guiomar foi durante alguns dias a verdadeira dona da casa; a catástrofe abatera a própria Mrs. Oswald. 
O coração da pobre mãe ficara tão vazio, e a vida lhe pareceu tão agra e deserta sem a filha, que ela morreria talvez de saudade, se não fora a presença de Guiomar. Nenhuma outra criatura poderia preencher, como esta, o lugar de Henriqueta. Guiomar era já meia filha da baronesa; as circunstâncias, não menos que o coração, tinham-nas destinado uma para a outra. Um dia, em que a afilhada fora visitar a madrinha, esta lhe disse que a iria em breve buscar para sua casa. 
— Você será a filha que eu perdi; ela não me amou mais, nem eu já agora teria outra consolação. 
— Oh! madrinha! exclamou Guiomar beijando-lhe as mãos. 
A baronesa estava assentada; Guiomar ajoelhou-se-lhe aos pés e pôs-lhe a cabeça no regaço. A boa mãe curvou-se e beijou-lha ternamente, com os olhos naquela filha que os sucessos lhe haviam dado, e o pensamento no céu, onde devia estar a outra, que Deus lhe dera e levou para si. 
Pouco depois estabeleceu-se Guiomar definitivamente em casa da madrinha, onde a alegria reviveu, gradualmente, graças à nova moradora, em quem havia um tino e sagacidade raros. Tendo presenciado, durante algum tempo, e não breve, o modo de viver entre a madrinha e Henriqueta, Guiomar pôs todo o seu esforço em reproduzir pelo mesmo teor os hábitos de outro tempo, de maneira que a baronesa mal pudesse sentir a ausência da filha. Nenhum dos cuidados da outra lhe esqueceu, e se em algum ponto os alterou foi para aumentar-lhe novos. Esta intenção não escapou ao espírito da baronesa, e é supérfluo dizer que deste modo os vínculos do afeto mais se apertaram entre ambas. 
Ao mesmo tempo que ia provando os sentimentos de seu coração, revelava a moça, não menos, a plena harmonia de seus instintos com a sociedade em que entrara. A educação, que nos últimos tempos recebera, fez muito, mas não fez tudo. A natureza incumbira-se de completar a obra, - melhor diremos, começá-la. Ninguém adivinharia nas maneiras finamente elegantes daquela moça, a origem mediana que ela tivera; a borboleta fazia esquecer a crisálida.

Contos do Sábado na Usina: Silviano Santiago: (Dias de vinho e rosas):


Tristeza não tem fim, felicidade sim (Vinícius de Moraes, Orfeu da Conceição)

Você acorda durante a noite. Você não sabe onde se encontra. Que horas são? Não há razões para você viver onde está morando. Você se levanta da cama no escuro. Sente uma corrente fria de ar nas pernas descobertas. Ela sobe pelo corpo até a cabeça. A cabeça se confunde com os pés. Você caminha para a sala rolando em cima dela, como o menino saltimbanco do quadro de Picasso. Você se aproxima da poltrona que dá para a janela e de lá, sem acender a luz do abajur e sentado, redescobre os próprios olhos, vendo a rua deserta e iluminada às quatro horas da manhã. A poltrona é velha e pouco cômoda. Está encardida pelo uso. Ela não combina com você. Você não combina com ela. Muito grande, não há como escondê-la no armário embutido, onde você escondeu os vários quadros que estavam dependurados nas paredes. O apartamento de quarto e sala foi alugado com os móveis e os quadros. Falta o dedo, falta o gosto. Você fica ao lado dos móveis, dentro do apartamento. Você está vivendo no apartamento como se morasse num quarto de hotel. Você liga o aparelho de televisão. Você e os móveis se entreolham de perfil, como bandido e polícia se estranham um ao outro no filme que está sendo exibido a esta hora da madrugada. A vidraça quadricula o lá fora da madrugada de inverno. Você faz de conta que ela está aberta. Neste momento você não quer saber as razões pelas quais você faz de conta que ela esteja aberta. Ou as outras razões pelas quais você gostaria de saltar para a calçada pela janela deste terceiro andar. Você está lá fora gozando o vento da madrugada gelada no corpo aqui dentro. A tempestade de neve que desabou na quinta-feira preencheu o fim de semana de toda a cidade. Você recebeu dois telefonemas, o primeiro desmarcando um encontro e o segundo suspendendo um jantar. O gramado das casas ficou recoberto de branco. Também as calçadas. As árvores nuas são paus secos cinzentos e amedrontadores, menos os pinheiros. Estão verdes e enfeitam a cidade para o Christmas. Não foi fácil caminhar de volta para casa na sexta-feira. O céu continuava nublado e pesado. O vento frio que soprou durante toda a noite e pela manhã transformou a neve depositada na calçada num arriscado ringue de patinação e este fez do solado das botas arremedo de patins. Não se ouviam vozes humanas pelo caminho. O silvo cortante do vento rabiscava e apagava nomes próprios nos seus ouvidos, rabiscava e apagava. Você imaginou que não havia casas na cidade. Não há casas. Só ruas. Você imaginou que não havia famílias na cidade. Não há famílias.

O asfalto se deixou tingir momentaneamente de branco, figurando-se

depois como uma comprida e interminável faixa paralela e negra à sua frente. Uma faixa ensopada e suja, transformada em pura lama pelo atrito dos pneus dos carros. A faixa paralela apontou para a fuga, ou para o vazio em perspectiva das lâmpadas dos postes. Você preferiu o vazio de pirilampos elétricos perfilados até o infinito da sua visão. As estrelas são inacessíveis e

têm uma organização anárquica. Tapando e destapando os ouvidos para evitar o congelamento das orelhas, você brincou, como se brinca com uma concha, com o marulhar dos motores pouco apressados dos automóveis que trafegavam com farol baixo.

Ontem não caiu a neve que os boletins meteorológicos fornecidos pela televisão anunciaram nos sucessivos jornais da véspera. Choveu pela manhã.

Uma chuva desentranhada do gelo como um bom daiquiri mexicano. O

branco foi varrido dos jardins e das calçadas. Você conta as poucas pilhas de

neve, nem brancas nem negras, feitas pelo trabalho das pás, e agora ilhadas pela sujeira da lama e enrijecidas pelo vento. Da janela são onze pilhas, sentinelas às saídas de entrada para as garagens, como se fossem as latas não


do lixo doméstico, mas do lixo celeste. Os gramados perderam de vez o pouco de verde que ainda ostentavam antes da tempestade e agora estão amarelecidos, deixando a pura cor marrom de terra se salientar. Você se levanta da poltrona nesta madrugada de domingo e procura, com o rosto rente à vidraça, o boneco de neve visto e apreciado ontem. Não consegue vê-lo. Estava desfigurado ontem, terá se derretido com a chuva. Ostentava um petulante chapéu de palha vermelho, resto das férias de verão da família, e um cachecol preto em farrapos. Alguém, só pode ter sido por molecagem, tinha atochado uma espécie de charuto no que tinha sido a boca. Você tirou o charuto e ajeitou o chapéu de palha vermelho na massa branca disforme. Só não trouxe o chapéu para casa porque ainda não tinha a condição de lixo. Neste domingo ele é do lugar para onde o vento o levou. Já em casa, na quinta-feira, com os flocos de neve da tempestade lambendo o vidro da janela, você não sabe por que, por que você chamou Roy ao telefone. Não o via fazia muitos anos. Quinze pelo menos. Nem uma carta, nem uma palavra amiga trocaram durante todo esse tempo. Você partiu sem lhe deixar o endereço. Um dia você não quis revê-lo. Você não tem vontade de revê-lo. Tem vontade de conversar. Os móveis do apartamento alugado são feios, sujos e velhos. Os quadros estão escondidos no armário embutido. Você não está contente com as imagens do cotidiano na tela da televisão. Você não ouve as diferentes vozes que falam para você, te olhando fixamente nos olhos, informando-o do estado do mundo nesse dia. Você já esquentou e comeu a sopa enlatada. Clam chowa' era o estilo de New England, enriquecida com uma meia colher de missô. O corpo transpira. Você tira a camisa de lãzinha. Fica de camiseta, cueca e sandália havaiana. A calefação aumenta, a temperatura cai fora. Você molha o pano de prato e o estica por cima do radiador para ver se as narinas não reagem à falta de umidade no ambiente. Você abre a geladeira, retira uma pêra e o pedaço de queijo suíço envolto em papel celofane. Você come a pêra com pedaços de queijo e algumas ameixas secas. Toma depois um gole de uísque. No gargalo. Você pensa agora que o telefone é uma forma de encontrar uma pessoa sem verdadeiramente encontrá-la. Você toma um segundo gole de uísque. No gargalo. Você está adquirindo maus hábitos.Sob o pretexto de necessidade de falar com alguém por ocasião da tempestade de neve - foi por essa razão que você discou o número de Roy. Pelo menos foram estas as suas primeiras palavras ao telefone, depois de se identificar e de ouvir a expressão de espanto e alegria do outro lado. Sem mais nem menos, você tinha desaparecido da vista dele havia quinze anos. Você tinha convivido com ele durante seis anos. Fora amante dele. Não do tipo carrapato, rola rolando dia e noite na mesma cama e sob o mesmo teto. Você sempre teve o seu apartamento, embora sempre encontrasse Roy no dele. Houve razões para você estar com ele naquela época. Não há razões para você revê-lo agora. Ficarei eternamente tirando água do poço com os baldes da memória? você inventa a pergunta sentado na poltrona encardida que acolhe e rechaça o inquilino brasileiro de nariz arrebitado. Sorri da pergunta, sorri da poltrona encardida de onde é feita a pergunta, sorri da pessoa que faz a pergunta sentada na poltrona encardida. E volta a contar as pilhas de neve esparramadas pela calçada que aparecem agora como montes de feno em quadro bucólico. O riso fica desbotado quando se descobre em contradição com os dedos que apertam as teclas do telefone.

Roy te disse que se lembrava de você. Muito.

"Lembrar até que você pode, não sou eu quem vai duvidar, mas será que pode me reconhecer?"

"Só tirando a prova", disse ele, insinuando um encontro urgente. "Sempre querendo tirar uma casquinha?" "E que mal há nisso?"

"Desta vez não estou morando tão perto assim de você."

"E é preciso? Para isso existem os meios de transporte. Neste país funcionam, principalmente os transportes públicos", acelerou a vontade de te ver.

"E também o telefone. Também ele funciona maravilhosamente.

Nunca tive uma conversa interrompida porque a linha tivesse caído", você cortou de vez a ironia e a conversa mole dum futuro tête-à-tête na cidade dele, no apartamento dele, na cama dele.

"Estou em desvantagem", continuou.

Você não sabia a que ele se referia e ficou em silêncio.

Ele retoma a fala: "Você sabe o meu número de telefone, aliás, o de sempre, e eu não sei o seu. Me dê o seu número. Pelo menos o número."

Entre o pedido do seu número de telefone e o pelo menos houve uma

pausa. O pelo menos dele serviu para cortar o riso irônico e vitorioso que você

tinha ameaçado durante o que agora você reconhece ter sido uma pausa a mais.

Você negaceia. Não quer ainda lhe dar o número do telefone, muito menos o endereço ou o nome da cidade, tão próxima, onde você veio trabalhar durante uma curta temporada. Não há razões. Pura birra. Você sempre teve prazer em esconder de Roy os seus novos números de telefone. Gostava de aparecer no edifício dele, anunciando-se pelo interfone da portaria. "Você tem a chave do apartamento. Para que tanta cerimônia?", perguntava ele, dando por encerrado o ritual tolo. Você não gostava de surpreendê-lo. Gostava de não se fazer esperado."Já está de pijama?", pergunta você. "Acertou."

"O de seda?" "Acertou de novo. Um terceiro, quarto ou quinto, não sei, perdi a conta. Aquele pijama que você me deu de presente no nosso último Natal, o segundo, virou farrapo muito tempo. não digo que foi pro lixo, para não ser indelicado. Mas o padrão do tecido é o mesmo. A loja também, Bloomingdale's. A qualidade da seda é que não é mais a mesma.

"Motivo indiano?" "Motivo indiano." "Anos 60?"

"Anos 60. Motivo indiano, anos 60. Bom observador." "Boa memória", você o corrige.

"Guardada a sete chaves.

"Quando é que você vai perder essa mania?" "Qual delas? são tantas!"

"A de ir pra cama vestido com pijama." "Quando você conseguir me convencer. "Te convenci tantas vezes a dormir nu.

"E um dia deixou de convencer. Pensei que você tivesse deixado de lembrança o pijama de seda para que eu não deixasse de vesti-lo antes de ir pra cama. Pensei errado."

"Uma boa lição costuma valer pra sempre. "Qual? por exemplo."

"Ensinar uma pessoa a descobrir a própria pele enquanto adormece." "Te dou outro exemplo, quer?"

"Se for de graça...", você espicaça Roy."Ensinar uma pessoa a descobrir a sensualidade da seda sobre a pele." "Você nunca mais dormiu nu?", insiste você, com malícia.

"A ocasião faz o monge. "O hábito..."


"Você entendeu. Não se faça do que não é." "Tolo?""Não. Ciumento."

"E o que é feito do robe de seda que te dei?", pergunta Roy. Você não responde. Muda de assunto. Você pergunta pelos velhos amigos. Ismael está morto e enterrado na Colômbia. Os familiares vieram buscar o corpo dele. "Foi o fígado que pifou de vez?", você pergunta e ele confirma, ratificando a sua boa memória. Teresa, a sandinista, mudou de idéias políticas e de estilo de vida. Casou e fugiu para o México com um gringo rico e mais os filhos que não eram dela. "E Donald? E Tom? E Robert?" Os outros amigos - você descobre que não adianta ir mencionando mais os nomes da velha turma para ir matando as saudades dos bons tempos. Naquela época, Donald quis ser ator ou bailarino na Broadway. Tom trabalhava dia e noite numa companhia de seguros e Robert, filho de papai rico, pintava telas num loft do Village que mereciam ser rasgadas. Os outros amigos - ele não sabe do destino deles. Sabe, você também sabe, mas preferem silenciar. "Os tempos já não são os mesmos", você percebe que a voz dele perde o tom decidido da investida inicial. "Os corpos já não são os mesmos", você ecoa a frase de Roy, sem coragem de dizer que a vasta cabeleira negra, que contrastava na cama com os cabelos louros dele, agora são cabelos brancos raros e ralos. Daquele tempo, só a barba espessa. Cada vez mais espessa. "Nem os bares são os mesmos. "Houve um dia em que todos se fecharam." "Você não estava aqui para vê-los irem se fechando." Você não sabe se, com esse comentário, Roy lamenta o seu desaparecimento da vida dele, ou o sucessivo fechamento dos bares. "Posso não ter presenciado o fechamento dos bares de Nova York",você contra-argumenta, "mas fui vendo eles irem se fechando por muitas outras cidades tão interessantes quanto a sua. "Não viajo tanto. Aliás, não viajo nunca, você sabe, a não ser ao redor do meu quarto. Quando muito atravesso a Quinta Avenida e vou ao West Side para ver uma peça de teatro. Não sei se é pior saber que todos os bares se fecham na aldeia, ou saber que se fecham mundo afora." "Você não perde o seu jeito de ser provincianamente nova-iorquino", você comenta a maneira orgulhosa e sarcástica como Roy define a grande metrópole norte-americana, lembrando-se depois do contraste entre a maneira como programavam as suas vidas enquanto viveram em apartamentos separados e na mesma cama. Você dizia, então, que ele levava jeito de dono do império. Um londrino no século XIX às margens do Tâmisa, com a curiosidade satisfeita a cada navio que chegava com as notícias das colônias. Ele replicava, dizendo que você levava jeito de dono de empório. Um exportador paulista de café do início deste século, vistoriando os negócios pelas metrópoles do mundo chamado civilizado. E se divertindo, e como! Você intuía certa mágoa controlada nas palavras dele. "Existe alguma coisa de mais universal do que ser provinciano em Nova York?", continua ele, só para te deixar perturbado. Você diz que ele não perde a oportunidade de ficar calado. Aquela era a frase preferida dele quando vinha ver você arrumar as malas para uma nova viagem ao exterior, ou desfazê-las depois de um périplo pela Europa ou pela América Latina, para ele totalmente desnecessário. O capítulo viagem não pertencia ao apartamento dele. Servia para a listagem na caderneta de endereços dos inúmeros apartamentos abandonados por você e dos muitos números diferentes de telefone de que você foi assinante. Roy dizia então que o universalismo provinciano do nova-iorquino não era invenção dele. Tinha chegado à idéia e conseguido formular a frase depois das muitas conversas com correspondentes de jornais brasileiros que você tinha apresentado a ele. "Tão tolinhos", dizia ele em português estropiado, imitando um amigo comum, Zeca. Você encobria a inevitabilidade da viagem ao exterior com somas milagrosas de dinheiro, vantagens na profissão, saudades de amigos, tédio da vida trepidante nova-iorquina, e podia ainda se valer, como o comandante do navio que soçobra se vale de qualquer objeto a bordo para se salvar, da palavra que estivesse à mão. Roy sabia por que você viajava. Se todas as viagens são a mesma, basta fazer a primeira para ter a experiência. Roy tinha feito a primeira e única viagem depois de se graduar numa universidade do interior do país. Ele dizia que sabia das razões da sua nova viagem num misto de silêncio e malícia. Você tinha medo do estrago moral que a ternura ressentida e silenciosa dele te causava e, por isso, imediatamente lhe dava o troco, perguntando por que é que ele guardava tanto amor pela mesma cidade? pelo mesmo endereço, pelo mesmo número de telefone? É também o que você quer saber agora, quando a antiga frase dele, retomada por acaso na conversa telefônica, tinha acabado de ecoar pela madrugada do apartamento alugado, levando-o a avaliar de novo o lugar onde estaria morando por mais alguns meses. Esses móveis não são tão feios nem estão tão sujos. Não são iguais aos móveis que você tem em casa, mas são em tudo por tudo iguais aos móveis dos diferentes apartamentos alugados por onde o seu corpo transitou. E a sua cabeça e imaginação trabalharam. Eles não têm a marca do dedo, não têm as cores do gosto, não sentiram a acidez corrosiva dos produtos de limpeza. São como são os inquilinos que vão acolhendo um após outro, indistintamente. Cara de um, focinho do outro. Sem essa de desconfiança mútua. Olhe-se no espelho do banheiro. Você não verá a sua cara, verá refletida uma cabeça cubista. Depois de alguns segundos de silêncio, você diz a Roy que voltará a chamá-lo qualquer dia destes. Ele não se surpreende com o término abrupto do telefonema. Te deseja boa sorte. "Antes, não tive oportunidade de te desejar boa sorte", acrescentou. Você desejou o mesmo para ele e desligou. Na madrugada fria de domingo, sentado na velha poltrona encardida pelo uso, você não sabe se algum dia, em algum momento, chegou a amar Roy. Você nunca quis admitir que a convivência esfria a lembrança dos primeiros dias, dos primeiros meses, e que a perspectiva da convivência falseia a intensidade dos sentimentos e das emoções compartilhados. Vocês viveram uma longa relação sexual e amorosa. Durou o que tinha de durar, dadas as características da sua personalidade. Durou menos do que devia ter durado, dadas as características da personalidade de Roy. Para os amigos mais íntimos, lembrando o passado, você disse e repetiu que tivera um caso longo com um gringo em Nova York. Você sabe que não foi um caso. Pode não ter sido paixão, mas classificar o relacionamento de caso é minimizar experiências que te constituíram e te transformaram no que você é hoje. Perguntado por esses amigos se sentia saudades dele, daqueles anos em Nova York, respondia que não. "Boas lembranças", respondia. Lembra-se do gringo como a gente se lembra dum bom amigo da infância que, sem dizer adeus, tinha desaparecido na curva da adolescência. Lembra-se da cidade como a gente se lembra da ponte de onde pela primeira vez se quis pular para a eternidade. Sempre que você viajava para os Estados Unidos, ou passava por Nova York, o dedo indicador da mão direita tinha comichões antes de se entregar ao sono. Você contra-atacava a curiosidade despertada pela solicitude do aparelho de telefone no criado-mudo ao lado, inventando programas para o dia seguinte. Você não é vulgar. Você não gosta de ser vulgar quando conversa com os amigos. Você é vulgar quando trata de se convencer de que agiu corretamente nas relações amorosas. Você se transforma num voyeur de você de seu companheiro, como esses casais há muito casados que vão transar no motel porque lá tem espelhos no teto e nas paredes. Você traduz as carícias iniciais trocadas com Roy pelos nomes mais grosseiros dos órgãos sexuais envolvidos na batalha do leito e, com a fita métrica da retina, mede tamanho, diâmetro e largura e, com a sensibilidade dos ouvidos, faz a listagem completa dos ruídos malcheirosos e envergonhados e, com a suavidade do tato, apalpa espessura e asperezas, descrevendo em seguida os túneis vulgares lubrificados pela saliva pastosa e as rotas clandestinas perseguidas e finalmente permitidas e devassadas. Você menospreza a ânsia gerada pelos movimentos repetitivos, ridículos e nada monótonos, enxergando nela o prejuízo do suor que se torna pegajoso e nojento, a sujeira das peles lambuzadas que reclamam sabão e o banho de chuveiro e o cansaço dos músculos que teriam optado pelo descanso naquela noite de dia cansativo. Você descreve o gozo sexual enunciando os vários nomes do líquido, quanto mais sórdidos os nomes, e nojentos, mais vantajosos, você descreve o gozo sexual medindo a quantidade expelida do líquido e a freqüência, atendo-se a dados complementares como a indolência ou a agressividade do esguicho. A memória das suas experiências amorosas com Roy são como os dois espelhos ovais e reflexivos do guarda-roupa, que a decoração fim-de-século permitia ter ao lado da cama do casal. Recordando, você se vangloria da capacidade que tem de oferecer pele, boca, dentes, órgãos, músculos e líquido que satisfazem. Posso imaginar a que conclusão você vai chegar. Você não precisa enunciá-la. Posso enunciá-la para você: Você nunca chegou a amar Roy. "Eu nunca cheguei a amar Roy." É isso o que uma vez mais você diz para você neste momento em que as primeiras luzes do dia cinzento tornam um pouco mais nítidos os móveis encardidos, velhos e feios da sala. "Não cheguei a amá-lo." Você é vulgar."Ele serviu para me tirar a porra dos colhões como um fazendeiro ordenha uma vaca leiteira." Você continua, dizendo que você foi a vaca, e ele, um bezerro que você teve que desmamar à força. Com o dia já claro, você volta para a cama sem planos para o domingo nevado que vem pela frente. A noite desce cedo no inverno e parece que vai descendo mais cedo neste domingo em que você acorda tarde e nada faz nas poucas horas do dia, a não ser olhar sem ver as sucessivas transmissões de jogos esportivos na televisão. Antes que a noite desça de vez e mais uma vez, você olha pela janela a neve, que volta a cair recobrindo de branco as redondezas quadriculadas. Os flocos voltam a dançar alegres ao ritmo do vento. Lambem a vidraça. Abraçam-se aos ramos dos pinheiros. Assentam-se aconchegantes no gramado e rarefeitos na calçada. Os automóveis deslizam lentamente, iluminando com os faróis a sujeira da lama na rua. Você aperta as teclas do telefone. Compõe o número de Roy. Uma voz gravada do outro lado diz que o número discado se encontra desativado. Você acredita que tenha discado o número errado. Para se certificar, relê o número anotado na velha caderneta de endereços. Aperta de novo as teclas. Você não deixa que a voz gravada termine a mensagem, desliga antes. Você busca na lista telefônica o número da informação. Pede o telefone de Roy. A telefonista informa que o número não pode ser fornecido. Você insiste, dá o endereço do assinante. Ela lamenta e diz que o assinante trocou de número e acrescenta que, por uma módica quantia mensal, ele tem o direito de não ter o seu novo número publicado na lista e de impedir a sua divulgação pela telefonista de plantão. São as regras da companhia, ela termina.