sexta-feira, 16 de julho de 2021

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo: A COZINHEIRA I:




Araújo entrou em casa alegre como passarinho. Atravessou o corredor cantarolando a Mascote, penetrou na sala de jantar, e atirou para cima do aparador de vieux-chêne um grande embrulho quadrado; mas, de repente, deixou de cantarolar e ficou muito sério: a mesa não estava posta! Consultou o relógio: era cinco e meia.
— Então que é isto? São estas horas e a mesa ainda neste estado! - Maricas! Maricas entrou, arrastando lentamente uma elegante bata de seda. 
Araújo deu-lhe o beijo conjugal, que há três anos estalava todo dia à mesma hora, invariavelmente - e interpelou-a: 
— Então, o jantar 
— Pois sim, espera por ele! 
— Alguma novidade? 
— A Josefa tomou um pileque onça, e foi-se embora sem ao menos deitar as panelas no fogo! 
Araújo caiu aniquilado na cadeira de balanço. Já tardava! A Josefa servia-os há dois meses, e as outras cozinheiras não tinham lá parado nem oito dias! 
— Diabo! dizia ele irritadíssimo; diabo! 
E lembrava-se da terrível estopada que o esperava no dia seguinte: agarrar no Jornal do Comércio, meter-se num tílburi, e subir cinqüenta escadas à procura de uma cozinheira! 
Ainda da última vez tinha sido um verdadeiro inferno! — Papapá! — Quem bate! — Foi aqui que anunciaram uma cozinheira? — Foi, mas já está alugada. — Repetiu-se esta cena um ror de vezes! 
— Vai a uma agência, aconselhou Maricas. 
— Ora muito obrigado! - bem sabes o que temos sofrido com as tais agências. Não há nada pior. 
E enquanto Araújo, muito contrariado, agitava nervosamente a ponta do pé e dava pequenos estalidos de língua, Maricas abria o embrulho que ele ao entrar deixara sobre o aparador... 
— Oh! como é lindo! exclamou extasiada diante de uma magnífico chapéu de palha, com muitas fitas e muitas flores. Há de me ficar muito bem. Decididamente és um homem de gosto! 
E, sentando-se no colo de Araújo, agradecia-lhe com beijos e carícias o inesperado mimo. Ele deixava- se beijar friamente, repetindo sempre: 
— Diabo! diabo!... 
— Não te amofines assim por causa de uma cozinheira. 
— Dizes isso porque não és tu que vais correr a via sacra à procura de outra. 
— Se queres, irei; não me custa. 
— Não! Deus me livre de dar-te essa maçada. Irei eu mesmo. Ergueram-se ambos. Ele parecia agora mais resignado, e disse: 
— Ora, adeus! Vamos jantar num hotel! 
— Apoiado! Em qual há de ser? 
— No Daury. É o que está mais perto. Ir agora à cidade seria uma grande maçada. 
— Está dito: vamos ao Daury. 
— Vai te vestir 
fresca. 
Às oito horas da noite Araújo e Maricas voltaram do Daury perfeitamente jantados e puseram-se à 
Ela mandou iluminar a sala, e foi para o piano assassinar miseravelmente a marcha da Aída; ele, deitado 
num soberbo divã estofado, saboreando o seu Rondueles, contemplava uma finíssima gravura de Goupil, que enfeitava a parede fronteira, e lembrava-se do dinheirão que gastara para mobiliar a ornar aquele bonito chalé da rua do Matoso. 
Às dez horas recolheram-se ambos. Largo e suntuoso leito de jacarandá e pau-rosa, sob um dossel de seda, entre cortinas de rendas, oferecia-lhes o inefável conchego das suas colchas adamascadas. 
À primeira pancada da meia-noite, Araújo ergue-se de um salto, obedecendo a um movimento instintivo. Vestiu-se, pôs o chapéu, deu um beijo de despedida em Maricas, que dormia profundamente, e saiu de casa com mil cuidados para não despertá-la. 
A uns cinqüenta passos de distância, dissimulado na sombra, estava um homem cujo vulto se aproximou à medida que o dono da casa se afastava... 
Quando o som dos passos de Araújo se perdeu de todo no silêncio e ele desapareceu na escuridão da noite, o outro tirou uma chave do bolso, abriu a porta do chalé, e entrou... 
Na ocasião em que se voltava para fechar a porta, a luz do lampião fronteiro bateu-lhe em cheio no rosto; se alguém houvesse defronte, veria no misterioso noctívago um formoso rapaz de vinte anos. 
Entretanto, Araújo desceu a rua Matriz e Barros, subiu a de São Cristóvão, e um quarto de hora depois entrava numa casinha de aparência pobre.

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