Com a partida dos sorteados, o Araçá era como um organismo que tivesse sofrido uma sangria. Sem as suas festas dos sábados e as suas serenatas das noites de lua, as casas passaram a fechar mais cedo e a abrir mais tarde Parecia que aqueles oito rapazolas enchiam, sozinhos, as ruas da vila. Por toda parte reinava uma tristeza de morte.
Ao chegarem à capital, ao quartel, alguns escreveram. E as cartas, ligeiras e simples, passavam de mão em mão como relíquias, que eram. O coração da vila acompanhava-os; até que uma grande emoção a abalou, meses depois, com a notícia de que o. batalhão em que haviam sido incorporados, partira, entre festas da população da cidade, para as campanhas fratricidas do sul.
De quantas almas sangravam no Calvário da Saudade, nenhuma havia, porém, como a da velha Maria Inácia, mãe de João Vicente. Desde o momento em que o filho partiu, acendera ela uma lamparina de azeite em frente ao oratório tosco, forrado de azul, onde a Senhora das Dores chorava, o coração transpassado por uma espada. De joelhos, as mãos juntas, os olhos súplices, postos no rosto consolado da imagem, prometera, no arrebatamento da sua fé e do seu temor:
- Minha Mãe Santíssima! vós, que sois mãe, velai pelo meu filho! Guiai-o através de todos os males, preservando-o da morte e dos perigos do mundo! E eu vos prometo trazer sempre acesa, dia e noite, esta luz aos vossos pés!
E dia e noite não faltou, jamais, aquela chama votiva aos pés da Senhora das Dôres. Três, quatro, cinco vezes, nas horas de sono, levantava-se a velhinha, no seu xale preto, para examinar se ainda havia azeite no copo e se a pequena rodela de cera e cortiça daria, ainda, até de manhã. Parecia-lhe ao coração alarmado que aquela chama era a própria vida do seu filho e que, se se apagasse, a sua existência se apagaria com ela. E, nesse delírio, redobrava de cuidado, vigiando a chama tímida como se velasse à cabeceira de um enfermo, sob a ronda traiçoeira da morte.
Até que, uma noite, foi um desespero. Fatigada pelas vigílias contínuas, a velhinha adormeceu mais profundamente na cadeira, ao lado do oratório. Quando despertou, madrugada alta, o quarto estava escuro.
- Meu Deus! meu filho morreu!... gritou, num acesso de terror, os olhos arregalados na treva, as mãos tateando, trêmulas, a caixa de fósforos na mesinha do oratório.
A velha criada que lhe fazia companhia acorreu, tropeçando nos móveis, e, riscando o fósforo, reacendeu a lamparina.
- Luiza, meu filho morreu!... O João morreu, Luiza!... gritou, abraçando-se à velha serviçal.
- Sossegue, "nhá" Nacinha! sossegue: não morreu, não! Tenha fé em Deus! - pedia a outra, procurando. tranqüilizá-la, tendo embora a alma assustada por aquele prenúncio.
A datar desse dia, a vida de Maria Inácia passou a ser uma agonia contínua, entrecortada de preces, diante do oratório. As promessas multiplicaram-se. Até que, uma noite, em um momento de maior aflição, ofereceu, com toda a sua alma devota:
- Minha Senhora das Dores! trazei meu filho são, e salvo, ainda uma vez, à minha vista, que eu vos dou a minha vida!
E com todo o fervor da contrição, num acesso de choro:
- A minha vida pela dele, Minha Mãe Santíssima!... A minha vida pela dele!... Mas que eu ainda veja meu filho!...
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