domingo, 27 de novembro de 2022

Crônicas de Segunda na Usina: lima Barreto: Queixa de defunto:



Antônio da Conceição, natural desta cidade, residente que foi em vida, na Boca do Mato, no Méier, onde acaba de morrer, por meios que não posso tomar público, mandou-me a carta abaixo que é endereçada ao prefeito. Ei-la: 
"Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Doutor Prefeito do Distrito Federal. Sou um pobre homem que em vida nunca deu trabalho às autoridades públicas nem a elas fez reclamação alguma. Nunca exerci ou pretendi exercer isso que sé chama os direitos sagrados de cidadão. Nasci, vivi e morri modestamente, julgando sempre que o meu único dever era ser lustrador de móveis e admitir que os outros os tivessem para eu lustrar e eu não. 
"Não fui republicano, não fui florianista, não fui custodista, não fui hermista, não me meti em greves, nem coisa alguma de reivindicações e revoltas, mas morri na santa paz do Senhor quase sem pecados e sem agonia. 
"Toda a minha vida de privações e necessidades era guiada pela esperança de gozar depois de minha morte no sossego, uma calma de vida que não sou capaz de descrever, mas que pressenti pelo pensamento, graças à doutrinação das seções católicas dos jornais. 
"Nunca fui ao espiritismo, nunca fui aos 'bíblias', nem a feiticeiros, e apesar de ter tido um filho que penou dez anos nas mãos dos médicos, nunca procurei macumbeiros nem médiuns. 
"Vivi uma vida santa e obedecendo às prédicas do Padre André do Santuário do Sagrado Coração de Maria, em Todos os Santos, conquanto as não entendesse bem por serem pronunciadas com toda a eloqüência em galego ou vasconço. 
"Segui-as, porém, com todo o rigor e humildade, e esperava gozar da mais dúlcida paz depois de minha morte. Morri afinal um dia destes. Não descrevo as cerimônias porque são muito conhecidas e os meus parentes e amigos deixaram-me sinceramente porque eu não deixava dinheiro algum. É bom meu caro Senhor Doutor Prefeito, viver na pobreza, mas muito melhor é morrer nela. Não se levam para a cova maldições dos parentes e amigos deserdados; só carregamos lamentações e bênçãos daqueles a quem não pagamos mais a casa. 
"Foi o que aconteceu comigo e estava certo de ir direitinho para o Céu, quando, por culpa do Senhor e da Repartição que o Senhor dirige, tive que ir para o inferno penar alguns anos ainda. 
"Embora a pena seja leve, eu me amolei, por não ter contribuído para ela de forma alguma. A culpa é da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro que não cumpre os seus deveres, calçando convenientemente as ruas. Vamos ver por quê. Tendo sido enterrado no cemitério de Inhaúma e vindo o meu enterro do Méier, o coche e o acompanhamento tiveram que atravessar em toda a extensão a rua José Bonifácio, em Todos os Santos. 
"Esta rua foi calçada há perto de cinqüenta anos a macadame e nunca mais foi o seu calçamento substituído. Há caldeirões de todas as profundidades e largura, por ela afora. Dessa forma, um pobre defunto que vai dentro do caixão em cima de um coche que por ela rola, sofre o diabo. De uma feita um até, após um trambolhão do carro mortuário, saltou do esquife, vivinho da silva, tendo ressuscitado com o susto. 
"Comigo não aconteceu isso, mas o balanço violento do coche, machucou-me muito e cheguei diante de São Pedro cheio de arranhaduras pelo corpo. O bom do velho santo interpelou-me logo: 
"- Que diabo é isto? Você está todo machucado! Tinham-me dito que você era bem comportado - como é então que você arranjou isso? Brigou depois de morto? 
"Expliquei-lhe, mas não me quis atender e mandou que me fosse purificar um pouco no inferno. 
"Está aí como, meu caro Senhor Doutor Prefeito, ainda estou penando por sua culpa, embora tenha tido vida a mais santa possível. Sou, etc., etc." 
Posso garantir a fidelidade da cópia e aguardar com paciência as providências da municipalidade. 
Careta, 20-3-1920


Crônicas de Segunda na Usina: Erça de Queiroz: XV Londres, 21 de Maio [de 1878]:




XV Londres, 21 de Maio [de 1878] Há entre os provérbios diplomáticos um que diz: «Quando a França está descontente, a Europa está em perigo.» Pode-se dizer que quando a França está feliz, a Europa está tranquila: desde que a Exposição se abriu, e que a França celebra em Paris a sua grande festa de ressurreição, toda a Europa tem um tom mais calmo; corre uma aragem consoladora de paz e de conciliação, a mesma actividade de armamentos afrouxou e os homens de guerra e de rapina, os Bismarcks e os Gortschakoffs, aproveitam este intervalo sereno para curarem os seus reumatismos. Exala-se da Exposição, parece, uma emanação de concórdia, de trabalho, de civilização, que enche os espíritos de um salutar desejo de fraternidade e de paz. As espadas meio saídas recaem na bainha, as vozes irritadas de desafio adoçam-se em explicações plácidas, o czar humaniza-se, a Inglaterra desfranze a carranca e todo o mundo respira um vago aroma de folhas de oliveira, símbolos de paz. E a Exposição de Paris, é essa colossal acumulação de ciência, de arte, de indústria, que espalha em redor, na Europa, um influxo santo de serenidade. Paris, no fundo, é a grande capital da civilização; o seu messianismo é incontestável; o que ela pensa é-nos dogma, o que ela quer é-nos lei: o mundo instintivamente obedece-lhe: há nela não sei que graça magnetizadora, que forte ascendência espiritual a que se não resiste: a humanidade civilizada tem por ela um vago amor e deixa-se docemente tiranizar: se ela nos impõe a idiota canção C'est l'amant d’Amanda, protestamos primeiro, rimos depois. Terminamos todos por a cantar; se ela nos impõe uma ideia social, podemos um momento hesitar, acabamos todos por a servir: o que ela cria tem a nossa admiração certa, ou seja Offenbach ou seja Gambetta; ela exerce a fascinação de certos olhos de mulheres, cuja luz convence; hoje Paris quer a paz, e a Europa já não se atreve a fazer a guerra. Aqui, pelo menos, não se fala senão da Exposição: a ordem do dia é ir a Paris; os indivíduos que ainda murmuram algumas frases sobre a Bulgária, o Tratado de San Stefano, Constantinopla, etc., parecem obsoletos e caturras. Quem se ocupa do eslavo? Que significam essas antigualhas lúgubres? O que importa é chegar a Paris, saltar a um fiacre e abalar para o Trocadero! E o que atrai a Paris não é tanto admirar as maravilhas que o mundo lá reuniu, como ver a valente cidade outra vez feliz e triunfante; ver a formosa cabeça da França de novo levantada ao alto, depois de ter estado durante oito anos voluntariamente curvada para o chão. Há oito anos! Neste mesmo mês de Maio, franceses bateram-se contra franceses numa guerra feroz e fanática, sob os frios olhares dos Prussianos, que de redor, de braços cruzados, esperando sossegadamente os seus cinco milliards, viam, cofiando as barbas doutorais, Paris a arder! E sete anos depois, pagas todas as dívidas, libertado todo o território e reedificadas todas as ruínas, replantados todos os campos, a França está bastante de posse de si mesma, bastante rica, com vagares bastantes para dar ao mundo, na sua capital embelezada, a maior festa de civilização deste século. Valente nação! Diz-se que toda esta forte ressurreição é devida à república. Bom Deus, sejamos justos, é devida à França! É o seu imenso poder recuperativo, o seu génio, a sua laboriosidade, a sua ordem, a sua economia, a sua sábia previdência, que a habilitaram, depois de um curto espaço de recolhimento e de trabalho, a reaparecer à frente da civilização, mais forte, mais rica, mais inteligente, outra vez la belle France. E aparece-nos com uma feição que lhe não conhecíamos – nós os que fomos educados quando já o império estava feito – aparece-nos grave e alegre. Não perdeu nada de verve, e ganhou muito de reflexão: abandonou sobretudo um dos seus defeitos irritantes, a jactância – aquele alarde fanfarrão, retorcendo as guias e de mão na cinta, que fazia propor aos mais práticos, aos mais moderados, como Emile de Girardon, que não se batessem os Prussianos a tiro, mas a coronhadas, por desprezo! As felicitações da imprensa inglesa à França pela sua aleluia têm sido nobres, fraternais, profundas. A França tem-se enternecido. Mas o que a lisonjeou, o que a electrizou, foram as belas palavras do príncipe de Gales no banquete que lhe ofereceram em Paris os expositores ingleses. Respondendo à saúde que lhe fizera Lord Granville, dirigiu-se ao ministro das Obras Públicas de França, e disse-lhe: «Diga à França que a amo de todo o coração, que ninguém segue mais comovido a sua prodigiosa prosperidade e que a Inglaterra se regozija em concorrer para o esplendor da Exposição, feita no país que sobre todos estima, e a quem tanto deve. Estas frases foram cobertas por um hurra prodigioso dos trezentos expositores ingleses que se sentavam no banquete, que eram todos celebridades da aristocracia, da ciência, da arte, da indústria – e no outro dia ecoavam por toda a França. A alegria dos jornais republicanos foi imensa: em artigos comovidos, todos agradeceram as palavras mais amigas, e as primeiras que um príncipe estrangeiro dirige à França depois dos seus desastres. O Paris Journal, como um homem que a emoção sufoca e que põe todo o seu reconhecimento numa exclamação curta e balbuciada, imprimiu apenas em caracteres grossos: Merci, monseigneur! O facto é que o príncipe de Gales é hoje um dos homens mais populares da França. Paris adora-o; sem lhe fazerem as ovações, que a gravidade republicana não comporta, cercam-no, onde quer que vá, de uma simpatia comovida. Em Inglaterra mesmo, a satisfação pelo discurso do príncipe é grande. No fundo, se a Inglaterra tem uma simpatia, digamos um fraco, é a França. E ama-a desinteressadamente: a Inglaterra é um pais de raciocínio muito prático para sonhar quimeras, e supor que a França, porque um príncipe inglês ergue o seu copo de champanhe e lhe dirige em francês muito parisiense algumas palavras de simpatia pessoal no calor de um bom jantar – que a França vai, toda reconhecida, apoiar a Inglaterra nas suas pretensões ou nos seus interesses políticos. A Inglaterra, por exemplo, na questão do Oriente, não conta com a França; não espera nada dela, em circunstância alguma, a não ser naturalmente aquele alto apoio moral, a simpatia de espírito que se devem duas grandes nações que são no mundo responsáveis pelo progresso humano. O amor da Inglaterra à França (que se tem sempre desenvolvido desde 1830, mas que tomou uma feição mais íntima desde a queda do infecto império) tem bases seguras, com raízes no mesmo temperamento das duas nações, e é a garantia, creio, de uma longa paz entre elas. Em primeiro lugar estimam-se como dois velhos combatentes leais, que foram um para outro causa de grande glória: se a Inglaterra expulsou a França da Índia, a França promoveu e realizou a expulsão dos Ingleses da América; se Napoleão, durante dez anos, teve, através do continente, a Inglaterra em perpétuo échec, o leão britânico tomou a sua desforra em Waterloo; depois foram aliados na Crimeia e aliados na China. Mesmo combatendo-a, ou recusando-lhe o seu auxílio, a Inglaterra i5ez à França impagáveis serviços: em Waterloo desembaraçou-a de um tirano insensato; em 1870, deixando consumar o grande desastre, desembaraçou-a para sempre dos Bonapartes. Terminado o período da guerra, as relações comerciais das duas nações vizinhas cresceram a ponto que, sem uma, a outra faria bancarrota. O Inglês, que não sabe língua nenhuma, só condescende em aprender o francês; é por isso talvez que é a nação que mais visita; é raro o inglês que não tenha percorrido a França; socialmente, Paris é quase tanto a sua capital como Londres; se em Paris encontra a vivacidade, o brilho, a verve da vida que o seduz, na província encontra as sólidas qualidades que admira e sem as quais não concede a sua estima – as qualidades de trabalho, de virtude doméstica, de perseverança e de probidade. A França é o jardim de Inglaterra: e lá que o negociante vai descansar do tráfico da City, o fidalgo da monotonia da vida do campo, o professor dos trabalhos da escola, o clérigo da secura das missões. É a única nação que o baixo povo estima; french, frenchman, são as palavras com que a população designa o estrangeiro amável; quando as ruas, nalguma gala nacional, se empavezam e se adornam, a única bandeira europeia que se vê é a heróica tricolor; nos livreiros das mais pequenas vilas se vendem livros franceses. O inglês tem um reconhecimento profundo ao pais que produz o vinho de Borgonha; a inglesa é grata à terra que lhe manda as sedas de Lião. A gente menos educada, que não sabe qual é a forma de governo que rege a Espanha ou a Itália, está ao facto inteiramente da moderna história da França. Nas classes ilustradas, a história e a literatura francesas são tão familiares como a inglesa. Em todos os grandes jornais há diariamente um artigo de fundo sobre os negócios interiores da França; a campanha contra o ministério Broglie, o ano passado, era dirigida pelo Times. E a amizade da Inglaterra pela França é tão forte que lhe faz sacrifícios; há um ano que a Inglaterra é aconselhada, instada, persuadida, tentada a que ocupe o Egipto: e porque tem resistido? Para não ferir susceptibilidades francesas. O Daily Telegraph disse num artigo memorável: «Percamos todos os interesses, mas não desagrademos aos Parisienses.» E foi para agradar aos Parisienses que a Inglaterra mandou à Exposição o que em arte e indústria tinha de melhor, do passado e do presente. E a Inglaterra certamente que mais concorre para o esplendor da Exposição, e a Inglaterra inteira, como dizem os grandes jornais, falou pela boca do príncipe de Gales. Têm sido singularmente lamentáveis os sucessos do Lancashire, onde milhares e milhares de operários tecelões estão em greve. Os motivos desta greve são complicados e prendem-se com uma difícil questão de economia política. Em presença da grande depressão no comércio dos algodões e dos tecidos, os operários entendem que é necessário produzir menos para que os grandes depósitos existentes se esvaziem e o equilíbrio do mercado se restabeleça: os patrões entendem que é necessário produzir na mesma proporção anterior, mas que é indispensável baixar o preço da mão-de-obra. Esta desinteligência produziu uma greve, a maior que se tem dado em Inglaterra há cinquenta anos. Greve cuja especialidade bem triste foi a de que esteve próxima a tomar o aspecto de uma revolta. Os operários de Lancashire passaram sempre por serem os mais inteligentes, os mais sérios, os mais honestos, da grande população obreira da Inglaterra: numa semana, num momento de irritação, de vingança ou de desesperança, perderam esta nobre reputação. Hoje os jornais sérios consideram-nos «como a mais infecta populaça». Que se passou? Que os operários, em lugar de discutirem tranquilamente (como pediam jornais sérios) o meio de conciliar as suas divergências com os patrões, preferiram fazer uma pequena insurreição local com todos os incidentes típicos – janelas quebradas, polícia apedrejada, etc. Ao princípio, isto pareceu apenas um desabafo de temperamento exaltado: esperou-se que a razão voltaria, com ela a tranquilidade. Mas ou que a impassibilidade dos patrões diante desta manifestação de força os irritava; ou que pequenas desordens locais lhes dessem o apetite de uma verdadeira insurreição provincial; ou que uma multidão imensa de populaça vadia e ociosa se viesse reunir, na esperança dos proveitos que traz a anarquia, à massa mais séria dos operários, o facto é que o que começara por uma algazarra ia terminando numa revolução. As janelas quebradas levaram às portas arrombadas; depois de algumas pedradas atiradas à polícia vieram os tiros dados contra as tropas – e por todo o distrito que cerca Manchéster, durante três dias, reinou uma anarquia que lembra as clássicas guerras civis de Navarra. Manufacturas incendiadas, casas destruídas, lojas de bebidas saqueadas, patrões perseguidos a tiros, reclamações forçadas de dinheiro e de provisões, nada faltou para dar ao distrito de Manchéster o aspecto atroz de uma província em poder das hordas de Saballs ou de Dorregaray. No entanto, a feição típica deste sucesso é que os jornais radicais e liberais não só não se indignaram, mas nem sequer lamentaram: limitaram-se a contar secamente os ultrajes cometidos. Das associações operárias não saiu um único protesto contra estas desordens. E não se pode negar que a insurreição tenha nas classes radicais uma vaga, uma imponderável simpatia. Tropas rapidamente concentradas puseram, naturalmente, fim a este estado tumultuoso, e os patrões sentiram logo a necessidade de entrar em conciliação com os operários, que montam a mais de cem mil. Se esta conciliação se não fizer, creio que veremos graves acontecimentos. E muito bonito realmente falar na ordem, no respeito à propriedade, no sentimento de obediência à lei, etc., mas quando milhares de homens vêem a sua família sem lume na lareira, sem um pedaço de pão, os filhos a morrer de miséria, e ao mesmo tempo os patrões, prósperos e fartos, comprando propriedades, quadros, apostando nas corridas e dando bailes que custam centos de libras, bom Deus, é difícil ir falar aos desgraçados de regras de economia política e convencê-los que, em virtude dos melhores autores da ciência económica, eles devem continuar por alguns meses mais a comer vento e aquecer-se à cal das paredes!

Crônicas de Segunda na Usina: Lima Barreto: Tenho esperança que...:


Certas manhãs quando desço de bonde para o centro da cidade, naquelas manhãs em que, no dizer do poeta, um arcanjo se levanta de dentro de nós; quando desço do subúrbio em que resido há quinze anos, vou vendo pelo longo caminho de mais de dez quilômetros, as escolas públicas povoadas. 
Em algumas, ainda surpreendo as crianças entrando e se espalhando pelos jardins à espera do começo das aulas, em outras, porém, elas já estão abancadas e debruçadas sobre aqueles livros que meus olhos não mais folhearão, nem mesmo para seguir as lições de meus filhos. Brás Cubas não transmitiu a nenhuma criatura o legado da nossa miséria; eu, porém, a transmitiria de bom grado. 
Vendo todo o dia, ou quase, esse espetáculo curioso e sugestivo da vida da cidade, sempre me hei de lembrar da quantidade das meninas que, anualmente, disputam a entrada na Escola Normal desta idade; e eu, que estou sempre disposto a troçar as pretensões feministas, fico interessado em achar no meu espírito uma solução que satisfizesse o afã do milheiro dessas candidatas a tal matricula, procurando com isso aprender para ensinar, o quê? O curso primário, as primeiras letras a meninas e meninos pobres, no que vão gastar a sua mocidade, a sua saúde e fanar a sua beleza. Dolorosa coisa para uma moça... 
A obscuridade da missão e a abnegação que ela exige, cercam essas moças de um halo de heroísmo, de grandeza, de virtudes que me faz naquelas manhãs em que sinto o arcanjo dentro da minha alma, cobrir todas elas da mais viva e extremada simpatia. Eu me lembro também da minha primeira década de vida, de meu primeiro colégio público municipal na rua do Resende, das suas duas salas de aula, daquelas grandes e pesadas carteiras do tempo e, sobretudo, da minha professora - Dona Teresa Pimentel do Amaral - de quem, talvez se a desgraça, um dia, enfraquecer-me a memória não me esqueça de todo. 
De todos os professores que eu tive, houve cinco que me impressionaram muito; mas é, dela que guardo mais forte impressão. 
O doutor (assim o tratávamos) Frutuoso da Costa, um deles, era um preto mineiro, que estudara para padre e não chegara a ordenar-se. Tudo nele era desgosto, amargor; e, as vezes, deixávamos de analisar a Seleção, para ouvirmos de sua feia boca histórias polvilhadas dos mais atrozes sarcasmos. Os seus olhos inteligentes luziam debaixo do pince-nez e o seu sorriso de remoque mostrava os seus dentes de marfim de um modo que não me atrevo a. qualificar. O seu enterro saiu de uma quase estalagem. 
Um outro foi o Senhor Francisco Varela, homem de muito mérito e inteligente, que me ensinou História Geral e do Brasil. Tenho uma notícia de polícia que cortei de um velho Jornal do Comércio de 1878. Desenvolvida com a habilidade e o savoirfaire daqueles tempos, contava como foi preso um sujeito por trazer consigo quatro canivetes. "Explorava-a", como diz hoje nos jornais, criteriosamente o redator dizendo que “ordinariamente basta que um homem traga consigo uma única arma qualquer para que a polícia ache logo que deve chamá-lo a contas". Isto era naquele tempo e na Corte, pois o professor Chico Varela usava impunemente não sei quantos canivetes, quantos punhais, revólveres; e, um dia, apareceu-nos com uma carabina. Era no tempo da Revolta. Gabava-se, no que tinha muita razão, de ser parente de Fagundes Varela; mas sempre citava a famosa metáfora de Castro Alves, como sendo das mais belas que conhecia: “Qual Prometeu tu me amarraste um dia"... 
Era um belo homem e, se ele ler isto, não me leve a mal. Recordações de menino... 
Foi ele quem me narrou a lenda dos começos da guerra de Tróia, que, como sei hoje, é da autoria de um tal Estásinos de Chipre. Parece que é fragmento de um poema deste, conservado não sei em que outro livro antigo. O filho do rei de Tróia, Páris, foi chamado a julgar uma contenda entre deusas, Vênus, Minerva e Juno. 
Houvera um banquete no céu e a Discórdia, que não havia sido convidada, para vingar-se, atirou um pomo de ouro, com a inscrição – “À mais bela". Páris, chamado a julgar quem merecia o prêmio, entre as três, hesitou. Minerva prometia-lhe a sabedoria e a coragem; Juno, o poder real e Vênus... a mulher mais bela do mundo. 
Aí, ele não teve dúvidas: deu o “pomo" à Vênus. Encontrou-se com Helena, que era mulher do rei Menelau, fugiu com ela; e a promessa de Afrodite foi cumprida. Menelau não quis aceitar esse rapto e declarou guerra com uma porção de outros reis à Tróia. Essa história é da mitologia; pois hoje me parece do catecismo. Naqueles dias, ela me encantou e fui da opinião do troiano; atualmente, porém, não sei como julgaria, mas certo não desencadearia uma guerra por tão pouca coisa. 
Varela contava tudo isto com uma eloqüência cheia e entusiasmo, de transbordante paixão; e, ao me lembrar ele, comparo-o sempre com o doutor Ortiz Monteiro, que foi meu lente, sempre calmo, metódico, não perdendo nunca um minuto para não interromper a exposição da sua geometria descritiva. A sua pontualidade e o seu amor em ensinar a sua disciplina faziam-no uma exceção no nosso meio, onde os professores cuidam pouco nas suas cadeiras, para se ocuparem de todo outro qualquer afazer. 
De todos eu queria também falar da Senhor Oto de Alencar, mas que posso eu dizer da sua cultura geral e profunda, da natureza tão diferente da sua inteligência da nossa inteligência, em geral? Ele tinha alguma coisa daqueles grandes geômetras franceses que vêm de Descartes, passam por d'Alembert e Condorcet, chegam até nossos dias em Bertrand e Poincaré. Podia tocar em tudo e tudo receberia a marca indelével do seu gênio. Entre nós, há muitos que sabem; mas não são sábios. Oto, sem eiva de pedantismo ou de insuficiência presumida, era um gênio universal, em cuja inteligência a total representação científica do mundo tinha lhe dado, não só a acelerada ânsia de mais, saber, mas também a certeza de que nunca conseguiremos sobrepor ao universo as leis que supomos eternas e infalíveis. A nossa ciência não é nem mesmo uma aproximação; é uma representação do Universo peculiar a nós e que, talvez, não sirva para as formigas ou gafanhotos. Ela não é uma deusa que possa gerar inquisidores de escalpelo e microscópio, pois devemos sempre julgá-la com a cartesiana dúvida permanente. Não podemos oprimir em seu nome. 
Foi o homem mais inteligente que conheci e o mais honesto de inteligência. 
Mas, de todos, de quem mais me lembro, é de minha professora primária, não direi do "a-b-c", porque o aprendi em casa, com minha mãe, que me morreu aos sete anos. 
É com essas recordações em torno das quais esvoaçam tantos sonhos mortos e tantas esperanças por realizar, que vejo crepitar esse matutino movimento escolar; e penso nas mil e tantas meninas que todos os anos acodem ao concurso de admissão à Escola Normal. 
Tudo têm os sábios da Prefeitura imaginado no intuito de dificultar a entrada. Creio mesmo que já se exigiu Geometria Analítica e Cálculo Diferencial, para crianças de doze a quinze anos; mas nenhum deles se lembrou da medida mais simples. Se as moças residentes no Município do Rio de Janeiro mostram de tal forma vontade de aprender, de completar o seu 
curso primário com um secundário e profissional o governo só deve e tem a fazer uma coisa: 
aumentar o número das escolas de quantas houver necessidade. 
Dizem, porém, que a municipalidade não tem necessidade de tantas professoras, para admitir cerca de mil candidatas a tais cargos, a despesa, etc. Não há razão para tal objeção, pois o dever de todo governo é facilitar a instrução dos seus súditos. 
Todas as mil que se matriculassem, o prefeito não ficava na obrigação de fazê-las professoras ou adjuntas. Educá-las-ia só se estabelecesse um processo de escolha para sua nomeação, depois que completassem o curso. 
As que não fossem escolhidas, poderiam procurar o professorado particular e, mesmo como mães, a sua instrução seria utilíssima. 
Verdadeiramente, não há estabelecimentos públicos destinados ao ensino secundário às moças. O governo federal não tem nenhum, apesar da Constituição impor-lhe o dever de prover essa espécie de ensino no Distrito. Ele julga, porém, que só são os homens que necessitam dele; e mesmo os rapazes, ele o faz com estabelecimentos fechados, para onde se entra à custa de muitos empenhos. 
A despesa que ele tem, com os Ginásios e o Colégio Militar bem empregada daria para maior número de externatos, de liceus. Além de um internato no Colégio Militar do Rio, tem outro em Barbacena, outro em Porto Alegre, e não sei se projetam mais alguns por aí. 
Onde ele não tem obrigação de ministrar o ensino secundário, ministra; mas aqui, onde ele é obrigado, constitucionalmente, deixa milhares de moças a impetrar a benevolência do governo municipal. 
A municipalidade do Rio de Janeiro que rende cerca de quarenta mil contos ou mais, podia ter há muito tempo resolvido esse caso; mas a política que domina a nossa edilidade não é aquela que Bossuet definiu. A nossa tem por fim fazer a vida incômoda e os povos infelizes; e os seus partidos têm por programa um único: não fazer nada de útil. 
Diante desse espetáculo de mil e tantas meninas que querem aprender alguma coisa, batem à porta da Municipalidade e ela as repele em massa, admiro que os senhores que entendem de instrução pública, não digam alguma coisa a respeito. 
E creio que não é fato insignificante; e, por mais que fosse e capaz de causar prazer ou dor à mais humilde criatura, não seria demasiado insignificante para não merecer a atenção do filósofo. Creio ser de Bacon essa observação. 
O remédio que julgo tão simples, pode não sê-lo; mas, espero despertar a atenção dos entendidos e serão eles capazes de achar um bem melhor. Ficarei muito contente e tenho esperança que tal se dê. 
Bagatelas, 3-5-1918 



Crônicas de Segunda na Usina: Machado de Assis:15 DE JUNHO DE 1863:


Confirma-se a notícia da morte de João Francisco Lisboa, mais conhecido pelo pseudônimo de Timon. Faleceu em Lisboa, no dia 25 de abril, na idade de 49 anos, deixando ao nosso país a glória de um nome respeitado entre os mais eminentes. Todos os que conhecem seus escritos dispensam da minha parte uma enumeração dos seus raros e elevados dotes, de seus profundos e sólidos estudos. A sua obra sobre o Padre Antonio Vieira virá confirmar a alta conta em que o tinham os seus compatriotas e todos quantos apreciam as boas letras. 

Dizem que J. F. Lisboa se dispunha a escrever a história do Brasil para o que coligia documentos. É realmente para doer que a morte o viesse arrebatar antes de realizada essa tarefa. As páginas da história brasileira receberiam deste modo aquela robustez de estilo e alta apreciação que faziam supor nas mãos de Timon a pena de Tácito. 
Os seus escritos vão ser publicados a expensas de Sua Majestade o Imperador. 
A morte de J. F. Lisboa deve contristar por mais de um motivo. Não é só a perda de tão ilustre brasileiro que há a sentir, senão também o medíocre efeito que esse triste acontecimento produziu. Como há muito mais de que falar, com um livro termino este escasso capítulo. O livro é o 2.° volume das lições de história pátria do Sr. Dr. Macedo. Sabem todos que o excelente poeta da Nebulosa estuda e sabe a fundo a história nacional, a que se dedica como um homem que lhe conhece a importância. Estes livros são destinados ao uso da mocidade. 
Os que estimam as letras vão ter ocasião de apreciar uma novidade no país e ao mesmo tempo vão ter conhecimento de obras inéditas de autores conhecidos e estimados. Os meus leitores hão de lembrar-se de uma carta que publiquei, escrita pelo Sr. A. de Pascual ao Sr. Zaluar. 
Era um convite para instituir leituras públicas ao uso da Inglaterra e Alemanha. Não se efetuou a reunião necessária e anunciada, e as leituras não se fizeram como fora de desejar. Entretanto a idéia ficou, e o Sr. Zaluar pretende realizá-la dentro de poucos dias. O primeiro curso é de seis leituras, como simples ensaio, a ver se o nosso público possui a necessária atenção, concentração e gosto para diversões dessa natureza. 
Não desejo outra coisa mais do que o bom resultado da tentativa, a respeito da qual devem caber muitos louvores ao poeta das Revelações. 
A imprensa conta mais um legionário, mas legionário tal que me coloca em uma difícil posição sobre o que lhe direi. O Sr. L. de Nerciat acha-se a frente de um jornal francês intitulado Le Nouvelliste de Rio de Janeiro. Suas vistas acerca do Brasil são, como declara, as mais cordatas e bem dispostas. É, entretanto, um órgão do partido legitimista, cuja bandeira hasteou, sem rebuço ou reserva. Ora, semelhante bandeira nesta terra faz o efeito do calção e meia de seda entre as calças largas da civilização. A discussão dessas idéias destina-se unicamente à população francesa; mas, não interessando, nem pela singularidade, ao resto da população e nem a uma boa parte daquela, não creio no sucesso do Nouvelliste. 
Seja-lhe, entretanto, levada em conta a sua boa vontade a nosso respeito. Ponham-se de parte aquelas convicções; a pena do Sr. De Nerciat deseja acertar no estudo de nossas coisas. Se puder conservar a separação devida entre os dois objetos a que se destina a sua gazeta, terá a gratidão de todos, certos como estão todos de que, em terra americana, as suas opiniões antiquadas não convencem nem arrastam ninguém. 
Está o bispado do Rio de Janeiro acéfalo. Faleceu na idade de 65 anos o Sr. D. Manoel do Monte Rodrigues de Araujo, conde de Irajá, autor de várias obras de teologia e moral. É coisa, que todos sabem. O que ninguém ainda sabe é sobre quem recairá a escolha do governo para substituir o finado prelado. 
Essa escolha será das mais difíceis; precisa-se de um prelado altamente enérgico e ilustrado, que se compenetre da sua missão e faça do clero aquilo que ele não é; um prelado cuja força possa esmerilhar nesse corpo mais fanático que religioso, mais intolerante que instruído, os elementos puros ou aproveitáveis e com eles empreender a obra árdua de uma regeneração. 
Tenho fugido hoje ao enlace dos períodos e faço nos assuntos verdadeiros saltos mortais. Assim o pede a hora. 
Foi o leitor ouvir o Sr. Croner? Perdeu se não foi. Este artista que como é sabido, foi buscar em Londres a consagração do seu talento, justificou os juízos anteriores. 
Em um instrumento tão ingrato como é o clarinete, sabe o Sr. Croner despertar as mais gratas harmonias. Pelo que respeita aos segredos da arte, ouvi a seu respeito honrosas palavras. O Sr. Croner pretende dar ainda um concerto, depois do que irá ao Rio da Prata. 
Se o leitor é curioso, e ainda não ouviu o Sr. Croner, vá, no dia 19 ao Ginásio. 
Terminarei transcrevendo para aqui a Carta que o nosso ilustre poeta Gonçalves Dias escreveu de Dresde ao Dr. Antonio Henrique Leal, no Maranhão: 
“Desde o começo deste ano que estou lutando com um ataque de reumatismo, que me tem feito ver as estrelas e esgotado a pouca soma de paciência com que Deus foi servido dotar-me. Há dois dias que não me levanto, mal posso andar de fraqueza e escrevo com dificuldade.” 
“Assim, pois, antes de partir para Carlsbad, a fim de consertar o meu fígado e de ver se me desaparece um resto de ascite que me ficou, tenho de ir aos banhos de Tiplitz, aqui nas vizinhanças de Dresde, a ver se as minhas juntas querem tomar juízo.” 
“Todo o ano passado foi perdido para mim, e este vai ainda pelo mesmo teor: levanto-me da cama agora. Maio passo em Tiplitz, junho e julho em Carlsbad, depois mais um, ou dois meses de resguardo, lá se vai o ano.” 
”Quando me convencer de que isto não ata nem desata, tomo uma resolução, o adeus. Vou-me para o nosso Maranhão até que os tempos mudem, se mudarem.”

Crônicas de Segunda na Usina: Machado de Assis: 1º DE JUNHO DE 1863:



O Jornal de Recife deu-nos duas notícias importantes, com a diferença de alegrar- nos a primeira tanto quanto nos contrista a segunda; refiro-me às melhorias de saúde de Gonçalves Dias e a morte de J. F. Lisboa, verdadeira a última ou não passa de deplorável engano? É lícito duvidar da exatidão dela, e, sem ofensa a folha pernambucana, deve-se esperar uma confirmação mais positiva. Não é que o fato seja impossível; mas o silêncio da imprensa portuguesa a respeito, silêncio impossível, a ter-se dado o caso, abre lugar à dúvida. Mau era se a indiferença de um país amigo e irmão fosse a única elegia que tivesse na morte um homem tão ilustre como o autor do Jornal de Timon. 
Pelo que respeita a Gonçalves Dias, a mesma folha se refere a uma carta do poeta. Os seus sofrimentos não desapareceram de todo, nem deixam de ser grandes; mas o ilustre poeta está fora de perigo. Escreve de Dresde, e ia partir para Carlsbad, a fim de tomar banhos minerais. A esta notícia acrescenta que tem em mãos vários trabalhos literários que pretende mandar imprimir em Leipzig. Doente embora, o grande cantor nacional emprega a sua atividade em encher de novas jóias o seu já tão farto escrínio literário. Belo exemplo esse à mocidade de hoje, a quem pertence o futuro do país. É deste modo que o talento é sacerdócio. Que importa o labor de uma longa semana? Há, para muito descanso, o domingo da imortalidade. 
Falando dos moços e indicando-lhes tal exemplo, devo mencionar, entre outros nomes, o do Sr. Bruno Seabra, mavioso poeta paraense, a quem já os leitores conhecem sem dúvida por suas delicadas composições. Acaba ele de chegar da Europa para onde partira há oito ou nove meses. Demorou-se em Paris a maior parte do tempo, aplicando como melhor pôde, a sua aptidão e o seu desejo de saber. Entre outras composições, trouxe já, impressa uma comédia em um ato, que intitulou: Por direito de Patchouly. O título indica o assunto: é a vitória do néscio cheiroso na luta com o homem chão e sisudo, coisa que se vê todos os dias, mas que o poeta reduziu a um ato chistoso, fácil, epigramático, original. Tem Bruno Seabra boas qualidades para o gênero, e a sua estréia, se alguma coisa tem de menos, apresenta já, uma boa amostra do que ele pode fazer se não parar neste primeiro trabalho. Estou certo de que o autor das Flores e Frutos corresponderá à justiça que lhe faço, e trabalhará como lhe cumpre na medida do seu belo talento. 
Em São Paulo publicou o Sr. Luiz Ramos Figueira, bacharel e estudante do 4.º ano de Direito, um volume a que deu por título Dalmo ou os Mistérios da noite. 
Em boa justiça devem-se louvores ao Sr. Figueira. Se a sua obra acusa descuidos, revela qualidade de imaginação e de apreciação; há nela muitas belezas derramadas por muitas páginas. Uma boa crítica não pode deixar de acolher a obra do Sr. Figueira como um presente que promete outros muitos, e a isso fica virtualmente emprazado o leitor. 
Pertence o Sr. Figueira à mocidade acadêmica de São Paulo, onde os moços sabem entremear os estudos jurídicos com os literários, e não esquecem a vocação do berço pelo labor do curso acadêmico. 
E já que estou no capítulo dos moços, falarei de um, verdadeira criança, não tanto pelos anos, como pela ingenuidade do coração e do espírito. É nada menos que um poeta. Se lhe falta a beleza da forma, sobra-lhe o sentimento da poesia, que é o essencial e o que não se adquire. 
Quem pode alcançar dinheiro de um usurário? Este é um usurário das musas, e para alcançar os versos que abaixo transcrevo, foi-me preciso surpresa. Ainda assim custou-me convencê-lo depois de que devia publicá-los. Consentiu sob condição de lhe não publicar o nome. Anuí. Os versos não são originais; são traduzidos de um poeta da Rumania. Não são perfeitos, mas são agradáveis de ler: 
Sincero amor tu me juraste um dia Até que a morte te deitasse o véu; Tudo passou, tudo esqueceste, tudo, Coisas do mundo, o erro não é teu. 
“Ó meu amado, me disseste, eu quero, Eu quero dar-te meu quinhão do céu!” Dessas promessas olvidaste todas. 
Coisas do tempo, o erro não é teu! 
Sabes que pranto derramei no dia Em que juraste o teu amor ao meu; 
Morri por ti, tu me esqueceste, embora, Coisas do sexo, o erro não é teu. 
Mudo abracei-te; teu ardente lábio Celeste orvalho sobre mim verteu; Veio depois a gota de veneno... 
Coisas do sexo, o erro não é teu. 
Tudo, a virtude, o amor, a fé, a honra, Tudo o que prometias, te esqueceu; Ah! nem remorsos nem amor conheces. Coisas do sexo, o erro não é teu! 
A lei do ouro e da banal vaidade Dessa tua alma fé e amor varreu; Curaste a chaga, amorteceste a sede, Coisas do sexo, o erro não é teu. 
Pesar de tudo, o coração amante Há de bater de amor no peito meu 
Ao pressentir-te. Ficas sempre um anjo... Coisas do amor, o erro não é teu! 
O meu poeta procurou conservar a mais estrita fidelidade. Não vi o original e não pude comparar; mas há expressões, que ele próprio indica, e que são verdadeiras belezas do original; aquele verso. 
Curaste a chaga, amorteceste a sede é uma delas. 
Parece-me a poesia graciosa, e como tal a ofereço aos leitores. 
O meu poeta, esse, encerrado na sua torre de marfim, adormece e procura esquecer-se, poetando para si. Não louvo nem condeno a reclusão voluntária; admiro e lastimo. 
Para concluir estas linhas, lançadas ao papel em uma época de verdadeiro fastio para mim, menciono o fato que há muito se não repete de uma reunião, tanto ou quanto numerosa, de artistas nesta Corte. Veio do sul Arthur Napoleão; de Lisboa, o Sr. Croner, clarinete, que teve em Londres o sucesso mais lisonjeiro que pode ter um artista, o da consagração entusiástica da crítica refletida e competente. Acrescentem-se a esses — outros, filhos do país ou estrangeiros aqui residentes e cujos nomes todos sabem. Se há ocasião para concertos é esta. Se cada um deles der a sua festa artística pode haver muitas e relativamente esplêndidas. No Lírico o barítono Celestino e o soprano Briol são aplaudidos pelos diletantes, e nomeadamente no Rigoletto, onde agradaram. Acrescente-se ainda que esta, a chegar uma companhia de ópera cômica francesa e terá se completado assim o capítulo da música. E eu termino este pedindo escusa da minha avidez. 
Post-scriptum. 
Já estava composta a crônica quando recebi uma notícia que me confirma nas esperanças de uma boa estação musical. Arthur Napoleão oficiou a comissão da subscrição nacional oferecendo os seus serviços em favor dos fins para que ela se organizou. Naturalmente a oferta será aceita. É inútil repetir o que em todos desperta este ato cavalheiresco do distinto pianista.