sexta-feira, 8 de julho de 2022

Conto do Sábado na Usina: Camilo Castelo Branco:

 


 

XIV

 

Em Março daquele ano, 1846, os setembristas de Braga fomentaram os motins populares do concelho de Lanhoso. Na Inglaterra, na câmara dos comuns, lorde Bentinck explicou tragicamente, em frases pomposas, a origem dessa revolução, que um desdém indígena chamou . Ele disse que os Cabrais mandaram construir cemitérios; mas não os muraram; de modo que entravam neles cães, gatos e porcos-bravos em tamanha quantidade que chegaram a desenterrar os cadáveres7. As nações e os naturalistas deviam formar uma ideia assaz agigantada do tamanho dos gatos portugueses que desenterravam cadáveres, e das boas avenças dos nossos cães com os referidos gatos na obra da exumação dos mortos, e não menos se espantariam da familiaridade dos javalis que vinham do Gerês colaborar com os cães e gatos naquela mineração das carnes podres das terras de Lanhoso. A origem pois da insurreição nacional de 1846 está definida nos fastos da Europa revolucionária. Foi ama reacção, uma batalha social à canzoada e gataria confederadas com o focinho profanador de porco-montês. E daí procedeu escreverem os jornalistas da Alemanha, um país sério, que a revolução do Minho era o . Os cadáveres servidos nos banquetes ilegais e nocturnos dos javalis, com a convivência de gatarrões a rosnarem com o lombo eriçado, e molossos de colmilhos ensanguentados foi caso que impressionou grandemente as raças tudescas, por ser um acto proibido pela Carta Constitucional. Quer fossem os setembristas de Braga, quer a alcateia das feras coligadas, o certo é que a insurreição do Alto Minho tabu esta província e a transmontana, devastando as papeletas impressas e os vinhos das tascas sertanejas. A guerra motivada pelos gatos ë seus cúmplices fez sofrer ao capital do país ama diminuição de 77 milhões e meio de cruzados, segundo o cálculo do ministro da Fazenda Franzini, muito retrógrado, mas um génio no algarismo.
O Zeferino das Lamelas, às primeiras comoções do vulcão popular, nos arredores de Guimarães, preparou- se; e assim que ouviu repicar a rebate em Ronfe, cheio de ciúmes como o sineiro de Notre Dame, agarrou-se à corda do sino, reuniu no adro os jornaleiros e vadios de três freguesias, e pegou a dar morras aos Cabrais com aplauso universal. Depois, explicou o que era o cadastro, confundindo este expediente estatístico com canastro: – que os Cabrais e os seus empregados andavam a tomar as terras a rol para empenharem Portugal à Inglaterra; que esses réis estavam nos cartórios das administrações e em casa dos regedores; que era preciso queimar as papeletas e matar os cabralistas.
Em seguida, invadiram a administração de Santo Tirso, quebraram as vidraças dos cartistas fugitivos e queimaram os impressos e quantos papéis acharam, no Campo da Feira. Depois, abalaram para Famalicão. Zeferino nomeara-se chefre da gentalha embriagada nas adegas arrombadas dos cabralistas, e alvitrou que se prendessem os regedores que topassem. Dizia que o Joaquim de Vilalva, nas eleições do ano anterior, muito socadas, cascara no povo e mais os cabos, na assembleia de Landim, cacetada brava. A bebedeira dos ouvintes dera à pérfida aleivosia do pedreiro vingativo o valor de facto histórico. O plano de Zeferino era abrir oportunidade a que José Dias fosse assassinado ou, pelo menos, preso e degredado como cabralista.
Vilalva ficava-lhes a jeito, no caminho de Famalicão. O amante de Marta ouvira grande alarido e vira ao longe a multidão que galgava um outeiro turbulentamente. Viase desfraldado no ar, em oscilações largas, o pano escarlate de uma bandeira: era um pedaço do velho estandarte que servia nas procissões de Santa Maria de Abade. José pediu ao pai que fugisse. O regedor disse que não – que nunca tinha feito mal a ninguém, nem sequer prendera um refractário: que o mais que podiam fazer era tirar-lhe o governo.
José Dias tinha medo às cobardes ameaças do Zeferino; diziam-lhe que o pedreiro jurara matá-lo, e já constava que era ele o chefe da guerrilha, em que se alistaram todos os ladrões e assassinos conhecidos na comarca. A mãe empurrava-o pela porta fora – que fugisse para Caldelas; que não fosse o Diabo armar-lhe alguma trempe por causa da Marta, da tal bebedinha que não dera cavaco ao pedreiro. Ele deitou o selote à égua e fugiu a galope; mas o regedor, com a sua consciência ilibada, esperou os revoltosos com o Zeferino à frente, brandindo a espada do pai, que não se desembainhara desde o ataque a Santo urso.
– Está você preso por cabralista! – intimou o pedreiro, deitando-lhe a mão à lapela da véstia; e voltado para a turba: – Rapazes, cercaide a casa; tudo que estiver, preso!.
– Os meus filhos saíram; mas entrem, busquem à vontade – disse o regedor; e, olhando para o pedreiro, ironicamente: – Ah seu Zeferino, seu Zeferino, você não veio aqui para me prender a mim... É outra história que você lá sabe. Isto de mulheres são os nossos pecados, mestre Zeferino...
– Não me cante! – bradou o das Lamelas com furiosos arremessos. – Está preso, e mexa-se já para a cadeia.
– Você não pode prender-me, mestre Zeferino – contrariou a autoridade dentro da lei. – Vá buscar primeiro unia ordem do meu administrador ou do governador civil.
– Já não há governador civil! – explicou o caudilho. – Agora são outros governos, seu asno! Quem reina é o Sr. D. Miguel I. E você não me esteja aí a fanfar, que eu já não o enxergo. Ande lá para a cadeia, com dez milhões de diabos!
O regedor entrou em Vila Nova de Famalicão na onda de alguns milhares de homens e rapazes que davam vivas a D. Miguel, às leis novas, à santa religião e morras aos cabralistas. Quando queimavam os papéis, um brasileiro setembrista, o Sá Miranda, disse ao comandante que não convinha por enquanto aclamar D. Miguel; que dessem morras ao governo e vivas à religião. Nesta barafunda, o regedor preso entre meia dúzia de jornaleiros que discutiam as leis velhas e as novas na taverna do Folipo, compreendera um aceno do taverneiro e fugira pelos quintais. Meteu-se ao caminho de Braga, onde estava o general conde das Antas. O José Dias, receando que o perseguissem em Caldelas, refugiara-se também em Braga e alistou-se no batalhão dos serezinos comandado pelo cónego Monte Alverne.
7Carta dirigida ao cavalheiro José Hume. Versão de António Pereira dos Reis, 1847, pág. 99.
Neste meio-tempo, chegou da América o Feliciano Rodrigues Prazins, tio de Marta. Demorou-se poucos dias. Ganhara medo que o roubassem as guerrilhas. Foi para o Porto pôr em segurança as suas letras e voltou quando a queda dos Cabrais garantia o sossego dos capitalistas. Na volta a Prazins, olhou mais atentamente para a sobrinha, deu-me alguns cordões, e disse ao irmão que não se lhe dava de casar com ela. O Simeão afirmou logo com um descaramento perdoável: – que não se fosse sem resposta o mano, que a moça dava o cavaco por de.
Feliciano tinha quarenta e sete anos. Não se parecia com a maioria dos nossos patrícios que regressam do Brasil com unia opulência de formas almofadadas de carnes socadas. Era magro esqueleticamente, um organismo de poeta sugado pelos vampiros do spleen. Dizia, porém, que tinha febras de aço e nunca tomara remédios de botica. Muito míope, usava de monóculo redondo num aro de búfalo verde. Como era económico até à miséria, dizia-se em Pernambuco que o Feliciano usava um vidro só para não comprar dois; e que, se pudesse, venderia um olho como coisa inútil. Com a economia e o trabalho bem propiciado em trinta anos arredondara trezentos contos. Chegara aos quarenta e sete, ao outono da vida, sem ter amado. Nunca se conspurcara nos latíbulos da Vénus vagabunda. A sua virgindade era adnnrada e notória; depunham a favor dela os seus caixeiros, os feitores, e – o que mais é – as suas escravas. Os seus patrícios devassos chamavam-lhe o Feliciano Pudicício. Ele não se envergonhava de confessar a sua castidade ao pároco de Caldelas. Tinha vivido como um dessexuado; – que trabalhava muito nos seus armazéns, que dormia poucas horas, e não dava folga ao corpo nem pega aos vícios. Originalíssimo. Que lhe saíram casamentos ricos; mas que ele para ser rico não tinha precisão de mulher; que vira algumas meninas pobres a namorá-lo; mas que desconfiara que lhe namorassem o seu dinheiro. Não tinha queda para o sexo, que ele dizia seixo. Numa palavra, estava virgem. Ele podia dizer como Hamlet. Não me deleitam os homens nem tão-pouco as mulheres.
A sobrinha reformara aquela natureza aleijada. Talvez o desdém com que Marta o tratava na crise da sua paixão, fosse grande parte no amor do brasileiro. Além disto, a moça, muito parecida com ele na delgadeza das formas, tinha encantos que dispensavam a esquivança para se fazer amar de um homem de quarenta e sete anos – intacto demais a mais. O presente que lhe fez de uma meada de cordões de ouro significava uma desordem, pelo menos interina, na sua condição sovina. Marta aceitou a dádiva sem entusiasmo nem alegria. Lembrava-se que o pai a prevenira da possibilidade de ser mulher de seu tio, se adregasse gostar dela. Quando o tio lhe deu os cordões, teve-lhe uma náusea, um quase-ódio, suspeitando-lhe os projectos; e quando ele fugiu para o Porto, com medo às guerrilhas, sentiu ela uma satisfação incomparável. Entretanto, apesar das más informações do brasileiro da Rita Chasca, o Feliciano sentia filtrar-selhe nas células impolutas do coração o veneno doce de uma paixão cheia de condescendências, pouco superciliosa em pontos de honra, como quem pensa que no tálamo conjugal não se faz mister a virgindade em duplicado. Mas não era assim que ele pensava. Ninguém lhe desdourara a honra da sobrinha, nem o derriço com o José Dias fazia implicância à sua honestidade. Ele não tinha os rudimentos de malícia necessária para desconfiar que uma menina de dezasseis anos, criada nos seios da natureza imaculada de uma aldeia do Minho, pudesse abrir de noite uma janela, debruçar-se no peitoril e ajudar a subir um homem. O oficial do pedreiro é que sabia casos, anomalias, desde aquela noite em que o luar o enganou.
Marta ouvira aterrada a noticia que o pai lhe deu da vontade do tio. Irritou-se. Tinha sido criada com muito mimo, sem mãe, voluntariosa, e com uns ares senhoris que desautorizavam o respeito que o pai, rústico lavrador, não sabia incutir. Em vez de chorar corno as filhas desgraçadas e humildes, respondeu desabridamente que não casava com o tio; que o desenganasse, se quisesse; e, se não quisesse, ela o desenganaria. A terrível nota golpeara- lhe o coração cheio de saudades de José Dias, que lhe escrevera de Braga, por intervenção do padre Osório, dando- lhe coragem e esperança no casamento logo que cessasse a guerra. Foi esse alento que a revoltou contra o pai quando ele instava com ela a casar com o tio, que era talvez, dizia, o homem mais rico de Portugal, abaixo do rei. Marta replicava com trejeitos de tédio desdenhoso; e, exaltada pela boçal insistência do pai, protestava, se a apoquentassem, atirar-se ao rio como sua mãe.
O Simeão perdeu a vontade de comer; andava atordoado numa tristeza estúpida a dar uns ais pela casa que pareciam mugidos de bezerro perdido na serra. A pequena já não queria ir à mesa, metia-se na cama e fingia-se doente para não encontrar o tio Feliciano.
José Dias e o pai permaneciam em Braga, porque em diferentes pontos da província continuavam as agitações miguelistas; o novo ministério não tinha força, e o Zeferino das Lamelas nunca depusera as armas. Os serezinos faziam excursões e batiam os realistas ou prendiam os agitadores. José Dias, numa dessas surtidas a Vila Verde, a pé e com pouca saúde, ganhara uma bronquite que o teve de cama largo tempo. Quando se levantou, numa aparente convalescença, a tísica tuberculosa recrudescia pessimamente caracterizada. O padre Osório fora visitá-lo, ouvira o médico e sabia que o seu amigo estava perdido. Falou ao pai, em particular, no estado do filho. Lembroulhe a sua promessa de consentir no casamento com a pobre Marta, que se perdera confiada nos compromissos do José. O lavrador mostrou não perceber a conveniência de Marta em casar, se o seu filho tinha de morrer cedo. – Que a viúva, dizia, nada ganhava com isso, porque os herdeiros de José eram seus pais. Não compreendeu a questão por outra face. Mas, apertado pela palavra que dera, repetiu que ele pela sua parte concedia a licença, se a mãe a desse; e justificava-se deste respeito à mulher, alegando que a casa de Vilalva era toda da sua companheira, e o que ele levara para o casal não valia dois caracóis.
– Enfim – concluía – se o rapaz arrijar, casa querendo a mãe; mas, enquanto ele assim estiver, faça favor de lhe não falar na rapariga... Bem lhe basta o seu mal... E um homem que está doente deveras não deve pensar em mulheres, é na salvação da sua alma. Eu penso assim, amigo padre Osório.
– O vigário aprende o padre-nosso – dizia o de Caldelas.
Entretanto, o doente, muito animado, não sentia aqueles desalentos e presságios de morte que meses antes o afligiam. Habituara-se ao sofrimento; já não tinha memória das perfeitas delícias da saúde. Quando expectorava sem violência, e a dispneia cedia aos xaropes e ao pez de Borgonha, julgava-se numa quase-completa restauração. Escrevia ao Osório e a Marta com muita alegria e devotos agradecimentos a Deus e a Maria Santíssima, com quem se apegara fervorosamente desde que padecia, e também com o óleo de fígado de bacalhau.
A repugnância de Marta, face a face do tio Feliciano, seria um afrontoso desengano para o milionário, se não interviesse o implacável e engenhoso ciúme de Zeferino. Este chefe de guerrilha em armistício soube que o brasileiro queria casar com a sobrinha e que o José Dias estava em Braga muito acabado, a dar à casca. O pedreiro chamou os bravos da sua jolda e fez-lhes saber que o brasileiro de Prazins pedira para Famalicão um regimento da divisão do Antas para deitar cerco às casas dos realistas, e sujeitara-se a sustentar o regimento à sua custa. Resolveram atacar o Feliciano, prendêlo como cabralista, e fazê-lo pôr à má cara o dinheiro que havia de dar à tropa. Um dos da malta, vizinho do brasileiro, o Metro, tinha-o convidado para padrinho de um filho. Procurou-o às escondidas e avisou-o que se escondesse. Feliciano fugiu para o Porto a toda a pressa. Queria que a sobrinha também fosse. Escrevia-lhe que, se quisesse ir, compraria casa no Porto. Marta respondia que estava muito doente, que não podia sair da cama. O pai chegava a descompô-la: – Que não tinha moléstia nenhuma, que era por causa do Zé Dias; mas que perdesse dai a ideia porque estivera com o Dr. Pedrosa, de Santo Tirso, que o vira em Braga, e lhe dissera que o Dias estava ethego e mais mês menos mês esticava a canela.
Marta respondia com serenidade de alma forte, e escorada numa resolução suicida:
– Se não casar com ele neste mundo, casarei no outro.
– Que te leve o Diabo! – resmungava o Simeão, riçando freneticamente as suíças. Depois voltava manso e velhaco à beira do leito: – Olha, menina, teu tio está velho e esmagriçado. Aquilo não pode ir longe. Tu ficas para aí podre de rica, e podes casar depois com um fidalgo, se quiseres...
– Valha-me Nossa Senhora! – murmurava Marta, pondo os olhos na litografia da Mãe de Jesus traspassada das sete espadas. – Quem me dera morrer...
A tísica do José Dias com as frialdades húmidas de Novembro entrou no segundo período. Recrudesceram as dores de peito e a dispneia, com acessos febris nocturnos. Expectoração esverdeada com estrias amarelas, e extrema magreza com repugnância a todo o alimento. Pela auscultação ouvia-se-lhe o som gargarejado do fervor cavernoso. Os médicos disseram ao pai que o tirasse de Braga, das incomodidades da estalagem, e o levasse para casa, onde lhe seria mais suave a morte na sua cama, com a assistência da família. Foi para Vilalva transportado numa liteira, e dizia ao pai que se sentia melhor, que respirava mais desafogado; e que, se há mais tempo tivessem saído de Braga, já ele estaria rijo.
A mãe, quando o viu entrar tão acabado, tão desfigurado, fez um berreiro descomunal, e não teve mão em si que não rogasse pragas à Marta, que lhe matara o seu querido filhinho. As vizinhas concordavam: – que diabos levasse a mulher que o tolhera!
O doente afligia-se, chorava como criança, e pedia ao pai que o deixasse ir para Caldelas, para casa do seu amigo; que não podia ver a mãe; que lha tirasse de diante dos olhos; e que, se ele tivesse de morrer, que lha não deixassem ir à beira da sua cama. E fazia trejeitos furiosos, com os olhos a estalar das órbitas escavadas, incendido pela febre.
Chegou o padre Osório, e o doente aplacou-se sob as consolações calmantes do seu santo amigo. Deitou-se, com promessa de ir no dia seguinte para Caldelas; mas nunca mais se levantou, nem fez inúteis esforços.
Osório não o desamparou. Ia à sua igreja dizer a missa dominical e voltava para Vilalva com as respostas de Marta aos bilhetes que José lhe escrevia – poucas linhas em que ainda por vezes lampejavam alegres esperanças.
Toda a influência de Osório não conseguiu que o enfermo recebesse a mãe no seu quarto. Não lhe podia perdoar o ódio que ela tinha a Marta; e bradava que a fazia responsável perante Deus da desonra da desgraçada menina. A velha escutava estes tremendos emprazamentos para a eternidade, e dizia de si consigo, a beata: – bem me fio eu nisso.
Por fim, já não podia escrever, nem levantar a cabeça no travesseiro; mas perguntava ao Osório se tinha notícias de Marta; que pedisse ao irmão que fosse lá, e lhe dissesse que ele estava mais doente e não podia escrever.
Um desses recados motivou o bilhete que se copiou na Introdução deste livro, e que o moribundo já não pôde ler. Desde que a mãe lhe meteu à força dentro do quarto o vigário com a extrema-unção, um homem de opa com a campainha, outro com a água benta na caldeirinha, mais dois com tochas, e outros com a sua devota curiosidade, o moribundo caiu na modorra comatosa, e apenas, com longos espaços, tinha mis acessos sibilantes de ligeira tosse seca. Abria então os olhos, que fitava no rosto de Osório, e às vezes circunvagava-os espavoridos como em busca da visão espectral da mãe, que o vigário de Caldelas cuidadosamente e com doloroso constrangimento defendia de entrar à alcova.
Em Prazins ouvia-se dobrar a defunto em Vilalva. Marta perguntou ao pai quem tinha morrido.
Ele respondeu serenamente:
– Dizem que foi o Dias que está com Deus. Reza-lhe por alma, que é o que ele precisa agora.
Marta deu um grande grito, e com as mãos na cabeça, a correr, deitou a fugir pelos campos. Ela sabia onde era o remanso fundo do rio Ave em que a mãe se suicidara. O pai correu atrás dela, a gritar, que lhe acudissem. Fora da aldeia, andava uma roça de mato, com muitos jornaleiros, que correram todos atrás de Marta, e a levavam quase apanhada quando ela caiu, a estrebuchar, em convulsões. Conduziram-na para casa com os sentidos perdidos, e puseram mulheres a vigiá-la na cama. Esta nova chegou a Caldelas. D. Teresa, a irmã do padre Osório, foi com o irmão a Prazins, e convenceram o Simeão a deixar ir a filha para a companhia deles algum tempo.
Marta chorava muito, abraçando-se no amigo de José Dias; e ele, quando o lavrador com impertinência dizia à filha: , observava-lhe com azedumes:
– Deixe-a chorar, deixe-a chorar! – E voltando-se para a uma: – A estupidez é cruel!

Contos do Sábado na Usina: Humberto de Campos:

 


 



OS OLHOS QUE COMIAM CARNE 

Na manhã seguinte à do aparecimento, nas livrarias, do oitavo e último volume da História do Conhecimento Humano, obra em que havia gasto catorze anos de uma existência consagrada, inteira, ao estudo e à meditação, o escritor Paulo Fernandes esperava, inutilmente, que o sol lhe penetrasse no quarto. Estendido, de costas, na sua cama de solteiro, os olhos voltados na direção da janela que deixara entreaberta na véspera para a visita da claridade matutina, ele sentia que a noite se ia prolongando demais. O aposento permanecia escuro. Lá fora, entretanto, havia rumores de vida. Bondes passavam tilintando. Havia barulho de carroças no calçamento áspero. Automóveis buzinavam como se fosse dia alto. E, no entanto, era noite, ainda. Atentou melhor, e notou movimento na casa. Distinguia perfeitamente o arrastar de uma vassoura, varrendo o pátio. Imaginou que o vento tivesse fechado a ]anela, impedindo a entrada do dia. Ergueu, então, o braço e apertou o botão da lâmpada. Mas a escuridão continuou. Evidentemente, o dia não lhe começava bem. Comprimiu o botão da campainha. E esperou. 
Ao fim de alguns instantes, batem docemente à porta. 
- Entra, Roberto. 
O criado empurrou a porta, e entrou. 
- Esta lâmpada está queimada, Roberto? - indagou o escritor, ao escutar os passos do empregado no aposento. 
- Não, senhor. Está até acesa.. 
- Acesa? A lâmpada está acesa, Roberto? - exclamou o patrão, sentando-se repentinamente na cama. 
- Está, sim, senhor. O doutor não vê que está acesa, por causa da janela que está aberta. 
- A janela está aberta, Roberto? - gritou o homem de letras, com o terror estampado na fisionomia. 
- Está, sim, senhor. E o sol está até no meio do quarto. 
Paulo Fernando mergulhou o rosto nas mãos, e quedou-se imóvel, petrificado pela verdade terrível. Estava cego. Acabava de realizar-se o que há muito prognosticavam os médicos. 
A notícia daquele infortúnio em breve se espalhava pela cidade, impressionando e comovendo a quem a recebia. A morte dos olhos daquele homem de quarenta anos, cuja mocidade tinha sido consumida na intimidade de um gabinete de trabalho, e cujos primeiros cabelos brancos haviam nascido à claridade das lâmpadas, diante das quais passara oito mil noites estudando, enchia de pena os mais indiferentes à vida do pensamento. Era uma força criadora que desaparecia. Era uma grande máquina que parava. Era um facho que se extinguia no meio da noite, deixando desorientados na escuridão aqueles que o haviam tomado por guia. E foi quando, de súbito, e como que providencialmente, surgiu na imprensa a informação de que o professor Platen, de Berlim, havia descoberto o processo de restituir a vista aos cegos, uma vez que a pupila se conservasse íntegra, e se tratasse, apenas, de destruição ou defeito do nervo óptico. E, com essa informação, a de que o eminente oculista passaria em breve pelo Rio de Janeiro, a fim de realizar uma operação desse gênero em um opulento estancieiro argentino, que se achava cego há seis anos e não tergiversara em trocar a metade da sua fortuna pela antiga luz dos seus olhos. 
A cegueira de Paulo Fernando, com as suas causas e sintomas, enquadrava-se rigorosamente no processo do professor alemão: dera-se pelo seccionamento do nervo óptico. E era pelo restabelecimento deste, por meio de ligaduras artificiais com uma composição metálica de sua invenção, que o sábio de Berlim realizava o seu milagre cirúrgico. Esforços foram empregados, assim, para que Platen desembarcasse no Rio de Janeiro por ocasião de sua viagem a Buenos Aires. 
Três meses depois, efetuava-se, de fato, esse desembarque. Para não perder tempo, achava-se Paulo Fernando, desde a véspera, no Grande Hospital das Clínicas. E encontrava-se já na sala de operações, quando o famoso cirurgião entrou, rodeado de colegas brasileiros, e de dois auxiliares alemães, que o acompanhavam na viagem, e apertou-lhe vivamente a mão. 
Paulo Fernando não apresentava, na fisionomia, o menor sinal de emoção. O rosto escanhoado, o cabelo grisalho e ondulado posto para trás, e os olhos abertos, olhando sem ver: olhos castanhos, ligeiramente saídos, pelo hábito de vir beber a sabedoria aqui fora, e com laivos escuros de sangue, como reminiscência das noites de vigília. Vestia pijama de tricoline branca, de gola caída. As mãos de dedos magros e curtos seguravam as duas bordas da cadeira, como se estivesse à beira de um abismo, e temesse tombar na voragem. 
Olhos abertos, piscando, Paulo Fernando ouvia, em torno, ordens em alemão, tinir de ferros dentro de uma lata, jorro d'água, e passos pesados ou ligeiros, de desconhecidos. Esses rumores eram, no seu espírito, causa de novas reflexões. 
Só agora, depois de cego, verificara a sensibilidade da audição, e as suas relações com a alma, através do cérebro. Os passos de um estranho são inteiramente diversos daqueles de uma pessoa a quem se conhece. Cada criatura humana pisa de um modo. Seria capaz de identificar, agora, pelo passo, todos os seus amigos, como se tivesse vista e lhe pusessem diante dos olhos o retrato de cada um deles. E imaginava como seria curioso organizar para os cegos um álbum auditivo, como os de datiloscopia, quando um dos médicos lhe tocou no ombro, dizendo-lhe amavelmente: 
- Está tudo pronto... Vamos para a mesa... Dentro de oito dias estará bom. . 
O escritor sorriu, cético. Lido nos filósofos, esperava, indiferente, a cura ou a permanência na treva, não descobrindo nenhuma originalidade no seu castigo e nenhum mérito na sua resignação. Compreendia a inocuidade da esperança e a inutilidade da queixa. Levantou-se, assim, tateando, e, pela mão do médico, subiu na mesa de ferro branco, deitou- se ao longo, deixou que lhe pusessem a máscara para o clorofórmio, sentiu que ia ficando leve, aéreo, imponderável. E nada mais soube nem viu. 
O processo Plateu era constituído por uma aplicação da lei de Roentgen, de que resultou o Raio-X, e que punha em contacto, por meio de delicadíssimos fios de "hêmera", liga metálica recentemente descoberta, o nervo seccionado. Completava-o uma espécie de parafina adaptada ao globo ocular, a qual, posta em contacto direto com a luz, restabelecida integralmente a função desse órgão. Cientificamente, era mais um mistério do que um fato. A verdade, era que as publicações européias faziam, levianamente ou não, referências constantes às curas miraculosas realizadas pelo cirurgião de Berlim, e que seu nome, em breve, corria o mundo, como o de um dos grandes benfeitores da Humanidade. 
Meia hora depois as portas da sala de cirurgia do Grande Hospital de Clínicas se reabriam e Paulo Fernando, ainda inerte, voltava, em uma carreta de rodas silenciosas, ao seu quarto de pensionista. As mãos brancas, postas ao longo do corpo, eram como as de um morto. O rosto e a cabeça envoltos em gaze, deixavam à mostra apenas o nariz afilado e a boca entreaberta. E não tinha decorrido outra hora, e já o professor Platen se achava, de novo, a bordo, deixando a recomendação de que não fosse retirada a venda, que pusera no enfermo, antes de duas semanas. 
Doze dias depois passava ele, de novo, pelo Rio, de regresso para a Europa. Visitou novamente o operado, e deu novas ordens aos enfermeiros. Paulo Fernando sentia-se bem. Recebia visitas, palestrava com os amigos. Mas o resultado da operação só seria verificado três dias mais tarde, quando se retirasse a gaze. O santo estava tão seguro do seu prestígio que ia embora sem esperar pela verificação do milagre. 
Chega, porém, o dia ansiosamente aguardado pelos médicos, mais do que pelo doente. O Hospital encheu-se de especialistas, mas a direção só permitiu, na sala em que se ia cortar a gaze, a presença dos assistentes do enfermo. Os outros ficaram fora, no salão, para ver o doente, depois da cura. 
Pelo braço de dois assistentes, Paulo Fernando atravessou o salão. Daqui e dali, vinham-lhe parabéns antecipados, apertos de mão vigorosos, que ele agradecia com um sorriso sem endereço. Até que a porta se fechou, e o doente, sentado em uma cadeira, escutou o estalido da tesoura, cortando a gaze que lhe envolvia o rosto. 
Duas, três voltas são desfeitas. A emoção é funda, e o silêncio completo, como o de um túmulo. O último pedaço de gaze rola no balde. O médico tem as mãos trêmulas. Paulo Fernando, imóvel, espera a sentença final do Destino. 
- Abra os olhos! - diz o doutor. 
O operado, olhos abertos, olha em torno. Olha e, em silêncio, muito pálido, vai se pondo de pé. A pupila entra em contacto com a luz, e ele enxerga, distingue, vê. Mas é espantoso o que vê. Vê, em redor, criaturas humanas. Mas essas criaturas não têm vestimentas, não têm carne; são esqueletos apenas; são ossos que se movem, tíbias que andam, caveiras que abrem e fecham as mandíbulas! Os seus olhos comem a carne dos vivos. A sua retina, como os raios-X, atravessa o corpo humano e só se detém na ossatura dos que a cercam, e diante das cousas inanimadas! O médico, à sua frente, é um esqueleto que tem uma tesoura na mão! Outros esqueletos andam, giram, afastam-se, aproximam-se, como um bailado macabro! 
De pé, os olhos escancarados, a boca aberta e muda, os braços levantados numa atitude de pavor, e de pasmo, Paulo Fernando corre na direção da porta, que adivinha mais do que vê, e abre-a. E o que enxerga, na multidão de médicos e de amigos que o aguardam lá fora, é um turbilhão de espectros, de esqueletos que marcham e agitam os dentes, como se tivessem aberto um ossuário cujos mortos quisessem sair. Solta um grito e recua. Recua, lento, de costa, o espanto estampado na face. Os esqueletos marcham para ele, tentando segurá-lo. 
- Afastem-se ! Afastem-se - intima, num urro que faz estremecer a sala toda. 
E, metendo as unhas no rosto, afunda-as nas órbitas, e arranca, num movimento de desespero, os dois glóbulos ensangüentados, e tomba escabujando no solo, esmagando nas mãos aqueles olhos que comiam carne, e que, devorando macabramente a carne aos vivos, transformavam a vida humana, em torno, em um sinistro baile de esqueletos...

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo:

 




O CONTRABANDO 
A Valentim Magalhães II 
Estamos numa tarde de março de 1891. Geraldo dá um dos seus passeios habituais pela rua do Ouvidor; para defronte da vitrine do Preço Fixo, e sente alguém pousar-lhe a mão nos ombros. Volta-se, e reconhece o Tavares, que fora seu condiscípulo no colégio Marinho, - um grande estróina que se ensaiou sem resultado em três ou quatro profissões diversas, e tem agora muito dinheiro, ganho na rua da Alfândega em transações da Bolsa. 
— Oh, Geraldo, andava morto por encontrar-te! Ia escrever-te amanhã... 
— Estou às suas ordens. 
— És ainda muito urso? 
— Sou e serei. Bem sabes que há dez anos, desde que perdi minha mulher, perdi também toda a alegria, é só me comprazo na solidão e no silêncio. Se me encontras na rua do Ouvidor, é porque, depois de azoinado por este bulício, acho ainda mais deliciosa a paz do meu tugúrio. 
— Bem, mas vais sacrificar-me um dia, um dia só, desse isolamento com que comprazes: hás de jantar comigo quinta feira. 
— Eu?! 
— Tu, sim; nesse dia faço quarenta anos, e quero reunir à mesa alguns amigos da minha idade. 
— Sabes lá o que dizes, desgraçado! Os meus quarenta iriam ensombrar os seus! Pois queres à tua mesa contemplativo, um urso, como tu mesmo me classificas? 
— Faço questão da tua presença! 
— Não! não vou! não contes comigo! Há dez anos janto sozinho, ou, quando muito, em companhia de minha filha! 
— Há dez anos que não jantas... 
— Gosto de ti, sou teu amigo, considero-te muito, mas não terei o menor prazer neste jantar de anos. 
— Oh, grande tipo, sê misantropo, mas - que diabo! - não sejas desse modo egoísta! Não se trata do teu prazer mas do meu, entendes tu? Exijo um sacrifício de tua parte, bem sei; mas, como te declaras meu amigo, tens o dever de te submeteres à minha vontade! Vens a contra gosto?... que me importa!... o essencial é que venhas! Quem te mandou ter quarenta anos! Agüenta-te!

Contos do Sábado na Usina: Alcântara Machado: MISS CORISCO:




Embora alguns nacionalistas teimassem em chamá-la de senhorita o título oficial era Miss Corisco. Dez casas no bairro tomavam conta da igreja pobre que primeiro nem caixa de esmolas tinha. Depois compraram unia caixa. Mas nunca viu um tostão porque o dinheiro que havia se gastou todo com ela. Miss Corisco foi eleita pelo sistema de exclusão. A filha do Bentinho era sardenta. A irmã do João tinha um defeito nas cadeiras. Logo de saída a Conceição se impôs: foi aclamada Miss Corisco. 
Aí deu uma entrevista para o O Cachoeirense. Perguntaram: Qual a maior emoção de sua vida? Respondeu: Três: minha primeira comunhão. uma fita do Rodolfo Valentino que eu vi na capital do meu querido Estado e... não conto porque é segredo. Respeitamos o segredo (escreveu o jornal) pois naturalmente encobria urna linda história de amor. Depois perguntaram: Qual o seu maior desejo? Respondeu: Sempre ver o Brasil na vanguarda de todos os empreendimentos. Resposta admirável (comentou O Cachoeirense) que revela em Miss Corisco uma patriota digna de emparelhar com Clara Camarão, Anita Garibaldi, Dona Margarida de Barros e outras heroínas da nacionalidade. Finalmente perguntaram: O que pensa do amor? Respondeu: O amor, minha fraca opinião, é uma cousa incompreensível mas que governa o mundo. Palavras (acentuou o órgão) que encerram uma profunda filosofia muito de admirar atentos o sexo e a juventude da encantadora Miss. 
Miss Corisco foi retratada em várias posições: com um cachorrinho no colo, apanhando rosas no jardim, as costas das mãos sustentando o queixo. Deu também um autógrafo. Papel cor-de-rosa de bordas douradas, risquinhos de lápis para sair bem direitinho e as letras se equilibrando neles. O cunhado ditou. Os representantes do O Cachoeirense se retiraram. Miss Corisco foi varrer a cozinha como era de sua obrigação todos os dias inclusive domingos e feriados e na 
manhã seguinte tomou a jardineira em companhia do irmão casado para comparecer na cidade perante o júri estadual. 
O Cine-Teatro Esmeralda estourava de tão cheio. No palco atrás do júri a Corporação Musical 
C. Gomes-G. Puccini tocava dobrados. De minuto em minuto a assistência entusiasmada erguia vivas ao Brasil e à raça. As candidatas desfilaram vestidas com apurado gosto. Os juizes eram cinco: um brasileiro, dois italianos, um filho de italiano e um português. Predominava neles o espírito nacionalista. Queriam escolher um tipo bem brasileiro. O Doutor Noé Cavalheiro desenhou em dois traços incisivos o tipo-padrão: boca grande e olhos ternos. Miss Corisco foi eleita Miss Paraíba do Sul por quatro votos. 
Ouviu então o primeiro discurso que foi proferido com emoção que lhe embargava a voz e lenço de seda na mão, pelo Doutor Noé Cavalheiro, segundo promotor público. Principiou este fazendo o elogio da beleza notadamente da beleza feminina. Falou do culto que na antiga Grécia se votava à formosura física. Acentuou depois a desvantagem de uma mens sana desde que não seja num corpore sano. Disse que a beleza da mulher se tem provocado guerras e catástrofes tem também mais de uma vez contribuído para o progresso geral dos povos, citando vários exemplos históricos. Prosseguiu afirmando que o Brasil deveu muito do amor que lhe dedicou Dom Pedro I à influência benéfica da Marquesa de Santos. Referiu-se à competência do júri, à sua isenção de ânimo e confessou que a única nota dissonante tinha sido ele orador, o que provocou os protestos unânimes da assistência. Perorando entoou um hino inflamado à peregrina formosura de Miss Corisco. Disse então: Unindo à beleza clássica da Vênus de Milo a sedução estonteante da lendária rainha de Nínive, Miss Paraíba do Sul, maior do que Beatriz e mais feliz do que Natércia, conquistou o coração de toda uma região! A Pátria não é somente, como soem pensar certos espíritos imbuídos de materialismo, a lei que garante a propriedade privada! A Pátria é mais alguma cousa de sublime e divino! A Pátria é a estrela que nos contempla do céu e a mulher que nos santifica o lar! A Pátria sois vós, Miss Paraiba do Sul, são os vossos olhos onde se espelham todas as forças viris da nacionalidade! Para nós, patriotas conscientes e eternos enamorados da Beleza, Miss Paraiba do Sul é neste momento o Brasil! (Aplausos prolongados. O orador é vivamente cumprimentado. Vozes sinceras gritam: Bis! Bis!) 
Um a um os membros do júri beijaram as mãozitas róseas e espirituais de Miss Paraíba do Sul enquanto a Corporação Musical C. Gomes-G. Puccini, sob a regência do Maestro Pietro Zaccagna, atacava vigorosamente a imortal protofonia do Guarani. 
Muito vermelha e batendo com ar ingênuo as pálpebras aveludadas Miss Paraíba do Sul concedeu então as primeiras entrevistas. Externou sua opinião sobre a futura sucessão presidencial, a cultura da laranja, a questão religiosa no México, Mussolini, Padre Cícero, a estabilização cambial, Victor Hugo, Coelho Neto, os perfumes nacionais, a sentença que absolveu Febrônio, o diabo. No Grande Hotel Mundial era uma romaria de manhã à noite. Muito afável Miss Paraíba do Sul recebia toda a gente com um encantador sorriso brincando nos lábios purpurinos. O camareiro do apartamento chegou a declarar quando entrevistado por um jornalista: É de uma amabilidade extraordinária. Recebe todos. Quem bate no quarto entra. Mas o irmão pelo sim pelo não caiu de bofetadas em cima do camareiro. O caso foi parar na policia onde o prestígio de Miss Paraíba do Sul conseguiu arranjar tudo do melhor modo possível. 
Puseram à sua disposição um automóvel fechado, uma máquina de escrever portátil e um binóculo de corridas. Todos os dias choviam os presentes. O futuro arquiteto Barros Jandaia pôs gratuitamente seus serviços profissionais às ordens de Miss Paraíba do Sul. O cabeleireiro não lhe quis cobrar nada e ainda por cima lhe deu vinte vales dando direito a outras tantas lavagens com Pixavon. A Livraria Cosmopolita ofereceu um rico exemplar do Paraíso Perdido. E assim por diante. 
Miss Paraíba do Sul foi recebida em audiência especial pelo Presidente do Estado, respondeu com muita graça às perguntas de S. Exa. e distribuiu cigarros Petit Londrinos (ovalados) aos presos da cadeia pública. Visitou também a Câmara Municipal. Aí foi saudada por um vereador que a comparou a mimosa violeta dos nossos vergéis que não só atrai pela beleza como prende pelo seu perfume e conquista pela sua modéstia exemplar. 
Foram quinze dias bem cheios. Repletos. Não houve um minuto de folga. Miss Paraíba do Sul embora delicadamente deixou transparecer que a glória era um fardo pesado demais para seus ombros frágeis. E seguiu de vagão especial para a capital do país Todas as cidades do percurso enviavam à estação o juiz de direito, o promotor, o delegado, o prefeito, o coletor federal e o sacristão da matriz que se incumbia dos foguetes. O trem apitava, as palmas estalavam com o vívório, o trem seguia. Miss Paraíba do Sul chegou ao Rio com uma dor de cabeça que não agüentava mesmo. 
Começou a torcida brava. Para disfarçar, festas e mais festas. E sonetos na seção livre dos jornais. E bilhetes de apaixonados anônimos. E baile na torpedeira Paraíba do Sul. E retratos de todo o jeito nas revistas. E chás com as rivais. E tesouradas gostosas nas rivais. E entrevistas, entrevistas, entrevistas. Um repórter mais audacioso penetrou no quarto de Miss Paraíba do Sul e tirou uma fotografia muito original. Com efeito. No dia seguinte o povo carioca abrindo o jornal deu de cara com um pé de sapato enquadrado pela seguinte nota: - Enquanto Miss Paraíba do Sul jantava conseguimos penetrar no seu aposento e cometemos a deliciosa maldade de fotografar um perfumado sapatinho que se encontrava sobre o toucador. Levamos a nossa indiscrição ao ponto de verificarmos o número; era trinta e três e meio! Para encanto dos nossos leitores publicamos um clichê do sapatinho da nova Maria Borralheira da Graça e da Beleza. 
Cousas assim comovem. Miss Paraíba do Sul deu ao repórter como lembrança o famoso sapatinho. Mesmo porque (observou muito bem o irmão casado) já estava imprestável com a sola até fura-não-fura. Enorme multidão teve a felicidade de vê-lo exposto na redação do jornal. Não houve um parecer discordante: era de fato um amor de sapatinho. 
Enfim vieram as provas do concurso. Miss Paraíba do Sul passeou de roupa de banho para os velhos do júri apreciarem bem as formas dela e submeteu-se ao exame antropométrico no Museu Nacional. Sua ficha foi discutida nas sociedades científicas, empolgou a imprensa, provocou desinteligências entre pessoas que se davam desde os bancos escolares. Tudo inútil porém. Miss Paraíba do Sul não foi considerada a mais digna de representar o Brasil no torneio de Galveston. 
Chorou é verdade. Não se pode negar. Chorou. Mas isso no hotel. Em público não perdeu a linha. Era toda sorriso diante de Miss Brasil. Entrevistada declarou que a escolha do júri tinha sido justa. Admiradores seus protestaram com energia. Um grupo de estudantes deitou manifesto a seu favor. Ela sorria agradecida e dizia cousas muito amáveis a respeito de Miss Brasil. Foi consagrada a Miss Pindorama, a Miss Terra de Santa Cruz, a Miss Simpatia Verde- Amarela. Todos reconheceram que a vitória moral lhe pertencia. Era um consolo. 
De volta à capital do seu Estado no entanto ela resolveu mudar de atitude. Criticou duramente a decisão do júri. Miss Brasil? Uma beleza sem dúvida. Mas beleza impassível. E que vale a formosura sem a graça? Depois sem gosto algum. Cada vestido que só vendo. Todos de carregação. E era visível nos seus traços a ascendência estrangeira. O Brasil seria representado em Galveston. A raça brasileira não. E por aí foi. Nem os organizadores do concurso escaparam. Amáveis sim. Porém parciais. Um deles, careca barbado, vivia amolando as candidatas com galanteios muito bobos. Por isso mesmo levou um dia a sua. Uma das concorrentes lhe perguntou: Por que não corta um pedaço da barba e gruda na cabeça para fingir de cabelo? Disse isso sim. Como não. Na cara. Como não. E perto de gente. Ora se. Ele ficou enfiado. 
Corisco recebeu de luto na alma a sua Venus. O pai de Miss Paraíba do Sul sacudiu a cabeça murmurando: Que injustiça! Que injustiça! Inutilmente ela e o irmão casado falavam na vitória moral, na simpatia do povo, nos protestos da imprensa. Ela contava: Uma vez quando saía do hotel um popular me disse que eu era a eleita do coração dos brasileiros! Então, papai, que tal? 
Mas o velho não se convencia. É. Muito bonito. Realmente. Mas os oitenta e quatro contos foi outra que abiscoitou. Aí é que está. Os oitenta e quatro contos foi outra que abiscoitou. Injustiça. Injustiça. O Brasil vai de mal a pior. Mas depois era preciso jurar que não, que o Brasil ia muito bem, que a vitória moral era mais que suficiente, que dinheiro não faz a felicidade de ninguém porque Miss Corisco, Miss Paraíba do Sul, Miss Pindorama, Miss Terra de Santa Cruz, Miss Simpatia Verde-Amarela começava a chorar.

Contos do Sábado na Usina: Machado de Assis: FREI SIMÃO III:

 



Passaram-se dias e dias, e nada de chegar o momento de voltar à casa paterna. O ex-romancista era na verdade fértil, e não se cansava de inventar pretextos que deixavam convencido o pobre rapaz. Entretanto, como o espírito dos amantes não é menos engenhoso que o dos romancistas, Simão e Helena acharam um meio de se escreverem, e deste modo podiam consolar-se da ausência, com presença das letras e do papel. Bem diz Heloísa que a arte de escrever foi inventada por alguma amante separada do seu amante. Nestas cartas juravam-se os dois sua eterna fidelidade. 
No fim de dois meses de espera baldada e de ativa correspondência, a tia de Helena surpreendeu uma carta de Simão. Era a vigésima, creio eu. Houve grande temporal em casa. O tio, que estava no escritório, saiu precipitadamente e tomou conhecimento do negócio. O resultado foi proscrever de casa tinta, penas e papel, e instituir vigilância rigorosa sobre a infeliz rapariga. 
Começaram pois a escassear as cartas ao pobre deportado. Inquiriu a causa disto em cartas choradas e compridas; mas como o rigor fiscal da casa de seu pai adquiria proporções descomunais, acontecia que todas as cartas de Simão iam parar às mãos do velho, que, depois de apreciar o estilo amoroso de seu filho, fazia queimar as ardentes epístolas. 
Passaram-se dias e meses. Carta de Helena, nenhuma. O correspondente ia esgotando a veia inventadora, e já não sabia como reter finalmente o rapaz. 
Chega uma carta a Simão. Era letra do pai. Só diferençava das outras que recebia do velho em ser esta mais longa, muito mais longa. O rapaz abriu a carta, e leu trêmulo e pálido. Contava nesta carta o honrado comerciante que a Helena, a boa rapariga que ele destinava a ser sua filha casando-se com Simão, a boa Helena tinha morrido. O velho copiara algum dos últimos necrológios que vira nos jornais, e ajuntara algumas consolações de casa. A última consolação foi dizer-lhe que embarcasse e fosse ter com ele. 
O período final da carta dizia: 
Assim como assim, não se realizam os meus negócios; não te pude casar com Helena, visto que Deus a levou. Mas volta, filho, vem; poderás consolar-te casando com outra, a filha do conselheiro 
***. Está moça feita e é um bom partido. Não te desalentas; lembra-te de mim". 
O pai de Simão não conhecia bem o amor do filho, nem era grande águia para avaliá-lo, ainda que o conhecesse. Dores tais não se consolidam com uma carta nem com um casamento. Era melhor mandá-lo chamar, e depois preparar-lhe a notícia; mas dada assim friamente em uma carta, era expor o rapaz a uma morte certa. 
Ficou Simão vivo em corpo e morto moralmente, tão morto que por sua própria idéia foi dali procurar uma sepultura. Era melhor dar aqui alguns dos papéis escritos por Simão relativamente ao que sofreu depois da carta; mas há muitas falhas, e eu não quero corrigir a exposição ingênua e sincera do frade. 
A sepultura que Simão escolheu foi um convento. Respondeu ao pai que agradecia a filha do conselheiro, mas que daquele dia em diante pertencia ao serviço de Deus. 
O pai ficou maravilhado. Nunca suspeitou que o filho pudesse vir a ter semelhante resolução. Escreveu às pressas para ver se o desviava da idéia; mas não pôde conseguir. 
Quanto ao correspondente, para quem tudo se embrulhava cada vez mais, deixou o rapaz seguir para o claustro, disposto a não figurar em um negócio do qual nada realmente sabia.