O material desta história: basicamente, duas mulheres. Capazes, no entanto, de se multiplicarem infinitamente. São Lana Turner e uma outra, que se apresenta sem nome, sem rosto e sem biografia, a não ser dados fragmentários, vagas insinuações. Alguém que talvez nem seja uma mulher, mas sim um espelho, embora fosco. Ou um ventríloquo, que fala apenas através da imagem da atriz, o seu boneco. Não se enganem, porém: o único personagem verdadeiro, o ponto de referência para se poder entrançar os fios díspares desta trama, formando um tapete, a tela em branco que serve para o desdobramento ilimitado do sonho, portanto da realidade, este personagem sou eu. Em outras palavras, Lana Turner. (Lana, uma das primeiras grandes estrelas, quando surgia o star-system de Hollywood: sem nenhuma tradição ou modelo a serem seguidos, uma figura de ruptura na sociedade americana da época, com um papel ou um poder "de homem". Lana para além da própria Lana, o símbolo que ela foi, o mito que se criou em torno dela: deusa ou demônio, a vamp e seu it. O que de Lana foi apresentado para o consumo de milhares de pessoas desejosas de entrever - fosse para idolatrar, destruir ou devorar - os bastidores de uma "vida glamourosa"; em grande estilo, a "felicidade" e a "dor".) Pois Lana Turner, como Madame Bovary para Flaubert, Lana Turner c'est moi. Foi o que também pensou a segunda mulher, a outra, o espelho. (Chama-se Melissa? Ou será Teresa? Quem sabe Joaquina? Dorotéia?) Folheava uma revista, na varandinha de seu apartamento, quando encontrou, com um repentino susto de reconhecimento, com uma estranha e cúmplice compreensão (ela, independente, mitificada, distorcida), o retrato não muito antigo de Lana, numa reportagem nostálgica sobre grandes estrelas do passado. Sim, aqui estão a pele muito bronzeada pelo sol das piscinas de Beverly Hills - ou das praias da Zona Sul - as unhas vermelhas e compridas, o cabelo platinado e, no rosto, vestígios de beleza e as marcas do tempo. Mas, sobretudo, o sorriso de Lana, o seu sorriso de atriz, quase um esgar. Um sorriso em que se misturam ironia e dor e desafio e força e patética impotência, o sorriso heróico de uma sobrevivente. De criatura disposta, talvez por não haver outro jeito, a levar o espetáculo até o fim: the show must go on. (Do que é feita uma vida humana senão de pequenos ritos, cerimônias e celebrações?) Numa nevoenta tarde de sábado, a observar esgarçadas nuvens que se despejam sobre as encostas arborizadas do Corcovado, defronte, Melissa revê - eu revelo -, numa vertigem de cenas históricas, o parentesco e as diferenças entre ela e Lana Turner; a partir da colonização americana por puritanos anglo-saxões e da vinda para o Brasil de portugueses degredados, com sangue mouro. Como ponte entre dois hemisférios, ligando misteriosamente Hollywood, a Califórnia do antigo boom de ouro, ao ouro mineiro que os inconfidentes reivindicaram, sorri enigmático na revista (e na vida) o rosto de Lana Turner (o de Melissa, o meu). A reportagem lembra a trajetória gloriosa e sofrida da atriz, seus vários maridos, uma carreira movimentada (psicóloga? publicitária? jornalista? atriz mesmo?) e muitas viagens, incluindo umas férias no Havaí, em companhia de uma amiga. Mais precisamente, em Honolulu, na praia de Waikiki, onde se descobriu grávida do segundo marido, o trompetistaArtie Shaw, já depois de estarem separados. "O que resultou num aborto e em novas infelicidades", acrescenta a matéria, baseada no livro autobiográfico Lana, the lady, the legend, the future. O jornalista explica que, já no primeiro casamento, com o advogado Greg Bautzer, ela não sentiu nenhum prazer, ao "perder a virgindade". Ele cita palavras de Lana: "Eu não tinha idéia de como devia agir. O ato em si doeu como diabo e devo confessar que não senti nenhum tipo de prazer. Mas gostava de ter Greg perto de mim e 'pertencer' a ele, afinal." Foi no Hotel Toriba, em Campos doJordão, lembra Melissa. E retifica a reportagem: não chegou sequer a perder a virgindade naquela lua-de-mel, os dois tão desajeitados. Dor sentiu, confirma: teria um estreitamento vaginal? um hímen demasiado resistente? Mas não se falava dessas coisas, naquele tempo, e então tudo foi se ajeitando, ou se destruindo, em silêncio. Lana, garante o repórter, só atingiu a maturidade sexual por volta dos 40 anos, ao cabo de um aprendizado com um total de cerca de 18 homens - o que, ele acrescenta, já parece um número modesto, para os padrões atuais. A conclusão foi tirada, explica, a partir de indicações implícitas, porque o assunto não era abordado diretamente. A matéria adianta que as dificuldades emocionais de Lana resultaram, provavelmente, de uma sucessão de traumas infantis. "Quando tinha dez anos, seu pai foi assassinado num beco escuro." Segue-se a declaração da atriz: "Quando o vi no caixão, fiquei horrorizada." Trauma, caixão, pai, vai lendo Melissa, com um calafrio. Mais que o encadeamento dos fatos expostos, são as palavras da reportagem que estabelecem a estranha conexão entre ela e Lana Turner, como um código a ser decifrado. A impressão se acentua no parágrafo seguinte, uma transcrição da "ficha psicológica" de Lana Turner mantida pelo estúdio: "Julia Jean Mildred Frances Turner, nascida em 8 de fevereiro de 1920. Confusa, desprotegida. Insegura desde a infância, quando atravessou períodos de opressão física, mental e moral, pelos quais procurou compensação na vida adulta. Sua afetividade, uma sucessão de tentativas frustradas de estabilização. A filha, Cheryl, carregou a mãe como uma carga emocional negativa. Confusa. Desprotegida. E, embora o ano fosse outro, a data de nascimento era a mesma. Como se existisse, embaixo da história de Lana Turner, uma outra, paralela, embutida - a sua, a minha. Estará Melissa/estarei eu enlouquecendo? Teremos escolhido, em nossa paranóia, em vez do habitual Napoleão Bonaparte, Lana Turner como alter-ego? Melissa (Erica?) corre ao banheiro, perscruta no espelho, com renovada perplexidade, o próprio rosto. Ela, Lana Turner. Mas não propriamente uma atriz, mais para trapezista ou bailarina da corda bamba. Sorri para ela, no espelho, um rosto sem nenhuma inocência, mas ao qual o tempo conferiu um toque de pureza cínica. Até onde posso ir, até onde irei, questiona-se Melissa, estremecendo. Porque os anos tinham passado, como um vento frio. E, entre maridos, viagens, uma carreira movimentada, tragédias - ah, tantas coisas se haviam tornado, de repente, definitivas. Amores perdidos, aventuras não vividas e, o que é pior, não mais desejadas. De volta à cadeira de lona da varanda, bebericando um uísque, Melissa (Dora?) lê na reportagem, logo adiante, um confortador comentário de Lana: "Não tive uma vida fácil mas, sem dúvida, minha vida está longe de ter sido chata. Sinto um certo orgulho de ter conseguido chegar até aqui." O que não a impediu, certa vez, como conta o repórter, de tentar o suicídio, cortando os pulsos (Melissa vira as palmas das mãos para cima, observa as cicatrizes ainda rosadas). Ao sair do hospital, já recuperada, "ela parecia uma vestal, toda vestida de branco, sorrindo, os inefáveis óculos escuros ajudando a lhe encobrir o rosto". Acrescenta a matéria: "Via-se, imediatamente, que era uma estrela. Tinha o que chamamos de star-quality." Logo depois, vem a "versão verdadeira" da descoberta de Lana Turner. Ao contrário do que as revistas da época publicaram, afirma o jornalista, o fato não aconteceu no Schwab's, a lanchonete, em Hollywood Boulevard, freqüentada pelas moças que queriam arranjar papéis em filmes. A própria Lana explica: "Foi num lugar chamado Top Hat Café - acho que hoje um posto de gasolina. E eu não estava tomando refresco coisa nenhuma. Meu dinheiro só dava para uma Coca-Cola." Mas ela confirma que, como foi divulgado, o sujeito ao lado fez a clássica pergunta: "Você gostaria de trabalhar no cinema?" E ela deu a resposta clássica: "Não sei, preciso perguntar a mamãe. A etapa seguinte foi a escolha de um nome artístico. Havia no estúdio, conta a matéria, um catálogo já preparado, e alguém começou a dizer todos em voz alta. De repente, a própria atriz sugeriu Lana: "Não sei de onde tirei. Mas reparem que é Lah-nah, não quero ouvir meu nome pronunciado de outra maneira." Em 1937, ela faria Esquecer, nunca e, no ano seguinte, ingressava na Metro, onde se tornou conhecida como "a garota do sueter". Uma série de sucessos, rosas e champanha em turbilhão. Mas o destaque da reportagem é para o trágico episódio com Johnny Stompanato, já na véspera de Lana perder a efêmera frescura do tempo em que as mulheres são comparadas com flores (quando ganharia, como prêmio, a dura máscara da fotografia, a da guerreira sobrevivente, marcas no rosto como gloriosas cicatrizes de combate). Certo dia, "um sujeito dizendo chamar-se John Steele telefonou para o estúdio fazendo a corte a Miss Turner". Ela o achou encantador, diz o jornalista, e acabou se envolvendo. "Quando descobri sua verdadeira identidade", comentaria Lana, depois ja era muito tarde". Johnny Stompanato (ou Renato Medeiros) era branco como um pão, limpo como um pão, com aquela pureza que só conseguiria ter um jovem mafioso procurado pela polícia. (Na cama, como um cavalinho branco, o corpo perfeito de um rapaz de 28 ou 29 anos, dentes brancos, olhos castanhos matizados de verde, mas quase sempre escuros, algo taciturnos. Deliciosamente sério, com um senso permanente de dever a cumprir. Não fala, a não ser uma ou outra palavra - é indecifrável. Mas talvez seu permanente mistério seja, simplesmente, o da própria vida, e seu absurdo.) Um homem inteiro e lindo como um cavalinho branco correndo na praia, ao entardecer. Intacto e cheio de pureza, como a juventude é pura, ele nu, aquele corpo inteiro e forte e grande e puro, ele assim em cima dela, grande e inteiro, ele entrando nela, ele pedindo: Melissa, Lana, diga alguma coisa para mim, enquanto ela só gemia e gritava, gemia e gritava, agora falando: amor, amor, amor. E logo está toda inundada do líquido dele, com um cheiro vagamente vegetal de capim molhado ou palmito. Isso vai me bastar para sempre, não vou precisar de mais nada, nunca, pensou, quando ele saiu, batendo aporta da frente com um ruído que ela escutou da cama. Era uma manhã nevoenta através das portas de vidro do seu apartamento, que davam para varandinhas, lá fora, e nuvens esgarçadas se despejavam sobre o maciço de árvores nas encostas do Corcovado, defronte. Diria, depois, quando ele telefonou: saí dançando aquela manhã, querido. Como se tivesse, afinal, alcançado a eternidade, precisava morrer de repente num momento assim. A matéria garante que, para Lana, começou um "terrível drama psicológico", enquanto "tentava livrar-se do gangster" ao passo que ele, "utilizando todos os artifícios", recusava-se a sair de cena. Quando ela foi para a Inglaterra, conta o repórter, a fim de filmar Another time, anotherplace (Vítima de uma paixão) pensou que estava livre de Johnny, pelo menos por alguns meses. Mas ele conseguiu enganar as autoridades americanas e, de repente, apareceu em Londres. Lana procurou a Scotland Yard e Stompanato foi deportado. Concluídas as filmagens, ela decidiu tirar umas férias em Acapulco, sem avisar a ninguém. "Naquela época", diz Lana, "o trajeto mais direto entre Londres e Acapulco era via Copenhague. Cheguei de madrugada à Dinamarca. Alguns passageiros desceram do avião, outros subiram. Um jovem me entregou uma rosa amarela. Peguei a flor e, de repente, vi um rosto a meu lado: era John. Jamais descobri como ele conseguiu chegar ali, sem que eu o visse, e como conseguiu uma passagem no mesmo avião que eu, no assento ao lado. Mas ele estava ali." As brigas entre os dois eram terríveis, lembra o repórter. Melissa tentava evitar que Patrícia, a filha de 14 anos, escutasse - mas nem sempre conseguia. Um dia, a porta do quarto estava aberta e a menina pensou que ele fosse cumprir a ameaça constante - a de navalhar o rosto de sua mãe. Correu à cozinha, pegou uma grande faca e a enfiou no corpo do rapaz. As últimas palavras dele foram: "O que você fez?" E a próxima etapa seria a luta nos tribunais, quando Melissa fez a pergunta desesperada: "Não poderei tomar a mim a responsabilidade por toda essa tragédia?" A imprensa, no entanto, publicou outras versões para o crime. Uma delas era a de que Cheryl estaria apaixonada por Johnny e os dois chegaram a fazer amor; ela o matou quando descobriu que ele voltara para sua mãe. Mas Lana, tempos depois, prestaria uma última homenagem a Stompanato: "Ele me cortejou como ninguém", declarou. (Pois a um homem a quem uma mulher permite que lhe dê o maior prazer, ela perdoa tudo.) Depois que Cheryl foi absolvida, Lana passou a contar com a companhia de velhos amigos, aqueles para quem ela representava um testemunho vivo de grandes momentos da masculinidade de cada um. Foi quando pensou que, numa outra etapa, talvez não tão distante assim, precisaria da bondade das pessoas, qualidade que ela própria, provavelmente, jamais tivera assim tão disponível para oferecer a ninguém. Começou a se esforçar para ser mais simpática. Agora, seus maus humores já não seriam mais compensados pela beleza fulgurante, a paixão, a juventude, enfim. Coisas assim muito intensas que a passagem do tempo ia fatalmente apagando, tudo se abrandava em tons pastéis, esfumados, como a parte superior (as nuvens) de uma estampa japonesa. Acentuou, então, como um disfarce, uma frivolidade teatral que, se bem reparada, era "profunda". Talvez a coisa mais profunda que lhe acontecera na vida, o seu sorriso-esgar. O símbolo, quem sabe, dessa conquista que ninguém almeja, a sabedoria da meia-idade, mas que pode tornar-se, um dia, aquilo que nos resta e nos mantém vivos. Continuava, contudo, a telefonar com freqüência para um conhecido ou outro, no meio da noite, à espera de uma migalha qualquer de ternura; ou, simplesmente, para tentar expressar alguma coisa aparentemente inexplicável porque se reduzia, no último momento, a um punhado de pó, frases banais em que primava a insistência no eu, eu, eu. Era parco, pensando bem, o resultado daquele último esforço para continuar agradando os homens, um imenso e praticamente inútil investimento de habilidade e emoção. A qualquer momento, concluiu, desistirá por completo, vai ficar sozinha em casa vendo antigos filmes em seu videocassete e cozinhando para si mesma. Ou se perderá em longas e nostálgicas meditações, na cadeira de lona da varandinha de seu apartamento/de sua mansão. Sim, conheço o agridoce sabor de solidão de Lana Turner, sua crespa mordida num sábado à tarde como este - quando, afastada dos estúdios, definitivamente divorciada, ela bebericava seu uísque a observar as nuvens esgarçadas que se despejavam sobre o maciço de árvores nas encostas de Beverly Hills, defronte. (Mais que uma história, menos que uma história. Um clima. Como uma imagem apenas entrevista, anos atrás, e, de repente, lembrada. O repentino claro-escuro que se formou, certo fim de tarde, num rosto de mulher, deixando-o - apenas por um segundo, todo crestado de dourada poeira.) Lana ou Melissa (Sílvia? Selma? Ingrid? Laura?), uma mulher que eu queria contar em várias versões, como nas Mil e Uma Noites. Inumerável, protéica, com alguma coisa de hidra - da qual, cortada uma das cabeças, outras renascessem no mesmo lugar. E cuja realidade, sigilosa, secreta, com um sentido oculto, estivesse permanentemente sujeita a novas interpretações, enigma que só se pode decifrar parcialmente, a partir de algumas palavras significativas como símbolos ou de ilações de episódios e situações deliberadamente destacados, no texto, com a mesma técnica com que, numa matéria jornalística, o redator faz a escolha, jamais inocente, do que vai para o lead ou para o pé. Lana para além da própria Lana, inesgotável; Lana, por assim dizer, o nosso tempo. Ou uma metáfora intemporal de amor e perdição - Safo, George Sand, Electra. E, ainda, Lana como simples capricho dessa outra mulher, cujo rosto não passa de um espelho, embora fosco - do meu. Todas, no entanto, capazes de se multiplicarem infinitamente. Antes de fechar para sempre a revista com a reportagem sobre grandes estrelas do passado - permitindo que Lana (que Melissa, que eu) continue (continuemos) a sua (a nossa) dolorida, sorridente e solitária trajetória (para onde? para onde?), cujo significado, para além dessas imagens glamourosas e das palavras de sentido misteriosamente duplo desisto de captar, lanço um último olhar para a fotografia de Lana Turner - com o melhor matiz da minha ironia, um delicioso e amargo pri vate joke. Um pouco triste, concluo agora que não era, na verdade, sobre Lana Turner que eu queria escrever, mas sim sobre a Zona Sul do Rio de Janeiro. Assim todo em azul, amarelo e verde, enquanto nuvens esgarçadas se despejam, defronte, sobre o maciço de árvores nas encostas do Corcovado e o tempo passa.
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