Estêvão Soares visitou Menezes no dia seguinte.
O deputado esperava-o, e recebeu-o como se fosse um amigo velho. Estêvão marcara a hora da visita, que impossibilitava a presença de Meneses na câmara; mas o deputado importou-se pouco com isso: não foi à câmara. Mas teve a delicadeza de o não dizer a Estêvão.
Menezes estava no gabinete quando o criado anunciou-lhe a chegada do médico. Foi recebê-lo à porta.
- Pontual como um rei, disse-lhe alegremente.
- Era dever. Lembro-lhe que não me esqueci.
- E agradeço-lho.
Sentaram-se os dois.
- Agradeço-lho porque eu receava sobretudo que me houvesse compreendido mal; e que os impulsos da minha simpatia não merecessem da sua parte nenhuma consideração...
Estêvão ia protestar.
- Perdão, continuou Menezes, bem vejo que me enganei, e é por isso que lhe agradeço. Eu não sou rapaz; tenho quarenta e sete anos; e para a sua idade as relações de um homem como eu já não têm valor.
- A velhice, quando é respeitável, deve ser respeitada; e amada, quando é amável. Mas V. Ex. não é velho; tem os cabelos apenas grisalhos: pode-se dizer que está na segunda mocidade.
- Parece-lhe isso...
- Parece e é.
- Seja como for, disse Menezes, a verdade é que podemos ser amigos. Quantos anos tem?
- Vinte e quatro.
- Olhe lá; podia ser meu filho. Tem seus pais vivos?
- Morreram há quatro anos.
- Lembra-me haver dito que era solteiro...
- É verdade.
- De maneira que os seus cuidados são todos para a ciência?
- É minha esposa.
- Sim, a sua esposa intelectual; mas essa não basta a um homem como o senhor... Enfim, isso é com o tempo; está ainda moço.
Durante este diálogo, Estêvão contemplava e observava Menezes, em cujo rosto batia a claridade que entrava por uma das janelas. Era uma cabeça severa, cheia de cabelos já grisalhos, que lhe caíam em gracioso desalinho. Tinha os olhos negros e um pouco amortecidos; adivinha-se porém que deviam ter sido vivos e ardentes. As suíças também grisalhas eram como as de lord Palmerston, segundo dizem as gravuras. Não tinha rugas de velhice; tinha uma ruga na testa, entre as sobrancelhas, indício de concentração de espírito, e não vestígio do tempo. A testa era alta, o queixo e as maçãs do rosto um pouco salientes. Adivinhava-se que devia ter sido formoso no tempo da primeira mocidade; e antevia-se já uma velhice imponente e augusta. Sorria de quando em quando; e o sorriso, embora aquele rosto não fosse de um ancião, produzia uma impressão singular; parecia um raio de lua no meio de uma velha ruína. É que o sorriso era amável, mas não era alegre. Todo aquele conjunto impressionava e atraía; Estêvão sentia-se cada vez mais arrastado para aquele homem, que o procurava, e lhe estendia a mão.
A conversa continuou no tom afetuoso com que começara; a primeira entrevista da amizade é o oposto da primeira entrevista do amor; nesta a mudez é a grande eloqüência; naquela inspira-se e ganha-se a confiança, pela exposição franca dos sentimentos e das idéias.
Não se falou de política. Estêvão aludiu de passagem às funções de Meneses; mas foi um verdadeiro incidente a que o deputado não prestou atenção.
No fim de uma hora, Estêvão levantou-se para sair; tinha de ir ver um doente.
- O motivo é sagrado; senão retinha-o.
- Mas eu voltarei outras vezes.
- Sem dúvida alguma, e eu irei vê-lo algumas vezes. Se no fim de quinze dias não se aborrecer... olhe, venha de tarde; janta algumas vezes comigo; depois da câmara estou completamente livre.
Estêvão saiu prometendo tudo.
Voltou lá, com efeito, e jantou duas vezes com o deputado, que também visitou Estêvão em casa; foram ao teatro juntos; relacionaram-se intimamente com as famílias conhecidas. No fim de um mês eram dois amigos velhos. Tinham observado reciprocamente o caráter e os sentimentos.
Menezes gostava de ver a seriedade do médico e o seu bom senso; estimava-o com as suas intolerâncias, aplaudindo-lhe a generosa ambição que o dominava. Pela sua parte o médico via em Menezes um homem que sabia ligar a austeridade dos anos à amabilidade de cavalheiro, modesto nas suas maneiras, instruído, sentimental. Da misantropia anunciada não encontrou vestígios. É verdade que em algumas ocasiões Menezes parecia mais disposto a ouvir do que a falar; e então o olhar tornava-se-lhe sombrio e parado, como se em vez de ver os objetos exteriores, estivesse contemplando a sua própria consciência. Mas eram rápidos esses momentos, e Menezes voltava logo aos seus modos habituais.
- Não é um misantropo, pensava então Estêvão; mas este homem tem um drama dentro de si.
A observação de Estêvão adquiriu certo caráter de verossimilhança quando uma noite em que se achavam no teatro Lírico, Estêvão chamou a atenção de Menezes para uma mulher vestida de preto que se achava em um camarote da primeira ordem.
- Não conheço aquela mulher, disse Estêvão. Sabe quem é?
Menezes olhou para o camarote indicado, contemplou a mulher por alguns instantes e respondeu:
- Não conheço.
A conversa ficou aí; mas o médico reparou que a mulher duas vezes olhou para Menezes, e este duas vezes olhou para ela, encontrando-se os olhos de ambos.
No fim do espetáculo, os dois amigos dirigiram-se pelo corredor do lado em que estivera a mulher de preto. Estêvão teve apenas nova curiosidade, a curiosidade de artista: quis vê-la de perto. Mas a porta do camarote estava fechada. Teria já saído ou não? Era impossível sabê-lo. Menezes passou sem olhar. Ao chegarem ao patamar da escada que dá para o lado da rua dos Ciganos, pararam os dois porque havia grande afluência de gente. Daí a pouco ouviu-se passo apressado; Menezes voltou o rosto; e dando o braço a Estêvão desceu imediatamente, apesar da dificuldade.
Estêvão compreendeu, mas nada viu.
Pela sua parte, Menezes não deu sinal algum.
Apenas se desembaraçaram da multidão, o deputado encetou uma alegre conversa com o médico.
- Que efeito lhe faz, perguntou ele, quando passa no meio de tantas damas elegantes, aquela confusão de sedas e de perfumes?
Estêvão respondeu distraidamente, e Menezes continuou a conversa no mesmo estilo; daí a cinco minutos a aventura do teatro tinha-se-lhe varrido da memória.
Nenhum comentário:
Postar um comentário