sábado, 4 de dezembro de 2021

Dante Alighieri: A Divina Comédia: Inferno:


“Quem seus clamores ouve não duvida: Levantam grita aos termos dois chegados, 
45 Onde oposta os separa a culpa havida:
“Os que então de cabelos despojados Clérigos, papas, cardeais hão sido,
48 Pela nímia avareza subjugados”. —
— “Entre eles” — respondi — “Mestre querido, Muitos serão, por certo, que eu conheça,
51 Imundos desse mal aborrecido”. —
— “Te enganas, quando assim — diz — “te pareça:
Da sua ignóbil vida a oscuridade
54 Vestígio não deixou, que ora apareça:
“Eles se hão de embater na eternidade: Ressurgindo, uns terão as mãos fechadas, 
57 Os outros de cabelos pouquidade.
“Por dar mal, por mal ter, viram cerradas Do céu as portas; penam nesta lida,
60 Com mágoas, que não podem ser contadas.
“Vês quanto é de vaidade iludida
A ambição, em que os homens a porfiam,
63 Da Fortuna anelando os bens na vida.
“Todo o ouro, que as entranhas conteriam Da terra, não pudera dar repouso
66 A um dos que em fadiga se cruciam”. —
— “Quem é Mestre” — falei — “o portentoso Ser, que chamas Fortuna, que à vontade
69 Bens distribui ao mundo cobiçoso?” —
Responde o Vate: — “Ó cega humanidade, Quanta ignorância a mente vos ofende.....

Contos do Sábado na Usina: Machado de Assis: A Mulher de Preto III:



Estêvão Soares visitou Menezes no dia seguinte.
O deputado esperava-o, e recebeu-o como se fosse um amigo velho. Estêvão marcara a hora da visita, que impossibilitava a presença de Meneses na câmara; mas o deputado importou-se pouco com isso: não foi à câmara. Mas teve a delicadeza de o não dizer a Estêvão.
Menezes estava no gabinete quando o criado anunciou-lhe a chegada do médico. Foi recebê-lo à porta.
- Pontual como um rei, disse-lhe alegremente.
- Era dever. Lembro-lhe que não me esqueci.
- E agradeço-lho.
Sentaram-se os dois.
- Agradeço-lho porque eu receava sobretudo que me houvesse compreendido mal; e que os impulsos da minha simpatia não merecessem da sua parte nenhuma consideração...
Estêvão ia protestar.
- Perdão, continuou Menezes, bem vejo que me enganei, e é por isso que lhe agradeço. Eu não sou rapaz; tenho quarenta e sete anos; e para a sua idade as relações de um homem como eu já não têm valor.
- A velhice, quando é respeitável, deve ser respeitada; e amada, quando é amável. Mas V. Ex. não é velho; tem os cabelos apenas grisalhos: pode-se dizer que está na segunda mocidade.

- Parece-lhe isso...

- Parece e é.

- Seja como for, disse Menezes, a verdade é que podemos ser amigos. Quantos anos tem?

- Vinte e quatro.

- Olhe lá; podia ser meu filho. Tem seus pais vivos?

- Morreram há quatro anos.

- Lembra-me haver dito que era solteiro...

- É verdade.

- De maneira que os seus cuidados são todos para a ciência?

- É minha esposa.

- Sim, a sua esposa intelectual; mas essa não basta a um homem como o senhor... Enfim, isso é com o tempo; está ainda moço.

Durante este diálogo, Estêvão contemplava e observava Menezes, em cujo rosto batia a claridade que entrava por uma das janelas. Era uma cabeça severa, cheia de cabelos já grisalhos, que lhe caíam em gracioso desalinho. Tinha os olhos negros e um pouco amortecidos; adivinha-se porém que deviam ter sido vivos e ardentes. As suíças também grisalhas eram como as de lord Palmerston, segundo dizem as gravuras. Não tinha rugas de velhice; tinha uma ruga na testa, entre as sobrancelhas, indício de concentração de espírito, e não vestígio do tempo. A testa era alta, o queixo e as maçãs do rosto um pouco salientes. Adivinhava-se que devia ter sido formoso no tempo da primeira mocidade; e antevia-se já uma velhice imponente e augusta. Sorria de quando em quando; e o sorriso, embora aquele rosto não fosse de um ancião, produzia uma impressão singular; parecia um raio de lua no meio de uma velha ruína. É que o sorriso era amável, mas não era alegre. Todo aquele conjunto impressionava e atraía; Estêvão sentia-se cada vez mais arrastado para aquele homem, que o procurava, e lhe estendia a mão.
A conversa continuou no tom afetuoso com que começara; a primeira entrevista da amizade é o oposto da primeira entrevista do amor; nesta a mudez é a grande eloqüência; naquela inspira-se e ganha-se a confiança, pela exposição franca dos sentimentos e das idéias.
Não se falou de política. Estêvão aludiu de passagem às funções de Meneses; mas foi um verdadeiro incidente a que o deputado não prestou atenção.
No fim de uma hora, Estêvão levantou-se para sair; tinha de ir ver um doente.

- O motivo é sagrado; senão retinha-o.

- Mas eu voltarei outras vezes.

- Sem dúvida alguma, e eu irei vê-lo algumas vezes. Se no fim de quinze dias não se aborrecer... olhe, venha de tarde; janta algumas vezes comigo; depois da câmara estou completamente livre.
Estêvão saiu prometendo tudo.
Voltou lá, com efeito, e jantou duas vezes com o deputado, que também visitou Estêvão em casa; foram ao teatro juntos; relacionaram-se intimamente com as famílias conhecidas. No fim de um mês eram dois amigos velhos. Tinham observado reciprocamente o caráter e os sentimentos.
Menezes gostava de ver a seriedade do médico e o seu bom senso; estimava-o com as suas intolerâncias, aplaudindo-lhe a generosa ambição que o dominava. Pela sua parte o médico via em Menezes um homem que sabia ligar a austeridade dos anos à amabilidade de cavalheiro, modesto nas suas maneiras, instruído, sentimental. Da misantropia anunciada não encontrou vestígios. É verdade que em algumas ocasiões Menezes parecia mais disposto a ouvir do que a falar; e então o olhar tornava-se-lhe sombrio e parado, como se em vez de ver os objetos exteriores, estivesse contemplando a sua própria consciência. Mas eram rápidos esses momentos, e Menezes voltava logo aos seus modos habituais.
- Não é um misantropo, pensava então Estêvão; mas este homem tem um drama dentro de si.
A observação de Estêvão adquiriu certo caráter de verossimilhança quando uma noite em que se achavam no teatro Lírico, Estêvão chamou a atenção de Menezes para uma mulher vestida de preto que se achava em um camarote da primeira ordem.
- Não conheço aquela mulher, disse Estêvão. Sabe quem é?
Menezes olhou para o camarote indicado, contemplou a mulher por alguns instantes e respondeu:
- Não conheço.
A conversa ficou aí; mas o médico reparou que a mulher duas vezes olhou para Menezes, e este duas vezes olhou para ela, encontrando-se os olhos de ambos.
No fim do espetáculo, os dois amigos dirigiram-se pelo corredor do lado em que estivera a mulher de preto. Estêvão teve apenas nova curiosidade, a curiosidade de artista: quis vê-la de perto. Mas a porta do camarote estava fechada. Teria já saído ou não? Era impossível sabê-lo. Menezes passou sem olhar. Ao chegarem ao patamar da escada que dá para o lado da rua dos Ciganos, pararam os dois porque havia grande afluência de gente. Daí a pouco ouviu-se passo apressado; Menezes voltou o rosto; e dando o braço a Estêvão desceu imediatamente, apesar da dificuldade.
Estêvão compreendeu, mas nada viu.
Pela sua parte, Menezes não deu sinal algum.
Apenas se desembaraçaram da multidão, o deputado encetou uma alegre conversa com o médico.
- Que efeito lhe faz, perguntou ele, quando passa no meio de tantas damas elegantes, aquela confusão de sedas e de perfumes?
Estêvão respondeu distraidamente, e Menezes continuou a conversa no mesmo estilo; daí a cinco minutos a aventura do teatro tinha-se-lhe varrido da memória.

Contos do Sábado na Usina: Humberto de Campos: A Promessa IV:


Com a partida dos sorteados, o Araçá era como um organismo que tivesse sofrido uma sangria. Sem as suas festas dos sábados e as suas serenatas das noites de lua, as casas passaram a fechar mais cedo e a abrir mais tarde Parecia que aqueles oito rapazolas enchiam, sozinhos, as ruas da vila. Por toda parte reinava uma tristeza de morte. 
Ao chegarem à capital, ao quartel, alguns escreveram. E as cartas, ligeiras e simples, passavam de mão em mão como relíquias, que eram. O coração da vila acompanhava-os; até que uma grande emoção a abalou, meses depois, com a notícia de que o. batalhão em que haviam sido incorporados, partira, entre festas da população da cidade, para as campanhas fratricidas do sul. 
De quantas almas sangravam no Calvário da Saudade, nenhuma havia, porém, como a da velha Maria Inácia, mãe de João Vicente. Desde o momento em que o filho partiu, acendera ela uma lamparina de azeite em frente ao oratório tosco, forrado de azul, onde a Senhora das Dores chorava, o coração transpassado por uma espada. De joelhos, as mãos juntas, os olhos súplices, postos no rosto consolado da imagem, prometera, no arrebatamento da sua fé e do seu temor: 
- Minha Mãe Santíssima! vós, que sois mãe, velai pelo meu filho! Guiai-o através de todos os males, preservando-o da morte e dos perigos do mundo! E eu vos prometo trazer sempre acesa, dia e noite, esta luz aos vossos pés! 
E dia e noite não faltou, jamais, aquela chama votiva aos pés da Senhora das Dôres. Três, quatro, cinco vezes, nas horas de sono, levantava-se a velhinha, no seu xale preto, para examinar se ainda havia azeite no copo e se a pequena rodela de cera e cortiça daria, ainda, até de manhã. Parecia-lhe ao coração alarmado que aquela chama era a própria vida do seu filho e que, se se apagasse, a sua existência se apagaria com ela. E, nesse delírio, redobrava de cuidado, vigiando a chama tímida como se velasse à cabeceira de um enfermo, sob a ronda traiçoeira da morte. 
Até que, uma noite, foi um desespero. Fatigada pelas vigílias contínuas, a velhinha adormeceu mais profundamente na cadeira, ao lado do oratório. Quando despertou, madrugada alta, o quarto estava escuro. 
- Meu Deus! meu filho morreu!... gritou, num acesso de terror, os olhos arregalados na treva, as mãos tateando, trêmulas, a caixa de fósforos na mesinha do oratório. 
A velha criada que lhe fazia companhia acorreu, tropeçando nos móveis, e, riscando o fósforo, reacendeu a lamparina. 
- Luiza, meu filho morreu!... O João morreu, Luiza!... gritou, abraçando-se à velha serviçal. 
- Sossegue, "nhá" Nacinha! sossegue: não morreu, não! Tenha fé em Deus! - pedia a outra, procurando. tranqüilizá-la, tendo embora a alma assustada por aquele prenúncio. 
A datar desse dia, a vida de Maria Inácia passou a ser uma agonia contínua, entrecortada de preces, diante do oratório. As promessas multiplicaram-se. Até que, uma noite, em um momento de maior aflição, ofereceu, com toda a sua alma devota: 
- Minha Senhora das Dores! trazei meu filho são, e salvo, ainda uma vez, à minha vista, que eu vos dou a minha vida! 
E com todo o fervor da contrição, num acesso de choro: 
- A minha vida pela dele, Minha Mãe Santíssima!... A minha vida pela dele!... Mas que eu ainda veja meu filho!...

Contos do Sábado na Usina: Olavo Bilac: O DIABO:

 


Tinham metido tantas caraminholas na cabeça da pobre Luizinha, que a coitada, quando, às dez horas, apagava a luz, metida na cama, vendo-se no escuro, tinha tanto medo, que começava a bater os dentes... Pobre Luizinha! que medo, que medo ela tinha do diabo! 
Um dia, não pôde mais! E, no confessionário, ajoelhada diante de padre João, abriu-lhe a alma, e contou-lhe os seus sustos, e disse-lhe o medo que tinha de ver uma bela noite o diabo em pessoa entrar no seu quarto, para a atormentar... 
Padre João, acariciando o belo queixo escanhoado, refletiu um momento. 
Depois, olhando, com piedade a pobre pequena ajoelhada, disse gravemente: 
— Minha filha! Basta ver que está assim preocupada com essa idéia, para reconhecer que realmente o Diabo anda a perseguí-la... Para o tinhoso amaldiçoado assim é que começa... 
— Ai, senhor padre! Que há-de ser de mim?! Tenho a certeza de que, se ele me aparecesse, eu nem forças teria para gritar... 
— Bem. filha, bem... Vejamos! costuma deixar a porta do quarto aberta? 
— Deus me livre, santo padre! 
— Pois, tem feito mal, filha, tem feito mal... Para que serve fechar a porta se o Amaldiçoado é capaz de entrar pela fechadura? Ouça o meu conselho... Precisamos saber se é realmente Ele que quer atormentá-la... Esta noite, deite-se, e reze, deixe a porta aberta... Tenha coragem ... Às vezes, é o Anjo da Guarda que inventa essas 
coisas, para experimentar a fé das pessoas. Deixe a porta aberta esta noite. E, amanhã, venha dizer-me o que se tiver passado... 
— Ai! senhor padre! eu terei coragem?... 
— É preciso que a tenha... é preciso que a tenha... vá... e, sobretudo, não diga nada a ninguém... não diga nada a ninguém... 
E, deitando a benção à rapariga, mandou-a embora. E ficou sozinho, sozinho, e acariciando o belo queixo escanhoado... 
E, no dia seguinte, logo de manhã cedo, já estava o padre João no confessionário, quando viu chegar a bela Luizinha. Vinha pálida e confusa, atrapalhada e medrosa. E, muito trêmula, gaguejando, começou a contar o que se passara.... 
— Ah! meu padre! apaguei a vela, cobri-me toda muito bem coberta, e fiquei com um medo... com um medo... De repente, senti que alguém entrava no quarto... 
Meu Deus! não sei como não morri... Quem quer que fosse, veio andando devagarinho, devagarinho, devagarinho, e parou perto da cama... não sei............................ perdi os 
sentidos... e... 
— Vamos, filha, vamos... 
— ... depois quando acordei... não sei, senhor padre, não sei... era uma cousa... 
— Vamos, filha... era o Diabo? 
— Ai, senhor padre... pelo calor , parecia mesmo que eram as chamas do inferno... mas... 
— Mas o que, filha? vamos!... 
— Ai, senhor padre... mas era tão bom que até parecia mesmo a graça divina...

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo: A Arthur de Mendonça III: A FILHA DO PATRÃO:


Para que o conto acabasse a contento da maioria dos meus leitores, o comendador Ferreira deveria perdoar aos dois namorados, e tratar de casá-los sem perda de tempo; mas infelizmente as coisas não se passaram assim, e a moral, como vão ver, foi sacrificada ao egoísmo. 
Com a resolução de quem longamente se preparara para o que desse e viesse, o comendador tirou do bolso um revólver e apontou-o contra o raptor de sua filha, vociferando: 
— Seu biltre, ponha-se imediatamente no olho da rua, se não quer que lhe faça saltar os miolos!... 
A esse argumento intempestivo e concludente, o namorado, que tinha muito amor à pele, fugiu como se o arrebatassem asas invisíveis. 
O pai foi fechar a porta, guardou o revólver, e, aproximando-se de Adosinda, que, encostada ao piano, tremia, como varas verdes, abraçou-a, beijou-a com um carinho que nunca manifestara em ocasiões menos inoportunas. 
A moça estava assombrada; esperava pelo menos a maldição paterna; era, desde pequenina, órfã de mãe, e habituara-se às brutalidades do pai; aquele beijo e aquele abraço encheram-na de confusão e pasmo. 
O comendador foi o primeiro a falar: 
— Vês? disse ele, apontando para a porta: vês? O homem por quem abandonaste teu pai é um covarde, um miserável, que foge diante de um cano de um revólver! Não é um homem!... 
— Isso ele é, murmurou Adosinda baixando os olhos, ao mesmo tempo que duas rosas lhe desfaziam a palidez do rosto. 
O pai sentou-se no sofá. chamou a filha para perto de si, fê-la sentar-se nos seus joelhos, e, num tom de voz meigo e untuoso, pediu-lhe que esquecesse do homem que a raptara, um trocatintas, um leguelhé que lhe queria o dote, e nada mais; pintou-lhe um futuro de vicissitudes e misérias, longe do pai que a desprezaria se semelhante casamento se realizasse, desse pai que tinha exterioridades de bruto, mas no fundo era o melhor, o mais carinhosos dos pais. 
No fim da catequese, a moça parecia convencida de que nos braços de Borges não encontraria realmente toda a felicidade possível; mas... 
— Mas agora... é tarde, balbuciou ela; e voltaram-lhe à face as purpurinas rosas de ainda há pouco. 
— Não; não é tarde, disse o comendador; conheces o Manoel, o meu primeiro caixeiro do armazém? 
— Conheço: é um enjoado. 
— Qual, enjoado! É um rapaz de muito futuro no comércio, um homem de conta, peso e medida! Não descobriu a pólvora, não faz versos, não é janota, mas tem um tino para o negócio, uma perspicácia que o levará longe, hás de ver! 
E durante um quarto de hora o comendador Ferreira gabou as excelências do seu caixeiro Manoel. Adosinda ficou convencida. 
A conferência terminou por estas palavras: 
— Falo-lhe? 
— Fale, papai.