sexta-feira, 2 de julho de 2021

Contos do Sábado na Usina; Artur Azevedo: QUESTÃO DE HONRA:



Eram sete horas da manhã. Braga Lopes, sentado numa deliciosa chaise-longue, brunia as unhas e contemplava, pela janela do gabinete, o Pão de Açúcar, que por um belo efeito de luz parecia de madrepérola.
Angélica entrou no gabinete, e bateu de leve no ombro do marido. 
— Preciso de quinhentos mil réis. 
— Já? 
— Já. 
Por única resposta, Braga Lopes apontou para uma carta aberta sobre a secretária de pau-rosa. 
Angélica leu: o senhorio reclamava em termos violentos, não sei quantos meses atrasados do aluguel do prédio nobre. 
A moça encolheu os ombros, saiu arrebatadamente e mandou atrelar. 
Fez ligeira, mas elegante toilette de passeio, e, calçando as luvas de pele da Suécia, recomendou ao engravatado copeiro que não a esperasse para almoçar. 
O marido ouviu rodar o coupé e chegou à janela. Acompanhou com a vista o trajeto do carro em quase toda a curva da praia de Botafogo, até que o viu desaparecer na rua Marques de Abrantes. 
— Aonde irá ela arranjar quinhentos mil réis a esta hora? pensou, e, sentando-se e novo, recomeçou a sua ocupação predileta - brunir as unhas 
Ao entrar no coupé, Angélica dissera ao boleeiro: 
— Vamos à baronesa. 
A baronesa ainda estava no leito. Angélica foi introduzida no dormitório. 
— Preciso e quinhentos mil réis. 
— Já? 
— Já. 
— Impossível, minha amiga; o barão está em Petrópolis. 
— Petrópolis em junho! 
— Foi a negócio e não a passeio. O dinheiro está com ele, bem sabes. Sinto não te poder servir nesse momento, como noutras ocasiões o tenho feito. Não é a primeira vez que tu... 
— Bem... desculpe... adeus, baronesa. Angélica a sair e o barão a entrar. 
— Oh! madame Braga Lopes! a que feliz acaso devemos tão matinal visita? 
— Não tinha ido para Petrópolis, barão? 
— Petrópolis em junho! Jamais de la vie! Seria ridículo! Saí muito cedo por necessidade e só contava estar de volta ao meio dia. Esteve com a baronesa? 
— Sim, senhor barão; passe bem. 
E Angélica, mordendo os beiços de raiva, entrou rapidamente no coupé, cuja portinhola o barão abriu pressuroso com a mão esquerda, enquanto a direita fazia o chapéu descrever uma pequena reta, muito graciosa, à inglesa. 
O boleeiro voltou-se para receber as ordens da patroa. 
— Vamos às Guedes. 
O barão fechou a portinhola, e o carro pôs-se em movimento. 
As Guedes eram três irmãs solteironas. Moravam na rua do Conde, perto do Catumbi. 
Angélica esperou por elas durante quarenta minutos. Empregou todo esse tempo a passear de um lado para o outro, muito contrariada por se ver ali, numa rua tão burguesa, naquela velha sala sem tapeçarias, nem reposteiros, nem bibelôs, fastidiosa com sua esmagadora mobília de jacarandá e os seus venerandos castiçais de prata, resguardados em monstruosas mangas de vidro. 
Numa velhíssima tela, o pai das Guedes, pintado a óleo, muito sério, inteiramente barbeado, de óculos, o pescoço escondido numa abundante gravata de cinco voltar, as mangas da casaca muito apertadas, as mãos a emergirem das rendas dos manguitos, olhava fixamente para Angélica, e parecia dizer-lhe: 
— Que vens aqui fazer? Não arranjas nada! 
Afinal apareceram as Guedes. Entraram as três ao mesmo tempo, com pequeninos gritos de surpresa alegre, fazendo um gasto enorme de beijos, abraços, pancadinhas de amor e frases candongueiras: Mas que milagre é este? Por isso é que o dia está tão bonito! Vou mandar repicar os sinos! 
— Sente-se, dona Angélica. 
— Não; a demora é pequena. Vinha pedir-lhe um grande obséquio. Preciso de quinhentos mil réis. As Guedes entreolharam-se estupefatas. 
A recusa foi categórica e formal. Não podiam naquela ocasião dispor nem de quinhentos réis, quanto mais de quinhentos mil réis. A “pouca vergonha” de 13 de Maio deixara-as quase na miséria. Se não possuíssem aquela “humilde choupana” e mais dois sobrados na rua dos Pescadores, estariam reduzidas à miséria. 
Angélica saiu despeitadíssima; entretanto, não desanimou. O passivo e solícito cocheiro levou-a ainda à presença de seis amigas ricas, e todas lhe disseram não! Em toda parte a mísera encontrava esse monossílabo terrível! 
Ao meio-dia, humilhada, indisposta, em jejum, com os nervos excitados por aquela violenta caçada, por aquele perseguir uma quantia miserável, que lhe fugia das mãos obstinadamente, a pobre Angélica teve um gesto expressivo e supremo de resolução e coragem. 
Alguns minutos depois, o coupé deixava-a no largo de S. Francisco. Ela tomou a pé a rua do Rosário, atravessou a da Quitanda, dobrou a da Alfândega, e, sobressaltada, palpitante, com muito medo de que a vissem, entrou precipitadamente num casarão de dois andares. 
No corredor hesitou alguns segundos antes de subir; mas enchendo-se de ânimo, galgou ligeiramente as escadas até o segundo andar. Abriram-lhe logo a porta, e ela, trêmula, ofegante, com as mãos muito frias, sem poder proferir uma palavra, caiu nos braços de um homem, que a recebeu com um beijo, e lhe disse: 
— Estava escrito que mais dia menos dia a senhora se compadeceria dos meus tormentos... 
— O que me trás à sua casa é um questão de honra; conto com sua discrição e seu cavalheirismo. 
Preciso de... 
Angélica envergonhou-se de se vender por tão pouco, e quadruplicou a quantia: 
— Preciso de dois contos de réis. 
— Já? 
— Já. 
O relógio da Candelária batia duas horas quando madame Braga Lopes, perfeitamente almoçada, desceu as escadas da casa da rua da Alfândega. 
Pode ser que o arrependimento aparecesse mais tarde; naquele momento ela era toda satisfação e 
triunfo. não. 
A gentil pecadora entrou radiante na rua do Ouvidor, e foi ter ao Palais-Royal. 
— Ainda aí está? perguntou a um dos caixeiros da loja com receio de que mais uma vez lhe dissessem 
— Ainda, e às suas ordens. 
— Bom, acrescentou ela, depois de um prolongado suspiro; aqui estão os quinhentos mil réis. Mande- 
mo à casa. 
— Com efeito! exclamou Braga Lopes quando Angélica lhe apareceu às três horas. Com efeito! passaste o dia inteiro na rua!... 
— Sim, vê lá se achas que uma mulher, que só tem brilhantes falsos e jóias de pechisbeque, possa facilmente arranjar quinhentos mil réis... 
— Mas para que precisavas tu desse dinheiro? perguntou indiferentemente o extraordinário marido. 
— Uma questão de honra, meu amigo. Imagina que me apaixonei por um vestido que vi ontem na vitrine do Palais-Royak; imagina que a Laurita Lobo queria por força ficar com ele; imagina que o dono da loja declarou que o entregaria à primeira das duas que lhe levasse quinhentos mil réis!... 
— Ah! bom! assim, sim, obtemperou Braga Lopes, que recomeçou fleumaticamente a sua ocupação predileta - brunir unhas.

Contos do Sábado na Usina: Machado de Assis: III - AO PÉ DA CERCA:


A primeira coisa que Estêvão pôde descobrir é que a vizinha era moça. Via-lhe o perfil, em cada aberta que deixavam as árvores, um perfil correto e puro, como de escultura antiga. Via-lhe a face cor de leite, sobre a qual se destacava a cor escura dos cabelos, não penteados de vez, mas frouxamente atados no alto da cabeça, com aquele desleixo matinal que faz mais belas as mulheres belas. O roupão, — de musselina branca, — finamente bordado, não deixava ver toda a graça do talhe, que devia ser e era elegante, dessa elegância que nasce com a criatura ou se apura com a educação, sem nada pedir, ou pedindo pouco à tesoura da costureira. Todo o colo ia coberto até o pescoço, onde o roupão era preso por um pequeno broche de safira. Um botão, do mesmo mineral, fechava em cada pulso as mangas estreitas e lisas, que rematavam em folhos de renda. 
Estêvão, da distância e na posição em que se achava, não podia ver todas estas minúcias que aqui lhes aponto, em desempenho deste meu dever de contador de histórias. O que ele viu, além do perfil, dos cabelos, e da tez branca, foi a estatura da moça, que era alta, talvez um pouco menos do que parecia com o vestido roçagante que levava. Pôde ver-lhe também um livrinho, aberto nas mãos, sobre o qual pousava os olhos, levantando-os de espaço a espaço, quando lhe era mister voltar a folha, e deixando-os cair outra vez para embeber-se na leitura. 
Ia assim andando, sem cuidar que a visse alguém, tão serena e grave, como se atravessara um salão. Estêvão, que não tirava os olhos dela, mentalmente pedia ao céu a fortuna de a ter mais próxima, e ansiava por vêla chegar à rua que lhe ficava diante. Contudo, era difícil que lhe parecesse mais formosa do que era, vista assim de perfil, a escapar por entre as árvores. O jovem bacharel, por não perder o sestro dos primeiros tempos, avocava todas as suas reminiscências literárias; a desconhecida foi sucessivamente comparada a um serafim de Klopstock, a uma fada de Shakespeare, a tudo quanto na memória dele havia mais aéreo, transparente, ideal. 
Enquanto ele trabalhava o espírito nestas comparações poéticas, não descabidas, se quiserem, em tal lugar, e ao pé de tão graciosa criatura, ela seguia lentamente e chegara à encruzilhada das duas grandes ruas da chácara. Estêvão esperava que voltasse à direita, isto é, que viesse para o lado dele, mas sobretudo receava que seguisse pela mesma rua adiante e se perdesse no fundo da chácara. A moça escolheu um meio-termo, voltou à esquerda, dando as costas ao seu curioso admirador e continuando no mesmo passo vagaroso e regular. 
A chácara não era em demasia grande; e por mais lento que fosse o passo da madrugadora, não gastaria ela imenso tempo em percorrer até o fim aquela porção da rua em que entrara. Mas ali, ao pé daquele coração juvenil e impaciente, cada minuto parecia, não direi um século, — seria abusar dos direitos do estilo, — mas uma hora, uma hora lhe parecia, com certeza. 
A moça entretanto, chegando ao fim, parou alguns instantes, pousou a mão nas costas de um banco rústico que ali havia e enfrentava com outro, colocado na extremidade oposta. A outra mão descaíra-lhe, e os olhos também, o que magoou o seu curioso observador. Seriam saudades de alguém? 
Estêvão sentiu uma coisa, a que chamarei ciúme antecipado, mas que na realidade eram invejas da alheia fortuna. A inveja é um sentimento mau; mas nele, que nascera para amar, e que, além disso, tinha em si o contraste do nascimento com o instinto, um berço obscuro e umas aspirações à vida elegante, — nele a inveja era quase um sentimento desculpável. 
A moça voltou e veio pela rua adiante. Enfim, disse consigo Estêvão, vou contemplá-la de mais perto. Ao mesmo tempo, receoso de que, descobrindo ali um estranho, guiasse os passos para casa, Estêvão afastou-se do lugar em que ficara, resoluto a aparecer, quando ela estivesse próxima à cerca do jardim. A moça vinha andando com o livro fechado, e os olhos ora no chão, ora nas andorinhas e camaxilras que esvoaçavam na chácara. 
Se trazia saudades, não se lhe podiam ler no rosto, que era quieto e pensativo, sim, mas sem a menor sobra de pena ou de tristeza. 
Estêvão do lugar onde estava podia examinar-lhe as feições, sem ser visto por ela; mas foi justamente do que não cuidou, desde que lhas pôde distinguir. Valia a pena, entretanto, contemplar aqueles grandes olhos castanhos, meio velados pelas longas, finas e bastas pestanas, não maviosos nem quebrados, como ele os cuidara ver, mas de uma beleza severa, casta e fria. 
Valia a pena admirar como eles comunicavam a todo o rosto e a toda a figura um ar de majestade tranqüila e senhora de si. Não era ela uma dessas belezas que, ao mesmo tempo que subjugam o coração, acendem os sentidos; falava à inteligência primeiro do que ao coração, tanto a arte parecia haver colaborado com a natureza naquela criatura, meia estátua e meia mulher. 
Tudo isto podia ver e considerar o nosso bacharel. A verdade, porém, é que a nenhuma destas coisas atendeu. Desde que distinguira as feições da moça, ficou como tomado de assombro, com os olhos parados, a boca entreaberta, fugindo-lhe a vida e o sangue todo para o coração. 
A moça chegara à cerca; esteve de pé algum tempo, olhou em derredor e por fim sentou-se no banco que ali havia, dando as costas para o jardim de Luís Alves. Abriu novamente o livro, e continuou a leitura do ponto em que a deixara tão só consigo, tão embebida no livro que tinha diante, que não a despertou o rumor, aliás sumido, dos passos de Estêvão nas folhas secas do chão. Teria percorrido meia página, quando Estêvão, reclinando-se sobre a cerca, e procurando abafar a voz para que só chegasse aos ouvidos dela, proferiu este simples nome: 
— Guiomar! 
A moça soltou um grito de surpresa e de susto, e voltou-se sobressaltada para o lado donde partira a voz. Ao mesmo tempo levantara-se. A impressão que lhe produzira, e não sei se também algum ar de cólera que lhe notasse no rosto; e além de tudo, o remorso de não haver sufocado aquele grito de seu coração, fez com que Estêvão, quase no mesmo instante, murmurasse em tom de súplica: 
— Perdoe-me; foi uma centelha do passado que estava debaixo da cinza: apagou-se de todo. 
Guiomar, — sabemos agora que era este o seu nome, — olhou séria e quieta para o seu mal-aventurado interruptor, dois longos e mortais minutos. Estêvão, confuso e vexado, tinha os olhos em terra; o coração palpitava-lhe com força, como a despedir-se da vida. A situação era em demasia aflitiva e embaraçosa para que se pudesse prolongar mais. Estêvão ia cortejá-la e despedir-se; mas a moça, com um sorriso de mais piedade que afeto, murmurou: 
— Está perdoado. 
Caminhou para a cerca e estendeu-lhe a mão, que ele apertou, - apertou não é bem dito, 
— em que ele tocou apenas, o mais cerimoniosamente que podia e devia naquela situação. 
E depois ficaram a olhar um para o outro, sem se atreverem a dizer nada, nem a sair dali, a verem ambos o espectro do passado, aquele tão amargo passado para um deles. Guiomar foi a primeira que rompeu o silêncio, fazendo a Estêvão uma pergunta natural, como não podia deixar de ser naquelas circunstâncias mas ainda assim, ou por isso mesmo, a mais acerba que ele podia ouvir: 
— Há dois anos que nos não vemos, creio eu? 
— Há dois anos, murmurou Estêvão abafando um suspiro. 
— Já está formado, não? Lembra-me ter lido o seu nome... 
— Estou formado. Sabe que era o desejo maior de minha tia... 
— Não a vejo há muito tempo, interrompeu Guiomar; eu saí do colégio, logo depois que o senhor seguiu para S. Paulo. Saí a convite da baronesa, minha madrinha, que lá foi buscar-me um dia, alegando que eu já não tinha que aprender, e que me não convinha ensinar. 
— Decerto, assentiu Estêvão. — Minha tia é que não deixou nem podia deixar de ensinar; acabou no ofício. 
— Acabou? 
— Morreu. 
— Ah! 
— Morreu há cerca de um ano. 
— Era uma boa criatura, continuou Guiomar, depois de alguns instantes de silêncio, muito carinhosa e muito prendada. Devo-lhe o que aprendi... Está admirando esta flor? 
Estêvão, apanhado em flagrante delito de admiração, não da flor mas da mão que a sustinha, — uma deliciosa mão, que devia ser por força a que se perdeu da Vênus de Milo, 
Estêvão balbuciou: 
— Com efeito, é linda! 
— Há muita flor bonita aqui na chácara. A baronesa tem imenso gosto a estas coisas, e o nosso jardineiro é homem que sabe do seu ofício. 
Aquele natural acanhamento da primeira ocasião foi desaparecendo aos poucos, e a conversa veio a ser, não tão familiar, como outrora, mas em todo o caso menos fria do que a princípio estivera. Havia, contudo, uma diferença entre os dois: ele, sem embargo do desembaraço, sentia-se abalado e comovido; ela, porém, vencido o sobressalto do princípio, mostrava-se tranqüila e fria, sempre polida e grave, risonha às vezes, mas de um risonho à flor do rosto, que não lhe alterava a serenidade e compostura. 
O sítio e a hora eram mais próprios de um idílio, que de uma fria e descolorida prática. Um céu claro e límpido, um ar puro, o sol a coar por entre as folhas uma luz ainda frouxa e tépida, a vegetação em derredor, todo aquele reviver das coisas parecia estar pedindo uma igual aurora nas almas. Estas é que deviam falar ali a sua língua delas, amorosa e cândida, em vez da outra, cortês, elegante e rígida, que a nenhum deles desprazia, decerto, mas que era muito menos voluntária nos lábios de Estêvão. 
Guiomar falava com certa graça, um pouco hirta e pausada, sem viveza, nem calor. 
Estêvão, que a maior parte do tempo ficara a ouvi-la, observava entre si que as maneiras da moça não lhe eram desnaturais, ainda que podiam ser calculadas naquela situação. A Guiomar que ele conhecera e amara era o embrião da Guiomar de hoje, o esboço do painel agora perfeito; faltava-lhe outrora o colorido, mas já se lhe viam as linhas do desenho. 
A conversa durou cerca de três quartos de hora, uma migalha de tempo para ele, que desejara muito mais. Mas era preciso acabar; ela foi a primeira a dizer-lho. 
— O senhor fez-me perder muito tempo. Há talvez uma hora que estamos aqui a conversar. Era natural, depois de dois anos. Dois anos! 
Mas o que não era natural, continuou ela mudando de tom, era atreverme a falar com um estranho neste deshabillé tão pouco elegante... 
— Elegantíssimo, pelo contrário. 
— O senhor tem sempre um cumprimento de reserva: vejo que não perdeu o tempo na academia, Vou-me embora. São horas da baronesa dar o seu passeio pela chácara. 
— Será aquela senhora que ali está no alto da escada? perguntou Estêvão. 
— É ela mesma, respondeu Guiomar. Está à espera que lhe vá dar o braço. 
E com um gesto friamente fidalgo, estendeu a mão a Estêvão, dizendo: 
— Passe bem, senhor doutor, estimei vê-lo. 
Estêvão tocou-lhe levemente na mão, fina e macia, e inclinou-se respeitoso. A moça caminhou para casa. Ele acompanhou-a com os olhos, admirando a gentileza com que ela, desta vez a passo acelerado, resvalava por entre as árvores até subir as escadas da casa. Viu-a dar o braço à madrinha, descerem e seguirem vagarosamente pelo mesmo caminho por onde Guiomar seguira da primeira vez. 
Estêvão ainda ficou algum tempo encostado à cerca, na esperança de que ela olhasse ou dirigisse os passos para aquele lado; ela porém, passou indiferente, como se nem da existência dele soubera. Estêvão retirouse dali cabisbaixo e triste, batido de contrários sentimentos, cheio de uma tristeza e de uma alegria que mal se combinavam, e por cima de tudo isso o eco vago e surdo desta interrogação: 
— Entro num drama ou saio de uma comédia?

Contos do Sábado: Bernardo Carvalho: Estão apenas ensaiando:



Estão apenas ensaiando. Ao mesmo tempo em que os dois atores avançam pelo palco, saindo das coxias à esquerda para o centro da cena, um homem entra na sala escura, e com ele uma nesga da luz das cinco pela fresta da porta que entreabriu ao fundo e que separa a platéia do hall e da rua, onde o dia segue o seu curso com um burburinho de buzinas, motores e sirenes. O diretor, na quinta fila, procura com a mão, tateando, a coxa de sua assistente, para lhe dizer alguma coisa ao ouvido, e o iluminador interrompe a piada que ia sussurrando ao técnico a seu lado, no mezanino, já que retomam a cena. Quando os dois atores colocam os pés de novo no palco, avançando das coxias à esquerda para o centro, e interrompendo também o que sussurravam um ao outro nos bastidores, para passar em alto e bom som ao diálogo que decoraram, o homem que acabou de entrar ao fundo é ainda menos que um vulto sem rosto, porque já não tem nem mesmo a nesga de luz das cinco para destacá-lo da penumbra, agora que a porta que separa a sala escura do hall e da rua se fechou. O diretor com a mão na coxa da assistente, depois de lhe sussurrar qualquer coisa ao ouvido, que a faz rir baixinho, controlada, espera ansioso, e pela enésima vez, que a fala seja dita pelo ator com a entonação desejada, e o iluminador, no mezanino, aguarda por seu turno uma nova interrupção - no fundo, mesmo que inconscientemente, torce por mais um fracasso da interpretação, para poder terminar de uma vez por todas a piada que contava ao técnico. Um ator diz ao outro, no centro do palco: "Você é o malfeitor; e por isso preciso saber quem é você, onde está, de onde vem, do que é capaz para ter tamanho poder e me provocar sem prevenir, devastando o meu pasto verdejante, e minando, para derrubá-lo, o meu muro de arrimo." E é quando o outro, que embora sem a foice ou o manto (estão apenas ensaiando) responde pela morte, vai abrindo a boca, que o diretor mais uma vez, tirando a mão da coxa da assistente, interrompe a cena com um gesto, para perguntar num tom propositalmente inaudível, de tão irritado que está, quantas vezes mais vai ter de explicar. Ele repete, como se falasse para dentro, que se trata de um texto do século XV, que o humilde lavrador invoca a morte (aqui representada por um homem) com as palavras que lhe restam como último recurso, quer que ela se compadeça dele e lhe devolva a mulher adorada, vítima das atrocidades da guerra. O diretor repete irritado que falta vigor à interpretação do ator, e desespero, não parece que o humilde lavrador esteja realmente sofrendo ou indignado pela injustiça da morte da mulher na flor da idade. Diz isso aos dois atores e depois, enquanto eles voltam para as coxias, sussurra a mesma coisa ao ouvido da assistente, arrematando com uma gracinha que a faz sacudir num risinho sincopado. De volta às coxias, o ator que interpreta o humilde lavrador aproveita para retomar com o outro que interpreta a morte o sussurro que havia interrompido. Desanca o diretor, diz que não dá para mostrar desespero com um texto daqueles, inverossímil, ninguém vai falar com a morte daquele jeito depois de perder a mulher de uma maneira violenta. Resmunga baixinho qualquer coisa sobre o tipo de representação que aquela cena exige, na sua opinião, e que tem a ver com um certo distanciamento. De repente, no meio da frase sussurrada, olhando o relógio (não precisa tirá-lo, estão apenas ensaiando), exclama a hora num murmúrio, fala qualquer coisa sobre o atraso da própria mulher, que ela já devia ter chegado, e ao mesmo tempo em que diz isso, o iluminador no mezanino tenta inutilmente sussurrar o final da sua piada, porque mal esboça o desenlace cômico e os dois atores estão de volta ao palco, seguindo os sinais mudos da assistente do diretor, e o homem ao fundo da sala, após uns instantes parado indistinto dentro da sombra, já avança alguns passos pelo corredor lateral da platéia. O ator que interpreta o humilde lavrador vira-se para o outro, que interpreta a morte, embora sem foice ou manto (estão apenas ensaiando), e vai abrir a boca quando percebe que, em vez de olhá-lo, o diretor, sempre com a mão na coxa da assistente, cochicha algo ao seu ouvido que a faz levar a mão aos lábios para impedir que o riso transborde. Percebe o diretor, que está no centro da sala, na quinta fila, mas não o vulto que avança pelo lado, na penumbra. Irritado, o ator repete a cena idêntica à que tinha feito antes, declamando sua fala com o mesmo distanciamento que lhe parece tão apropriado, ao que o diretor enfurecido se levanta e, balançando os braços e sacudindo a cabeça, mudo, dá a entender que está péssimo. Com a nova interrupção, o iluminador trata de retomar do início piada que contava ao técnico, porque, a cada vez que a retoma, volta sempre ao começo com medo de que a quebra interfira no efeito cômico. Seu sussurro agora é mais corrido, tentando fazer caber a piada inteira no espaço de tempo entre a interrupção do diretor e o retorno dos atores ao palco. Nas coxias, enquanto olha o relógio (estão apenas ensaiando), o ator que faz o humilde lavrador repete baixinho ao outro, que faz a morte, que a mulher a esta altura devia ter chegado, como tinham combinado, porque ele próprio lhe dissera que tudo terminaria às cinco, não podia imaginar que o diretor se revelasse um tamanho idiota justamente com esse texto inverossímil, e que o   ensaio se arrastasse tanto. A assistente dá o sinal mudo para que recomecem e o iluminador interrompe inconformado, mais uma vez, já quase no fim, a piada que sussurrava ao técnico no mezanino, e que corre o risco de perder a graça pela repetição. O homem que vinha avançando lentamente pelo corredor lateral agora pára à altura da quinta fila ao ver os dois atores de novo no palco. O humilde lavrador vira-se para a morte e diz: "Você é o malfeitor." O diretor pede que parem. O tom compreensivo de sua voz é apenas um disfarce que o   ator está cansado de conhecer e em geral precede uma crise de nervos. O diretor está tentando se controlar, sussurra: "Será que você não compreende? Ele perdeu a mulher, na flor da idade, está desesperado, indignado contra a injustiça da morte e dos homens e por isso a invoca, ainda acredita que pode convencê-la a lhe devolver a mulher adorada. Ninguém diz isso com distanciamento. Os dois saem do palco. Olhando o relógio, o humilde lavrador sussurra de novo à morte sem foice ou manto algo sobre o atraso da mulher, que esta altura devia estar sentada na platéia. Não entende por que ela ainda não chegou, como se não bastasse o atraso do ensaio, graças à imbecilidade do diretor. E enquanto o humilde lavrador sussurra a sua indignação, o homem que antes era apenas um vulto já avança pela quinta fila, agora de lado, na direção do diretor e de sua assistente, que o vêem quando está a apenas algumas poltronas deles. Senta-se para se fazer menos notado quando a assistente está com o braço levantado, indicando aos atores que podem recomeçar, e enquanto ele lhes revela num murmúrio o que veio anunciar sobre o mundo do lado de fora, e que os petrifica, o iluminador no mezanino se aproxima num sussurro da conclusão da piada. O humilde lavrador de relógio e a morte sem foice ou manto (estão apenas ensaiando) entram no palco. O lavrador vira-se para a morte e reinicia a sua ladainha com a mesma entonação e o distanciamento que lhe parecem mais apropriados. Mas desta vez, para sua surpresa, o diretor não o interrompe, porque tem os olhos arregalados e está lívido enquanto o homem, antes apenas um vulto, lhe sussurra algo ao ouvido. E ao ver o homem que sussurra ao ouvido do diretor, e o olhar deste e de sua assistente, que pela primeira vez não o interrompem, mas permanecem a encará-lo com os olhos aterrados e arregalados (a assistente com os olhos cheios de lágrimas diante da súplica que o lavrador faz à morte) enquanto escutam o que o outro lhes diz ao ouvido, curvado na poltrona ao lado, embora a entonação no palco tenha sido a mesma e devesse portanto, pela lógica, ser mais uma vez interrompida, o próprio ator interrompe a ação e por fim compreende aterrorizado e a um só tempo a sinistra coincidência da cena e do momento, o que aquele vulto veio anunciar sobre o mundo do lado de fora, com buzinas, motores e sirenes; compreende por que a mulher não apareceu e afinal o que sente o humilde lavrador; compreende por que o diretor não o interrompeu desta vez, porque por fim esteve perfeito na pele do lavrador em sua súplica diante da morte; compreende que por um instante encarnou de fato o lavrador, que involuntária e inconscientemente, por uma trapaça do destino, tornou-se o próprio lavrador pelo que aquele vulto veio anunciar; compreende tudo num segundo, antes mesmo de saber dos detalhes do acidente que a matou atravessando a rua a duas quadras do teatro, diante dos olhos arregalados do diretor e da assistente, sob as gargalhadas incontidas do iluminador e do técnico no mezanino, chegando ao fim da piada.


Contos do Sábado na Usina: Luis Fernando Verissimo: Conto de verão n2 2: Bandeira Branca :



Ele: tirolês. Ela: odalisca. Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval. Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.

Só no terceiro Carnaval se falaram.

-   Como é teu nome?

-   Janice. E o teu?

-   Píndaro.

-   O quê?!

-   Píndaro.

-   Que nome!

Ele de legionário romano, ela de índia americana. Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era sócia.

-Ah. Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira Branca, ele veio e puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse "Até o Carnaval que vem" e saiu correndo. No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na hora da despedida, ele pediu:

-   Me dá alguma coisa.

-   O quê?

-   Qualquer coisa.

-   O leque.

O leque da bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão. No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes tirando o leque do seu esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que acontecera?

-   Você vomitou a alma - disse a mãe.

Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela.

Mas, no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube - e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida.

-   Sei lá. Bávara tropical - disse ela, rindo.

Estava diferente. Não era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval.

-   E aquela bailarina espanhola?

-   Nem me fala. E o toureiro?

-   Aposentado.

A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse "Píndaro?!" e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia de sultão. O Marcelão tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo menos não inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi "pelo menos o meu tirolês era autêntico" e desistiu. Mas, quando a banda começou a tocar Bandeira Branca e ele se dirigiu para a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo "não vale, você cresceu mais do que eu" e encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro. Encontraram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso, num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse quase não reconheci você sem fantasias". Ele custou a reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que ele lhe dissera fora "preciso te dizer uma coisa", e ela dissera "no Carnaval que vem, no Carnaval que vem" e no Carnaval seguinte ela não aparecera, ela nunca mais aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele, como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara...

-   O que você ia me dizer, no outro Carnaval? - perguntou ela.

-   Esqueci - mentiu ele.

Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil... E a todas essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele? Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ainda tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu...