domingo, 27 de novembro de 2022

Crônicas de Segunda na Usina: Machado de Assis: 1º DE JUNHO DE 1863:



O Jornal de Recife deu-nos duas notícias importantes, com a diferença de alegrar- nos a primeira tanto quanto nos contrista a segunda; refiro-me às melhorias de saúde de Gonçalves Dias e a morte de J. F. Lisboa, verdadeira a última ou não passa de deplorável engano? É lícito duvidar da exatidão dela, e, sem ofensa a folha pernambucana, deve-se esperar uma confirmação mais positiva. Não é que o fato seja impossível; mas o silêncio da imprensa portuguesa a respeito, silêncio impossível, a ter-se dado o caso, abre lugar à dúvida. Mau era se a indiferença de um país amigo e irmão fosse a única elegia que tivesse na morte um homem tão ilustre como o autor do Jornal de Timon. 
Pelo que respeita a Gonçalves Dias, a mesma folha se refere a uma carta do poeta. Os seus sofrimentos não desapareceram de todo, nem deixam de ser grandes; mas o ilustre poeta está fora de perigo. Escreve de Dresde, e ia partir para Carlsbad, a fim de tomar banhos minerais. A esta notícia acrescenta que tem em mãos vários trabalhos literários que pretende mandar imprimir em Leipzig. Doente embora, o grande cantor nacional emprega a sua atividade em encher de novas jóias o seu já tão farto escrínio literário. Belo exemplo esse à mocidade de hoje, a quem pertence o futuro do país. É deste modo que o talento é sacerdócio. Que importa o labor de uma longa semana? Há, para muito descanso, o domingo da imortalidade. 
Falando dos moços e indicando-lhes tal exemplo, devo mencionar, entre outros nomes, o do Sr. Bruno Seabra, mavioso poeta paraense, a quem já os leitores conhecem sem dúvida por suas delicadas composições. Acaba ele de chegar da Europa para onde partira há oito ou nove meses. Demorou-se em Paris a maior parte do tempo, aplicando como melhor pôde, a sua aptidão e o seu desejo de saber. Entre outras composições, trouxe já, impressa uma comédia em um ato, que intitulou: Por direito de Patchouly. O título indica o assunto: é a vitória do néscio cheiroso na luta com o homem chão e sisudo, coisa que se vê todos os dias, mas que o poeta reduziu a um ato chistoso, fácil, epigramático, original. Tem Bruno Seabra boas qualidades para o gênero, e a sua estréia, se alguma coisa tem de menos, apresenta já, uma boa amostra do que ele pode fazer se não parar neste primeiro trabalho. Estou certo de que o autor das Flores e Frutos corresponderá à justiça que lhe faço, e trabalhará como lhe cumpre na medida do seu belo talento. 
Em São Paulo publicou o Sr. Luiz Ramos Figueira, bacharel e estudante do 4.º ano de Direito, um volume a que deu por título Dalmo ou os Mistérios da noite. 
Em boa justiça devem-se louvores ao Sr. Figueira. Se a sua obra acusa descuidos, revela qualidade de imaginação e de apreciação; há nela muitas belezas derramadas por muitas páginas. Uma boa crítica não pode deixar de acolher a obra do Sr. Figueira como um presente que promete outros muitos, e a isso fica virtualmente emprazado o leitor. 
Pertence o Sr. Figueira à mocidade acadêmica de São Paulo, onde os moços sabem entremear os estudos jurídicos com os literários, e não esquecem a vocação do berço pelo labor do curso acadêmico. 
E já que estou no capítulo dos moços, falarei de um, verdadeira criança, não tanto pelos anos, como pela ingenuidade do coração e do espírito. É nada menos que um poeta. Se lhe falta a beleza da forma, sobra-lhe o sentimento da poesia, que é o essencial e o que não se adquire. 
Quem pode alcançar dinheiro de um usurário? Este é um usurário das musas, e para alcançar os versos que abaixo transcrevo, foi-me preciso surpresa. Ainda assim custou-me convencê-lo depois de que devia publicá-los. Consentiu sob condição de lhe não publicar o nome. Anuí. Os versos não são originais; são traduzidos de um poeta da Rumania. Não são perfeitos, mas são agradáveis de ler: 
Sincero amor tu me juraste um dia Até que a morte te deitasse o véu; Tudo passou, tudo esqueceste, tudo, Coisas do mundo, o erro não é teu. 
“Ó meu amado, me disseste, eu quero, Eu quero dar-te meu quinhão do céu!” Dessas promessas olvidaste todas. 
Coisas do tempo, o erro não é teu! 
Sabes que pranto derramei no dia Em que juraste o teu amor ao meu; 
Morri por ti, tu me esqueceste, embora, Coisas do sexo, o erro não é teu. 
Mudo abracei-te; teu ardente lábio Celeste orvalho sobre mim verteu; Veio depois a gota de veneno... 
Coisas do sexo, o erro não é teu. 
Tudo, a virtude, o amor, a fé, a honra, Tudo o que prometias, te esqueceu; Ah! nem remorsos nem amor conheces. Coisas do sexo, o erro não é teu! 
A lei do ouro e da banal vaidade Dessa tua alma fé e amor varreu; Curaste a chaga, amorteceste a sede, Coisas do sexo, o erro não é teu. 
Pesar de tudo, o coração amante Há de bater de amor no peito meu 
Ao pressentir-te. Ficas sempre um anjo... Coisas do amor, o erro não é teu! 
O meu poeta procurou conservar a mais estrita fidelidade. Não vi o original e não pude comparar; mas há expressões, que ele próprio indica, e que são verdadeiras belezas do original; aquele verso. 
Curaste a chaga, amorteceste a sede é uma delas. 
Parece-me a poesia graciosa, e como tal a ofereço aos leitores. 
O meu poeta, esse, encerrado na sua torre de marfim, adormece e procura esquecer-se, poetando para si. Não louvo nem condeno a reclusão voluntária; admiro e lastimo. 
Para concluir estas linhas, lançadas ao papel em uma época de verdadeiro fastio para mim, menciono o fato que há muito se não repete de uma reunião, tanto ou quanto numerosa, de artistas nesta Corte. Veio do sul Arthur Napoleão; de Lisboa, o Sr. Croner, clarinete, que teve em Londres o sucesso mais lisonjeiro que pode ter um artista, o da consagração entusiástica da crítica refletida e competente. Acrescentem-se a esses — outros, filhos do país ou estrangeiros aqui residentes e cujos nomes todos sabem. Se há ocasião para concertos é esta. Se cada um deles der a sua festa artística pode haver muitas e relativamente esplêndidas. No Lírico o barítono Celestino e o soprano Briol são aplaudidos pelos diletantes, e nomeadamente no Rigoletto, onde agradaram. Acrescente-se ainda que esta, a chegar uma companhia de ópera cômica francesa e terá se completado assim o capítulo da música. E eu termino este pedindo escusa da minha avidez. 
Post-scriptum. 
Já estava composta a crônica quando recebi uma notícia que me confirma nas esperanças de uma boa estação musical. Arthur Napoleão oficiou a comissão da subscrição nacional oferecendo os seus serviços em favor dos fins para que ela se organizou. Naturalmente a oferta será aceita. É inútil repetir o que em todos desperta este ato cavalheiresco do distinto pianista.

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