quinta-feira, 30 de abril de 2020

Poesia De Quinta Na Usina: D'Araújo: Escravos do imaginário:






As correntes que outrora escravizavam
Almas alheias
Foram - se com os navios negreiros
Que submergiram em um vale de lágrimas

Restou o dinheiro
Que hoje torna homens de almas puras
Em escravos de uma consciência imaginária
Com artifícios incoerentes.

Voltaram-se as correntes
Que nem mesmo a gente quer acreditar
E às vezes chego a pensar que o Criador 
Não escuta tanta dor neste imenso calor


E o ardor que chega a ser desumano
Por quê? Tanto engano.
E um ser a ladear faíscas de esperanças
No romper da aurora
De novos sonhos de liberdade
Pelo sangue derramado.

Poesia De Quinta Na Usina: D'Araújo: O homem e a pedra:





O homem subiu até a pedra
A pedra subiu ao homem
Ou será que o homem era pedra
Ou a pedra que era o homem.

A brisa resfria a pedra
O sol aquece o homem
Que um dia foi pedra

E a brisa resfria a pedra
Que um dia também já foi o homem.
Aqui jaz o homem pedra
E a pedra que gera o homem.

Poesia De Quinta Na Usina: Augusto dos Anjos: AS CISMAS DO DESTINO I




Recife, Ponte Buarque de Macedo. Eu, indo em direção à casa do Agra, Assombrado com a minha sombra magra, Pensava no Destino, e tinha medo!

Na austera abóbada alta o fósforo alvo Das estrelas luzia... O calçamento Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento, Copiava a polidez de um crânio alvo.

Lembro-me bem . A ponte era comprida, E a minha sombra enorme enchia a ponte, Como uma pele de rinoceronte Estendida por toda a minha vida!

A noite fecundava o ovo dos vícios Animais. Do carvão da treva imensa Caía um ar danado de doença Sobre a cara geral dos edifícios!

Tal uma horda feroz de cães famintos, Atravessando uma estação deserta, Uivava dentro do eu, com a boca aberta, A matilha espantada dos instintos!

Era como se, na alma da cidade, Profundamente lúbrica e revolta, Mostrando as carnes, uma besta solta Soltasse o berro da animalidade.

E aprofundando o raciocínio obscuro, Eu vi, então, à luz de áureos reflexos, O trabalho genésico dos sexos, Fazendo à noite os homens do Futuro.
Livres de microscópios e escalpelos,
Dançavam, parodiando saraus cínicos, Bilhões de centrossomas apolínicos Na câmara promíscua do vitellus.

Mas, a irritar-me os globos oculares, Apregoando e alardeando a cor nojenta, Fetos magros, ainda na placenta, Estendiam -me as mãos rudimentares!

Mostravam -me o apriorismo incognoscível Dessa fatalidade igualitária,
Que fez minha família originária Do antro daquela fábrica terrível!

A corrente atmosférica mais forte Zunia. E, na ígnea crosta do Cruzeiro, Julgava eu ver o fúnebre candeeiro Que há de me alumiar na hora da morte.

Ninguém compreendia o meu soluço, Nem mesmo Deus! Da roupa pelas brechas,
O ventobravo me atirava flechas E aplicações hiemais de gelo russo.

A vingança dos mundos astronômicos Enviava à terra extraordinária faca, Posta em rija adesão de goma laca Sobre os meus elementos anatômicos.

Ah! Com certeza, Deus me castigava! Por toda a parte, como um réu confesso, Havia um juiz que lia o meu processo E uma forca especial que me esperava!

Mas o vento cessara por instantes Ou, pelo menos, o ignis sapiens do Orco Abafava-me o peito arqueado e porco Num núcleo de substâncias abrasantes.

É bem possível que eu umdia cegue. No ardor desta letal tórrida zona,
A cor do sangue é a cor que me impressiona E a que mais neste mundo me persegue!

Essa obsessão cromática me abate.

Não sei por que me vêm sempre à lembrança O estômago esfaqueado de uma criança

E um pedaço de víscera escarlate. Quisera qualquer coisa provisória Que a minha cerebral caverna entrasse, E até ao fim, cortasse e recortasse A faculdade aziaga da memória.

Na ascensão barométrica da calma, Eu bem sabia, ansiado e contrafeito, Que uma população doente do peito Tossia sem remédio na minh’alma!

E o cuspo que essa hereditária tosse Golfava, à guisa de ácido resíduo, Não era o cuspo só de um indivíduo Minado pela tísica precoce.

Não! Não era o meu cuspo, com certeza Era a expectoração pútrida e crassa Dos brônquios pulmorares de uma raça Que violou as leis da Natureza!

Era antes uma tosse ubíqua, estranha, Igual ao ruído de um calhau redondo Arremessado no apogeu do estrondo, Pelos fundibulários da montanha!

E a saliva daqueles infelizes Inchava, em minha boca, de tal arte, Que eu, para não cuspir por toda a parte, Ia engolindo, aos poucos, a hemoptísis!

Na alta alucinação de minhas cismas O microcosmos líquido da gota
Tinha a abundância de uma artéria rota,
Arrebatada pelos aneurismas.

Chegou-me o estado máximo da mágoa! Duas, três, quatro, cinco, seis e sete Vezes que eu me furei com um canivete, A hemoglobina vinha cheia de água!

Cuspo, cujas caudais meus beiços regam, Sob a forma de mínimas camândulas, Benditas sejam todas essas glândulas, Que, quotidianamente, te segregam!

Escarrar de um abismo noutro abismo, Mandando ao Céu o fumo de um cigarro, Há mais filosofia neste escarro

Do que em toda a moral do Cristianismo!

Porque, se no orbe oval que os meus pés tocam Eu não deixasse o meu cuspo carrasco, Jamais exprimiria o acérrimo asco

Que os canalhas do mundo me provocam!

Poesia De Quinta Na Usina: Cruz Souza: SONETO À Julieta dos Santos:




Parece que nasceste, oh! pálida divina,

Para seres o farol, a luz das puras almas!...

Parece que ao estridor, ao frêmito das palmas

Exalças-te feliz à plaga cristalina!...

Parece que se partem, angélica Bambina
Às campas glaciais dos Tassos e dos Talmas, 
Lá quando no tablado as turbas sempre calmas 
Transmutas em vulcão, em raio que fulmina!...

E quando majestosa, em lance sublimado Dardejas do olhar, 
olímpico, sagrado Mil chispas ideais, titânicas, ardentes!...

Então sente- se n'alma o trêmulo nervoso
Que deve ter o mar, fantástico, espumoso

Nos grossos vagalhões, indômitos, frementes!!...

Poesia De Quinta Na Usina: Augusto dos Anjos: IDEALIZAÇÃO DA HUMANIDADE FUTURA:



Rugia nos meus centros cerebrais A multidão dos séculos futuros
-- Homens que a herança de ímpetos impuros Tornara etnicamente irracionais!

Não sei que livro, em letras garrafais, Meus olhos liam! No húmus dos monturos, Realizavam -se os partos mais obscuros, Dentre as genealogias animais!

Como quem esmigalha protozoários Meti todos os dedos mercenários Na consciência daquela multidão...

E, em vez de achar a luz que os Céus inflama, Somente achei moléculas de lama
E a mosca alegre da putrefação!



Poesia De Quinta Na Usina:Cruz Souza: JULIETA DOS SANTOS A IDÉIA AO INFINITO:




À distinta e laureada atrizinha Julieta dos Santos

"...A fama de teu nome, a inveja não consome, o tempo não destrói!...

Dr. Symphronio

Era uma coluna de artistas!...

Ao lado Tasso Medindo as múltiplas conquistas

Co’as amplidões do espaço!...

Seguia-se João Caetano Embuçado da glória no divinal arcano!...

Depois Joaquim Augusto

Altivo, sobranceiro, erguido o nobre busto. Depois Rachel, Favart, Fargueil, a espadanar

Nas crispações homéricas da arte, Constelações azuis por toda a parte!

E em suave ondulação os astros Iam de rastros

Roubar mais luz às rúbidas auroras!...

Quais precursoras

Do mais ingente e mago dos assombros, Do orbe imenso nos calcáreos ombros, Rola um dilúvio, um grande mar de estrelas Que lançam chispas cambiantes, belas!...

Há um estranho amalgamar de cousas Como os segredos funerais das lousas Ou o rebentar de artérias

— Ou o esgarçar de brumas, Negras, cinéreas


— Ou o referver de espumas, Nas longas praias

Alvinitentes, mádidas, sem raias. Do brônzeo espaço,

Das fibras d'aço

Como que desloca-se um pedaço Que vai ruir com trépido sarcasmo Nas obumbradas regiões do pasmo...

— O Invisível

Geme uma música, lânguida, saudosa, Que vai sumir-se na entranha silenciosa Do impassível!

— O Imutável

— O Insondável

La vão cair no seio do incriado. E o bosque irado

A soletrar uns cânticos titânios Lança nos crânios

Aluvião de auras epopéias Tétricas idéias!...

E o pensamento embrenha-se nos mares E vê colares

De níveas pérolas, límpidas, nitentes E vê luzentes

Conchas e búzios e corais, — ondinas Que peregrinas

Aspásias são de lúcida beleza,

De moles formas, desnudadas, brancas Sendo a primesa

Dessas paragens hiemais e francas!...

— Ou quais Frinés A quem aos pés

O mundo em ânsias, reverente adora E chore e chora!!...

Mas a idéia o pensamento insano As asas bate em busca de outro arcano,

E o manto rasga do horizonte eterno Vai ao superno

Ao Criador, ao Menestrel dos mundos! E n'uns arroubos, rábidos, profundos Em luta infinda

— Oh! quer ainda

Quer escalar o templo do impossível, Bem como um raio abrasador, terrível!...

Quer se fartar de maravilhas loucas, Quer ver as bocas

Dos colossais Anteus da eternidade!...
Quer se fartar de luz e divindade E de saber,

Depois jazer

Nas invisíveis dobras do insondável, Bem como um verme, mísero, imprestável!...

— Ou quer ousado Descortinar os crimes do passado E apalpar as gerações dos Gracos

Dos Espartanos E dos Troianos E dos Romanos, Dos Sarracenos E dos Helenos,

E esbarrar nesse montão de ossos Por esses fossos

Tredos, medonhos, sepulcrais e frios Onde sombrios

Andam espíritos de pavor, errantes E vacilantes

Como a luzinha das argênteas lampas, Lentos e lentos através das campas!...

Mas a idéia, o pensamento audaz Quer ainda mais!...

Quer do ribombo do trovão pujante Já n’um esforço adamastório, tredo Embora a medo,

— O atroz segredo

Com que ele faz a terra palpitante!...

E quer dos ventos Dos elementos

Quer do mistério a solução! — Nas trevas Hórridas, sevas,

A gargalhada Ríspida, negra irônica, pesada,

Estruge enfim, da morte legendária, E a idéia vária

Ainda n'isso ousando penetrar, Tenta sondar!...

E em vão, em vão

A mergulhar-se em tanta confusão Não mais compreende

— O que saber pretende!...

Assim, oh! gênio,

Na ofuscadora auréola do proscênio Não sei se és astro, 
se és Esfinge ou mito, Se do infinito

Possuis o encanto, os esplendores grandes,
Ou se dos Andes

Águia tu és, ou és condor divino,

— Ou és cometa de cuja cauda enorme

É   multiforme

Só lágrimas de prata

Ou mesmo se desata

Um vagalhão de palmas, diamantino!!...

Minh’alma oscila e até na fronte sinto

Medonho labirinto,

Estúpida babel,

E vou cair, revel

No pélago sem fim dos nadas materiais!...

E como os racionais

Eu fico a ruminar ainda umas idéias

De erguer-te, o novo Talma

Um trono singular, mas feito de — Odisséias

De brancas alvoradas,

Olímpicas, nevadas,

Dos êxtases magnéticos, nervosos de minh'alma!