sexta-feira, 30 de julho de 2021

Contos do Sábado da Usina: Alcântara Machado: MISS CORISCO:




Embora alguns nacionalistas teimassem em chamá-la de senhorita o título oficial era Miss Corisco. Dez casas no bairro tomavam conta da igreja pobre que primeiro nem caixa de esmolas tinha. Depois compraram unia caixa. Mas nunca viu um tostão porque o dinheiro que havia se gastou todo com ela. Miss Corisco foi eleita pelo sistema de exclusão. A filha do Bentinho era sardenta. A irmã do João tinha um defeito nas cadeiras. Logo de saída a Conceição se impôs: foi aclamada Miss Corisco.
Aí deu uma entrevista para o O Cachoeirense. Perguntaram: Qual a maior emoção de sua vida? Respondeu: Três: minha primeira comunhão. uma fita do Rodolfo Valentino que eu vi na capital do meu querido Estado e... não conto porque é segredo. Respeitamos o segredo (escreveu o jornal) pois naturalmente encobria urna linda história de amor. Depois perguntaram: Qual o seu maior desejo? Respondeu: Sempre ver o Brasil na vanguarda de todos os empreendimentos. Resposta admirável (comentou O Cachoeirense) que revela em Miss Corisco uma patriota digna de emparelhar com Clara Camarão, Anita Garibaldi, Dona Margarida de Barros e outras heroínas da nacionalidade. Finalmente perguntaram: O que pensa do amor? Respondeu: O amor, minha fraca opinião, é uma cousa incompreensível mas que governa o mundo. Palavras (acentuou o órgão) que encerram uma profunda filosofia muito de admirar atentos o sexo e a juventude da encantadora Miss.
Miss Corisco foi retratada em várias posições: com um cachorrinho no colo, apanhando rosas no jardim, as costas das mãos sustentando o queixo. Deu também um autógrafo. Papel cor-de-rosa de bordas douradas, risquinhos de lápis para sair bem direitinho e as letras se equilibrando neles. O cunhado ditou. Os representantes do O Cachoeirense se retiraram. Miss Corisco foi varrer a cozinha como era de sua obrigação todos os dias inclusive domingos e feriados e na
manhã seguinte tomou a jardineira em companhia do irmão casado para comparecer na cidade perante o júri estadual.
O Cine-Teatro Esmeralda estourava de tão cheio. No palco atrás do júri a Corporação Musical C. Gomes-G. Puccini tocava dobrados. De minuto em minuto a assistência entusiasmada erguia vivas ao Brasil e à raça. As candidatas desfilaram vestidas com apurado gosto. Os juizes eram cinco: um brasileiro, dois italianos, um filho de italiano e um português. Predominava neles o espírito nacionalista. Queriam escolher um tipo bem brasileiro. O Doutor Noé Cavalheiro desenhou em dois traços incisivos o tipo-padrão: boca grande e olhos ternos. Miss Corisco foi eleita Miss Paraíba do Sul por quatro votos.
Ouviu então o primeiro discurso que foi proferido com emoção que lhe embargava a voz e lenço de seda na mão, pelo Doutor Noé Cavalheiro, segundo promotor público. Principiou este fazendo o elogio da beleza notadamente da beleza feminina. Falou do culto que na antiga Grécia se votava à formosura física. Acentuou depois a desvantagem de uma mens sana desde que não seja num corpore sano. Disse que a beleza da mulher se tem provocado guerras e catástrofes tem também mais de uma vez contribuído para o progresso geral dos povos, citando vários exemplos históricos. Prosseguiu afirmando que o Brasil deveu muito do amor que lhe dedicou Dom Pedro I à influência benéfica da Marquesa de Santos. Referiu-se à competência do júri, à sua isenção de ânimo e confessou que a única nota dissonante tinha sido ele orador, o que provocou os protestos unânimes da assistência. Perorando entoou um hino inflamado à peregrina formosura de Miss Corisco. Disse então: Unindo à beleza clássica da Vênus de Milo a sedução estonteante da lendária rainha de Nínive, Miss Paraíba do Sul, maior do que Beatriz e mais feliz do que Natércia, conquistou o coração de toda uma região! A Pátria não é somente, como soem pensar certos espíritos imbuídos de materialismo, a lei que garante a propriedade privada! A Pátria é mais alguma cousa de sublime e divino! A Pátria é a estrela que nos contempla do céu e a mulher que nos santifica o lar! A Pátria sois vós, Miss Paraiba do Sul, são os vossos olhos onde se espelham todas as forças viris da nacionalidade! Para nós, patriotas conscientes e eternos enamorados da Beleza, Miss Paraiba do Sul é neste momento o Brasil! (Aplausos prolongados. O orador é vivamente cumprimentado. Vozes sinceras gritam: Bis! Bis!)
Um a um os membros do júri beijaram as mãozitas róseas e espirituais de Miss Paraíba do Sul enquanto a Corporação Musical C. Gomes-G. Puccini, sob a regência do Maestro Pietro Zaccagna, atacava vigorosamente a imortal protofonia do Guarani.
Muito vermelha e batendo com ar ingênuo as pálpebras aveludadas Miss Paraíba do Sul concedeu então as primeiras entrevistas. Externou sua opinião sobre a futura sucessão presidencial, a cultura da laranja, a questão religiosa no México, Mussolini, Padre Cícero, a estabilização cambial, Victor Hugo, Coelho Neto, os perfumes nacionais, a sentença que absolveu Febrônio, o diabo. No Grande Hotel Mundial era uma romaria de manhã à noite. Muito afável Miss Paraíba do Sul recebia toda a gente com um encantador sorriso brincando nos lábios purpurinos. O camareiro do apartamento chegou a declarar quando entrevistado por um jornalista: É de uma amabilidade extraordinária. Recebe todos. Quem bate no quarto entra. Mas o irmão pelo sim pelo não caiu de bofetadas em cima do camareiro. O caso foi parar na policia onde o prestígio de Miss Paraíba do Sul conseguiu arranjar tudo do melhor modo possível.
Puseram à sua disposição um automóvel fechado, uma máquina de escrever portátil e um binóculo de corridas. Todos os dias choviam os presentes. O futuro arquiteto Barros Jandaia pôs gratuitamente seus serviços profissionais às ordens de Miss Paraíba do Sul. O cabeleireiro não lhe quis cobrar nada e ainda por cima lhe deu vinte vales dando direito a outras tantas lavagens
com Pixavon. A Livraria Cosmopolita ofereceu um rico exemplar do Paraíso Perdido. E assim por diante.
Miss Paraíba do Sul foi recebida em audiência especial pelo Presidente do Estado, respondeu com muita graça às perguntas de S. Exa. e distribuiu cigarros Petit Londrinos (ovalados) aos presos da cadeia pública. Visitou também a Câmara Municipal. Aí foi saudada por um vereador que a comparou a mimosa violeta dos nossos vergéis que não só atrai pela beleza como prende pelo seu perfume e conquista pela sua modéstia exemplar.
Foram quinze dias bem cheios. Repletos. Não houve um minuto de folga. Miss Paraíba do Sul embora delicadamente deixou transparecer que a glória era um fardo pesado demais para seus ombros frágeis. E seguiu de vagão especial para a capital do país Todas as cidades do percurso enviavam à estação o juiz de direito, o promotor, o delegado, o prefeito, o coletor federal e o sacristão da matriz que se incumbia dos foguetes. O trem apitava, as palmas estalavam com o vívório, o trem seguia. Miss Paraíba do Sul chegou ao Rio com uma dor de cabeça que não agüentava mesmo.
Começou a torcida brava. Para disfarçar, festas e mais festas. E sonetos na seção livre dos jornais. E bilhetes de apaixonados anônimos. E baile na torpedeira Paraíba do Sul. E retratos de todo o jeito nas revistas. E chás com as rivais. E tesouradas gostosas nas rivais. E entrevistas, entrevistas, entrevistas. Um repórter mais audacioso penetrou no quarto de Miss Paraíba do Sul e tirou uma fotografia muito original. Com efeito. No dia seguinte o povo carioca abrindo o jornal deu de cara com um pé de sapato enquadrado pela seguinte nota: - Enquanto Miss Paraíba do Sul jantava conseguimos penetrar no seu aposento e cometemos a deliciosa maldade de fotografar um perfumado sapatinho que se encontrava sobre o toucador. Levamos a nossa indiscrição ao ponto de verificarmos o número; era trinta e três e meio! Para encanto dos nossos leitores publicamos um clichê do sapatinho da nova Maria Borralheira da Graça e da Beleza.
Cousas assim comovem. Miss Paraíba do Sul deu ao repórter como lembrança o famoso sapatinho. Mesmo porque (observou muito bem o irmão casado) já estava imprestável com a sola até fura-não-fura. Enorme multidão teve a felicidade de vê-lo exposto na redação do jornal. Não houve um parecer discordante: era de fato um amor de sapatinho.
Enfim vieram as provas do concurso. Miss Paraíba do Sul passeou de roupa de banho para os velhos do júri apreciarem bem as formas dela e submeteu-se ao exame antropométrico no Museu Nacional. Sua ficha foi discutida nas sociedades científicas, empolgou a imprensa, provocou desinteligências entre pessoas que se davam desde os bancos escolares. Tudo inútil porém. Miss Paraíba do Sul não foi considerada a mais digna de representar o Brasil no torneio de Galveston.
Chorou é verdade. Não se pode negar. Chorou. Mas isso no hotel. Em público não perdeu a linha. Era toda sorriso diante de Miss Brasil. Entrevistada declarou que a escolha do júri tinha sido justa. Admiradores seus protestaram com energia. Um grupo de estudantes deitou manifesto a seu favor. Ela sorria agradecida e dizia cousas muito amáveis a respeito de Miss Brasil. Foi consagrada a Miss Pindorama, a Miss Terra de Santa Cruz, a Miss Simpatia VerdeAmarela. Todos reconheceram que a vitória moral lhe pertencia. Era um consolo.
De volta à capital do seu Estado no entanto ela resolveu mudar de atitude. Criticou duramente a decisão do júri. Miss Brasil? Uma beleza sem dúvida. Mas beleza impassível. E que vale a formosura sem a graça? Depois sem gosto algum. Cada vestido que só vendo. Todos de carregação. E era visível nos seus traços a ascendência estrangeira. O Brasil seria representado em Galveston. A raça brasileira não. E por aí foi. Nem os organizadores do concurso escaparam. Amáveis sim. Porém parciais. Um deles, careca barbado, vivia amolando as candidatas com galanteios muito bobos. Por isso mesmo levou um dia a sua. Uma das concorrentes lhe perguntou: Por que não corta um pedaço da barba e gruda na cabeça para fingir de cabelo? Disse isso sim. Como não. Na cara. Como não. E perto de gente. Ora se. Ele ficou enfiado.
Corisco recebeu de luto na alma a sua Venus. O pai de Miss Paraíba do Sul sacudiu a cabeça murmurando: Que injustiça! Que injustiça! Inutilmente ela e o irmão casado falavam na vitória moral, na simpatia do povo, nos protestos da imprensa. Ela contava: Uma vez quando saía do hotel um popular me disse que eu era a eleita do coração dos brasileiros! Então, papai, que tal?
Mas o velho não se convencia. É. Muito bonito. Realmente. Mas os oitenta e quatro contos foi outra que abiscoitou. Aí é que está. Os oitenta e quatro contos foi outra que abiscoitou. Injustiça. Injustiça. O Brasil vai de mal a pior. Mas depois era preciso jurar que não, que o Brasil ia muito bem, que a vitória moral era mais que suficiente, que dinheiro não faz a felicidade de ninguém porque Miss Corisco, Miss Paraíba do Sul, Miss Pindorama, Miss Terra de Santa Cruz, Miss Simpatia Verde-Amarela começava a chorar.

Contos do Sábado na Usina: Sonia Coutinho: Toda Lana Turner tem seu Johnny Stompanato:



O material desta história: basicamente, duas mulheres. Capazes, no entanto, de se multiplicarem infinitamente. São Lana Turner e uma outra, que se apresenta sem nome, sem rosto e sem biografia, a não ser dados fragmentários, vagas insinuações. Alguém que talvez nem seja uma mulher, mas sim um espelho, embora fosco. Ou um ventríloquo, que fala apenas através da imagem da atriz, o seu boneco. Não se enganem, porém: o único personagem verdadeiro, o ponto de referência para se poder entrançar os fios díspares desta trama, formando um tapete, a tela em branco que serve para o desdobramento ilimitado do sonho, portanto da realidade, este personagem sou eu. Em outras palavras, Lana Turner. (Lana, uma das primeiras grandes estrelas, quando surgia o star-system de Hollywood: sem nenhuma tradição ou modelo a serem seguidos, uma figura de ruptura na sociedade americana da época, com um papel ou um poder "de homem". Lana para além da própria Lana, o símbolo que ela foi, o mito que se criou em torno dela: deusa ou demônio, a vamp e seu it. O que de Lana foi apresentado para o consumo de milhares de pessoas desejosas de entrever - fosse para idolatrar, destruir ou devorar - os bastidores de uma "vida glamourosa"; em grande estilo, a "felicidade" e a "dor".) Pois Lana Turner, como Madame Bovary para Flaubert, Lana Turner c'est moi. Foi o que também pensou a segunda mulher, a outra, o espelho. (Chama-se Melissa? Ou será Teresa? Quem sabe Joaquina? Dorotéia?) Folheava uma revista, na varandinha de seu apartamento, quando encontrou, com um repentino susto de reconhecimento, com uma estranha e cúmplice compreensão (ela, independente, mitificada, distorcida), o retrato não muito antigo de Lana, numa reportagem nostálgica sobre grandes estrelas do passado. Sim, aqui estão a pele muito bronzeada pelo sol das piscinas de Beverly Hills - ou das praias da Zona Sul - as unhas vermelhas e compridas, o cabelo platinado e, no rosto, vestígios de beleza e as marcas do tempo. Mas, sobretudo, o sorriso de Lana, o seu sorriso de atriz, quase um esgar. Um sorriso em que se misturam ironia e dor e desafio e força e patética impotência, o sorriso heróico de uma sobrevivente. De criatura disposta, talvez por não haver outro jeito, a levar o espetáculo até o fim: the show must go on. (Do que é feita uma vida humana senão de pequenos ritos, cerimônias e celebrações?) Numa nevoenta tarde de sábado, a observar esgarçadas nuvens que se despejam sobre as encostas arborizadas do Corcovado, defronte, Melissa revê -   eu revelo -, numa vertigem de cenas históricas, o parentesco e as diferenças entre ela e Lana Turner; a partir da colonização americana por puritanos anglo-saxões e da vinda para o Brasil de portugueses degredados, com sangue mouro. Como ponte entre dois hemisférios, ligando misteriosamente Hollywood, a Califórnia do antigo boom de ouro, ao ouro mineiro que os inconfidentes reivindicaram, sorri enigmático na revista (e na vida) o rosto de Lana Turner (o de Melissa, o meu). A reportagem lembra a trajetória gloriosa e sofrida da atriz, seus vários maridos, uma carreira movimentada (psicóloga? publicitária? jornalista? atriz mesmo?) e muitas viagens, incluindo umas férias no Havaí, em companhia de uma amiga. Mais precisamente, em Honolulu, na praia de Waikiki, onde se descobriu grávida do segundo marido, o trompetistaArtie Shaw, já depois de estarem separados. "O que resultou num aborto e em novas infelicidades", acrescenta a matéria, baseada no livro autobiográfico Lana, the lady, the legend, the future. O jornalista explica que, já no primeiro casamento, com o advogado Greg Bautzer, ela não sentiu nenhum prazer, ao "perder a virgindade". Ele cita palavras de Lana: "Eu não tinha idéia de como devia agir. O ato em si doeu como diabo e devo confessar que não senti nenhum tipo de prazer. Mas gostava de ter Greg perto de mim e 'pertencer' a ele, afinal." Foi no Hotel Toriba, em Campos doJordão, lembra Melissa. E retifica a reportagem: não chegou sequer a perder a virgindade naquela lua-de-mel, os dois tão desajeitados. Dor sentiu, confirma: teria um estreitamento vaginal? um hímen demasiado resistente? Mas não se falava dessas coisas, naquele tempo, e então tudo foi se ajeitando, ou se destruindo, em silêncio. Lana, garante o repórter, só atingiu a maturidade sexual por volta dos 40 anos, ao cabo de um aprendizado com um total de cerca de 18 homens -   o que, ele acrescenta, já parece um número modesto, para os padrões atuais. A conclusão foi tirada, explica, a partir de indicações implícitas, porque o assunto não era abordado diretamente. A matéria adianta que as dificuldades emocionais de Lana resultaram, provavelmente, de uma sucessão de traumas infantis. "Quando tinha dez anos, seu pai foi assassinado num beco escuro." Segue-se a declaração da atriz: "Quando o vi no caixão, fiquei horrorizada." Trauma, caixão, pai, vai lendo Melissa, com um calafrio. Mais que o encadeamento dos fatos expostos, são as palavras da reportagem que estabelecem a estranha conexão entre ela e Lana Turner, como um código a ser decifrado. A impressão se acentua no parágrafo seguinte, uma transcrição da "ficha psicológica" de Lana Turner mantida pelo estúdio: "Julia Jean Mildred Frances Turner, nascida em 8 de fevereiro de 1920. Confusa, desprotegida. Insegura desde a infância, quando atravessou períodos de opressão física, mental e moral, pelos quais procurou compensação na vida adulta. Sua afetividade, uma sucessão de tentativas frustradas de estabilização. A filha, Cheryl, carregou a mãe como uma carga emocional negativa. Confusa. Desprotegida. E, embora o ano fosse outro, a data de nascimento era a mesma. Como se existisse, embaixo da história de Lana Turner, uma outra, paralela, embutida - a sua, a minha. Estará Melissa/estarei eu enlouquecendo? Teremos escolhido, em nossa paranóia, em vez do habitual Napoleão Bonaparte, Lana Turner como alter-ego? Melissa (Erica?) corre ao banheiro, perscruta no espelho, com renovada perplexidade, o próprio rosto. Ela, Lana Turner. Mas não propriamente uma atriz, mais para trapezista ou bailarina da corda bamba. Sorri para ela, no espelho, um rosto sem nenhuma inocência, mas ao qual o tempo conferiu um toque de pureza cínica. Até onde posso ir, até onde irei, questiona-se Melissa, estremecendo. Porque os anos tinham passado, como um vento frio. E, entre maridos, viagens, uma carreira movimentada, tragédias - ah, tantas coisas se haviam tornado, de repente, definitivas. Amores perdidos, aventuras não vividas e, o que é pior, não mais desejadas. De volta à cadeira de lona da varanda, bebericando um uísque, Melissa (Dora?) lê na reportagem, logo adiante, um confortador comentário de Lana: "Não tive uma vida fácil mas, sem dúvida, minha vida está longe de ter sido chata. Sinto um certo orgulho de ter conseguido chegar até aqui." O que não a impediu, certa vez, como conta o repórter, de tentar o suicídio, cortando os pulsos (Melissa vira as palmas das mãos para cima, observa as cicatrizes ainda rosadas). Ao sair do hospital, recuperada, "ela parecia uma vestal, toda vestida de branco, sorrindo, os inefáveis óculos escuros ajudando a lhe encobrir o rosto". Acrescenta a matéria: "Via-se, imediatamente, que era uma estrela. Tinha o que chamamos de star-quality." Logo depois, vem a "versão verdadeira" da descoberta de Lana Turner. Ao contrário do que as revistas da época publicaram, afirma o jornalista, o fato não aconteceu no Schwab's, a lanchonete, em Hollywood Boulevard, freqüentada pelas moças que queriam arranjar papéis em filmes. A própria Lana explica: "Foi num lugar chamado Top Hat Café - acho que hoje  um posto de gasolina. E eu não estava tomando refresco coisa nenhuma. Meu dinheiro só dava para uma Coca-Cola." Mas ela confirma que, como foi divulgado, o sujeito ao lado fez a clássica pergunta: "Você gostaria de trabalhar no cinema?" E ela deu a resposta clássica: "Não sei, preciso perguntar a mamãe. A etapa seguinte foi a escolha de um nome artístico. Havia no estúdio, conta a matéria, um catálogo já preparado, e alguém começou a dizer todos em voz alta. De repente, a própria atriz sugeriu Lana: "Não sei de onde tirei. Mas reparem que é Lah-nah, não quero ouvir meu nome pronunciado de outra maneira." Em 1937, ela faria Esquecer, nunca e, no ano seguinte, ingressava na Metro, onde se tornou conhecida como "a garota do sueter". Uma série de sucessos, rosas e champanha em turbilhão. Mas o destaque da reportagem é para o trágico episódio com Johnny Stompanato, já na véspera de Lana perder a efêmera frescura do tempo em que as mulheres são comparadas com flores (quando ganharia, como prêmio, a dura máscara da fotografia, a da guerreira sobrevivente, marcas no rosto como gloriosas cicatrizes de combate). Certo dia, "um sujeito dizendo chamar-se John Steele telefonou para o estúdio fazendo a corte a Miss Turner". Ela o achou encantador, diz o jornalista, e acabou se envolvendo. "Quando descobri sua verdadeira identidade", comentaria Lana, depois ja era muito tarde". Johnny Stompanato (ou Renato Medeiros) era branco como um pão, limpo como um pão, com aquela pureza que só conseguiria ter um jovem mafioso procurado pela polícia. (Na cama, como um cavalinho branco, o corpo perfeito de um rapaz de 28 ou 29 anos, dentes brancos, olhos castanhos matizados de verde, mas quase sempre escuros, algo taciturnos. Deliciosamente sério, com um senso permanente de dever a cumprir. Não fala, a não ser uma ou outra palavra - é indecifrável. Mas talvez seu permanente mistério seja, simplesmente, o da própria vida, e seu absurdo.) Um homem inteiro e lindo como um cavalinho branco correndo na praia, ao entardecer. Intacto e cheio de pureza, como a juventude é pura, ele nu, aquele corpo inteiro e forte e grande e puro, ele assim em cima dela, grande e inteiro, ele entrando nela, ele pedindo: Melissa, Lana, diga alguma coisa para mim, enquanto ela só gemia e gritava, gemia e gritava, agora falando: amor, amor, amor. E logo está toda inundada do líquido dele, com um cheiro vagamente vegetal de capim molhado ou palmito. Isso vai me bastar para sempre, não vou precisar de mais nada, nunca, pensou, quando ele saiu, batendo aporta da frente com um ruído que ela escutou da cama. Era uma manhã nevoenta através das portas de vidro do seu apartamento, que davam para varandinhas, lá fora, e nuvens esgarçadas se despejavam sobre o maciço de árvores nas encostas do Corcovado, defronte. Diria, depois, quando ele telefonou: saí dançando aquela manhã, querido. Como se tivesse, afinal, alcançado a eternidade, precisava morrer de repente num momento assim. A matéria garante que, para Lana, começou um "terrível drama psicológico", enquanto "tentava livrar-se do gangster" ao passo que ele, "utilizando todos os artifícios", recusava-se a sair de cena. Quando ela foi para a Inglaterra, conta o repórter, a fim de filmar Another time, anotherplace (Vítima de uma paixão) pensou que estava livre de Johnny, pelo menos por alguns meses. Mas ele conseguiu enganar as autoridades americanas e, de repente, apareceu em Londres. Lana procurou a Scotland Yard e Stompanato foi deportado. Concluídas as filmagens, ela decidiu tirar umas férias em Acapulco, sem avisar a ninguém. "Naquela época", diz Lana, "o trajeto mais direto entre Londres e Acapulco era via Copenhague. Cheguei de madrugada à Dinamarca. Alguns passageiros desceram do avião, outros subiram. Um jovem me entregou uma rosa amarela. Peguei a flor e, de repente, vi um rosto a meu lado: era John. Jamais descobri como ele conseguiu chegar ali, sem que eu o visse, e como conseguiu uma passagem no mesmo avião que eu, no assento ao lado. Mas ele estava ali." As brigas entre os dois eram terríveis, lembra o repórter. Melissa tentava evitar que Patrícia, a filha de 14 anos, escutasse - mas nem sempre conseguia. Um dia, a porta do quarto estava aberta e a menina pensou que ele fosse cumprir a ameaça constante - a de navalhar o rosto de sua mãe. Correu à cozinha, pegou uma grande faca e a enfiou no corpo do rapaz. As últimas palavras dele foram: "O que você fez?" E a próxima etapa seria a luta nos tribunais, quando Melissa fez a pergunta desesperada: "Não poderei tomar a mim a responsabilidade por toda essa tragédia?" A imprensa, no entanto, publicou outras versões para o crime. Uma delas era a de que Cheryl estaria apaixonada por Johnny e os dois chegaram a fazer amor; ela o matou quando descobriu que ele voltara para sua mãe. Mas Lana, tempos depois, prestaria uma última homenagem a Stompanato: "Ele me cortejou como ninguém", declarou. (Pois a um homem a quem uma mulher permite que lhe dê o maior prazer, ela perdoa tudo.) Depois que Cheryl foi absolvida, Lana passou a contar com a companhia de velhos amigos, aqueles para quem ela representava um testemunho vivo de grandes momentos da masculinidade de cada um. Foi quando pensou que, numa outra etapa, talvez não tão distante assim, precisaria da bondade das pessoas, qualidade que ela própria, provavelmente, jamais tivera assim tão disponível para oferecer a ninguém. Começou a se esforçar para ser mais simpática. Agora, seus maus humores já não seriam mais compensados pela beleza fulgurante, a paixão, a juventude, enfim. Coisas assim muito intensas que a passagem do tempo ia fatalmente apagando, tudo se abrandava em tons pastéis, esfumados, como a parte superior (as nuvens) de uma estampa japonesa. Acentuou, então, como um disfarce, uma frivolidade teatral que, se bem reparada, era "profunda". Talvez a coisa mais profunda que lhe acontecera na vida, o seu sorriso-esgar. O símbolo, quem sabe, dessa conquista que ninguém almeja, a sabedoria da meia-idade, mas que pode tornar-se, um dia, aquilo que nos resta e nos mantém vivos. Continuava, contudo, a telefonar com freqüência para um conhecido ou outro, no meio da noite, à espera de uma migalha qualquer de ternura; ou, simplesmente, para tentar expressar alguma coisa aparentemente inexplicável porque se reduzia, no último momento, a um punhado de pó, frases banais em que primava a insistência no eu, eu, eu. Era parco, pensando bem, o resultado daquele último esforço para continuar agradando os homens, um imenso e praticamente inútil investimento de habilidade e emoção. A qualquer momento, concluiu, desistirá por completo, vai ficar sozinha em casa vendo antigos filmes em seu videocassete e cozinhando para si mesma. Ou se perderá em longas e nostálgicas meditações, na cadeira de lona da varandinha de seu apartamento/de sua mansão. Sim, conheço o agridoce sabor de solidão de Lana Turner, sua crespa mordida num sábado à tarde como este - quando, afastada dos estúdios, definitivamente divorciada, ela bebericava seu uísque a observar as nuvens esgarçadas que se despejavam sobre o maciço de árvores nas encostas de Beverly Hills, defronte. (Mais que uma história, menos que uma história. Um clima. Como uma imagem apenas entrevista, anos atrás, e, de repente, lembrada. O repentino claro-escuro que se formou, certo fim de tarde, num rosto de mulher, deixando-o - apenas por um segundo, todo crestado de dourada poeira.) Lana ou Melissa (Sílvia? Selma? Ingrid? Laura?), uma mulher que eu queria contar em várias versões, como nas Mil e Uma Noites. Inumerável, protéica, com alguma coisa de hidra - da qual, cortada uma das cabeças, outras renascessem no mesmo lugar. E cuja realidade, sigilosa, secreta, com um sentido oculto, estivesse permanentemente sujeita a novas interpretações, enigma que só se pode decifrar parcialmente, a partir de algumas palavras significativas como símbolos ou de ilações de episódios e situações deliberadamente destacados, no texto, com a mesma técnica com que, numa matéria jornalística, o redator faz a escolha, jamais inocente, do que vai para o lead ou para o pé. Lana para além da própria Lana, inesgotável; Lana, por assim dizer, o nosso tempo. Ou uma metáfora intemporal de amor e perdição - Safo, George Sand, Electra. E, ainda, Lana como simples capricho dessa outra mulher, cujo rosto não passa de um espelho, embora fosco - do meu. Todas, no entanto, capazes de se multiplicarem infinitamente. Antes de fechar para sempre a revista com a reportagem sobre grandes estrelas do passado - permitindo que Lana (que Melissa, que eu) continue (continuemos) a sua (a nossa) dolorida, sorridente e solitária trajetória (para onde? para onde?), cujo significado, para além dessas imagens glamourosas e das palavras de sentido misteriosamente duplo desisto de captar, lanço um último olhar para a fotografia de Lana Turner - com o melhor matiz da minha ironia, um delicioso e amargo pri vate joke. Um pouco triste, concluo agora que não era, na verdade, sobre Lana Turner que eu queria escrever, mas sim sobre a Zona Sul do Rio de Janeiro. Assim todo em azul, amarelo e verde, enquanto nuvens esgarçadas se despejam, defronte, sobre o maciço de árvores nas encostas do Corcovado e o tempo passa.


Contos do Sábado na Usina: Machado de AssisIX - CONSPIRACÃO:



A baronesa, quando se lhe aproximaram os dois interlocutores da cerca, mais receosa ficou e mais perplexa. Guiomar vinha risonha e até gracejadora; mas o abatimento de Estêvão era tão mal disfarçado, que de duas uma, — ou ela acabava de lhe dar o último desengano, — ou aquilo era apenas um arrufo sério, que o moço não podia ou não queria esconder de olhos estranhos. Isto é o que a baronesa pensou. O que ela concluiu foi que, em todo caso, urgia tentar alguma coisa em favor do maior, — do único sonho da sua velhice. 
Jorge não percebeu a verdadeira razão por que a tia lhe dissera ser necessário conversar com ela; imaginou que se trataria de Guiomar e Estevão, — mas estava longe de supor todo o alcance da entrevista. 
A entrevista não pôde ser logo nesse dia; as visitas ficaram ali até tarde, e a noite foi a mais agradável e distraída de todas as noites; Guiomar, sobretudo, esteve como nunca, jovial e interessante. A serenidade parecia morar-lhe na alma e refletir-se-lhe no rosto, — tantas vezes pensativo, mas agora tão frio e tão nu. 
Não será preciso dizer a um leitor arguto e de boa vontade... Oh! 
sobretudo de boa vontade, porque é mister havê-la, e muita, para vir até aqui, e seguir até o fim, uma história, como esta, em que o autor mais se ocupa de desenhar um ou dois caracteres, e de expor alguns sentinentos humanos, que de outra qualquer coisa, porque outra coisa não se animaria a fazer; — não será preciso declarar ao leitor, dizia eu, que toda aquela jovialidade de Guiomar eram punhais que se lhe cravavam no peito ao nosso Estêvão. Ele não podia supô-la abatida; mas penalizada, ao menos, um pouco respeitosa para com a dor que havia nele, isto, sim, imaginava que seria. Mas nada disso foi, e o pobre rapaz saiu dali mais cedo do que pensara e quisera sair. 
Na alcova, se ele pudesse vê-la mais tarde na alcova, solitária e toda consigo, sentada na poltrona rasa ao lado da cama, com os cabelos desfeitos, os pezinhos metidos nas chinelas de cetim preto, as mãos no regaço e os olhos vagando de objeto em objeto, como se reproduzissem fora as atitudes interiores do pensamento, ali não só ele a adoraria de joelhos, mas até poderia supor que alguma preocupação lhe tirava o sono e que essa era nem mais nem menos ele próprio. 
Talvez fosse; em parte ao menos seria ele. Guiomar não tinha um coração tão mau, que lhe não doessem as mágoas de um homem que acertara ou desacertara de a amar. Mas fosse uma, ou fossem muitas as causas daquela preocupação, a verdade é que ela durou muito tempo. Guiomar passou da poltrona à janela, que abriu toda, para contemplar a noite, — o luar que batia nas águas, o céu sereno e eterno. Eterno, sim, eterno, leitora minha, que é a mais desconsoladora lição que nos poderia dar Deus, no meio das nossas agitações, lutas, ânsias, paixões insaciáveis, dores de um dia, gozos de um instante, que se acabam e passam conosco, debaixo daquela azul eternidade, impassível e muda como a morte. 
Pensaria nisto Guiomar? Não, não pensou nisto um minuto sequer; ela era toda da vida e do mundo, desabrochava agora o coração, vivia em plena aurora. Que lhe importava, — ou quem lhe chegara a fazer compreender esta filosofia seca e árida? Ela vivia do presente e do futuro e, 
— tamanho era o seu futuro, quero dizer as ambições que lho enchiam, — tamanho, que bastava a ocupar-lhe o pensamento, ainda que o presente nada mais lhe dera. Do passado nada queria saber; provavelmente havia-o esquecido. 
A madrugada achou-a dormindo; mas os primeiros raios do sol vieram acordá-la, na forma do costume, para o matinal passeio com a madrinha. Guiomar sacrificava tudo à dedicação filial de que já dera tantas provas. A baronesa, entretanto, estava preocupada; o passeio foi diferente do dos outros dias. 
Ao meio-dia meteu-se Guiomar no carro, com Mrs. Oswald, e saíram a uma visita. A baronesa ficou só; Jorge não a deixou ficar só por muito tempo, porque chegou daí a pouco. 
A baronesa não perdeu tempo em circunlóquios. Apenas viu o sobrinho interpelou-o diretamente. 
— Disseram-me, foi Mrs. Oswald quem me disse que tu gostas de Guiomar. 
Jorge não contava muito com semelhante interrogação; todavia, não era tão ingênuo que corasse, nem tão apaixonado que lhe tremesse a voz. 
Puxou gravemente os punhos da camisa, concertou a gravata, e respondeu singelamente: 
— Não me atrevia a falar-lhe destas coisas... 
— Por que não? interrompeu a baronesa; são assuntos que se podem tratar entre mim e ti, sem desar para nenhum de nós. É então verdade o que me disse Mrs. Oswald? 
— É. 
— Amas deveras, ou... 
— Deveras. Recuaria, se visse que uma aliança entre nós ficava mal ao lustre de nossa família; mas, posto que ela seja... 
— Guiomar é minha filha, apressou-se a dizer a baronesa. 
— Justamente; não pode haver melhor título. 
— Tem ainda outro, continuou a baronesa; é uma alma angélica e pura. Henriqueta não teve melhor coração nem mais amor aos seus. Além disso, a natureza deu-lhe um espírito superior, de maneira que a fortuna não fez mais do que emendar o equívoco do nascimento. Finalmente é de uma beleza pouco comum... 
— Rara, titia, pode dizer que é de uma beleza rara, acudiu Jorge, e pela primeira vez lhe luziu nos olhos alguma coisa, que não era a gravidade de costume. 
— Já vês, prosseguiu a baronesa, que ela possui todos os direitos ao amor e à mão de um homem, como tu. 
A baronesa tinha um coração ingênuo e liso, sem desvios nem astúcias; contudo, há ocasiões em que o mais reto espírito emprega, como por instinto, finuras diplomáticas. A boa senhora tinha tanto a peito aquela união do sobrinho com a afilhada, que não confiava só do amor; procurava interessar-lhe também o amor-próprio. 
Jorge curvou-se com afetada modéstia. 
— Um homem, como eu, — disse ele — vale pouco por si mesmo; o valor que tenho, e esse é muito, vem do nome de meus pais e do seu, titia, e das santas qualidades que a adornam. 
— Só uma, Jorge, só uma qualidade santíssima: é a de amá-los, a ti e a ela. Por isso foi imenso o gosto que senti quando Mrs. Oswald me disse que gostavas de Guiomar. Acredita que se eu tivesse a fortuna de ver a vocês unidos e felizes, morreria contente. 
— Oh! isso! disse Jorge com ar de dúvida. 
— Julgas impossível o casamento? 
— Impossível, não; impossível, nada há. Mas... mas suponho que a vontade dela é indispensável, tão indispensável como duvidosa. 
— Duvidosa! Estás certo disso? 
Jorge tinha-se levantado e dera alguns passos, não agitado de todo, mas um pouco fora da impassibilidade usual. A idéia do casamento aparecia-lhe agora um pouco mais possível e exeqüível, desde que a tia francamente lhe propusesse aliança. 
— Estás certo disso? repetiu a baronesa. 
— Certo não; mas há toda a razão para a dúvida. Guiomar sabe que eu gosto dela; e contudo não me dá o menor sinal de corresponder aos meus sentimentos. 
Jorge expôs longamente todas as razões que tinha para crer que a vontade de Guiomar não correspondia à dele; referiu-lhe, com a maior exação e fidelidade, uns três ou quatro episódios que lhe pareciam boa prova daquilo que dizia. A baronesa não ouvia tudo com igual atenção. Quando ele acabou: 
— Guiomar será muito vexada, — disse ela — e às vezes, e por isso mesmo, tem essas aparências frias. Nada impede, porém, a que venha a amar-te, se é que já te não ama. Há nela certa altivez natural, que pode explicar também essa frieza; parece-me que lhe seria penoso receber o amor de alguém que julgasse levantá-la até si. 
— Isso, talvez... 
— Mas esse sentimento, que pode ser e é honroso, não é decerto invencível. 
Todas estas palavras da baronesa lisonjeavam o sobrinho, em cujos lábios pairava agora um sorriso de íntima satisfação. De quando em quando não ouvia ele nada do que lhe dizia a tia; seus ouvidos voltavam-se para dentro; ele escutava-se a si próprio. O amor de Guiomar começava a parecer-lhe possível; tudo quanto a baronesa lhe dizia era razoável, com a vantagem de lhe esclarecer as faces obscuras da situação. Demais, até que ponto a baronesa conjecturava ou revelava? Bem podia ser que ela tivesse lido mais fundo no coração da moça. 
Estas reflexões fê-las Jorge, enquanto a baronesa continuava a falar e a desenvolver a idéia que ultimamente indicara. Até aquele dia havia ele limitado toda a sua ação a alguns olhares, e raras palavras de cumprimento; a entrevista com a tia dera-lhe animação; pareceu-lhe chegado o ensejo de sair daquela paz armada. 
Guiomar chegou daí a pouco e achou-os na "saleta de trabalho", eufemismo elegante, que queria dizer literalmente — saleta de conversação entremeada de crochet. Mrs. Oswald vinha com ela; ambas riam alegremente de não sei que episódio visto no caminho. Jorge erguera-se, pausado mas risonho, apertou a mão de Guiomar, — apertou-a deveras, mais do que era usual e cortês. Guiomar não pareceu afligir-se; perguntou-lhe pela saúde, transmitiu à madrinha as lembranças que lhe mandavam e dispôsse a sair. 
Durante esse tempo, Jorge olhava para ela, enlevado deveras na contemplação de toda aquela nobre figura, agora mais bela que dantes, desde que se lhe tornara possível a aliança há muito sonhada. Havia nos olhos de Jorge uns tais ou quais vestígios lúbricos, donde se podia colher que, se ele fosse poeta, e poeta arcádico, editaria pela milionésima vez a comparação da Vênus e dos seus infalíveis amorinhos; comparação detestável, sobretudo, porque a casta beleza de moça, se alguma coisa pagã lhe podia ser chamada, seria antes Diana convertida ao Evangelho. 
Jorge saiu dali singularmente agitado; a conversa da baronesa deralhe nervo e resolução, e o quadro do casamento começou a desenhar-se-lhe no espírito, como o relógio que o menino tem de usar pela primeira vez. 
Até ali deixara-se ele ir à feição das águas; agora via a necessidade e a possibilidade de abicar à riba feliz do matrimônio. 
As dúvidas de Jorge não lhe saltearam o espirito; apenas chegou a casa travou da pena, e lançou na folha branca e lustrosa de seu papel uma confissão elegante e polida, que todavia refundiu duas ou três vezes, primeiro que a desse por pronta. Acabada a redação final, transcreveu aquela prosa do coração na mais nítida folha que havia em casa, — dobrou o escrito e meteu-o na algibeira. 
De noite foi à casa da tia. Achou as senhoras à volta de uma mesa; Guiomar lia, para a madrinha ouvir, um romance francês, recentemente publicado em Paris e trazido pelo último paquete. Mrs. Oswald lia também, mas para si, um grosso volume de Sir Walter Scott, edição Constable, de Edimburgo. 
Jorge veio interrompê-las um pouco, mas só interromper, porque a leitura continuou logo depois, ajudando ele próprio a Guiomar naquela filial tarefa. Veio o chá, veio depois a hora de recolher, e a baronesa deu por findo o serão, ainda que o livro estava quase findo. 
— Um capítulo mais, aventurou Jorge com o livro aberto nas mãos. 
A baronesa sorriu e voltou os olhos para Guiomar, a cuja conta lançou aquela dedicação do sobrinho; recusou contudo, por estar a cair de sono. 
— Eu é que não me deito sem saber o resto, declarou Guiomar; levo o livro comigo. 
— Ah! disse Jorge com um gesto de satisfação. 
E enquanto Guiomar se dispunha a acompanhar a madrinha até à porta do quarto, e Mrs. Oswald marcava a página e fechava o seu livro, Jorge igualmente fechava o outro, mas com tal demora e cuidado, que deu muito que entender à inglesa. Se ela chegou a entender, vê-lo-emos depois; o certo é que o livro foi enfim entregue a Guiomar, tendo a página marcada, não com a fita que lá estava pendente, mas com um pedacinho de papel. 
O pedacinho de papel era a carta; apenas uns poucos centímetros de altura; mas por mais exíguas que tivesse as dimensões, bem podia ser que levasse ali dentro nada menos que uma tempestade próxima.

Contos do Sábado na Usina: Sérgio Sant'Anna: Conto (não conto):





Aqui, um território vazio, espaços, um pouco mais que nada. Ou muito, não se sabe. Mas não há ninguém, é certo. Uma cobra, talvez, insinuando-se pelas pedras e pela pouca vegetação. Mas o que é uma cobra quando não há nenhum homem por perto? Ela pode apenas cravar seus dentes numa folha, de onde escorre um líquido leitoso. Do alto desta folha, um inseto alça vôo, solta zumbidos, talvez de medo da cobra. Mas o que são os zumbidos se não há ninguém para escutá-los? São nada. Ou tudo. Talvez não se possa separá-los do silêncio ao seu redor. E o que é também o silêncio se não existem ouvidos? Perguntem, por exemplo, a esses arbustos. Mas arbustos não respondem. E como poderiam responder? Com o silêncio, lógico, ou um imperceptível bater de suas folhas. Mas onde, como, foi feita essa divisão entre som e silêncio, se não com os ouvidos? 
Mas suponhamos que existissem, um dia, esses ouvidos. Um homem  que passasse, por exemplo, com uma carroça e um cavalo. Podemos imaginá-los. 
O cavalo que passa um dia e depois outro e depois outro, cumprindo sua missão de cavalo: passar puxando uma carroça. Até que um dia veio a cobra e zás: o sangue escorrendo da carne do cavalo. O cavalo propriamente dito - isto é, o cérebro do cavalo - sabe que algo já não vai tão bem quanto antes. Onde estariam certos ruídos, o eco de suas patas atrás de um morro, o correr do riacho muito longe, o cheiro de bosta, essas coisas que dão segurança a um cavalo? Onde está tudo isso, digam-me? 
O carroeiro olha tristemente para o cavalo: somos apenas nós dois aqui neste espaço, mas o cavalo morre. Relincha, geme, sem entender. Ou entendendo tudo, com seu cérebro de cavalo. Diga-me, cavalinho: o que sente um cavalo diante da morte? 
Diga-me mais, cavalinho: o que é a dor de um homem quando não há ninguém por perto? Um homem, por exemplo, que caiu num buraco muito fundo e quebrou as duas pernas. Talvez essa dor devore a si mesma, como uma cobra se engolindo pelo rabo. 
Mas tudo isso é nada. Não se param as coisas por causa de um cavalo. 
Não se param as coisas nem mesmo por causa de um homem. Esse homem que enterrou o cavalo, não sem antes cortar um pedaço da sua carne, para comer mais tarde. E agora o homem tinha que puxar ele mesmo a carroça. 
E logo afastou do pensamento a dor por causa de seu cavalinho querido. O homem agora tinha até raiva do cavalo, por ele ter morrido. O homem estava com vergonha de que o vissem - ele, um ser humano - puxando uma carroça. Mas por que seria indigno de um ser humano puxar uma carroça? Por que não seria indigno também de um cavalo? Ora, um cavalo não liga para essas coisas, vocês respondem. No que têm toda a razão. 
E, afinal, não podemos saber se o viram ou não, o homem puxando sua carroça, pois nos ocupamos apenas do que se passa aqui, neste espaço, onde nada se passa. Mas de uma coisa temos certeza: esse homem também encontrou um dia sua hora. E talvez - porque não tinha mãe, nem pai, nem mulher, nem filhos ou amigos - ele haja se lembrado, na hora da morte, de seu cavalo. O homem pensou, talvez, que agora iria encontrar-se com o cavalo, do outro lado. Sim, do outro lado: de onde vêm os ecos e o vento e onde se encontram para sempre homens e cavalos. 
Para esse outro lado há uma linha tênue, que às vezes se atravessa - uma fronteira. Essa linha, você atravessa, retorna; atravessa outra vez, retorna, recua de medo. Até que um dia vai e não volta mais. 
Aquele homem, no tempo em que atravessava este espaço aqui, beirando a fronteira do outro lado, gritava para escutar o eco e sorria para o cavalo. O homem tinha certeza de que o cavalo sorria de volta, com seus enormes dentes amarelos. O homem era louco. Mas o que é a loucura num espaço onde só existem um homem e um cavalo? E talvez o cavalo sorrisse mesmo, de verdade, sabendo que ali não poderiam acusá-lo de animal maluco e chicoteá-lo por causa disso. 
Depois foram embora o homem e o cavalo. O cavalo, para debaixo da terra, alimentar os vermes que também ocupam este espaço, apesar de invisíveis. Principalmente porque não há olhos para vê-los. Já o homem foi morrer mais longe. E ficou de novo este território vazio, espaços, um pouco mais que nada. Não sabemos por quanto tempo, pois não existe tempo quando não existem coisas, homens, movimentando-se no espaço. 
Mas, subitamente, eis que este território é de novo invadido. Vieram outros homens e máquinas, acenderam fogo, montaram barracas, coisas desse tipo, que os homens fazem. Tudo isso, imaginem, para estender fios em postes de madeira. (Fios telegráficos, explicamos, embora aqui se desconheçam 
tais nomes e engenhos.) Então o silêncio das noites e dias era quebrado por um tipo diferente de zumbidos. Mas para quem esses zumbidos, se aqui ninguém escuta, a não ser insetos? E de que valem novos zumbidos para os insetos, que já os produzem tão bem? Sim, vocês estão certos: os zumbidos destinavam-se a pessoas mais distantes, talvez no lugar onde morreu o dono do cavalo. O que não nos interessa, pois só cuidamos daqui, deste espaço. 
Mas, de qualquer modo, todos eles (insetos, cobras, animaizinhos cujo nome não se conhece, sem nos esquecermos dos vermes, que haviam engordado com a carne do cavalo) sentiram-se melhor quando vieram outros homens - bandidos, com certeza - e roubaram os postes, fios e zumbidos. Agora tudo estava novamente como antes, tudo era normal: um território vazio, espaços, um pouco mais que nada. Ou muito, não se sabe. Mas não há ninguém, é certo. Uma pequena cobra, talvez, insinuando-se pelas pedras e pela pouca vegetação - e a cravar seus dentes numa folha. 
às vezes, porém, aqui é tão monótono que se imagina ver um vulto que se move por detrás dos arbustos. Alguém que passa, agachado? Um fantasma? Mas como, se há soluços? Por acaso soluçam os fantasmas? Mas o fato é que, de repente, escutam-se (ou se acredita escutar) esses lamentos, uma angústia quase silenciosa. 
Ah, já sei: um menino perdido, a chorar de medo. Ou talvez um macaquinho perdido, a chorar de medo. Ah, apenas um macaquinho, vocês respiram aliviados. Mas quem disse que a dor de um macaquinho é mais justa que a dor de um menino? 
Mas o que estão a imaginar? Isso aqui é apenas um menino - ou macaquinho - de papel e tinta. E, depois, se fosse de verdade, o menino poderia morrer mordido pela cobra. Ou então matar a cobra e tornar-se um homem. No caso do macaquinho, tornar-se um macacão. Um desses gorilas que batem no peito cabeludo, ameaçando a todos. Talvez porque se recordasse do medo que sentiu da cobra. Mas não se esqueçam, são todos de papel e tinta: o menino, o macaquinho, a cobra, o homem, o macacão, seus urros e os socos que dá no próprio peito cabeludo. Cabelos de papel, naturalmente. E, portanto, não há motivos para sustos. Pois aqui é somente um território vazio, espaços, um pouco mais que nada. Quase um deserto, onde até os pássaros voam muito alto. Porque depois, em certa ocasião, houve uma aridez tão terrível que os arbustos se queimaram e a cobra foi embora, desiludida. No princípio, os insetos sentiram-se muito aliviados, mas logo perceberam como é vazia de emoções a vida dos insetos quando não existe uma cobra a persegui-los. E também se mandaram, no que logo foram seguidos subterraneamente pelos vermes, que já estavam emagrecendo na ausência de cadáveres. 
Então aqui ficou um território ainda mais vazio, espaços, um pouco mais que nada. Ou muito, não se sabe. Mas não há ninguém, é certo. Nem mesmo uma cobra a insinuar-se pelas pedras e pela vegetação. Pois não há vegetação e, muito menos, cobras. 
Mas digam-me: se não há ninguém, como pode alguém contar esta história? Mas isto não é uma história, amigos. Não existe história onde nada acontece. E uma coisa que não é uma história talvez não precise de alguém para contá-la. Talvez ela se conte sozinha. 
Mas contar o que, se não há o que contar? Então está certo: se não há o que contar, não se conta. Ou então se conta o que não há para contar. Anos 90 Estranhos e intrusos 
Os anos 90 descartam o baixo astral e inventam um fim de século rico de imagens e criatividade. É uma década de estranhos e intrusos na festa da cultura: às mulheres somam-se os negros, os gays, os brasileiros em Nova York... Na época que celebra a diferença, nossos contistas produzem alegorias do híbrido. Combinam o humano ao animal, 
exploram a fusão com o tecnológico. Pelo que deixa entrever a arte de nossos melhores contistas atuais, parece que no futuro próximo vamos viver num país mais heterogêneo, mais plural, embora um pouco 
hesitante em relação às suas novas metas. A diversidade de estilos aponta para um período de transição, como aconteceu no final do século passado. Mas não há temor nem entusiasmo diante do inesperado, diante do todo outro que pode vir - ou não.