sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Contos do Sábado na Usina: Humberto de Campos:

 




Humberto de Campos 
HERODES 
O vapor fluvial que demandava a região do Xingú, no Baixo-Amazonas, acabava de atracar ao pequeno trapiche do barracão ribeirinho, suspenso nas águas sobre duzentas antenas de madeira, no ponto em que o rio Mapuá se bifurca para melhor abraçar a floresta alagada, e onde eu vivia sozinho, com um miserável seringueiro empaludado. A água escura, quieta durante um mês, ondulava, agora, nervosa, assustada pelo choque das hélices da embarcação civilizada. Seringueiros opilados, com os olhos quase escondidos no rosto inchado e terroso, olhavam, de longe, debruçados no alpendre de zinco do armazém, o "gaiola" formigante de marinheiros e de "brabos", o qual havia deixado dias antes, e voltaria a rever em breve, um mundo que eles não veriam mais. Um espanto, um susto alegre, uma inquietação feliz, parecia apossar-se das coisas, em torno, naquela festa de meia hora. Dentro de alguns minutos, o navio desceria a corrente do rio, deixando tudo, de novo, mergulhado no silêncio e na morte. 
Embarcada a borracha amassada com a lama na terra e com o sangue dos meus homens, e recebidas as mercadorias destinadas aos seringais do centro, o comandante do "gaiola" chamou -me ao seu camarote, e pediu-me que recebesse no barracão, como um serviço à sua pessoa e à casa comercial a que a embarcação pertencia, um doente que vinha a bordo e que talvez não resistisse aos múltiplos inconvenientes da viagem. Se melhorasse, eu devia mandá-lo, numa canoa, para a foz do rio, onde o reembarcaria, no regresso. Disse-me isso enquanto me servia um cálice de vinho do Porto e eu admirava, com inveja, os gabes dourados que lhe enfeitavam o boné branco e o fardamento cuidado. Sem refletir muito sobre a responsabilidade que assumia, subornado pela gentileza daquele homem que me levava a civilização e a perfídia no gargalo de uma garrafa, aquiesci sem relutância. E os marinheiros desembarcaram para o barracão, onde os mosquitos chiavam na sombra, o corpo macilento de um indivíduo de quarenta anos, mais ou menos, em cujas linhas fisionômicas, a enfermidade, e o meio em que ultimamente vivia, haviam alterado os traços de uma antiga distinção. Nos seus olhos escuros, que a febre incendiava intermitentemente, boiavam a revelação de uma vida civilizada, a reminiscência de sociedades polidas, a lembrança inequívoca de um ambiente invulgar. A barba negra e cerrada, pontilhada de fios de prata, tentava esconder os traços finos, indícios de origem, do rosto moreno e cavado, que o paludismo esverdeara. As mãos pequenas e magras que a alisavam, traíam, porém, a dissimulação, denunciando no gesto elegante e no feitio gracioso a companhia em que se haviam educado. Ao menor movimento, pareciam comprimir, ainda, a pelica de uma luva ou uma cintura de mulher. 
Desaparecido o vapor na curva do rio, tratamos, eu e o meu companheiro, de alojar o nosso hóspede. Enquanto os seringueiros, remando as suas "montarias", subiam os dois braços fluviais para um novo degredo de trinta dias, dávamos nós, ao enfermo, o compartimento mais abrigado que havia em nosso ninho de abutres. Pusemos-lhe à disposição os nossos cobertores, o nosso quinino, as nossas bolachas, que ele agradecia com desconfiada dignidade, como se estivesse prisioneiro de selvagens. 
Ao fim de dois dias, durante os quais a febre não o abandonou, aumentando em horas certas, em solavancos que lhe faziam bater os dentes e chocalhar os ossos, éramos amigos, quase íntimos. A solidão identifica as almas, e a desgraça as aproxima. No degredo há uma ânsia permanente de confidências. Fiz-lhe, por isso, as minhas, contei-lhe a minha existência heróica e atormentada. E ele já me havia dito que era do Rio de Janeiro, onde se formara em medicina, e onde exercera a profissão durante dois lustros, com alto sucesso mundano. Abandonara o sul por fastio da vida, e procurara a Amazônia para refazer os sentidos, entorpecidos da ciência, bêbados de civilização. 
À noite do terceiro dia, bateram, porém, à porta do meu quarto. Era o caboclo, meu companheiro, que, encolhido, as mãos unidas no peito, a cabeça guardada nos ombros, tiritando, matracando as maxilas sem dentes, assaltado também pela febre, me vinha chamar para ver o nosso hóspede, que regougava sinistramente no seu aposento. Levantei-me às pressas e atravessei o alpendre. A noite sem lua estava toda enfeitada de estrelas, que se miravam no espelho quieto do rio. A floresta, na outra margem, era como um grande muro de bronze edificado sobre uma lâmina de aço, que lhe duplicava o perfil. Mil vozes retalhavam o silêncio em pedaços miúdos, tornando-o indivisível. Batráquios e insetos pareciam procurar um ponto vago no tempo e no espaço afim de enfiar o alfinete sonoro do seu grito. Uma pirarara fez espadanar a água, de súbito, em luta com algum peixe de grande vulto, e partiu, como um torpedo, agitando a superfície do rio. A alma da Natureza dormia, mas o seu corpo velava, no ritmo inconsciente da vida. 
À porta no quarto do enfermo, parei, escutando. Não havia luz, lá dentro. Da escuridão vinha, porém, uma agitação de esqueleto, como se os demônios estivessem mudando, àquela hora, o ossuário de um cemitério. Chamei pelo meu novo amigo, e a sua resposta foi um uivo estrangulado, seguido de um resfolegar de bomba hidráulica, em que se misturavam na garganta e nos brônquios o ar da vida e a espuma da morte. Acendi uma vela e depois de lhe olhar o rosto, angustiosamente alterado, preguei a estearina no soalho, para aquecer alguns goles dágua, em um caneco de ágata. O trabalho era, entretanto, difícil. Incomodados pela luz, que se ia refletir na lama através das frestas do tabuado, os jacarés, que dormiam em baixo do barracão, davam rabanadas furiosas nas tábuas, abalando-as, aos bufos. E eu, para evitar que a vela tombasse, amparava-a com uma das mãos, segurando com a outra o caneco dágua, que precisava aquecer. 
Com água quente, a que adicionara algumas gotas de acônito, o frio diminuiu progressivamente ficando apenas a febre alta, a devorar o doente. E foi nesse estado que o meu enfermo, num equilíbrio súbito das suas faculdades de raciocínio, me confessou, com grandes pausas, como se eu fosse um ministro de Deus; a sua história terrível. 
- Eu lhe vou deixar, meu amigo, - disse, começando, - eu lhe vou deixar, como herança da minha gratidão, o segredo triste do meu destino e da minha miséria. Uma lição do mundo é sempre um tesouro. E eu lhe vou entregar, com as mãos vermelhas de sangue, as chaves do cofre da minha vida. 
Os olhos brilharam-lhe sinistros, reproduzindo a chama da vela, como se guardassem dois esquifes. Interrompeu-se, de repente, como se se tivesse arrependido. Um largo silêncio, cortado apenas pela sua respiração agitada e pela vaia fina de um grilo escondido em toda parte, encheu o quarto. Depois, continuou: 
- Na sua idade, eu tinha a alma congestionada de sonhos, e o coração repleto de ambições, que me torturavam. Não eram sonhos de riquezas, desejos de domínio, ambições de poderio. Não queria comandar os homens, que, para mim, não existiam; queria dominar as mulheres, que, para mim, eram tudo na terra. Queria-as a todas, e como não as tinha a todas, votava rancor aos homens que possuíam as que não eram minhas. Era sentimental e egoísta; mas de um egoísmo doentio, que chegava ao delírio Maridos, noivos, namorados, eram atingidos, todos, pela peçonha do meu despeito, pela baba do meu ódio. Um beijo estalado na boca de outro, um sorriso mandado a outro que não a mim, envenenava-me, dava-me uma noite de insônia. Que as mulheres lindas não fossem minhas; mas, também, que não fossem de outros braços, de outros lábios, de outra luxúria. 
Um regougo, semelhante ao de uma onda numa urna marinha, interrompeu-o. Tossiu e, vencendo uma dispnéia angustiosa, reencetou, com dificuldade: 
- Essa preocupação turvava até as minhas conquistas felizes, o meu prazer, as minhas horas de ventura. Quando eu me apossava de um coração ou de um corpo que pertencia a um esposo, a um amante, a um namorado mais velho do que eu, essa mesma posse era perturbada pela visão do que fariam comigo mais tarde, quando eu fosse tomando na terra o lugar deles, e outros homens mais novos tomassem o meu. Os maridos, os amantes, os noivos de agora, seriam vingados. Dentro de alguns anos viriam outros homens; mais jovens, mais vigorosos, mais arrogantes, que tomariam, por sua vez, minha noiva, minha mulher, minhas amantes. E comecei a odiar os homens. 
Os sapos, nas duas margens do rio soturno, espaçavam o coaxar ensurdecedor, a que se misturavam ainda as mil vozes, os mil gritos, os mil anseios da noite que declinava. O enfermo calou-se por um instante, e reatou, ainda mais opresso, repetindo a última frase: 
- Comecei a odiar os homens... Eram meus inimigos, inimigos da minha ventura. Se eu os não matasse, eles me matariam, mais tarde, na velhice, impiedosamente, ferindo-me no coração... Pensei que fosse enlouquecer... Meu pai morreu louco... Eu tenho um irmão, louco, no Hospício, no Rio de Janeiro... Mas, era preciso que, depois de mim, não viesse ninguém que me disputasse as minhas mulheres! 
Como se tivesse medo de mim, olhou-me fixamente, à luz da vela, os olhos febris, dizendo, rouco, num ímpeto: 
- E comecei a matar os homens que nasciam! 
Senti um arrepio de terror. O doente percebeu o meu espanto, leu-o nos meus olhos e na minha palidez, mas continuou: 
- Minha profissão favorecia-me. Modifiquei a minha especialidade, entregando-me à obstetrícia e à pediatria. Ia receber os meus pequeninos inimigos à porta da vida, e declarava-lhes guerra. As mulheres eram perdoadas, abençoadas, amparadas. Os homens, não; a esses, eu perseguia implacavelmente com todas as armas traiçoeiras da minha ciência, e só os abandonava no túmulo, sob as lágrimas e as rosas das mães inconsoláveis... A minha clínica de crianças era uma hecatombe. Fui, entre elas, um lobo num rebanho! 
Uma nova pausa, mais funda e mais longa, sacudida pela respiração ansiada. 
Reatou: 
- Um dia, suspeitaram. Era o escândalo, que se anunciava. Era a condenação, que vinha. Era a prisão infalível. E eu fugi! 
E num arranco: 
- Fugi, matando crianças pelo caminho! 
Um tremor mais forte de todo o seu corpo sacudiu a rede até os punhos. Esperei que continuasse. Como a pausa fosse demorada e as suas convulsões me enchessem de pavor, corri para o alpendre, a respirar o hálito da manhã, que nascia. Quando voltei, o aposento estava em silêncio. Apenas o pavio da vela, que eu deixara no soalho, agonizava, num lago de cera derretida. 
Chamei o meu hóspede. Estava morto.

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo: UMA NOITE EM PETRÓPOLIS:

 


O Gustavo era literato e quase jornalista. Casou-se muito novo, aos vinte e rês anos, e fez-se guarda- livros, porque decididamente a literatura não lhe dava com que manter a família. 
O casamento havia sido muito contrariado por uma dona Puquéria, tia da noiva, senhora já bastante idosa, que morava em Cascadura. Depois de casado, o Gustavo guardou um profundo ressentimento contra essa velha: não a podia ver nem pintada. 
Ora, uma bela manhã, seis anos depois do casamento, a mulher de Gustavo foi despertá-lo mais cedo que de costume. 
— Gustavo! 
— Hein? Que queres tu? Para que me acordas tão cedo? Bem sabes que com este calor infernal só posso pegar no sono pela madrugada! Deixa-me dormir! 
— Ouve; trata-se de uma coisa grave. O Gustavo deu um pulo da cama. 
— Hein? 
— Tia Pulquéria... 
— Morreu? 
— Não; mas está morre não morre. Mandou-me pedir que fosse lá com os pequenos; quer despedir-se da gente. 
— Responda-lhe que morra quantas vezes quiser, e nos deixe em paz! 
— Gustavo, lembra-te que ela é irmã de meu pai... 
— Lembro-me que esse diabo inventou contra mim as maiores calúnias, para impedir o nosso casamento! 
— Pois sim, perdoa-lhe... aquilo foi rabugice de velha. 
— Vai tu, se quiseres, com os meninos e a Máxima. Eu tenho mais que fazer; não os acompanho. 
Uma hora depois, a sobrinha de dona Pulquéria, em companhia dos quatro pequenos e da Máxima - a ama seca de todos os quatros - tomava o trem para Cascadura. 
O Gustavo tentou dormir ainda, mas não o conseguiu. Ergueu-se de mau humor, tomou um banho frio, vestiu-se, e foi para o escritório. Almoçava em casa do patrão. 
Ao meio dia recebeu um bilhete de sua mulher dizendo-lhe que tia Pulquéria tinha expirado às dez horas da manhã e que ela ficaria lá todo o dia e toda a noite com os meninos e a Máxima “fazendo quarto”; só iria para casa no dia seguinte, depois do enterro. 
O marido ficou bastante contrariado. Era a primeira vez, depois de seis anos de casados, que ia passar um noite longe da família. 
Um dos seus companheiros de escritório, homem já maduro e também pai de família, disse-lhe: 
— Eu, no seu caso, Gustavo, tratava de aproveitar esta noite de liberdade... 
— Aproveitar como? Não sou pândego nem tenho recursos para meter-me em cavalarias altas... Já sei que esta noite vai ser pior que a passada, em que não preguei o olho... Fazia um calor terrível. 
— Pois aproveite a noite dormindo bem. 
— Onde? 
— Em Petrópolis. Você vai hoje na barca das quatro; chega lá às seis; janta no Bragança; depois do jantar vai dar um giro pela cidade; volta ao hotel; pede um quarto; passa uma noite deliciosa, e amanhã toma o trem para cá às sete horas da manhã. 
A idéia sorriu ao Gustavo. Que bom seria passar a noite em Petrópolis, gozando a agradável temperatura da serra! Com que prazer ele se estenderia numa caminha fresca, para no dia seguinte, ao primeiro raio de sol, despertar alegre como um pássaro eleve como uma flor! 
Demais a mais, Gustavo nunca fora a Petrópolis, e Petrópolis era um dos seus sonhos. Uns desejam ir à Europa, outros à América do Norte, outros ao Oriente; ele desejaria ir à Petrópolis, embora para ali passar apenas uma noite. 
O Gustavo foi à casa, acondicionou a roupa indispensável numa maleta de mão, e às quatro horas partiu para o ex- Córrego-Seco, munido de bilhete de ida e volta. 
O programa traçado começou por ser fielmente cumprido. No hotel Bragança deram ao Gustavo um bom quarto, e serviram-lhe um bom jantar, que ele não apreciou bastante porque estava a cair de sono e na sala o termômetro marcava trinta graus. 
Acabado o jantar, o nosso viajante saiu para dar um giro pela cidade; mas, como entrasse a chuviscar, voltou para o hotel, dizendo aos seus botões: 
— Ora, adeus! vou deitar-me... Há de ser um sono só pela manhã! 
Quis porém a fatalidade que, ao entrar no hotel o Gustavo encontrasse o Miranda, que fora, sete anos atrás, um dos companheiros de “lutas” literárias, um bom rapaz que tinha apenas um defeito, mas um grande defeito: bebia. Um pobre diabo, um maluco desses de quem se diz: — Coitado! é mau só para si. 
— Olhe quem ele é: O Gustavo!... 
— Oh, Miranda! 
— Que fazes tu em Petrópolis? 
— Vim dormir, e tu? 
— Eu resido aqui. 
— Ah! E em que te empregas? 
— Em coisa nenhuma. Dissipo os restos do meu patrimônio. 
O Gustavo notou que o Miranda tinha a língua um pouco presa, e como não há companhia mais desagradável que a de um bêbado, tratou de despedir-se. 
— Não! já não te deixo!... protestou o Miranda. Anda daí tomar comigo um copo de cerveja. 
— Não... desculpa-me... 
— Não admito desculpas! 
— Pois sim, mas há de ser aqui mesmo no hotel. 
— Nada! nada! Cerveja em hotel não tem bom sabor. Vamos a uma brasserie que ali há... atravessemos aquela ponte... 
— Isso é uma extravagância: está chovendo! 
— Ora! um chuvisquinho à toa! Vamos! 
— Perdão, Miranda, eu vim a Petrópolis para dormir e não para tomar cerveja! Não preguei olho toda a noite passada, estou a cair de sono! 
— Oh, desgraçado! pois tu queres dormir às oito horas da noite? Bem se vê um poeta lírico degenerado, um trovador que se encheu de filhos e se fez guarda-livros! Anda daí!... 
E Gustavo deixou-se levar, quase de rastros, à cervejaria. 
Os dois amigos sentaram-se a uma mesa, diante de dois copos de cerveja alemã. O Miranda esvaziou imediatamente um deles, e pediu reforço. 
— Era o que faltava! Dormir às oito horas noite! nada; temos muito o que conversar, meu velho: vou expor-te um plano, um grande plano; quero saber se o aprovas. 
— Fala, disse Gustavo contrariadíssimo, arrependido, mas resignado. 
— Pretendo fundar uma folha diária aqui, nesta cidade vermelha! 
O Miranda esperava que Gustavo perguntasse: — Vermelha, por que? - O Gustavo calou-se; ele porém, acrescentou, como se o outro houvesse feito a pergunta: 
— Pois não reparaste ainda que tudo aqui em Petrópolis é vermelho? As pontes, as grades, as montanhas, as casas, os criados de servir, e até os cabelos dos respectivos indígenas? Olha! 
E apontou para o moço que trazia novo reforço de cerveja, um petropolitano ruivo, verdadeiro tipo teutônico. 
— Em Petrópolis há um jornal, mas imagina, meu velho, que esse jornal se intitula o Mercantil! Vê que tolice! um Mercantil nesta cidadezinha de vilegiatura, neste oásis de verão, residência de diplomatas, capitalistas e mulheres elegantes! O Mercantil, ora bolas! 
E o Miranda expôs longamente o plano do seu jornal, com grandes gestos, os olhos muito abertos e injetados, as narinas delitadas, os bigodes cheios de espuma. Seria uma folha artística, parisiense, catita, e sobretudo, escandalosa... não escandalosa como o Corsário, mas como o Gil Blas ou o Eco de Paris... 
Levantando a pontinha, só a pontinha do véu que esconde um mistério de amor... intrigando a sociedade inteira com uma inicial ou duas linhas de reticências... 
Inflamado, o Miranda indicava os lucros prováveis da empresa, os capitalistas com que contava para lançá-la, os redatores e colaboradores que contrataria, e mais isto, e mais aquilo, e mais aquilo outro. 
O Gustavo, que por diversas vezes tentava erguer-se, era subjugado pelo Miranda. ouvia-o com as pálpebras semi cerradas pela fadiga, embrutecido, sem dizer uma frase, nem mesmo uma palavra, porque o futuro redator do Petrópolis - era esse o título do projetado jornal, - com a língua perra, dando murros na mesa, quebrando copos, expectorava abundantes períodos, sem vírgula, sem pausa. Só se calava de vez em quando para beber, ensopando os bigodes em cerveja e lambendo-os em seguida. 
A chuva caía agora a cântaros. 
Na cervejaria só estavam os dois amigos e o petropolitano teutônico, este encostado ao balcão de braços cruzados, cabeceando. O Miranda continuava com mais entusiasmo a exposição do plano da sua futura empresa, quando o dono da casa, um alemão robusto, irrompeu dos fundos do estabelecimento: 
— Endão que é isto, meus zenhores? Já bassa tas tuas horas... não bosso der a minha casa aperda adé alda noide!... 
O Miranda tentou recalcitrar, mas o cervejeiro não lhe deu ouvidos. O Gustavo pagou a despesa, e puxou pelo braço o beberrão, que parecia pregado ao banco em que se sentara. Afinal, conseguiu arrastá-lo até a rua. O alemão fechou imediatamente a porta. 
O Miranda, mal deu dois passos, perdeu o equilíbrio e caiu redondamente na lama. O Gustavo abaixou- se para erguê-lo, mas o outro deixou-se estar, não fez o mínimo esforço para levantar-se, e resmungou quase ininteligivelmente: — Estou muito bêbado! 
Imaginem a situação do guarda-livros: tonto de sono, de madrugada, à chuva, numa rua deserta, numa cidade que ele absolutamente não conhecia, às escuras, porque Petrópolis não tinha iluminação, e vendo aos seus pés um amigo embriagado, um companheiro de “lutas”, que não podia abandonar ali! 
Imaginem os trabalhos porque passou o ex-poeta lírico para remover a pesada massa de carne e osso que jazia inerme no chão, e encontrar a casa em que habitava o Miranda. Felizmente este, mesmo bêbado, conseguiu orientá-lo. Mas que trabalho!... 
Era perto de quatro horas quando o Gustavo bateu à porta do hotel Bragança. O criado que lhe veio abrir, de vela acesa na mão, teve um sorriso malicioso, e disse: 
— Ai! Ai! Estes moços felizes que vêm passar uma noite em Petrópolis e se recolhem ao hotel de madrugada... Ai! Ai! 
O Gustavo às sete horas da manhã desceu a serra aborrecido, doente, com uma enxaqueca terrível, estupidificado pelo sono e atribuindo as suas desgraças à tia Pulquéria. 
Felizmente a velha deixou-lhe uns cobres que até certo ponto o consolaram daquela malfadada noite em Petrópolis.

Contos do Sábado na Usina: Sérgio Faraco:



Eu olhava para a estrada e tinha a impressão de que jamais na vida chegaríamos a Nhuporã. Que pedaço brabo. O camaleão se esfregava no chassi e o pai praguejava:

- Caminho do diabo!

Nosso Chevrolet era um trinta e oito de carroceria verde-oliva e cabina da mesma cor, só um nadinha mais escura. No pára-choque havia uma frase sobre amor de mãe e em cima da cabina uma placa onde o pai anunciava que fazia carreto na cidade, fora dela e ele garantia, de boca, que até fora do estado, pois o Chevrolet não se acanhava nas estradas desse mundo de   Deus. Mas o caminho era do diabo, ele mesmo tinha dito. A pouco mais de légua de Nhuporã o caminhão derrapou, deu um solavanco e tombou de ré na valeta, O pai acelerou, a cabina estremeceu. Ouvíamos os estalos da lataria e o gemido das correntes no barro e na água, mas o caminhão não saiu do lugar. Ele deu um murro no guidom.

-   Puta merda.

Quis abrir a porta, ela trancou no barranco.

-   Abre a tua.

A minha também trancava e ele se arreliou:

-   Como é, ô Moleza! Empurrou-a com violência.

-   Me traz aquelas pedras. E vê se arranca um feixe de alecrim, anda.

Agachou-se junto às rodas e começou a fuçar, jogando grandes porções de barro para os lados. Mal ele tirava, novas porções vinham abaixo, afogando as rodas. Com a testa molhada, escavava sem parar, suspirando, praguejando, merda isso e merda aquilo, e de vez em quando, com raiva, mostrava o punho para o caminhão. O pai era alto, forte, tinha o cabelo preto e o bigode espesso. Não era raro ele ficar mais de mês em viagem e nem assim a gente se esquecia da cara dele, por causa do nariz, chato como o de um lutador. Bastava lembrar o nariz e o resto se desenhava no pensamento.

-   Vamos com essas pedras!

Por que falava assim comigo, tão danado? As pedras, eu as sentia dentro do peito, inamovíveis.

-   Não posso, estão enterradas.

-   Ah, Moleza.

Meteu as mãos na terra e as arrancou uma a uma. Carreguei-as até o caminhão, enquanto ele se embrenhava no capinzal para pegar o alecrim.

-   Pai, pai, o caminhão tá afundando!

A cabeça dele apareceu entre as ervas.

-   Não vê que é a água que tá subindo, ô pedaço de mula?

E riu. Ficava bonito quando ria, os dentes bem parelhos e branquinhos.

-   Tá com fome?

-   Não.

-   Vem cá.

Tirou do bolso uma fatia de pão.

-   Toma.

-   Não quero.

-   Toma logo, anda.

-   E tu?

-   Eu o quê? Come isso.

Trinquei o pão endurecido. Estava bom e minha boca se encheu de saliva.

-Acho que não vamos conseguir nada por hoje. De manhãzinha passa a patrola do DAER,* eles puxam a gente. Atirou a erva longe e entrou na cabina.

-   Ô Moleza, vamos tomar um chimarrão?

Fiz que sim. Ao me aproximar, ele me jogou sua japona.

-   Veste isso, vai esfriar.

A japona me dava nos joelhos e ele riu de novo, mostrando os dentes.

-   Que bela figura.

A cara dele era tão boa e tão amiga que eu tinha uma vontade enorme de me atirar nos seus braços, de lhe dar um beijo. Mas receava que dissesse: como é, Moleza, tá ficando dengoso? Então agüentei firme ali no barro, com as abas da japona me batendo nas pernas, até que ele me chamou outra vez:

-   Como é, vens ou não? Aí eu fui.

 

*Sigla do departamento responsável pela conservação das estradas estaduais. (N. do E.)

 


Contos do Sábado na Usina: Ivan Ângelo: Bar:

 


A moça chegou com sapatinho baixo, saia curta, cabelos lisos castanhos arrumados em rabo-de-cavalo, sorriu dentes branquinhos muito pequenos, como de primeira dentição, e falou o senhor me deixa telefonar? de maneira inescapável.

O homem da caixa registradora estava olhando o movimento do bar, tomando conta de maneira meio preguiçosa, sem fixar muito os olhos no que o rapaz do balcão já havia servido aos dois fregueses silenciosos, demorando-os

mais no bêbado que balançava-se à porta do botequim ameaçando

entrar e afinal parando-os no recheio da blusinha preta sem mangas que estava à sua frente, o que o fez despertar completamente com um e a senhora o que é?

A moça constatou contrariada que havia desperdiçado a primeira carga de charme e mostrou novamente seus pequeninos dentes, agora fazendo a

precisadinha urgente, dizendo eu posso telefonar? com ar de quem entrega ao outro todas as esperanças.

O homem falou pois não e levantou a mão meio gorda do teclado da

caixa registradora, abaixou-a olhando para o bêbado que subia o degrau da porta, retirou de uma prateleira debaixo da registradora um telefone preto onde ainda estava gravado no meio do disco o selo da antiga Companhia Telefônica Brasileira e empurrou-o para a moça dizendo não demore por favor que já vamos fechar.

A moça tirou o fone do gancho e murmurou baixinho putz, sopesou ostensivamente o aparelho e disse bajuladora pesadinho hein?

O homem sorriu atingido pela seta da lisonja dizendo éééé antigo. A moça levou o fone ao ouvido e discou 277281 com um dedo bem tratado de unha lilás.

O homem da caixa tirou os olhos do dedo, pegou um lápis enganchado na orelha direita e anotou a milhar explicando é pra o bicho, não se

importando se a moça ouvia ou não e devolveu o lápis à orelha enquanto olhava o bêbado que navegava agora à beira do balcão.

A moça falou quer fazer o favor de chamar o Otacílio e ficou esperando.

Um homem chegou ao lado dela cheirando a cigarro, falou para o caixa me dá um miníster, olhou intensamente os olhos dela e imediatamente os seios.

A moça enrubesceu e se tocou rápida procurando o botão aberto que

nem havia e protegeu-se expirando o ar com o diafragma e avançando os ombros para disfarçar o volume do peito.

A caixa registradora fez tlin, um carro freou rangendo pneus e uma voz forte gritou filha da puta com um u muito longo.

O homem da caixa deu o troco ao homem que comprara cigarros e

falou faz de conta que não ouviu nada menina isso aqui é assim mesmo. O homem que comprara cigarros afastou-se e foi ver da porta o que


estava acontecendo na rua.

A moça voltou-se simpática para o homem da caixa mas parou atenta

aos sons do fone, mudou de atenta a decepcionada e falou depois de instantes diz que é aJulinha.

O homem que comprara cigarros parou na porta, abriu o maço de cigarros e acendeu um.

O homem da caixa falou ô José esse aí tem de pagar primeiro e o rapaz

do balcão parou de servir a cachaça para o bêbado e falou qualquer coisa com ele enquanto o homem da caixa procurava explicar-se dizendo depois não paga e ainda espanta freguês.

A moça sorriu condescendente.

O homem fumava à porta e olhava as pernas dela.

A moça pôs uma perna na frente da outra defendendo-se cinqüenta por cento e falou de repente alegre oi! demorou hein? E procurando um pouco de privacidade virou-se dizendo ficou com raiva de mim?

O homem da caixa fingia-se distraído mas ouvia o que ela dizia. Pensei. Não me ligou.

O bêbado navegou contornando arrecifes e chegou ao caixa com uma nota de quinhentos na mão.

Mas não é isso, não é nada disso.

O homem da caixa disse pode servir José. Não sei... fiquei com medo, só isso.

O bêbado começou o cruzeiro de volta.

Não, não. Não é de você. Acho que é assim mesmo, não é?

A caixa registradora fez tlin marcando quinhentos cruzeiros.

Poxa, Otacílio, pensa. O tanto de coisa que vem na cabeça da gente numa hora dessas. Vocês acham tudo fácil.

A cara do homem da caixa estava um pouco mais desperta e maliciosa. Claro que é difícil. É só querer ver o lado da gente, pô.

O rapaz do balcão tirou o mesmo copo meio servido e a mesma garrafa e completou a dose do bêbado.

Tá legal. Eu também acho: vamos esquecer o que aconteceu ontem. Falou.

O bêbado olhou atentamente para o copo como se meditasse mas na verdade apenas esperando o momento certo de conjugar o movimento do navio com o de levar o copo à boca e quando o conseguiu bebeu tudo de uma vez com uma careta e um arrepio.

A moça ouviu com ar travesso o que Otacílio dizia e sorriu excitada seus dentes branquinhos.

O homem da caixa olhou para o homem da porta e a cumplicidade masculina brotou nos olhares.

Não, sábado não dá. Aí já passou. Ora, como. Passou do dia, Ota, não

dá. Não dá pra explicar aqui. Você não entende? Tem dia que dá e tem dia que não dá, pô.

O homem da caixa piscou para o homem que fumava na porta como quem diz você que tava certo.

Uai, só daqui a uns quinze dias. Lógico que eu me informei. A moça viu o olhar do homem da porta e virou-lhe as costas. Hoje!? Tá louco?

O homem que fumava ficou olhando-a por trás.

Papai não vai deixar. Só se... Só se eu falar com a mamãe e ela falar com ele.

Alguém chegou e falou cobra duas cervejas e me dá um drops desse aqui ó hortelã.

Ora, que que eu vou falar. Não sei, pô. Eu dou um jeito. Pode deixar que eu me viro.

A caixa fez tlin e o homem foi embora sem que ela o visse.


Não, eu vou. De qualquer jeito eu vou. Agora eu que tou querendo. A moça olhou para o homem da caixa e fugiu depressa daquela cara agora debochada.

Então me espera. Eu vou aí. Chau.

A moça desligou e ficou uns instantes com o olhar baixo tomando coragem e depois falou para o homem posso ligar só mais unzinho? O homem da caixa falou pode alongando o o muito liberal e olhando fixamente de cima a sugestão do decote.

A moça procurou um ponto neutro para olhar e achou o rapaz que

lavava copos atrás do balcão, enquanto esperava o sinal do telefone, depois discou 474729 e ficou olhando o ambiente.

Uma armadilha azul fluorescente de eletrocutar moscas aguardava vítimas.

O rapaz do balcão olhava-a furtivamente e murmurou gostosa, de dentes trincados.

O bêbado esperava o melhor momento de descer do degrau para a rua com um pé no chão e outro no ar, como alguém inseguro que se prepara para descer de um bonde andando.

O homem da porta juntou os cinco dedos da mão direita e levou-os à

boca num beijinho transmitindo ao homem da caixa sua opinião sobre ela.

O homem da caixa respondeu segurando a pontinha da orelha direita como quem diz é uma delícia.

A moça murmurou será que saíram? explicando-se para ninguém.

Os dois homens silenciosos que bebiam cerveja encostados no balcão não estavam mais lá,

A moça ficou de lado e o homem da caixa fez um galeio para ver um pouco mais de peitinho pelo vão lateral da blusinha sem mangas.

A moça emitiu um ah de alívio, puxou o fio até onde dava e meio abaixou-se de costas para dizer mamãe? é Júlia com uma voz abafada por braços e mãos e concentrada no que ia dizer.

O homem da porta, o rapaz do balcão e o homem da caixa se olharam rapidamente.

Olha, eu jantei aqui na cidade com a Marilda. Ora, mamãe, a senhora conhece a Marilda, até dormiu em casa. É, é essa. Olha: agora a gente vai ao cinema, viu? Que tarde, mamãe, tem uma sessão às dez e meia. Se ficar muito tarde eu vou dormir na casa dela. É só porque é mais perto, mamãe, senão a gente ia praí. Não tem. A senhora sabe que não tem. A senhora fala com papai pra mim? Não, eu não vou falar. Tá bom. Eu ligo depois do cinema. pra confirmar, hein, porque o mais certo é a gente ir pra lá. Um beijo. Bota a gatinha pra dentro, viu? Chau.

A moça ergueu-se, desligou o telefone e perguntou quanto é.

O homem da caixa não estava mais lá e falou pra você não é nada gostosa, atrás dela.

A moça se voltou rápida e viu que todas as portas do bar estavam fechadas.

Os três homens, narinas dilatadas, formavam um meio círculo em torno dela.

 


Contos do Sábado na Usina: Caio Fernando Abreu: Aqueles dois I:



(História de aparente mediocridade e repressão) Para Rofran Fernandes

- "I announce adhesiveness, I say it shall

/be limitless, unloosen'd

I say you shall yet find the friend you

/were looking for." (Walt Whitman: So Long!)

A verdade é que não havia mais ninguém em volta. Meses depois, não no começo, um deles diria que a repartição era como "um deserto de almas". O outro concordou sorrindo, orgulhoso, sabendo-se excluído. E longamente, entre cervejas, trocaram então ácidos comentários sobre as mulheres mal-amadas e vorazes, os papos de futebol, amigo secreto, lista de presente, bookmaker, bicho, endereço de cartomante, clips no relógio de ponto, vezenquando salgadinhos no fim do expediente, champanha nacional em copo de plástico. Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra - talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum se perguntou. Não chegaram a usar palavras como "especial", "diferente" ou qualquer coisa assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las. Não que fossem muito jovens, incultos demais ou mesmo um pouco burros. Raul tinha um ano mais que trinta; Saul, um menos. Mas as diferenças entre eles não se limitavam a esse tempo, a essas letras. Raul vinha de um casamento fracassado, três anos e nenhum filho. Saul, de um noivado tão interminável que terminara um dia, e um curso frustrado de Arquitetura. Talvez por isso, desenhava. Só rostos, com enormes olhos sem íris nem pupilas. Raul ouvia música e, às vezes, de porre, pegava o violão e cantava, principalmente velhos boleros em espanhol. E cinema, os dois gostavam. Passaram no mesmo concurso para a mesma firma, mas não se encontraram durante os testes. Foram apresentados no primeiro dia de trabalho de cada um. Disseram prazer, Raul, prazer, Saul, depois como é mesmo o seu nome? sorrindo divertidos da coincidência. Mas discretos, porque eram novos na firma e a gente, afinal, nunca sabe onde está pisando. Tentaram afastar-se quase imediatamente, deliberando limitarem-se a um cotidiano oi, tudo bem ou, no máximo, às sextas, um cordial bom fim de semana, então. Mas desde o princípio alguma coisa - fados, astros, sinas, quem saberá?- conspirava contra (ou a favor, por que não?) aqueles dois. Suas mesas ficavam lado a lado. Nove horas diárias, com intervalo de uma para o almoço. E perdidos no meio daquilo que Raul (ou teria sido Saul?) chamaria, meses depois, exatamente de "um deserto de almas", para não sentirem tanto frio, tanta sede, ou simplesmente por serem humanos, sem querer justificá-los - ou, ao contrário, justificando-os plena e profundamente, enfim: que mais restava àqueles dois senão, pouco a pouco, se aproximarem, se conhecerem, se misturarem? Pois foi o que aconteceu. Tão lentamente que mal perceberam.