sexta-feira, 27 de agosto de 2021
Contos do Sábado na Usina: Humberto de Campos:
Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo: UMA NOITE EM PETRÓPOLIS:
Contos do Sábado na Usina: Sérgio Faraco:
Eu olhava para a
estrada e tinha a impressão de que jamais na vida chegaríamos a Nhuporã. Que
pedaço brabo. O camaleão se esfregava no chassi e o pai praguejava:
- Caminho do diabo!
Nosso Chevrolet era um trinta e oito de carroceria verde-oliva e cabina da mesma cor, só um nadinha mais escura. No pára-choque havia uma frase sobre amor de mãe e em cima da cabina uma placa onde o pai anunciava que fazia carreto na cidade, fora dela e ele garantia, de boca, que até fora do estado, pois o Chevrolet não se acanhava nas estradas desse mundo de Deus. Mas o caminho era do diabo, ele mesmo tinha dito. A pouco mais de légua de Nhuporã o caminhão derrapou, deu um solavanco e tombou de ré na valeta, O pai acelerou, a cabina estremeceu. Ouvíamos os estalos da lataria e o gemido das correntes no barro e na água, mas o caminhão não saiu do lugar. Ele deu um murro no guidom.
-
Puta
merda.
Quis abrir a
porta, ela trancou no barranco.
- Abre
a tua.
A minha também
trancava e ele se arreliou:
- Como
é, ô Moleza! Empurrou-a com violência.
- Me
traz aquelas pedras. E vê se arranca um feixe de alecrim, anda.
Agachou-se junto às rodas e começou a fuçar, jogando grandes porções de barro para os lados. Mal ele tirava, novas porções vinham abaixo, afogando as rodas. Com a testa molhada, escavava sem parar, suspirando, praguejando, merda isso e merda aquilo, e de vez em quando, com raiva, mostrava o punho para o caminhão. O pai era alto, forte, tinha o cabelo preto e o bigode espesso. Não era raro ele ficar mais de mês em viagem e nem assim a gente se esquecia da cara dele, por causa do nariz, chato como o de um lutador. Bastava lembrar o nariz e o resto se desenhava no pensamento.
- Vamos
com essas pedras!
Por que falava
assim comigo, tão danado? As pedras, eu as sentia dentro do peito, inamovíveis.
- Não
posso, estão enterradas.
- Ah, Moleza.
Meteu as mãos na
terra e as arrancou uma a uma. Carreguei-as até o caminhão, enquanto ele se
embrenhava no capinzal para pegar o alecrim.
- Pai,
pai, o caminhão tá afundando!
A cabeça dele
apareceu entre as ervas.
- Não
vê que é a água que tá subindo, ô pedaço de
mula?
E riu. Ficava
bonito quando ria, os dentes bem parelhos e
branquinhos.
- Tá
com fome?
- Não.
- Vem cá.
Tirou do bolso
uma fatia de pão.
- Toma.
- Não quero.
- Toma
logo, anda.
- E tu?
- Eu o
quê? Come isso.
Trinquei o pão
endurecido. Estava bom e minha boca se encheu de saliva.
-Acho que não vamos conseguir nada por hoje. De manhãzinha passa a patrola do DAER,* eles puxam a gente. Atirou a erva longe e entrou na cabina.
- Ô
Moleza, vamos tomar um chimarrão?
Fiz que sim. Ao
me aproximar, ele me jogou sua japona.
- Veste
isso, vai esfriar.
A japona me dava
nos joelhos e ele riu de novo, mostrando os
dentes.
- Que
bela figura.
A cara dele era tão boa e tão amiga que eu tinha uma vontade enorme de me atirar nos seus braços, de lhe dar um beijo. Mas receava que dissesse: como é, Moleza, tá ficando dengoso? Então agüentei firme ali no barro, com as abas da japona me batendo nas pernas, até que ele me chamou outra vez:
- Como
é, vens ou não? Aí eu fui.
*Sigla do departamento responsável pela conservação das
estradas estaduais. (N. do E.)
Contos do Sábado na Usina: Ivan Ângelo: Bar:
A moça chegou
com sapatinho baixo, saia curta, cabelos lisos castanhos arrumados em
rabo-de-cavalo, sorriu dentes branquinhos muito pequenos, como de primeira
dentição, e falou o senhor me deixa telefonar?
de maneira inescapável.
O homem da caixa
registradora estava olhando o movimento do bar, tomando conta de maneira meio
preguiçosa, sem fixar muito os olhos no que o rapaz do balcão já havia servido
aos dois fregueses silenciosos, demorando-os
mais no bêbado
que balançava-se à porta do botequim ameaçando
entrar e afinal
parando-os no recheio da blusinha preta sem
mangas que estava à sua frente, o que o fez despertar completamente com um e a senhora
o que é?
A moça constatou
contrariada que havia desperdiçado a primeira carga de charme e mostrou
novamente seus pequeninos dentes, agora fazendo a
precisadinha
urgente, dizendo eu posso telefonar? com ar
de quem entrega ao outro todas as esperanças.
O homem falou
pois não e levantou a mão meio gorda do teclado da
caixa
registradora, abaixou-a olhando para o bêbado que subia o degrau da porta,
retirou de uma prateleira debaixo da registradora um telefone preto onde ainda estava gravado no meio
do disco o selo da antiga Companhia
Telefônica Brasileira e empurrou-o para a moça dizendo não demore por favor que
já vamos fechar.
A moça tirou o
fone do gancho e murmurou baixinho putz, sopesou
ostensivamente o aparelho e disse bajuladora pesadinho hein?
O homem sorriu
atingido pela seta da lisonja dizendo éééé antigo. A moça levou o fone ao
ouvido e discou 277281 com um dedo
bem tratado de unha lilás.
O homem da caixa
tirou os olhos do dedo, pegou um lápis enganchado
na orelha direita e anotou a milhar explicando é pra o bicho, não se
importando se a
moça ouvia ou não e devolveu o lápis à
orelha enquanto olhava o bêbado que navegava agora à beira do balcão.
A moça falou
quer fazer o favor de chamar o Otacílio e ficou esperando.
Um homem chegou
ao lado dela cheirando a cigarro, falou para
o caixa me dá um miníster, olhou intensamente os olhos dela e imediatamente os
seios.
A moça
enrubesceu e se tocou rápida procurando o botão
aberto que
nem havia e
protegeu-se expirando o ar com o diafragma e avançando os ombros para disfarçar
o volume do peito.
A caixa
registradora fez tlin, um carro freou rangendo pneus e uma voz forte gritou
filha da puta com um u muito longo.
O homem da caixa
deu o troco ao homem que comprara cigarros
e
falou faz de
conta que não ouviu nada menina isso aqui é
assim mesmo. O homem que comprara cigarros afastou-se e foi ver da porta o que
estava
acontecendo na rua.
A moça voltou-se
simpática para o homem da caixa mas parou atenta
aos sons do fone,
mudou de atenta
a decepcionada e falou depois
de instantes diz que é aJulinha.
O homem que
comprara cigarros parou na porta, abriu o maço de cigarros e acendeu um.
O homem da caixa
falou ô José esse aí tem de pagar primeiro e o
rapaz
do balcão
parou de servir
a cachaça para o bêbado
e falou qualquer
coisa com ele enquanto o
homem da caixa procurava explicar-se dizendo depois não paga e ainda espanta freguês.
A moça sorriu condescendente.
O homem fumava à
porta e olhava as pernas dela.
A moça pôs uma
perna na frente da outra defendendo-se cinqüenta por cento e falou de repente
alegre oi! demorou hein? E procurando um pouco de privacidade virou-se dizendo
ficou com raiva de mim?
O homem da caixa
fingia-se distraído mas ouvia o que ela
dizia. Pensei. Não me ligou.
O bêbado navegou
contornando arrecifes e chegou ao caixa com uma nota de quinhentos na mão.
Mas não é isso,
não é nada disso.
O homem da caixa
disse pode servir José. Não sei... fiquei com medo, só isso.
O bêbado começou
o cruzeiro de volta.
Não, não. Não é
de você. Acho que é assim mesmo, não é?
A caixa
registradora fez tlin marcando quinhentos cruzeiros.
Poxa, Otacílio,
pensa. O tanto de coisa que vem na cabeça da gente numa hora dessas. Vocês
acham tudo fácil.
A cara do homem
da caixa estava um pouco mais desperta e maliciosa. Claro que é difícil. É só
querer ver o lado da gente, pô.
O rapaz do
balcão tirou o mesmo copo meio servido e a mesma garrafa e completou a dose do bêbado.
Tá legal. Eu
também acho: vamos esquecer o que aconteceu ontem. Falou.
O bêbado olhou
atentamente para o copo como se meditasse mas na verdade apenas esperando o
momento certo de conjugar o movimento do navio com o de levar o copo à boca e
quando o conseguiu bebeu tudo de uma vez com uma careta e um arrepio.
A moça ouviu com
ar travesso o que Otacílio dizia e sorriu excitada seus dentes branquinhos.
O homem da caixa
olhou para o homem da porta e a cumplicidade masculina brotou nos olhares.
Não, sábado não
dá. Aí já passou. Ora, como. Passou do dia, Ota, não
dá. Não dá pra
explicar aqui. Você não entende? Tem dia que dá e tem dia que não dá, pô.
O homem da caixa
piscou para o homem que fumava na porta como quem diz você que tava certo.
Uai, só daqui a
uns quinze dias. Lógico que eu me informei.
A moça viu o olhar do homem da porta e virou-lhe as costas. Hoje!? Tá louco?
O homem que
fumava ficou olhando-a por trás.
Papai não vai
deixar. Só se... Só se eu falar com a mamãe e ela falar com ele.
Alguém chegou e
falou cobra duas cervejas e me dá um drops
desse aqui ó hortelã.
Ora, que que eu
vou falar. Não sei, pô. Eu dou um jeito. Pode
deixar que eu me viro.
A caixa fez tlin
e o homem foi embora sem que ela o visse.
Não, eu vou. De
qualquer jeito eu vou. Agora eu que tou querendo. A moça olhou para o homem da
caixa e fugiu depressa daquela cara agora debochada.
Então me espera.
Eu vou aí. Chau.
A moça desligou
e ficou uns instantes com o olhar baixo tomando
coragem e depois falou para o homem posso ligar só mais unzinho? O homem da
caixa falou pode alongando o o muito liberal e olhando fixamente de cima a
sugestão do decote.
A moça procurou
um ponto neutro para olhar e achou o rapaz
que
lavava copos
atrás do balcão,
enquanto esperava o sinal do telefone, depois discou 474729 e ficou olhando o ambiente.
Uma armadilha
azul fluorescente de eletrocutar moscas aguardava
vítimas.
O rapaz do
balcão olhava-a furtivamente e murmurou gostosa, de dentes trincados.
O bêbado
esperava o melhor momento de descer do degrau
para a rua com um pé no chão e outro no ar, como alguém inseguro que se
prepara para descer de um bonde andando.
O homem da porta
juntou os cinco dedos da mão direita e levou-os à
boca num
beijinho transmitindo ao homem da caixa sua
opinião sobre ela.
O homem da caixa
respondeu segurando a pontinha da orelha direita como quem diz é uma delícia.
A moça murmurou
será que saíram? explicando-se para ninguém.
Os dois homens
silenciosos que bebiam cerveja encostados no balcão não estavam mais lá,
A moça ficou de
lado e o homem da caixa fez um galeio para
ver um pouco mais de peitinho pelo vão lateral da blusinha sem mangas.
A moça emitiu um
ah de alívio, puxou o fio até onde dava e meio abaixou-se de costas para dizer
mamãe? é Júlia com uma voz abafada por braços e mãos e concentrada no que ia dizer.
O homem da
porta, o rapaz do balcão e o homem da caixa
se olharam rapidamente.
Olha, eu jantei
aqui na cidade com a Marilda. Ora, mamãe, a senhora conhece a Marilda, até já dormiu
aí em casa. É, é essa. Olha: agora a gente vai ao cinema, viu? Que tarde,
mamãe, tem uma sessão às dez e meia. Se ficar
muito tarde eu vou dormir na casa dela. É só porque é mais perto, mamãe, senão
a gente ia praí. Não tem. A senhora sabe que não tem. A senhora fala com papai pra mim? Não, eu não vou
falar. Tá bom. Eu ligo depois do
cinema. Só pra confirmar, hein, porque o mais certo é a gente ir pra lá. Um
beijo. Bota a gatinha pra dentro, viu? Chau.
A moça
ergueu-se, desligou o telefone e perguntou quanto é.
O homem da caixa
não estava mais lá e falou pra você não
é nada gostosa, atrás dela.
A moça se voltou
rápida e viu que todas as portas do bar
estavam fechadas.
Os três homens,
narinas dilatadas, formavam um meio círculo em torno dela.
Contos do Sábado na Usina: Caio Fernando Abreu: Aqueles dois I:
- "I
announce adhesiveness, I say it shall
/be limitless, unloosen'd
I say you shall
yet find the friend you
/were looking
for." (Walt Whitman: So Long!)
A verdade é que não havia mais ninguém em volta. Meses depois, não no começo, um deles diria que a repartição era como "um deserto de almas". O outro concordou sorrindo, orgulhoso, sabendo-se excluído. E longamente, entre cervejas, trocaram então ácidos comentários sobre as mulheres mal-amadas e vorazes, os papos de futebol, amigo secreto, lista de presente, bookmaker, bicho, endereço de cartomante, clips no relógio de ponto, vezenquando salgadinhos no fim do expediente, champanha nacional em copo de plástico. Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra - talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum se perguntou. Não chegaram a usar palavras como "especial", "diferente" ou qualquer coisa assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las. Não que fossem muito jovens, incultos demais ou mesmo um pouco burros. Raul tinha um ano mais que trinta; Saul, um menos. Mas as diferenças entre eles não se limitavam a esse tempo, a essas letras. Raul vinha de um casamento fracassado, três anos e nenhum filho. Saul, de um noivado tão interminável que terminara um dia, e um curso frustrado de Arquitetura. Talvez por isso, desenhava. Só rostos, com enormes olhos sem íris nem pupilas. Raul ouvia música e, às vezes, de porre, pegava o violão e cantava, principalmente velhos boleros em espanhol. E cinema, os dois gostavam. Passaram no mesmo concurso para a mesma firma, mas não se encontraram durante os testes. Foram apresentados no primeiro dia de trabalho de cada um. Disseram prazer, Raul, prazer, Saul, depois como é mesmo o seu nome? sorrindo divertidos da coincidência. Mas discretos, porque eram novos na firma e a gente, afinal, nunca sabe onde está pisando. Tentaram afastar-se quase imediatamente, deliberando limitarem-se a um cotidiano oi, tudo bem ou, no máximo, às sextas, um cordial bom fim de semana, então. Mas desde o princípio alguma coisa - fados, astros, sinas, quem saberá?- conspirava contra (ou a favor, por que não?) aqueles dois. Suas mesas ficavam lado a lado. Nove horas diárias, com intervalo de uma para o almoço. E perdidos no meio daquilo que Raul (ou teria sido Saul?) chamaria, meses depois, exatamente de "um deserto de almas", para não sentirem tanto frio, tanta sede, ou simplesmente por serem humanos, sem querer justificá-los - ou, ao contrário, justificando-os plena e profundamente, enfim: que mais restava àqueles dois senão, pouco a pouco, se aproximarem, se conhecerem, se misturarem? Pois foi o que aconteceu. Tão lentamente que mal perceberam.