sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo: Romantismo II:

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Dois dias depois, Rodolfo sentia-se abalado pela insistência paterna, e estava quase disposto a pedir ao doutor Sepulveda que o apresentasse à viúva Santos, quando o correio urbano lhe trouxe uma carta concebida nos seguintes termos: 
“Rodolfo — Se não é medroso, esteja amanhã, quinta feira. às 8 horas da noite, no largo da Lapa, junto ao chafariz. Ali encontrará uma senhora idosa, vestida de preto, com o rosto coberto por um véu. Faça o que ela indicar. Trata-se de sua felicidade.” 
A carta escrita com letra de mulher, em papel finíssimo, não tinha assinatura, e exalava um delicioso perfume aristocrata. Rodolfo leu-a, releu-a três vezes, e guardou-a cuidadosamente. Ocioso é dizer que a viúva Santos varreu-se inteiramente da sua imaginação, excitada agora pelo misterioso da aventura que lhe propunham. 
Foi ao largo da Lapa. Por que não havia de ir? Poderia recear uma cilada? Ora! no Rio e janeiro não há torres de Nesle nem Margaridas de Borgonha. 
Já lá encontrou a velha, junto do chafariz. Ela foi ao seu encontro, cumprimentou-o, e, dirigindo-se a um coupé estacionado a alguns passos de distância, abriu a portinhola e com um gesto convidou-o a entrar. Rodolfo não hesitou um segundo; entrou; a velha entrou também, e o coupé rodou na direção do Passeio Público. 
— Aonde vamos? perguntou ele. 
A velha disse-lhe por gestos que era muda, e abaixou os stores. 
Rodolfo percebeu que o carro entrou na rua das Marrecas, e dobrou a dos Barbonos; depois não pode saber ao certo se tomou a rua dos Arcos ou a de Riachuelo. As rodas moviam-se vertiginosamente. De vez em quando dobravam uma esquina. Dez minutos depois, o moço ignorava completamente se se achava em caminho e Botafogo ou de Vila Isabel, da Tijuca ou do Saco do Alferes. Quis levantar um store. A velha opôs-se com um gesto precipitado e enérgico. Ele caiu resignadamente no fundo do carro, e deixou-se levar. 
Ora, adeus! 
A viagem durou seguramente uma hora. Quando o coupé estacou, a velha ergueu-se, tirou um lenço da algibeira, e tapou os olhos do moço, que se deixou vendar humildemente, sem proferir uma palavra. 
Ela ajudou-o a descer, e levou-o pela mão, sempre de olhos tapados, como Raul de Nagis nos 
Huguenotes. 
Pelo cascalho que pisava e pelo aroma que sentia, Rodolfo adivinhou que estava num jardim, caminhando em deliciosa alameda. 
Depois de andar cinco minutos, guiado sempre pela mão encarquilhada da velha, esta murmurou baixinho: — Adeus, seja feliz! — e afastou-se. Ao mesmo tempo, uma voz argentina, uma voz de mulher que parecia vir do alto e soou musicalmente aos seus ouvidos, disse-lhe: — Desvenda-se, Rodolfo. 
Ele arrancou o lenço dos olhos. Estava efetivamente num jardim, defronte de uma das partes laterais de um belo prédio moderno. A lua, iluminando suavemente aquele magnífico cenário, batia de chofre na sacada em que se achava uma mulher vestida de branco com os cabelos soltos. 
— Onde estou eu? perguntou ele, e olhou para o horizonte, a ver se algum morro conhecido o orientava. 
Nada! — nos fundos da casa erguia-se, é verdade, um morro, mas tão próximo e tão alto, que o moço do lugar em que se achava, não lhe podia notar a configuração. 
— Onde estou eu? repetiu. 
Por única resposta a mulher de cabelos soltos deixou cair uma escada de seda, cuja extremidade ficou presa à sacada; e Rodolfo subiu por ela com mais presteza do que o faria o próprio Romeu. 
Ao entrar na alcova, fracamente iluminada pela meia luz de um bico de gás, ficou deslumbradíssimo. 
Estava diante de um prodígio de formosura! O pasmo embargou-lhe a fala; quis soluçar um madrigal, e não teve uma palavra, uma sílaba, um som inarticulado! 
— Amo-te, disse ela com uma voz que mais parecia um ciciar de brisa; amo-te muito, Rodolfo, e quero que também me ames. 
— Oh! sim, sim... quem quer que sejas... eu amo-te, e... 
Uma gargalhada o interrompeu. Era o doutor Sepulveda que entrava na alcova e dava mais luz ao bico 
de gás. 
— Meu pai! 
— Teu pai, sim, meu romântico. Era esse o único meio de te fazer cá vir. Ora aqui tens a viúva Santos. 
Agora recuas, se és homem! 
O casamento ficou definitivamente tratado naquela mesma noite.

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo: ROMANTISMO 1:

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— Então, Rodolfo, decididamente, não te casas com a viúva Santos? 
— Nem com ela, nem com outra qualquer. E peço-lhe, meu pai, que não insista sobre esse ponto, para poupar-lhe o desgosto de contrariá-lo. O casamento assusta-me; é a destruição de todos os sonhos, o aniquilamento de todas as ilusões. Deixe-me sonhar ainda. Tenho apenas vinte e cinco anos. 
— Tu o que tens é uma carregação de romantismo e preguiça, que me aborrece deveras. O teu prazer, meu mariola, é andar envolvido em aventuras de novela, desencaminhando senhoras casadas, procurando amores misteriosos e noturnos, paixões de horas mortas, de chapéu desabado e capa. Olha que um dia vem a casa abaixo! Don Juan, quando menos pensava, lá se foi para as profundas do inferno! 
— Entretanto, observou Rodolfo a sorrir, Don Juan também usava capa, e dizem que quem tem capa sempre escapa. 
— Ri-te! Ri-te! um dia hás de chorar! 
E o doutor Sepulveda pôs-se a medir com largos passos nervosos o assoalho do gabinete. De repente estacou, sentou-se, e, voltando-se para o filho: 
— Que diabo! disse, a viúva Santos é uma das senhoras mais lindas que conheço! Não se diga que te estou metendo à cara um estupor! 
— Fosse a própria Vênus! 
— É mais, muito mais, porque a Vênus não tinha duzentos contos de réis em prédios e apólices. 
— Ora, sou bastante rico, e o senhor, meu pai, não sabe o que há de fazer do dinheiro. A sua banca de advogado rende-lhe uma fortuna todos os anos e eu tenho a satisfação de lhe lembrar que sou filho único. 
— A minha banca, maluco, há muito tempo não rende o que rendia no tempo em que os cães andavam com linguiças no pescoço. O que te ficou por morte da tua mãe, e o que te posso dar, ou deixar, é pouco para a tua dispendiosa vida de rapaz romântico, anacrônico e serôdio. 
— Tenho ainda meu padrinho, o general. 
— Pois sim! Teu padrinho é muito bom, sim senhor, muita festa pra festa, meu afilhado pra cá, meu afilhado pra lá, mas olha que daquela mata não sai coelho. 
— É extraordinário o interesse que o senhor toma por essa viúva Santos! 
— Não é por ela, é por ti, pedaço de asno! Vocês foram feitos um para o outro, acredita, e o que mais lhe agrada nas tua pessoa é justamente esse feitio que tens, de Antony de edição barata. 
— Ela nunca me viu. 
— Nunca te viu, mas conhece-te. Pois se não lhe falo senão do meu Rodolfo! Levei-lhe a tua fotografia, aquela maior... do Pacheco... aquela em que estás tão bonito, que até me parece a tua mãe... 
— Que tolice! minha mãe com bigodes! 
— Os bigodes não, mas os olhos, a boca e o nariz parecem tirados de uma cara e pregados na outra. 
— Mas se o senhor lhe levou o meu retrato, por que não me trouxe o dela? 
— Disso me lembrei eu. Infelizmente nunca se fotografou. Se eu lhe apanhasse o retrato, oh! oh! mostrava-to, e estou certo que não resistirias. 
— O senhor mete-me medo! Para evitar uma asneira de minha parte, hei de fugir da viúva Santos como o diabo da cruz! 

— Disseste que me interesso por ela; e quando me interessasse? Não é filha de um bom camarada, o Teles, que morou comigo quando éramos estudantes, e se formou em Olinda no mesmo dia que eu? — Não imaginas o prazer que tive quando recebi uma carta de Rosalina - ela chama-se Rosalina - dizendo-me: “Venha ver-me; quero conhecer um dos melhores amigos de meu pobre pai.” 
— O pai é morto? 
— Há muitos anos. Morreu juiz municipal nas Alagoas. Deixou a mulher e os filhos na mais completa pobreza, mas os rapazes arranjaram-se no comércio, e lá estão em Pernambuco em companhia da mãe. A Rosalina, essa casou-se com um negociante aqui do Rio, o Santos, que a viu por acaso uma vez que teve de ir a Pernambuco tratar de negócios. 
O doutor Sepulveda aproximou a sua cadeira par mais perto do filho e comentou: 
— Alguém disse que a viúva é como a casa que está para alugar: há sempre lá dentro alguma coisa esquecida pelo antigo inquilino. Bem vejo, meu filho: o que te desgosta é esse Santos, esse marido, esse inquilino; pois não tens razão. O casamento de Rosalina foi obra dos irmãos - um casamento de conveniência. A pobre rapariga sacrificou-se à felicidade dos seus. O coração entrou ali como Pilatos no Credo. Oito dias depois de casados, os noivos vieram para o Rio de Janeiro. Seis meses depois morreu o marido, mas antes disso teve a boa idéia de chamar um tabelião e fazer testamento em favor dela. Ofereço-te um coração virgem, meu rapaz; aceita-o, e com isso darás muito prazer a teu pai e ao general, teu padrinho, que consultei a esse respeito, e é inteiramente da minha opinião. 
Rodolfo ergueu-se, espreguiçou-se longamente, e disse, com os braços estendidos, e a boca aberta num horroroso bocejo: 
— Ora, meu pai, não falemos mais nisso. E não falaram mais nisso. 
O doutor Sepulveda foi ter com o general, e contou-lhe a relutância do afilhado. 
— Mas hei de teimar, seu compadre, hei de teimar! 
— Não teime. Você não arranja nada. Aquele que está ali não se casa nem à mão de Deus Padre. 
— É o que havemos de ver, seu compadre, é o que havemos de ver”...

Contos do Sábado na Usina: Alcântara Machado: APÓLOGO BRASILEIRO SEM VÉU DE ALEGORIA:

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O trenzinho recebeu em Maguari o pessoal do matadouro e tocou para Belém. Já era noite. Só se sentia o cheiro doce do sangue. As manchas na roupa dos passageiros ninguém via porque não havia luz. De vez em quando passava uma fagulha que a chaminé da locomotiva botava. E os vagões no escuro. 
Trem misterioso. Noite fora noite dentro. O chefe vinha recolher os bilhetes de cigarro na boca. Chegava a passagem bem perto da ponta acesa e dava uma chupada para fazer mais luz. Via mal-e~mal a data e ia guardando no bolso. Havia sempre uns que gritavam: 
- Vá pisar no inferno! 
Ele pedia perdão (ou não pedia) e continuava seu caminho. Os vagões sacolejando. 
O trenzinho seguia danado para Belém porque o maquinista não tinha jantado até aquela hora. Os que não dormiam aproveitando a escuridão conversavam e até gesticulavam por força do hábito brasileiro. Ou então cantavam, assobiavam. Só as mulheres se encolhiam com medo de algum desrespeito. 
Noite sem lua nem nada. Os fósforos é que alumiavam um instante as caras cansadas e a pretidão feia caía de novo. Ninguém estranhava. Era assim mesmo todos os dias. O pessoal do matadouro já estava acostumado. Parecia trem de carga o trem de Maguari. 
Porém aconteceu que no dia 6 de maio viajava no penúltimo banco do lado direito do segundo vagão um cego de óculos azuis. Cego baiano das margens do Verde de Baixo. Flautista de profissão dera um concerto em Bragança. Parara em Maguari. Voltava para Belém com setenta e quatrocentos no bolso. O taioca guia dele só dava uma folga no bocejo para cuspir. 
Baiano velho estava contente. Primeiro deu uma cotovelada no secretário e puxou conversa. Puxou à toa porque não veio nada. Então principiou a assobiar. Assobiou uma valsa (dessas que vão subindo, vão subindo e depois descendo, vêm descendo), uma polca, um pedaço do Trovador. Ficou quieto uns tempos. De repente deu uma cousa nele. Perguntou para o rapaz: 
- O jornal não dá nada sobre a sucessão presidencial? 
O rapaz respondeu: 
- Não sei: nós estamos no escuro. 
- No escuro? 
- É. 
Ficou matutando calado. Claríssimo que não compreendia bem. Perguntou de novo: 
- Não tem luz? 
Bocejo. 
- Não tem. 
Cuspada. 
Matutou mais um pouco. Perguntou de novo: 
- O vagão está no escuro? 
- Está. 
De tanta indignação bateu com o porrete no soalho. E principiou a grita dele assim: 
- Não pode ser! Estrada relaxada! Que é que faz que não acende? Não se pode viver sem luz! A luz é necessária! A luz é o maior dom da natureza! Luz! Luz! Luz! 
E a luz não foi feita. Continuou berrando: 
- Luz! Luz! Luz! Só a escuridão respondia. 
Baiano velho estava fulo. Urrava. Vozes perguntaram dentro da noite: 
- Que é que há? 
Baiano velho trovejou: 
- Não tem luz! 
Vozes concordaram: 
- Pois não tem mesmo. 
Foi preciso explicar que era um desaforo. Homem não é bicho. Viver nas trevas é cuspir no progresso da humanidade. Depois a gente tem a obrigação de reagir contra os exploradores do povo. No preço da passagem está incluída a luz. O governo não toma providências? Não torna? A turba ignara fará valer seus direitos sem ele. Contra ele se necessário. Brasileiro é bom, é amigo da paz, é tudo quanto quiserem: mas bobo não. Chega um dia e a cousa pega fogo. 
Todos gritavam discutindo com calor e palavrões. Um mulato propôs que se matasse o chefe do trem. Mas João Virgulino lembrou: 
- Ele é pobre como a gente. 
Outro sugeriu uma grande passeata em Belém com banda de música e discursos. 
- Foguetes também? 
- Foguetes também. 
- Be-le-za! 
Mas João Virgulino observou: 
- Isso custa dinheiro. 
- Que é que se vai fazer então? Ninguém sabia. Isto é: João Virgulino sabia. Magarefe-chefe do matadouro de Maguari, tirou a faca da cinta e começou a esquartejar o banco de palhinha. Com todas as regras do ofício. Cortou um pedaço, jogou pela janela e disse: 
- Dois quilos de lombo! 
Cortou outro e disse: 
- Quilo e meio de toicinho! 
Todos os passageiros magarefes e auxiliares imitaram o chefe. Os instintos carniceiros se satisfizeram plenamente. A indignação virou alegria. Era cortar e jogar pelas janelas. Parecia um serviço organizado. Ordens partiam de todos os lados. Com piadas, risadas, gargalhadas. 
- Quantas reses, Zé Bento? 
- Eu estou na quarta, Zé Bento! 
Baiano velho quando percebeu a história pulou de contente. O chefe do trem correu quase que chorando. 
- Que é isso? Que é isso? É por causa da luz? 
Baiano velho respondeu: 
- É por causa das trevas! 
O chefe do trem suplicava: 
- Calma! Calma! Eu arranjo umas velinhas. 
João Virgulino percorria os vagões apalpando os bancos. 
- Aqui ainda tem uns três quilos de colchão-mole! 
O chefe do trem foi para o cubículo dele e se fechou por dentro rezando. Belém já estava perto. Dos bancos só restava a armação de ferro. Os passageiros de pé contavam façanhas. Baiano velho tocava a marcha de sua lavra chamada Às Armas Cidadãos! O taioquinha embrulhava no jornal a faca surripiada na confusão. 
Tocando a sineta o trem de Maguari fundou na estação de Belém. Em dois tempos os vagões se esvaziaram. O último a sair, foi o chefe muito pálido. 
Belém vibrou com a história. Os jornais afixaram cartazes. Era assim o titulo de um: Os Passageiros no Trem de Maguari Amotinaram-se Jogando os Assentos ao Leito da Estrada. Mas foi substituído porque se prestava a interpretações que feriam de frente o decoro das famílias. Diante do Teatro da Paz houve um conflito sangrento entre populares. 
Dada a queixa à polícia foi iniciado o inquérito para apurar as responsabilidades. Perante grande número de advogados, representantes da imprensa, curiosos e pessoas gradas, o delegado ouviu vários passageiros. Todos se mantiveram na negativa menos um que se declarou protestante e trazia um exemplar da Bíblia no bolso. O delegado perguntou: 
- Qual a causa verdadeira do motim? 
O homem respondeu: 
- A causa verdadeira do motim foi a falta de luz nos vagões. 
O delegado olhou firme nos olhos do passageiro e continuou: 
- Quem encabeçou o movimento? 
Em meio da ansiosa expectativa dos presentes o homem revelou: 
- Quem encabeçou o movimento foi um cego! 
Quis jurar sobre a Bíblia mas foi imediatamente recolhido ao xadrez porque com a autoridade não se brinca.