sexta-feira, 18 de junho de 2021

Contos do Sábado Na Usina: Ana Cristina Cesar: Correspondência completa:


My dear, Chove a cântaros. Daqui de dentro penso sem parar nos gatos pingados. Mãos e pés frios sob controle. Notícias imprecisas, fique sabendo. É de propósito? Medo de dar bandeira? Ouça muito Roberto: quase chamei você mas olhei para mim mesmo etc. Já tirei as letras que você pediu. O dia foi laminha. Célia disse: o que importa é a carreira, não a vida. Contradição difícil. A vida parece laminha e a carreira é um narciso em flor. O que escrevi em fevereiro é verdade mas vem junto drama de desocupado. Agora fiquei ocupadíssima, ao sabor dos humores, natureza chique, disposição ambígua (signo de gêmeos). Depois que desliguei o telefone me arrependi de ter ligado, porque a emoção esfriou com a voz real. Ao pedir a ligação, meu coração queimava. E quando a gente falou era tão assim, você vendo tv e eu perto de bananas, tão sem estilo (como nas cartas). Você não acha que a distância e a correspondência alimentam uma aura (um reflexo verde na lagoa no meio do bosque)? Penso pouco no Thomas. Passou o frio dos primeiros dias. Depois, desgosto: dele, do pau dele, da política dele, do violão dele. Mas não tenho mexido no assunto. Entrei de férias. Tenho medo que o balanço acabe. O Thomas de hoje é muito mais velho do que eu, não liga mais, estuda, milita e amor na sua Martinica de longos peitos e dentes perfilados, tanta perfeição. Atraida pelo português de camiseta que atendeu no Departamento Financeiro. Era jacaré e tinha bigode de pontas. Ralhei com tesão que me deu uma dor puxada. Só hoje durante a visita de Cris é que me dei conta que batizei a cachorra com o nome dela. Tive discreto repuxo de embaraço quando gritei com Cris que me enlameava o tapete. Cris fugiu mas Cris não percebeu (julgando-se talvez homenageada?). Gil por sua vez leu como sempre nos meus lábios e eclatou de riso típico umidificante. O mesmo Gil jura que são de Shakespeare os versos "trepar é humano, chupar divino" e desvia o olhar para o centro da mesa, depois de diagnosticar silenciosamente minha paranoia. Deu discussão hoje com Mary. Segundo ela Altmann é cruel com classe média e isso é imperdoável. Me senti acusada e balbuciei uma bela briga. Ao chegar em casa pesou a mão imperdoável na barriga. Mary tem sempre razão. Gil diz que ela não se abre comigo porque sabe que minha inveja é maior que meu amor. Ao telefone me conta da carreira e cacacá. Por Gil porém sei dos desastres do casamento. Comigo ela não fala. Ontem fizemos um programa, os três. Nessas ocasiões o ciúme fica saliente, rebola e diz gracinhas que nem eu mesma posso adiantar. Ninguém sabe mas ele tem levezas de um fetinho. É maternal, põe fraldas, enquanto o trio desanca seus caprichos. Resulta um show da uva, brilhante microfone do ciúme! Há sempre uma sombra em meu sorriso (Roberto). A melancólica sou eu, insisto, embora você desaprove sempre, sempre. Aproveito para pedir outra opinião. Gil diz que sou uma leoa-marinha e eu exijo segredo absoluto (está ficando convencido): historinhas ruminadas na calçada são afago para o coração. Quem é que pode saber? Eu sim sei fazer calçada o dia todo, e bem. Do contrário... Não fui totalmente sincera. Recebi outro cartão-postal de Londres. Agora dizia apenas "What are men for?". Sem data. Não consigo dizer não. Você consegue? E a somatização, melhorou?

Insisto no sumário que você abandonou ao deus-dará: 1. bondade que humilha; 2. necessidade versus prazer; 3. filhinho; 4. prioridades; 5. what are men for. Sonho da noite passada: consultório escuro em obras; homens trabalhando; camas e tijolos; decidi esperar no banheiro, onde havia um patinete, anúncios de pudim, um sutiã preto e outros trastes. De quem seria o sutiã? Ele dormiu aqui? Já nos vimos antes, eu saindo e você entrando? Deitados lado a lado, o braço dele me tocando. Chega para (sussurro). Ela deu minha blusa de seda para a empregada. Sem ele não fico em casa. Há três dias que pareço morar onde estou (ecos de Ângela). Aquele ar de desatenção neurológica me deixa louca. Saímos para o corredor. Você vai ter um filhinho, ouviu? Passei a tarde toda na gráfica. O coronel implicou outra vez com as idéias mirabolantes da programação. Mas isso é que é bom. Escrever é a parte que chateia, fico com dor nas costas e remorso de vampiro. Vou fazer um curso secreto de artes gráficas. Inventar o livro antes do texto. Inventar o texto para caber no livro. O livro é anterior. O prazer é anterior, boboca. Epígrafe masculina do livro (há outra, feminina, mais contida), do Joaquim: "É a crônica de uma tara gentil, encontro lírico nas veredas escapistas de Paquetá, imagética, verbalização e exposição de fantasias eróticas. Contém a denúncia da vocação genital dos legumes, a inteligência das mocinhas em flor, a liberdade dos jogos na cama, a simpatia pelos tarados, o gosto pela vida e a suma poética de Carlos Galhardo". Meu pescoço está melhor, obrigada. Quanto à história das mães, acenando umas para as outras com lençóis brancos, enquanto a filha afinal não presta assim tanta atenção, posso dizer que corei um pouco de ser tudo verdade. F. penso não percebe, mas como sempre mente muito. Mente muito! Só eu sei. Vende a alma ao diabo negociando a inteligência alerta pela juventude eterna. Você diria? No pacto é pura Rita Hayworth com N. na cenografia, encaixilhando espelhos. Brincam de casinha na hora vaga. Na festa que deram Gil alto discursava que casamento é a solução, mestre da saúde. Ironias do destino. Seguiu-se é claro ressaca sonsa e ciúmes rápidos de Rita. Não estou conseguindo explicar minha ternura, minha ternura, entende? Fica difícil fazer literatura tendo Gil como leitor. Ele lê para desvendar mistérios e faz perguntas capciosas, pensando que cada verso oculta sintomas, segredos biográficos. Não perdoa o hermetismo. Não se confessa os próprios sentimentos. Já Mary me lê toda como literatura pura, e não entende as

referências diretas.

Na mesa do almoço Gil quis saber a verdadeira identidade de um Jean-Luc, e diante de todos fez clima de conluio, julgando adivinhar tudo. Na saída me fez jurar sobre o perfil dos sepulcros santos - Gil está sempre jurando ou me fazendo jurar. E depois você ainda diz que eu não respondo. Ainda aguardando.

Beijo. Júlia

P.S. 1 - Não quero que T. leia nossa correspondência, por favor. Tenho paixão mas também tenho pudor! P.S. 2 - Quando reli a carta descobri alguns erros datilográficos, inclusive a falta do h no verbo chorar. Não corrigi para não perder um certo ar perfeito - repara a paginação gelomatic, agora que sou artista plástica.


Contos do Sábado na Usina: Rubem Fonseca: Feliz ano novo:


 

Vina televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames vestirem no réveillon. Vi também que as casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque. Pereba, vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos macumbeiros. Pereba entrou no banheiro e disse, que fedor. Vai mijar noutro lugar, tô sem água.

Pereba saiu e foi mijar na escada. Onde você afanou a TV?, Pereba perguntou. Afanei porra nenhuma. Comprei. O recibo está bem em cima dela. Ô Pereba! você pensa que eu sou algum babaquara para ter coisa estarrada no meu cafofo? Tô morrendo de fome, disse Pereba. De manhã a gente enche a barriga com os despachos dos babalaôs, eu disse, só de sacanagem. Não conte comigo, disse Pereba. Lembra do Crispim? Deu um bico numa macumba aqui na Borges de Medeiros, a perna ficou preta, cortaram no Miguel Couto e tá ele aí, fudidão, andando de muleta. Pereba sempre foi supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz quadrada. Chuto a macumba que quiser. Acendemos uns baseados e ficamos vendo a novela. Merda. Mudamos de canal, prum bangue-bangue. Outra bosta. As madames granfas tão todas de roupa nova, vão entrar o ano novo dançando com os braços pro alto, já viu como as branquelas dançam? Levantam os braços pro alto, acho que é pra mostrar o sovaco, elas querem mesmo é mostrar a boceta mas não têm culhão e mostram o sovaco. Todas corneiam os maridos. Você sabia que a vida delas é dar a xoxota por aí? Pena que não tão dando pra gente, disse Pereba. Ele falava devagar, gozador, cansado, doente. Pereba, você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as madames vão dar pra você? O Pereba, o máximo que você pode fazer é tocar uma punheta. Fecha os olhos e manda brasa. Eu queria ser rico, sair da merda em que estava metido! Tanta gente rica e eu fudido. Zequinha entrou na sala, viu Pereba tocando punheta e disse, que é isso Pereba? Michou, michou, assim não é possível, disse Pereba. Por que você não foi para o banheiro descascar sua bronha?, disse Zequinha.

No banheiro tá um fedor danado, disse Pereba. Tô sem água.

As mulheres aqui do conjunto não estão mais dando?, perguntou Zequinha. Ele tava homenageando uma loura bacana, de vestido de baile e cheia de jóias.

Ela tava nua, disse Pereba. Já vi que vocês tão na merda, disse Zequinha. Ele tá querendo comer restos de Iemanjá, disse Pereba. Brincadeira, eu disse. Afinal, eu e Zequinha tínhamos assaltado um supermercado no Leblon, não tinha dado muita grana, mas passamos um tempão em São Paulo na boca do lixo, bebendo e comendo as mulheres. A gente se respeitava. Pra falar a verdade a maré também não tá boa pro meu lado, disse Zequinha. A barra tá pesada. Os homens não tão brincando, viu o que fizeram com o Bom Crioulo? Dezesseis tiros no quengo. Pegaram o Vevé e estrangularam. O Minhoca, porra! O Minhoca! crescemos juntos em Caxias, o cara era tão míope que não enxergava daqui até ali, e também era meio gago - pegaram ele e jogaram dentro do Guandu, todo arrebentado. Pior foi com o Tripé. Tacaram fogo nele. Virou torresmo. Os homens não tão dando sopa, disse Pereba. E frango de macumba eu não como. Depois de amanhã vocês vão ver. Vão ver o quê?, perguntou Zequinha. Só tô esperando o Lambreta chegar de São Paulo. Porra, tu tá transando com o Lambreta?, disse Zequinha. As ferramentas dele estão todas aqui.

Aqui?, disse Zequinha. Você tá louco. Eu ri.

Quais são os ferros que você tem?, perguntou Zequinha. Uma Thompson lata de goiabada, uma carabina doze, de cano serrado, e duas Magnum. Puta que pariu, disse Zequinha. E vocês montados nessa baba tão aqui tocando punheta? Esperando o dia raiar para comer farofa de macumba, disse Pereba. Ele faria sucesso falando daquele jeito na TV, ia matar as pessoas de rir. Fumamos. Esvaziamos uma pitu.

Posso ver o material?, disse Zequinha. Descemos pelas escadas, o elevador não funcionava, e fomos no apartamento de dona Candinha. Batemos. A velha abriu a porta. Dona Candinha, boa noite, vim apanhar aquele pacote. O Lambreta já chegou?, disse a preta velha.

Já, eu disse, está lá em cima. A velha trouxe o pacote, caminhando com esforço. O peso era demais para ela. Cuidado, meus filhos, ela disse. Subimos pelas escadas e voltamos para o meu apartamento. Abri pacote. Armei primeiro a lata de goiabada e dei pro Zequinha segurar. Me amarro nessa máquina, tarratátátátá!, disse Zequinha. É antigo mas não falha, eu disse. Zequinha pegou a Magnum. Jóia, jóia, ele disse. Depois segurou a doze, colocou a culatra no ombro e disse: ainda dou um tiro com esta belczinha nos peitos de um tira, bem de perto, sabe como é, pra jogar o puto de costas na parede e deixar ele pregado lá. Botamos tudo em cima da mesa e ficamos olhando. Fumamos mais um pouco.

Quando é que vocês vão usar o material?, disse Zequinha. Dia 2. Vamos estourar um banco na Penha. O Lambreta quer fazer o primeiro gol do ano. Ele é um cara vaidoso, disse Zequinha. É vaidoso mas merece. Já trabalhou em São Paulo, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Vitória, Niterói, para não falar aqui no Rio. Mais de trinta bancos. mas dizem que ele dá o bozó, disse Zequinha. Não sei se dá, nem tenho peito de perguntar. Pra cima de mim nunca veio com frescuras.

Você já viu ele com mulher?, disse Zequinha. Não, nunca vi. Sei lá, pode ser verdade, mas que importa? Homem não deve dar o cu. Ainda mais um cara importante como o Lambreta, disse Zequinha.

Cara importante faz o que quer, eu disse. É verdade, disse Zequinha.Ficamos calados, fumando. Os ferros na mão e a gente nada, disse Zequinha. O material é do Lambreta. E aonde é que a gente ia usar ele numa hora destas? Zequinha chupou ar, fingindo que tinha coisas entre os dentes. Acho que ele também estava com fome. Eu tava pensando a gente invadir uma casa bacana que tá dando festa. O mulherio tá cheio de jóia e eu tenho um cara que compra tudo o que eu levar. E os barbados tão cheios de grana na carteira. Você sabe que tem anel que vale cinco milhas e colar de quinze, nesse intruja que eu conheço? Ele paga na hora. O fumo acabou. A cachaça também. Começou a chover. Lá se foi a tua farofa, disse Pereba.

Que casa? Você tem alguma em vista? Não, mas tá cheio de casa de rico por aí. A gente puxa um carro e sai procurando. Coloquei a lata de goiabada numa saca de feira, junto com a munição. Dei uma Magnum pro Pereba, outra pro Zequinha. Prendi a carabina no cinto, o cano pra baixo, e vesti uma capa. Apanhei três meias de mulher e uma tesoura. Vamos, eu disse. Puxamos um Opala. Seguimos para os lados de São Conrado. Passamos várias casas que não davam pé, ou tavam muito perto da rua ou tinham gente demais. Até que achamos o lugar perfeito. Tinha na frente um jardim grande e a casa ficava lá no fundo, isolada. A gente ouvia barulho de música de carnaval, mas poucas vozes cantando. Botamos as meias na cara. Cortei com a tesoura os buracos dos olhos. Entramos pela porta principal. Eles estavam bebendo e dançando num salão quando viram a gente. É um assalto, gritei bem alto, para abafar o som da vitrola. Se vocês ficarem quietos ninguém se machuca. Você aí, apaga essa porra dessa vitrola! Pereba e Zequinha foram procurar os empregados e vieram com três garçons e duas cozinheiras. Deita todo mundo, eu disse. Contei. Eram vinte e cinco pessoas. Todos deitados em silêncio, quietos, como se não estivessem sendo vistos nem vendo nada. Tem mais alguém em casa?, eu perguntei. Minha mãe. Ela está lá em cima no quarto. É uma senhora doente, disse uma mulher toda enfeitada, de vestido longo vermelho. Devia ser a dona da casa.

Crianças?

Estão em Cabo Frio, com os tios. Gonçalves, vai lá em cima com a gordinha e traz a mãe dela. Gonçalves?, disse Pereba. É você mesmo. Tu não sabe mais o teu nome, ô burro? Pereba pegou a mulher e subiu as escadas.

Inocêncio, amarra os barbados. Zequinha amarrou os caras usando cintos, fios de cortinas, fios de telefones, tudo que encontrou. Revistamos os sujeitos. Muito pouca grana. Os putos estavam cheios de cartões de crédito e talões de cheques. Os relógios eram bons, de ouro e platina. Arrancamos as jóias das mulheres. Um bocado de ouro e brilhante. Botamos tudo na saca. Pereba desceu as escadas sozinho. Cadê as mulheres?, eu disse. Engrossaram e eu tive que botar respeito. Subi. A gordinha estava na cama, as roupas rasgadas, a língua de fora. Morrinha. Pra que ficou de flozô e não deu logo? O Pereba tava atrasado. Além de fudida, mal paga. Limpei as jóias. A velha tava no corredor, caída no chão. Também tinha batido as botas. Toda penteada, aquele cabelão armado, pintado de louro, de roupa nova, rosto encarquilhado, esperando o ano novo, mas já tava mais pra lá do que pra cá. Acho que morreu de susto. Arranquei os colares, broches e anéis. Tinha um anel que não saía. Com nojo, molhei de saliva o dedo da velha, mas mesmo assim o anel não saía. Fiquei puto e dei uma dentada, arrancando o dedo dela. Enfiei tudo dentro de uma fronha. O quarto da gordinha tinha as paredes forradas de couro. A banheira era um buraco quadrado grande de mármore branco, enfiado no chão. A parede toda de espelhos. Tudo perfumado. Voltei para o quarto, empurrei a gordinha para o chão, arrumei a colcha de cetim da cama com cuidado, ela ficou lisinha, brilhando. Tirei as calças e caguei em cima da colcha. Foi um alívio, muito legal. Depois limpei o cu na colcha, botei as calças e desci. Vamos comer, eu disse, botando a fronha dentro da saca. Os homens e mulheres no chão estavam todos quietos e encagaçados, como carneirinhos. Para assustar ainda mais eu disse, o puto que se mexer eu estouro os miolos.  Então, de repente, um deles disse, calmamente, não se irritem, levem o   que quiserem, não faremos nada. Fiquei olhando para ele. Usava um lenço de seda colorida em volta do pescoço. Pode também comer e beber à vontade, ele disse. Filha da puta. As bebidas, as comidas, as jóias, o dinheiro, tudo aquilo para eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles, nós não passávamos de três moscas no açucareiro.

Como é seu nome? Maurício, ele disse.Seu Maurício, o senhor quer se levantar, por favor? Ele se levantou. Desamarrei os braços dele.

Muito obrigado, ele disse. Vê-se que o senhor é um homem educado, instruído. Os senhores podem ir embora, que não daremos queixa à polícia. Ele disse isso olhando para os outros, que estavam quietos apavorados no chão, e fazendo um gesto com as mãos abertas, como quem diz, calma minha gente, já levei este bunda suja no papo. Inocêncio, você já acabou de comer? Me traz uma perna de peru dessas ai. Em cima de uma mesa tinha comida que dava para alimentar o presídio inteiro. Comi a perna de peru. Apanhei a carabina doze e carreguei os dois canos. Seu Maurício, quer fazer o favor de chegar perto da parede? Ele se encostou na parede. Encostado não, não, uns dois metros de distância. Mais um pouquinho para cá. Muito obrigado. Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele tinha um buraco que dava para colocar um panetone. Viu, não grudou o cara na parede, porra nenhuma. Tem que ser na madeira, numa porta. Parede não dá, Zequinha disse. Os caras deitados no chão estavam de olhos fechados, nem se mexiam. Não se ouvia nada, a não ser os arrotos do Pereba. Você aí, levante-se, disse Zequinha. O sacana tinha escolhido um cara magrinho, de cabelos compridos. Por favor, o sujeito disse, bem baixinho. Fica de costas para a parede, disse Zequinha. Carreguei os dois canos da doze. Atira você, o coice dela machucou o meu ombro. Apóia bem a culatra senão ela te quebra a clavícula. Vê como esse vai grudar. Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram do chão, foi bonito, como se ele tivesse dado um salto para trás. Bateu com estrondo na porta e ficou ali grudado. Foi pouco tempo, mas o corpo do cara ficou preso pelo chumbo grosso na madeira. Eu não disse?, Zequinha esfregou o ombro dolorido. Esse canhão é foda. Não vais comer uma bacana destas?, perguntou Pereba. Não estou a fim. Tenho nojo dessas mulheres. Tô cagando pra elas. Só como mulher que eu gosto. E você... Inocêncío? Acho que vou papar aquela moreninha. A garota tentou atrapalhar, mas Zequinha deu uns murros nos cornos dela, ela sossegou e ficou quieta, de olhos abertos, olhando para o teto, enquanto era executada no sofá. Vamos embora, eu disse. Enchemos toalhas e fronhas com comidas e objetos. Muito obrigado pela cooperação de todos, eu disse. Ninguém respondeu. Saímos. Entramos no Opala e voltamos para casa. Disse para o Pereba, larga o rodante numa rua deserta de Botafogo, pega um táxi e volta. Eu e Zequinha saltamos. Este edifício está mesmo fudido, disse Zequinha, enquanto subíamos, com o material, pelas escadas imundas e arrebentadas. Fudido mas é Zona Sul, perto da praia. Tás querendo que eu vá morar em Nilópolis? Chegamos lá em cima cansados. Botei as ferramentas no pacote, as jóias e o dinheiro na saca e levei para o apartamento da preta velha. Dona Candinha, eu disse, mostrando a saca, é coisa quente. Pode deixar, meus filhos. Os homens aqui não vêm. Subimos. Coloquei as garrafas e as comidas em cima de uma toalha no chão. Zequinha quis beber e eu não deixei. Vamos esperar o Pereba. Quando o Pereba chegou, eu enchi os copos e disse, que o próximo ano seja melhor. Feliz ano novo.


Contos do Sábado na Usina: Haroldo Maranhão: O peixe de ouro:


De borracha é a cintura do peixe de ouro, uma curva infinita cavada na carne. E são deletéreas as pernas do peixe de ouro, que se locomove como se fosse o corpo acionado por molas. O andar é elástico, o andar do peixe de ouro, e balança a cabeleira cor de charuto no dorso lisíssimo, tapando a nuca. Não vejo a cara do peixe de ouro, sigo-lhe os passos, vejo-lhe as ancas, de potranca, a roupa é rubra, a carne, de ouro, a carne do peixe de ouro. De repente o peixe inclina a cabeça e percebo, não há quem não perceba, um perfil de penugens que o sol divulga, nítido. Segue o peixe, segue, todo um rio o segue, rio de bichos, somos todos bichos, mordemos com vigor o músculo das ancas, arrancamos pedaços da anca, da melhor anca, da melhor. Guardo no meu casaco o nobre fragmento da anca do peixe de ouro, e quero ao menos um fio, um fio ao menos dos cabelos, mas a cabeleira foi roubada à força, quando voava descobrindo o pescoço. Cravo meus dentes na nuca do peixe de ouro e bebo-lhe um mel, sugo aflito, como a uma fruta, meus lábios ficam encharcados, escorre o mel, caem gotas na pedra, minha camisa ensopa-se de baba e mel, um mel raro. Desoladamente constato que trepida a epiderme desgarrada de seu recheio, em mantas, fiava pele há pouco distendida em curvas, ora couro plissado, de gelhas. Peixe de ouro perde aos poucos seu revestimento muscular, sangra, ossos despontam, interligados por tendões, cartilagens, restos de carne. Com enorme rudez puxo um nervo longo e de bom calibre para encordoar determinada viola d'amore. Desloco, e com delicadeza removo uma vértebra do peixe, como quem se serve de um doce, sorvo o creme vertebral e trituro a fina peça mal calcificada. A meu lado, alguém empunha uma das tíbias como dava, e é milagre a sobrevida do peixe de ouro, que não obstante prossegue sustentado não sei por que espécie de fundamento. Poucos ossos, quase nenhum, raros tendões, nenhuma carne. Agarro para mim a fossa ilíaca; luto por ela, ela me dilacera as mãos, mas é minha, conquistei-a, será o prato real onde comerei. Sigo, seguimos, impulsionados pelo mero costume, pois a unidade se partiu em blocos, o que era peixe não é, senão partículas, pó, aura, microtalco, microtalco de ouro.

 

Contos do Sábado Na Usina: Lygia Fagundes Telles: A estrutura da bolha de sabão:


Era o que ele estudava. "A estrutura, quer dizer, a estrutura" - ele repetia e abria a mão branquíssima ao esboçar o gesto redondo. Eu ficava olhando seu gesto impreciso porque uma bolha de sabão é mesmo imprecisa, nem sólida nem líquida, nem realidade nem sonho. Película e oco. "A estrutura da bolha de sabão, compreende?" Não o compreendia. Não tinha importância. Importante era o quintal da minha meninice com seus verdes canudos de mamoeiro, quando cortava os mais tenros, que sopravam as bolas maiores, mais perfeitas. Uma de cada vez. Amor calculado, porque na afobação o sopro desencadeava o processo e um delírio de cachos escorriam pelo canudo e vinham rebentar na minha boca, a espuma descendo pelo queixo. Molhando o peito. Então eu jogava longe canudo e caneca. Para recomeçar no dia seguinte, sim, as bolhas de sabão. Mas e a estrutura? "A estrutura" - ele insistia. E seu gesto delgado de envolvimento e fuga parecia tocar mas guardava distância, cuidado, cuidadinho, ô! a paciência. A paixão. No escuro eu sentia essa paixão contornando sutilíssima meu corpo. Estou me espiritualizando, eu disse e ele riu fazendo fremir os dedos-asas, a mão distendida imitando libélula na superfície da água mas sem se comprometer com o fundo, divagações à flor da pele, ô! amor de ritual sem sangue. Sem grito. Amor de transparências e membranas, condenado à ruptura. Ainda fechei a janela para retê-la, mas com sua superfície que refletia tudo ela avançou cega contra o vidro. Milhares de olhos e não enxergava. Deixou um círculo de espuma. Foi simplesmente isso, pensei quando ele tomou a mulher pelo braço e perguntou: "Vocês já se conheciam?" Sabia muito bem que nunca tínhamos nos visto mas gostava dessas frases acolchoando situações, pessoas. Estávamos num bar e seus olhos de egípcia se retraíam apertados. A fumaça, pensei. Aumentavam e diminuíam até que se reduziram a dois riscos de lápis-lazúli e assim ficaram. A boca polpuda também se apertou, mesquinha. Tem boca à-toa, pensei. Artificiosamente sensual, à-toa. Mas como é que um homem como ele, um físico que estudava a estrutura das bolhas, podia amar uma mulher assim? Mistérios, eu disse e ele sorriu, nos divertíamos em dizer fragmentos de idéias, peças soltas de um jogo que jogávamos meio ao acaso, sem encaixe. Convidaram-me e sentei, os joelhos de ambos encostados nos meus, a mesa pequena enfeixando copos e hálitos. Me refugiei nos cubos de gelo amontoados no fundo do copo, ele podia estudar a estrutura do gelo, não era mais fácil? Mas ela queria fazer perguntas. Uma antiga amizade? Uma antiga amizade. Ah. Fomos colegas? Não, nos conhecemos numa praia, onde? Por aí, numa praia. Ah. Aos poucos o ciúme foi tomando forma transbordando espesso como um licor azul-verde, do tom da pintura dos seus olhos. Escorreu pelas nossas roupas, empapou a toalha da mesa, pingou gota a gota. Usava um perfume adocicado. Veio a dor de cabeça: "Estou com dor de cabeça", repetiu não sei quantas vezes. Uma dor fulgurante que começava na nuca e se irradiava até a testa, na altura das sobrancelhas. Empurrou o copo de uísque. "Fulgurante." Empurrou para trás a cadeira e antes que empurrasse a mesa ele pediu a conta. Noutra ocasião a gente poderia se ver, de acordo? Sim, noutra ocasião, é lógico. Na rua, ele pensou em me beijar de leve, como sempre, mas ficou desamparado e eu o tranqüilizei, está bem, querido, está tudo bem, já entendi. Tomo um táxi, depressa, vá. Quando me voltei, dobravam a esquina. Que palavras estariam dizendo enquanto dobravam a esquina? Fingi me interessar pela valise de plástico de xadrez vermelho, estava diante de uma vitrina de valises. Me vi pálida no vidro. Mas como era possível. Choro em casa, resolvi. Em casa telefonei a um amigo, fomos jantar e ele concluiu que o meu cientista estava felicíssimo. Felicíssimo, repeti quando no dia seguinte cedo ele telefonou para explicar. Cortei a explicação com o felicíssimo e do outro lado da linha senti-o rir como uma bolha de sabão seria capaz de rir. A única coisa inquietante era aquele ciúme. Mudei logo de assunto com o licoroso pressentimento de que ela ouvia na extensão, oh, o teatro. A poesia. Então ela desligou. O segundo encontro foi numa exposição de pintura. No começo aquela cordialidade. A boca pródiga. Ele me puxou para ver um quadro de que tinha gostado muito. Não ficamos distantes dela nem cinco minutos. Quando voltamos, os olhos já estavam reduzidos aos dois riscos. Passou a mão na nuca. Furtivamente acariciou a testa. Despedi-me antes da dor fulgurante. Vai virar sinusite, pensei. A sinusite do ciúme, bom nome para um quadro ou ensaio. "Ele está doente, sabia? Aquele cara que estuda bolhas, não é seu amigo?" Em redor, a massa fervilhante de gente, música. Calor. Quem é que está doente? eu perguntei. Sabia perfeitamente que se tratava dele mas precisei perguntar de novo, é preciso perguntar uma, duas vezes para ouvir a mesma resposta, que aquele cara, aquele que estuda essa frescura da bolha, não era meu amigo? Pois estava muito doente, quem contou foi a própria mulher, bonita, sem dúvida, mas um tanto grosseira, fora casada com o primo de um amigo, um industrial meio fascista que veio para cá com passaporte falso, até a Interpol já estava avisada, durante a guerra se associou com um tipo que se dizia conde italiano mas não passava de um contrabandista. Estendi a mão e agarrei seu braço porque a ramificação da conversa se alastrava pelas veredas, mal podia vislumbrar o desdobramento da raiz varando por entre pernas, sapatos, croquetes pisados, palitos, fugia pela escada na descida vertiginosa até a porta da rua, espera! eu disse. Espera. Mas que é que ele tem? Esse meu amigo. A bandeja de uísque oscilou perigosamente acima do nível das nossas cabeças. Os copos tilintaram na inclinação para a direita, para a esquerda, deslizando num só bloco na dança de um convés na tempestade. O que tinha? O homem bebeu metade do copo antes de responder: não sabia os detalhes e nem se interessara em saber, afinal, a única coisa gozada era um cara estudar a estrutura da bolha, mas que idéia! Tirei-lhe o copo e bebi devagar o resto do uísque com o cubo de gelo colado ao meu lábio, queimando. Não ele, meu Deus. Não ele, eu repeti. Embora grave, custosamente minha voz varou todas as camadas do meu peito até tocar no fundo onde as pontas todas acabam por dar, que nome tinha? Esse fundo, perguntei e fiquei sorrindo para o homem e seu espanto. Expliquei-lhe que era o jogo que eu costumava jogar com ele, com esse meu amigo, o físico. O informante riu. "Juro que nunca pensei que fosse encontrar no mundo um cara que estudasse um troço desses", resmungou ele voltando-se rápido para apanhar mais dois copos na bandeja, ô! tão longe ia a bandeja e tudo o mais, fazia quanto tempo? "Me diga uma coisa, vocês não viveram juntos?" - lembrou-se o homem de perguntar. Peguei no ar o copo borrifando na tormenta. Estava nua na praia. Mais ou menos, respondi. Mais ou menos eu disse ao motorista que perguntou se eu sabia onde ficava essa rua. Tinha pensado em pedir notícias por telefone mas a extensão me travou. E agora ela abria a porta, bem-humorada. Contente de me ver? A mim?! Elogiou minha bolsa. Meu penteado despenteado. Nenhum sinal da sinusite. Mas daqui a pouco vai começar. Fulgurante. "Foi mesmo um grande susto" - ela disse. "Mas passou, ele está ótimo ou quase - acrescentou levantando a voz. Do quarto ele poderia nos ouvir se quisesse. Não perguntei nada. A casa. Aparentemente, não mudara, mas reparando melhor, tinha menos livros. Mais cheiros. Flores de perfume ativo no vaso, óleos perfumados nos móveis. E seu próprio perfume. Objetos frívolos - os múltiplos - substituindo em profusão os únicos, aqueles que ficavam obscuros nas antigas prateleiras da estante. Examinei-a enquanto me mostrava um tapete que tecera nos dias em que ele ficou no hospital. E a fulgurante? Os olhos continuavam bem abertos, a boca descontraída. Ainda não. "Você poderia ter se levantado, hein, meu amor? Mas anda muito mimado", disse ela quando entramos no quarto. E começou a contar muito animada a história de um ladrão que entrara pelo porão da casa ao lado, "a casa da mãezinha", acrescentou afagando os pés dele debaixo da manta de lã. Acordaram no meio da noite com o ladrão aos berros pedindo socorro com a mão na ratoeira, tinha ratos no porão e na véspera a mãezinha armara uma enorme ratoeira para pegar o rei de todos, lembra, amor? O amor estava de chambre verde, recostado na cama cheia de almofadas. As mãos branquíssimas descansando entrelaçadas na altura do peito. Ao lado, um livro aberto e cujo título deixei para ler depois e não fiquei sabendo. Ele mostrou interesse pelo caso do ladrão mas estava distante do ladrão, de mim e dela. De quando em quando me olhava interrogativo, sugerindo lembranças mas eu sabia que era por delicadeza, sempre foi delicadíssimo. Atento e desligado. Onde? Onde estaria com seu chambre largo demais? Era devido àquelas dobras todas que fiquei com a impressão de que emagrecera? Duas vezes empalideceu, ficou quase lívido. Comecei a sentir falta de alguma coisa, era do cigarro? Acendi um ainda a sensação aflitiva de que alguma coisa faltava, mas o que estava errado ali? Na hora da pílula lilás ela foi buscar o copo d'água e então ele me olhou lá do seu mundo de estruturas. Bolhas. Por um momento relaxei completamente: não sei onde está, mas sei que não está, eu disse e ele perguntou, "Jogar?" Rimos um para o outro. "Engole, amor, engole" - pediu ela segurando-lhe a cabeça. E voltou-se para mim, "preciso ir aqui na casa da mamãezinha e minha empregada está fora, você não se importa em ficar mais um pouco? Não demoro muito, a casa é ao lado", acrescentou. Ofereceu-me uísque, não queria mesmo? Se quisesse, estava tudo na copa, uísque, gelo, ficasse à vontade. O telefone tocando será que eu podia?... Saiu e fechou a porta. Fechou-nos. Então descobri o que estava faltando, ô! Deus. Agora eu sabia que ele ia morrer.