sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Dante alighieri: A Divina Comédia: Inferno:



“Se do mal assim quis o imigo eterno, Origem vendo nele do alto efeito,
18 O que e o qual, segundo o que discerno,
“Pela razão bem pode ser aceito;
Que para Roma e o império se fundarem
21 Fora no céu por genitor eleito;
“À qual e ao qual cabia aparelharem, Dizendo-se a verdade, o lugar santo
24 Aos que do maior Pedro o sólio herdaram.
“Nessa empresa, em que o hás louvado tanto, Cousas ouviu, de que surgiu motivo
27 Ao seu triunfo e ao pontifício manto.
“Lá foi o Vaso Eleito ainda vivo: Conforto ia buscar, à fé, que à estrada 30 Da salvação princípio é decisivo.
“Por que irei? Quem permite esta jornada? Enéias, Paulo sou? Essa ventura
33 Nem eu, nem outrem crê ser-me adatada.
“Receio, pois seja ato de loucura,
Se eu me resigno a cometer a empresa.
36 Supre, és sábio, o que digo em frase escura”. Como quem ora quer, ora despreza,
Sua alma a idéias novas tem disposta,
39 Mostrando aos seus desígnios estranheza,
Assim fiz eu na tenebrosa encosta, Porque, pensando, abandonava o intento, 42 Formado à pressa, que ora me desgosta.

Contos do Sábado na Usina: Olavo Bilac: MEDICINA:


 



Rita Rosa, camponesa, Tendo no dedo um tumor, Foi consultar com tristeza Padre Jacinto Prior. 
O Padre, com gravidade De um verdadeiro doutor, Diz: "A sua enfermidade Tem um remédio: o calor... 
Traga o dedo sempre quente... 
Sempre com muito calor... E há-de ver que, finalmente, Rebentará o tumor!" 
Passa um dia. Volta a Rita, Bela e cheia de rubor... 
E, na alegria que a agita, Cai aos pés do confessor: 
"Meu padre! estou tão contente!... 
Que grande coisa o calor! 
Pus o dedo em lugar quente... 
E rebentou o tumor..." 
E o padre: "É feliz, menina! Eu também tenho um tumor... Tão grande, que me alucina, Que me alucina de dor... 
"Ó padre! mostre o dedo, (Diz a Rita) por favor! 
Mostre! porque há-de ter medo De lhe aplicar o calor? 
Deixe ver! eu sou tão quente!.... 
Que dedo grande! que horror! Ai! padre... vá... lentamente... 
Vá gozando... do calor... 
Parabéns... padre Jacinto! Eu... logo... vi... que o calor... Parabéns, padre... Já sinto Que rebentou o tumor..."

Contos do Sábado na Usina: Humberto de Campos: A PROMESSA I:


Foi um alvoroço na vila quando se soube que alguns rapazes do lugar haviam sido sorteados para o Exército. Há meses, andara por lá, tomando nota dos nomes, um capitão, que levara o endereço de todos; e ninguém se lembrava mais dele, nem da sua farda, quando chegou aquela notícia, alarmando as mães, afligindo as noivas, mas entusiasmando, ao mesmo tempo, a mocidade vigorosa da terra, atingida pela convocação. 
- No tempo do Paraguai - diziam os velhos, cachimbando monotonamente à sombra fresca das latadas, - o remédio era o mato. Ou, então, passar o facão na mão direita e cortar uns dois dedos para não puxar o gatilho. 
E enumeravam-se os que, por esse modo, haviam fugido ao recrutamento: 
- Foi assim que escaparam o Bernardo Viúvo, o Joaquim André, o defunto Casimiro, o defunto Rogério e o falecido Manuel Simeão, pai de Sotero Boa-Vista. 
A contribuição humana lançada, de chofre, sobre a vila do Araçá, era, porém, de molde a não permitir deserções. Nada menos de oito rapazes tinham sido chamados ao serviço das armas, para o qual todos se apresentaram sem temor ou constrangimento, antes com alegria, com vivacidade arrogante, como se esperassem de há muito aquele apelo ao seu brio patriótico. Para festejar o acontecimento, foi formada, na véspera da partida dos conscritos, uma passeata, que percorreu as quatro ruas do lugarejo, puxada por uma banda de música. Oradores fizeram -se ouvir, concitando aqueles conterrâneos à prática de atos heróicos, elevando o nome da sua vila natal na disciplina dos quartéis e nos campos de batalha. E, na manhã seguinte, metidos na sua melhor roupa de cassineta ou de brim, montando os melhores cavalos do município e acompanhados por numerosos cavaleiros amigos, os rapazes partiram a galope, afim de tomar o trem dezoito quilômetros adiante, com destino à capital.

Contos do Sábado na Usina: Machado de Assis: O espelho Esboço de uma nova teoria da alma humana:

 
   
Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.  Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinqüenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e 
eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu:  - Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.  Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, - uma conjetura, ao menos.  - Nem conjetura, nem opinião, redargüiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...  - Duas?  - Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para entro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior aquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração." Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...  - Não?  - Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, - na verdade, gentilíssima, - que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis...  - Perdão; essa senhora quem é?  - Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome; chama-se Legião... E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos...  Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, 
fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que conserta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a narração:  - Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui, acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o "senhor alferes". Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o "senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...  - Espelho grande?  - Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem do propósito; respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que o "senhor alferes" merecia muito mais. O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu?  - Não.  - O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou 
comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não?  - Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.  - Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos: os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte. Adeus, sobrinho! adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de louvores e profecias, que me deixou extático. Ah ! pérfidos! mal podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados.  - Matá-lo?  - Antes assim fosse.  - Coisa pior?  - Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo; ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina; fiquei também um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não desamparar a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele; à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, 
tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei este famoso estribilho: Never, for ever! - For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordeime daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: - Never, for ever!- For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita, ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém, nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma... Riem-se?  - Sim, parece que tinha um pouco de medo.  - Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: - o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único -porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne vois-tu rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma coisa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar. Soeur Anne, soeur Anne... Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel.  - Mas não comia?  - Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, se não fora a terrível situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma antologia em trinta volumes. As vezes fazia ginástica; outra dava beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor ou de cansaço, e mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac...  - Na verdade, era de enlouquecer.  - Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. 
Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. - Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me. Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha idéia...  - Diga.  - Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar.  - Mas, diga, diga.  - Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir...  
Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas. 
  
FIM  

Contos do Sábado na Usina: Domingos Pellegrini : A maior ponte do mundo:




Eu tinha um alicate que só vendo, encabado de plástico amarelo, na escuridão fosforecia; de aço alemão legítimo; usei oito anos quase todo dia, foi meu companheiro em Ibitinga, Acaraí, Salto Osório, Ilha Solteira e Salto Capivara. Se juntasse um metro de cada fio que cortei naquele alicate, tinha cobre pro resto da vida. Daí, quando você perde uma ferramenta que já usou muito, é o mesmo que perder um dedo. 
Foi quando eu trabalhava em Salto Capivara; era solteiro, não pensava em nada, a vida era uma estrada sem começo nem fim, por onde eu passeava me divertindo, até o trabalho era uma diversão, eu achava que ser barrageiro era uma grande coisa. Só precisava assinar um contrato de trabalho, nunca esquecer de ter sempre um capacete na cabeça, bota de borracha no pé e o resto a Companhia dizia o que eu devia fazer. Terminando uma barragem, me mandavam pra outra e a vida continuava sendo uma estrada alegre. 
Naquele dia eu tinha voltado da barragem, tinha acabado de tomar banho, e a gente ia se vestindo pra jantar, eu botando a camisa, 50 Volts penteando o cabelo fazia uns cinco minutos; passava na cabeça uma pasta fedida, que ele achava perfumada, e ficava meia hora no espelho, depois tirava os cabelos grudados no pente e jogava no chão. Alojamento de barrageiro é catinguento por isso: um joga cabelo no chão, outro cospe, outro deixa toalha úmida no beliche, janela sempre fechada porque sempre tem uma turma dormindo, outra saindo, outra chegando; a construção da barragem não pára dia e noite; mas eu pelo menos nunca tive de dormir na mesma cama de outro em outro turno, cama-quente como dizem, é coisa de hoje em dia, parece que piorou. 
Então, a gente ali se arrumando, faltando meia hora pra janta, entra um cara de macacão amarelo, perguntou se eu era eu e se 50 Volts era ele mesmo. Depois perguntou dos outros eletricistas, 50 Volts falou que não tinha filho grande. O cara não se conformou e perguntou se, antes de sair, não tinham falado aonde iam; 50 Volts repicou que eles saíam sem tomar a bênção, aí o cara ficou olhando, olhando, e falou tá certo, negão, tá certo, vou arrumar um jegue pra você gozar. 50 Volts foi repicar de novo mas o cara falou que, quanto mais cedo encontrasse os outros, mais cedo a gente partia. 
Aí 50 Volts perguntou onde ia ser a festa, o cara respondeu sério: no Rio de Janeiro, engraçadinho. Eu olhei pela porta e vi uma caminhoneta amarela com chapa do Rio, virei pra 50 Volts e falei que não era brincadeira do homem. Então entrou outro cara de macacão amarelo com os três eletricistas que tinham saído, tirou um papel do bolso, falou meu nome e o do 50 Volts e perguntou pro outro: cadê esses dois? 
Eu vi que era papel da Companhia, já fui tirando a roupa boa e botando a de serviço, mas 50 Volts ainda foi discutir com os homens: tinha saído de dois turnos seguidos, dezesseis horas trabalhando duro, não tinha jantado, e que pressa é essa, coisa e tal, mas os homens só falaram: se atrasar, peão, a gente te larga aí, você quem sabe da tua vida. 50 Volts disse que era isso mesmo, na sua vida quem mandava era ele, mas já começando a se trocar. 
Vai de roupa boa, um dos caras avisou; e o outro: - No caminho a gente pára pra pegar umas donas. Aí 50 Volts arrumou a mala num minuto, trepamos os cinco na caminhoneta mais os dois caras na cabine. Paramos no escritório da Companhia, uma secretária gostosinha saiu com uns papéis pra gente assinar ali na caminhoneta mesmo, todo mundo assinou e quase nem deu tempo de devolver a caneta; arrancaram num poeirão e a gente foi descobrindo que era acolchoado ali na carroceria, mesma coisa que um colchão, com cobertura de lona - e num canto dois caixotes de isopor. 
50 Volts destampou um dos caixotes, era só latinha de cerveja com gelo picado e no meio uma garrafa de conhaque; no outro caixote, mais cerveja e um litro de cachaça amarela. Aí um dos caras da cabine olhou pra trás, bateu no vidro pra todo mundo olhar, fez sinal enfiando o dedão na boca: a gente podia beber à vontade! 
Dali a uma hora pararam numa churrascaria, cada um desceu como pôde, alguns já de pé redondo, e os homens já foram avisando: - Podem comer à vontade que é por conta. A gente sentou e começou a desabar uma chuva de espeto na mesa - de costela, de cupim, galeto, lombo, lingüiça, maminha, alcatra, fraldinha, picanha, até que enjoei de comer. Lembrei de perguntar que diabo de ponte era aquela que a gente ia iluminar, mas o assunto geral era mulher e tornamos a embarcar bebendo cerveja com conhaque, naquele assanhamento de quem vai amassar saia e esticar sutiã, e não rodou cem metros a caminhoneta parou, 50 Volts falou Deus me proteja duma congestão. 
A casa tinha cinco mulheres, na conta certa; pra 50 Volts sobrou uma gorda de cabelo vermelho, eu fiquei com uma moreninha de feição delicada, peito durinho, barriga enxuta, mas bastou um minuto pra ver que era uma pedra. Eu enfiava a mão nela, era o mesmo que enfiasse no sofá, dentro só tinha palha; e a gorda com 50 Volts ali do lado no maior fogo, a mulher parecia que tinha um braseiro dentro. 
Bolero na vitrola, todo mundo naquela agarração, de vez em quando uma dona levantava pra buscar mais cerveja, trocar o disco; e os dois caras de macacão amarelo lá fora feito cachorros de guarda. Aí um casal procurou quarto, depois outro; e eu ali com aquela pedra, 50 Volts com a gorda sentada no colo, lambendo a orelha dele, o pescoço, o sofá parecia um bote na água, jogava pra cá, pra lá, eu não sabia como 50 Volts ainda não tinha rumado pro quarto. E a minha dona ali, com a mão no meu joelho como se fosse um cinzeiro; eu falava alguma coisa no ouvido dela, ela respondia pois é, é, não e. 
Aí avancei o corpo pra encher o copo, vi a mão de 50 Volts no outro joelho da minha moreninha. Então passei o braço por trás e peguei na orelha da gorda sem ele perceber; só ela; fiquei enfiando e rodando o dedo e ela me olhando, foguetada, mexendo a língua pra mim. Aí chamei 50 Volts pra urinar lá fora, mostrei pra ele como a noite estava estrelada e perguntei se não queria fazer uma troca, aí voltamos e já sentei com a gorda e ele com a moreninha, coitado. Pra mim, foi só o tempo de sentar, balançar o bote um minuto e rumar pro quarto. 
A gorda foi tirando a roupa de pé na cama, eu com medo do estrado da cama quebrar e ela ali tirando tudo e dando uns pulinhos. Era gorda mas muito equilibrada, pra tirar a calcinha ficou num pé só, depois só no outro, e vi que tinha cabelo vermelho em cima e embaixo. Ficou de sutiã preto, um sutiã miudinho e apertado demais, tanto que, quando tirou, a peitaria pareceu pular pra fora. Aí ela deu uma volta completa, rodando o corpo, meio sem graça, querendo mostrar que era gorda mesmo e não tinha 
vergonha de ser gorda. Depois me encarou de novo, abriu as pernas e perguntou se eu achava gorda demais, respondi que ela valia quanto pesava, e também fiquei de pé na cama, já quase sem roupa. 
Então a dona me agarra e desaba comigo, o estrado rebentou e ela me apertando no meio das pernas e dizendo magrelinho, magrelinho; e eu perdido no meio daquela imensidão; até que ela sentou em cima de mim, no mesmo instante em que bateram na porta: - Hora de zarpar, peão! 
Eu era o último. Quando saí, 50 Volts e os outros já estavam na caminhoneta, foi montar e tocar. A gorda apareceu na janela enrolada numa toalha, abanou a mão e comecei a pensar. Os caras pagavam até mulher pra nós - a troco de quê? A caminhoneta entrava em curva a mais de cem por hora. De repente dava pressa nos homens, depois de perder tanto tempo. 
Começou a chover grosso e a caminhoneta continuou furiosa, zunindo no asfalto molhado. Os outros dormiram, todo mundo embolado, joelho com cabeça, cotovelo com pescoço; eu varei a noite de olho estalado. 
Amanhecendo, comecei a cabecear, 50 Volts acorda e diz que eu devia ter dormido, se estavam com tanta pressa, decerto a gente já ia chegar trabalhando. 
Perguntei se ele já tinha comido minha mãe pra me dar conselho, mas ele continuou. Que eu devia ter dormido. Que a barra ia ser pesada. Os homens tinham ordem de entupir a gente de bebida, fazer cada um dar sua bombada, comer carne quente até quadrar, tudo aquilo, pra depois ninguém reclamar folga, só podia saber, claro: - Já viu tanto agrado de graça? 
Com aquele céu vermelho, amanhecendo, achei que ele estava exagerando, falei que ninguém morre de trabalhar num domingo. Aí ele falou não sei, acho que a gente não sai de cima dessa ponte até o serviço acabar ou acabarem com a gente... 
Os homens pararam pra um café completo, com pão, queijo, manteiga, mel, leite e bolacha, 50 Volts fez careta mas continuei a achar que ele estava exagerando. 
Quando vi o Cristo Redentor, dali a um minuto a caminhoneta parou. Era a ponte. 
Aquilo é uma ponte que você, na cabeça dela, não enxerga o rabo. Me disseram depois que é a maior do mundo, mas eu adivinhei na hora que vi; só podia ser a maior ponte do mundo. Faltava um mês pra inauguração e aquilo fervia de peão pra cima e pra baixo, você andava esbarrando em engenheiro, serralheiro, peão bate-estaca, peão especializado igual eu, mestre-de-obras, contramestre, submestre, assistente de mestre e todos os tipos de mestre que já inventaram, guarda, fiscal, ajudante de fiscal, supervisor de segurança dando bronca em quem tirava o capacete - e visitante, volta e meia aparecia algum visitante de terno e gravata, capacete novinho na cabeça, tropeçando em tudo e perguntando bobagem. Um chegou pra mim um dia e perguntou se eu não estava orgulhoso de trabalhar na maior ponte do mundo. Respondi olha, nem sabia que é a maior ponte do mundo, pra mim é só uma ponte. Mas ele insistiu. Pois saiba que é a maior ponte do mundo, e trabalhar nela é um privilégio pra todos nós. Aí eu perguntei nós quem? O senhor trabalha no que aqui? 
Deu aquele alvoroço, quem pegou meu angu, quem botou caroço, coisa e tal, mas ninguém veio me encher o saco porque um eletricista a menos, ali, ia fazer muita diferença. Tinha serviço pra fazer, deixar de fazer, fazer malfeito; sobrava serviço e faltava gente; mas se botassem mais gente ia faltar espaço naquela ponte. A parte elétrica, quando a gente chegou, estava crua de tudo; o pessoal trabalhava dia e noite com energia de emergência, um geradorzinho aqui, outro ali, bico de luz pra todo lado, fio descascado, emenda feita a tapa. Cada peão daqueles levava mais choque num dia do que um cidadão normal na vida toda. 
E foi aquilo que deram pra gente arrumar, um monte de fio que entrava aqui, saía ali, ninguém entendia por que nem como; uma casa-de-força com ligação pra todo lado sem controle nenhum, parecia uma vaca com duzentas tetas, uma dando leite, outra dando café, outra café com leite... E dava sobrecarga toda hora; uma parte da energia a cento e dez, outra parte a duzentos e vinte, de um lado Niterói, do outro lado o Rio e no meio uns vinte eletricistas varando noite sem dormir pra botar aquilo em ordem. 
Cada dia chegava um eletricista novo, e o serviço continuava sem render. Primeiro foi preciso montar uma central de força, as caixas de distribuição, cada seção da ponte com uma subcentral; e nisso a gente mais sapeou que ajudou, quem meteu a mão nessa parte foi um engenheiro loirão e o pessoal dele. Aí a gente entrou na parte de estender fiação, arrumar os conduítes, ligar os cabos, puxar luminária, montar a iluminação interna - porque a ponte tem alojamentos, postos de controle, laboratório, tudo embutido nela. 
E era tudo na base do quilômetro. Tantos quilômetros de fio aqui, tantos quilômetros de cabo ali. E era dia e noite, noite e dia. Hora-extra paga em triplo, todo mundo emendando direto, dezoito, vinte, vinte e quatro horas de alicate na mão, e os homens piando no teu ouvido: mete a pua, moçada, mete a pua que só tem mais um mês! Mete a pua que só tem mais três semanas! Só mais quinze dias, mete a pua! 
Um dos que foi comigo, o Arnaldo, no sétimo dia já caiu debruçado de sono, ficou dormindo com a boca quase no bocal de um cabo de alta tensão; saiu da ponte direto pro hospital, não voltou mais, acho que foi despedido, não sei. Um paraibano aprendiz, que trabalhava cantando, nem sei o nome que tinha, esse caiu de quatro metros em cima duma laje, uma ponta de ferro da concretagem entrou um palmo na coxa, foi levado sangrando demais. Mas voltou três dias antes da inauguração, coxo feito um galo velho e feliz de voltar a trabalhar. 
E os homens no ouvido da gente: mete a pua, pessoal, que só tem mais uma semana! Um peão passou por cima de um cabo de alta tensão no chão, 
empurrando uma carrinhola de massa; passou uma, passou duas, na terceira vez passou a roda bem na emenda do cabo, ouvi aquele estouro e só deu tempo de ver o homem subindo no ar como quem leva uma pernada, caiu 
com a roupa torrada, a botina foi parar dez metros longe. Aí era aquele zunzunzum, quem é que tinha deixado um cabo ativado daquele jeito no chão, como é que pode, coisa e tal, enrolaram o defunto num cobertor e mete a pua, tem só mais uma semana, pessoal! 
Um dia que eu subi num poste vi a ponte de cabo a rabo, calculei dois mil, três mil homens, sei lá quantos, mais que em qualquer barragem que conheci. Igual um formigueiro que você pisa e alvoroça. Todo mundo com raiva, peão dando patada em peão, um atropelando o outro porque os homens não paravam de gritar, falta uma semana, faltam seis dias! 
Um frangote de macacão amarelo passava de duas em duas horas com café quente em copinho de papel, a gente bebia e cuspia saliva preta sem parar; falta de sono, quando junta muita, vai salivando a boca - já viu isso? Onde tinha no chão cuspida preta, tinha passado peão com vinte, vinte e quatro, trinta horas de serviço sem parar. Peão dormia embaixo de encerado, em cama de campanha no chão, um aqui dormindo e outro ali batendo martelo, serra elétrica comendo ferro noite adentro, betoneira girando, caminhão arriando caçamba. Tinha homem ali que era preciso acordar com balde dágua, o cara levantava piscando, sonambulava perguntando o que tinha pra fazer. Se alguém dissesse se apincha aí no mar, o cara obedecia. O mar rodeando lá embaixo tudo, o sol lá fora e a gente enfurnado, mesmo ao ar livre era como num túnel, ninguém tinha tempo pra erguer a cara, pra cuspir e ver a cuspida chegar no chão. 
Você deitava mais morto que vivo mas o olho não fechava, até o corpo ir relaxando devagar, aí depois dumas duas horas a gente dormia, logo acordava ouvindo: tem só mais cinco dias, gente, cinco dias! - e parecia que você tinha dormido cinco minutos, o corpo quebrado nas juntas, a cabeça estralando e afundando, olho seco, cheio duma areia que não adiantava lavar, e lá vinha o frangote do café. Você olhava o relógio; a folga era sempre de oito horas mas, descontando o tempo perdido até conseguir dormir, mais o tempo de tomar um banho antes, barbear, coisa e tal, dava menos de cinco horas de sono. Aí 50 Volts deixou crescer a barba. 
Depois todo eletricista deixou de tomar banho, a gente catingava na última semana. As vezes eu ouvia um tapa, era um de nós se batendo na cara pra acordar. Eu beliscava a orelha, ou então o bico do peito, pra segurança de estar vivo; certas horas tudo parecia meio sonho, a falta de sono tonteia o cabra até o osso. 
A comida pra turma dos eletricistas vinha numas bandejas de alumínio com tampa de pressão, a gente destampava e comia onde estivesse. Na terceira vez que destampei e vi feijoada, fiquei sabendo que era sábado e no outro dia era domingo. Ia ser o terceiro domingo que trabalhava continuado. Então virei pra 50 Volts e falei - Quer saber duma coisa, negão? - pra mim chega. O frangote do cafezinho veio passando, mandei ele enfiar café no rabo, saí atrás do mestre da turma. 50 Volts foi junto. Nem precisei falar, o homem adivinhou que eu ia pedir a conta e sumir daquela ponte, me enfiar numa pensão e dormir, eu só via cama na minha frente. 50 Volts vivia economizando pra voltar pra terra dele e comprar um bar, então achei que só estava me acompanhando de curioso, mas na frente do mestre ele também pediu a conta. Não sou bicho pra trabalhar sem parada, ele falou, e o mestre concordou, mas disse que não podia fazer nada, ele mesmo estava até com pretume na vista mas não podia fazer nada, a gente tinha de falar com o encarregado do setor elétrico. 

Fomos falar com o tal encarregado, depois com um engenheiro, depois com um supervisor que mandou chamar um engenheiro da nossa Companhia. 
Esses homens são da sua Companhia, engenheiro, ele falou, estão pedindo a conta. A Companhia está empenhada nessa ponte, gente, falou o engenheiro, vocês não podem sair assim sem mais nem menos. Tinha uma serra circular cortando uns caibros ali perto, então só dava pra falar quando a serra parava, e aquilo foi dando nos nervos. 
Falei que a gente tinha o direito de sair quando quisesse, e pronto. Nisso encostou um sujeito de terno mas sem gravata, o engenheiro continuou falando e a serra cortando. Quando ele parou de falar, 50 Volts aproveitou uma parada da serra e falou que a gente não era bicho pra trabalhar daquele jeito; daí o supervisor falou que, se era falta de mulher, eles davam um jeito. O engenheiro falou que tinha mais de vinte Companhias trabalhando na ponte, a maioria com prejuízo, porque era mais uma questão de honra, a gente tinha de acabar a ponte, a nossa Companhia nunca ia esquecer nosso trabalho ali naquela ponte, um orgulho nacional. 
O supervisor perguntou se a comida não andava boa, se a gente queria mais café no serviço, e eu só dizendo que não, que só queria a conta pra sumir dali, e 50 Volts repetindo que não era bicho pra trabalhar daquele jeito. O cara de terno botou a mão na cintura e o paletó abriu na frente, apareceu um .38 enfiado na cinta. A serra parou, esse cara do .38 olhou bem pra mim e falou olha aqui, peão, se você quer dinheiro na mão vai receber já, mas vai continuar no batente porque aqui dessa ponte você só sai morto. O engenheiro falou que a companhia tinha uma gratificação pra nós, então era melhor a gente continuar por bem, pra não desmerecer a confiança da Companhia. 
Aí 50 Volts falou isso mesmo, a gente descansa um pouco e já volta 
mais animado; mas o cara do .38 achou que era melhor mostrar boa vontade voltando direto pro batente, então joguei um balde dágua na cabeça e voltei. Um eletricista trabalhar molhado é o mesmo que um bombeiro trabalhar pelado; é pedir pra levar choque - mas era o jeito, era o fim do mundo, era peão que passava cambaleando, tropa de visitantes que passavam perguntando se ia tudo bem, se estava tudo certo, se a gente andava animado; e agora visitante nem andava mais de capacete, faltava pouco pra inauguração. A gente só respondia sim-senhor, sim-senhor, tudo que perguntassem a resposta era sim-senhor, feito bando de fantasmas. Se dissessem que aquela era a menor ponte do mundo a gente ia responder sim-senhor, porque eu pelo menos não ouvia mais nada, a mão trabalhava com a cabeça dormindo. 
A mão começou a descascar nos calos, não dava tempo de formar pele nova. Eu olhava de noite o Rio e depois Niterói, ficava perguntando por que esse povo de lá precisa passar pra cá e o de cá passar pra lá? 
Aí começou a aparecer pintor pra todo lado, a gente andava chutando latão de tinta, placa de sinalização, plaqueta, parafuso de pregar placa. Veio uma ordem de concentrar dez eletricistas na iluminação de fora da ponte, numa parte crua de tudo. Então botamos lá uma iluminação de emergência muito bem disfarçada, bonita, quem olhasse achava aquilo uma maravilha, parecia uma árvore de Natal, mas se batesse um vento mais forte ia tudo pro mar. Um belo dia passou o aviso geral de que era véspera da inauguração, caí na cama com roupa e tudo, com coceira na cabeça, no corpo todo por falta de banho, e um calo na testa de tanto usar capacete. Nisso vem a contra-ordem de não parar o serviço, senão a ponte ia ficar com uma parte escura, não podia, era uma vergonha; vamos lá, pessoal, essa ponte é o orgulho do Brasil, coisa e tal, e a gente teve mesmo de subir pra montar as últimas luminárias; a noite inteira se equilibrando em altura de dez metros, o vento passando forte, a ponte lá embaixo e o mar escuro, dava até vontade de pular e ir afundando, afundando, dava zonzeira, dava remorso de ser eletricista e raiva de quem inventou a eletricidade. 
Eu nunca tinha tomado comprimido contra sono; mas naquela noite todo mundo tomou, 50 Volts falou toma, engole isso que agora é o último estirão, amanhã a gente dorme até rachar o rabo. Engoli umas três bolinhas com café, da mesma cor dos capacetes, amarelas, depois subi num poste e fiquei olhando os outros de capacete amarelo trepados na escuridão, cada um parecendo uma bolinha atolada no café da noite, lembro que fiquei tempo pasmado nisso, até que me cutucaram, aí toquei direto até as nove da manhã. 
Tinha uma banda tocando não sei onde quando enfiaram a gente numas caminhonetas, dez horas da manhã, uns quarenta eletricistas de olho estalado, cada olheira de quem levou soco. 50 Volts enfiou o dedo na orelha, ficou admirado de tirar uma pelota preta; eu tirei a botina e ninguém agüentou o cheiro, tive de botar os pés pra tomar vento fora da janela. 
Apearam a gente numa praia, todo mundo caiu na água de calça arregaçada, de cueca, sabonete, cada um mais barbudo que o outro; e foi no tirar a roupa que dei pela falta do alicate no cinto. 
Nunca tinha entrado no mar na minha vida, nem entrei. Fiquei fuçando a caminhoneta atrás do alicate, o pessoal voltou e se trocou, eu continuei fedendo. 
Às onze da manhã a gente apeou num restaurante na beira duma praia. Feijoada. Não sei se era sábado, mas era feijoada - com pinga e limão, cerveja e mais feijoada. Quando a bebida bateu na cabeça, o cansaço virou uma alegria besta, deu uma zoeira que até esqueci do sono, do alicate, da sujeira. Tinha peão ali que não conhecia o nome dos outros, tinha um que cantava xaxado e baião, e o paraibano coxo acompanhava dançando corta- jaca, batendo os pés no ritmo certinho. 
50 Volts fez um discurso dizendo que ia dar naquela ponte o maior curto-circuito do mundo, e eu também discursei mas nem lembro, só lembro que certa hora o dono do restaurante veio pedir pra gente parar de cantar Cidade Maravilhosa; aí 50 Volts falou que só parava pra comer mais feijoada quentinha, e veio mais, cada tigela fumegando com carne-seca, pé de porco, orelha, paio, costeleta, tudo que uma feijoada decente tem de ter, como couve, farinha e laranja que já vinha descascada, você chupava uma e empurrava mais feijoada pra baixo. 
Aí deu aquela moleza, veio o café mas ninguém ali podia ver café na frente, quarenta eletricistas numa mesa comprida, na maior tristeza, arrotando sapo preto e palitando fiapo de laranja. Pra falar a verdade, nem sei onde deitei, acordei no outro dia às quatro da tarde, num alojamento com o chão alagado de vômito. Tomei banho, jantei num refeitório azulejado de amarelo, deitei de novo e no outro dia enfiaram a gente numa caminhoneta, só que não era acolchoada. Pensei em dar um pulo na ponte pra achar o alicate, 50 Volts perguntou se eu tinha ficado louco. Ele tinha ouvido no rádio que passavam não sei quantos mil carros por dia na ponte, e eu querendo achar um alicate. 
50 Volts até hoje conta prosa de ter trabalhado lá, eu fico quieto. Ele até diz que um dia vai ao Rio só pra ver a ponte iluminada; mas isso eu vi outro dia, numa revista.

Contos do Sábado na Usina: Márcia Denser: O vampiro da Alameda Casabranca:



A não ser pelo filme japonês em cartaz, não havia nenhum interesse em sair com aquele sujeito, poeta, que se ostentava como "maldito" só para poder filar seu canapezinho de caviar nas altas rodas. Um guru de fachada, meio sobre o charlatão cósmico, adepto que era de uma esotérica seita oriental, babaca como tantas outras, e usando tudo isso em proveito próprio. Pelo menos não era burro. Disso resultavam as sessões de massagem transcendental nas madames com hora marcada, ou mesmo sem ela, ao sabor das prisões de ventre, dores de corno e outras piorréias. Não era mesmo burro. Feioso, devia viver faminto de carne fresca mas, passando-se por espiritual, ia tirando suas casquinhas. A conversa era inconsistente, cheia de expressões pedantes e, até pela sintaxe, tão emaranhada em meandros que obviamente não levavam a parte alguma, notava-se a eterna fome do cara. Uma espécie de vaga ansiedade piedosa de algo que rodeia e rodeia aquilo que seria um alvo, não tivesse ele em mira outra coisa. Por exemplo: enquanto sua boca passeava pela evolução da energia cósmica, seus olhos hipnotizavam-se (bem como toda sua alma) num ponto qualquer entre meus seios, e a energia cósmica ia e vinha, subia e descia, jamais se perdia, enrolava e se desenrolava, mas não chegava a nenhum lugar, uma vez que o verdadeiro objeto daquele papo estéril permanecia fora de alcance. A arenga também seria hipnotizante: eu me sentia como uma criança birrenta que não quer dormir ou um animal relutante em cair na armadilha. O tal filme japonês fora realmente bom, um monumento poético, um estudo profundo sobre as paixões humanas etc. e assim eu poderia falar sobre ele ad nauseam, mas o Poeta apenas emitiu suas impressões assim: "É barra! Que barra! É uma barra!" dizendo-as de maneiras diferentes e empostando a voz num diapasão enfático que partia da traquéia, explodindo num ruído seco e rouco, feito um peido bucal, e como se a palavra "barra" contivesse, não digo o significado de todo o universo, mas, pelo menos, de todo o filme. Isso no fim da fita. Durante esteve todo o tempo tentando pegar no meu braço. Um verdadeiro saco. Então eu me perguntava: por que sair com aquele cara? Era desses feriados tediosos, todos os amigos queridos, todos os sujeitos interessantes, todas as amigas disponíveis viajando, restando os neuróticos, os chatos e os vampiros na cidade. Já era uma boa razão. Depois, eu apenas desconfiava de tudo isso, ainda não configurara uma imagem nítida do Poeta na minha cabeça. Na hora "H" fica possuída duma puxa-saquice pânica por agradar, mais preocupada com o efeito que com o objeto propriamente dito. Posso acabar fascinando Drácula em pessoa, sem dar pela coisa. Daí me livrar do monstro já é outra história. Como nesses clássicos de horror, ao sairmos do cinema "um vento gélido açoitou-nos os ossos". Confesso que não fiquei surpreendida quando o Poeta sugeriu passarmos no seu apartamento para pegar um pulôver, coitadinho. Antes tentei aliciá-lo para uma cave de queijos e vinhos, mas ele não entrou. Também não queria ser grossa ou passar por retró ou sei lá. No fundo, no fundo, estava querendo ver até onde ia o meu fascínio - e eu sei onde vai o meu fascínio - com o Poeta. Sabe-se lá. No apartamento (não fosse pelo excesso de cartazes politicosos, até que bem jeitoso. Um tanto "artístico-displicente" demais, eu acho, como tantos outros onde eu estivera, de poetinhas, atores de teatro, bichas, são todos iguais, deve ser a fada madrinha), eu aproveitei meu fascínio ao máximo. Munida dos meus trabalhos, submeti o Poeta a uma intermitente sessão de leitura dos melhores trechos por umas duas horas. Minhas estórias são boas, mas lidas assim, no tapete, bebendo um bom vinho tinto, um fogo aqui dentro, ar condicionado, almofadas e mantas peruanas, música suave e um sujeito querendo me comer ali do lado, não há talento que resista. Então, ele me submeteu a mais duas horas de suas poesias, aliás inéditas. Se fossem boas até que valeria o esforço, o fascínio, a atenção fingida (tinha ganas de estourar de rir cada vez que ele pigarreava, afivelando um ar circunspecto, como se preparando para ler um discurso, um obituário, um testamento, enfim, algo muitíssimo sério), o vinho, aquele apartamento, o filme japonês, os feriados, aquelas profundas crateras que lhe sulcavam o rosto, o ligeiro cheirinho oleoso e adocicado que se desprendia delas, a mania de falar de si próprio na terceira pessoa, como se fosse um fantasma, o fato de ser careca de um lado só, daí o cabelo restante se amontoar num topete atrás da orelha esquerda, enfim, mas não eram. Não eram mesmo. Ocas, delírios vagos, desconexos, de um concretismo de cabeça dura e reticências. Na mesma construção e com a mesma ênfase conviviam vísceras e sangue, cosmos e eternidade, como se essas palavras não significassem nada além de meros sons poéticos convencionais. Quando a coisa começava a esquentar, ele sempre botava as tais palavras definitivas como Deus, Espaço, Eternidade, Morte, e esquecia as preposições, tornando tudo assim delirantemente obscuro, como se possuísse uma chave, um código para a sua decifração. Para os leigos, as garotas bonitas e os novos-ricos quanto menos se entende, mais a coisa deve ser boa. Palavras bonitas é igual a idéias bonitas. E gongórico, é elementar. O Poeta conhecia muito bem esse princípio e aplicava-o até à exaustão. A minha, por exemplo. Na verdade, algumas eram até sofríveis, mas parece que o sujeito tinha um cadeado no cérebro. Estava prisioneiro. Não se enfrentava. E se começava a botar a mão na merda, lá vinha ele com seus deuses e demônios anti-sépticos, para lavar todos os pecados. Pelo menos os dele. Se achava que os tinha. Ser feio, por exemplo, era um. Equilibrava-se definindo-se "pedante e sofisticado". Supunha-se, dessa forma, inacessível. Enganava só os trouxas. Na conversa, Poeta mencionou uma festa. Amigos intelectuais etc. Então vamos, me animei, e fui emergindo das almofadas, procurando as botas debaixo do sofá, espantando cobertores, relanceando um olhar melancólico para as garrafas vazias, mas ele me reteve. Ainda não, disse, fixando-me um olhar tigrino cor de petróleo. Era como um aquário, a exposição, atrás do vidro córneo, do que havia no interior de suas espinhas mortas: óleo diesel. O pequeno deus Caracol, o deus dos covardes, deve habitar em mim, pois foi ele que me fez encolher, puxando consigo todas as terminais nervosas, todas as sensações de prazer e dor, toda alegria, todo pranto, e me transformar num penhasco árido, num terreno baldio entregue às varejeiras, aos cacos de vidro, lixo, mato ralo, aos cães vira-latas, e aos teus beijos, Poeta. Uma zoeira distante no ouvido, uma sensação incômoda nas costelas, a boca seca, avisaram-me que bastava. Fui me desprendendo aos poucos. Tarefa, aliás, bastante embaraçosa. Eu diria hilariante, se não fosse parte ativa. Parecíamos atores de um filme do Harold Loyd. Eu puxando de cá, ele de lá. Um escorregão providencial da minha parte (estávamos em pé) decidiu a contenda. Fomos à festa. A primeira coisa que chamou minha atenção foi que o dono da casa - por sinal, um belíssimo rapaz - usava, atadas na manga da camisa, duas fitas de seda nas cores da bandeira nacional. Assim como os rapazes da TFP, a juventude de Hitler, os pupilos de Mussolini. Como um ungido, a marca da distinção, do bem-nascido, bem-dotado, bem rico, a nata, a perfeição e vocês fora! E viva Nietzsche e o quarto Reich, logo, o General Pinochet, Idi Amin, Pol Pot, Gengis Khan e o Golpe de 64. Puxei-o pela manga: O que é isso? 
Sorriu com seus olhos azuis de água doce: Não é um belo país? É. Olhei a mesa: vinhos franceses, queijos suíços, baixela húngara, guarnições de renda austríaca, charutos cubanos, vodca russa, cigarros americanos. Belíssimo país. 
Belo mesmo é você, pensei cinicamente, cobiçando a belezinha de jovem fascista e seus brinquedinhos, entre eles uma linda esposa loura e psicóloga formada pelo período da tarde do cursinho Objetivo, altura e peso ideais segundo a Revista Cláudia e preocupadíssima com seus encargos de anfitriã (repetiu neuroticamente a noite toda que "a previsão falhou" a propósito de haver terminado o queijo de nozes antes das duas da matina). E os intelectuais? 
Da "festa" constavam exatamente dez pessoas. Além dos anfitriões, eu e o Poeta/Profeta, havia um outro casal composto de um sujeito enorme, estilo Cro-Magnon, filho de general, com o curioso nome de Ciro, faixa preta em caratê e que me foi apresentado como um pintor maravilhoso, porém desiludido (o pessoal devia ser positivamente cego) e cocainômano ativo, acompanhado por uma garota misto de Dama das Camélias e Madrasta da Branca de Neve: profundas olheiras azuladas, cabelos crespos e negros acentuando oleosamente o rosto pálido, ossudo, lunar, quase transparente, usando uma camisa branca também transparente (seios nada transparentes) sem sutiã, a chamar atenção de todos para os seus pés feridos pelas sapatilhas. Bailarina? Não sei. A cidade está cheia desses cursinhos de balé e bordado, freqüentados por jovens em idade de casar e manter a forma. Para compensar as festinhas movidas a vinho, coca e mau humor de suas excelências, seus namorados, pelos quais elas são capazes de se foder por toda a eternidade, em troca de um sobrenome enganchado no rabo e um apartamento nos Jardins: os homens têm as angústias, as mulheres, os interesses, e por ai vai. Roger, o intelectual oficial, amigo do Poeta de proveta, um sujeitinho magricela, insignificante (essa palavra é enorme!), apagado na minha memória, acompanhava uma cooperante do governo americano junto ao Brasil, 
uma garota da Califórnia com cara de porto-riquenha. Ela deveria detestar aquela cara tropical, a pele morena, cabelos negros cortados rente, como se pagando uma pena, os olhos escuros feito morcegos assustados, encolhidos no fundo da fisionomia. Que fazer se sua mãe havia pulado o muro do México? Roger, o colonizado, desmanchava-se em atenções para com o produto de Tio Sam, mas eu imagino que, para ele, bastaria qualquer coisa, uma lata de sopa Campbell, digamos. Que representasse a civilização, a cultura superior etc. Razões inconfessáveis. Não via nela apenas uma garota assustada num país estranho. Assim como eu não enxergava o aspecto repugnante do meu guru-poeta. Tampava o nariz, os olhos, a boca, e o engolia em nome de uma vaidade idiota. Presentes também um par de primos dentuços e noivos que se despediu cedo. Eu aposto que pra ver televisão e se agarrar no sofá. 
A madrugada evoluiu naquele apartamento neoclássico, com ativa movimentação de garrafas de vinho, rodadas de cocaína, camembert rançoso e conversas idiotas. Já estava amanhecendo e restavam os donos da casa, Ciro, Branca de Neve, Poeta e eu, já me sentindo completamente onipotente. 
Sentimento provavelmente compartilhado por todos, uma vez que a conversa girava sobre vida extraterrena, enquanto Brinquedinho raspava com uma pazinha de sorvete os restos de pó grudados no bumbum da garota na capa da revista Playboy. Excelente anfitriã. Belo Fascista inquiria o Poeta: 
- Você, Klaus, que é um cara ligado nessas coisas, e entende pacas, já deve ter tido revelações, não? 
- Bem, começou o outro, pode-se dizer que nós (falava sémpre no plural, aludindo estranhamente uma cumplicidade invisível. Quem sabe com os deuses) chegamos a fazer vários contatos realmente inexplicáveis, eu diria, por exemplo, quando morreu a Dorinha... 
- A Dorinha não morreu, trovejou Ciro, olhos vidrados numa faca de cortar frios. 
- Talvez sim, talvez não, condescendeu misteriosamente Klaus, muitos de nós já chegaram a... 
- Besteiras, não há nada, cortei. Estive lá em cima e vi: estão todos mortos. E voltando-me para o meu anfitrião: Um trechinho de seu autor predileto, beleza... 
- Como? - Belo Fascista arregalava os doces olhos azuis. 
- Ela divaga - Poeta endereçou-me um olhar enviesado, - mas como eu dizia, a Dorinha... 
- Agora que estou vendo, interrompi novamente. De repente, Ciro e Branca de Neve me pareceram estranhíssimos: ele enorme, truculento, ela frágil, meio amalucada... 
- Vocês não têm nada a ver, não é? Sorria para ambos como abençoando-os. Klaus, desorientado, arreganhava os dentes, desculpando sua convidada. 
- Terrível, terrível, arfava Branca de Neve. 
- Pensando bem, acho que a garota tem razão, Ciro não tirava os olhos da faca. 
- E como é que vocês tre... Um violento cutucão do Guru, debaixo da mesa, fez-me engolir o resto da frase. 
Depois disso, fui mergulhando cada vez mais fundo num burburinho ácido e esbranquiçado. As frases se sucediam de cá para lá, e eu as acompanhava como bolinhas num jogo de ping-pong, apenas como bolinhas, que não são nada além de bolinhas brancas. 
Levantei-me e fui até a janela: É isso, pensei, sufocar a ressaca, afogá-la na boca cinzenta e azeda da manhã como num cesto de roupa suja. Esse é o preço pago pela droga consumida durante a madrugada, porque a droga tem o segredo que afoga a náusea, o vômito, a acidez desse vinho escuro injetado nas veias desde a noite anterior, então, ao amanhecer, foi puxada a descarga, sentido um só tranco, o estômago a brecar e a gemer no alto de um prédio no Pacaembu e isso foi quase tudo. Quase porque eu ainda não terminara. 
Porque o vazio, após a descarga, é insuportável. O vaso sanitário fica deserto e se tem medo de tornar a usá-lo e infectar o mundo inteiro. A náusea que se instala expulsa a razão, amedronta as palavras, e eu precisava falar que daquela madrugada ficou um gosto arrepanhado de sal de frutas, a efervescência cinza-pérola do antiácido diante dos olhos e uma tristeza secreta e corrompida por me saber mole, dobrável, e ainda uma vez voltar a fazer coisas que não quero, não preciso, não desejo, todavia o álcool e a droga me levam lá, uma espécie de morte incluída nos serviços de buffet; a cada episódio eu morro, e eu morro, e eu morro de novo, e volto a me assassinar, porque contar essa estória é o mesmo que atacar a mesma mulher há anos, violentamente, por trás, e como se ela fosse virgem, então, o toque no ombro, o hálito amanhecido às minhas costas: Klaus. Haviam escurecido a sala. Silenciosamente, colocou-me o casaco e, na condição de irmãozinho mais velho, carregou-me para longe daqueles perigos. Seu apartamento, por exemplo. Lembro de um café da manhã numa mesa com toalha de plástico, e um enorme queijo de Minas. Eu estava chapadíssima, achando o queijo muito engraçado e porque não podia aparecer em casa de modo algum naquele estado. Klaus, este então parecia esmagado sob o peso da recompensa. Ele tinha mesmo uma cara amassada de vilão do faroeste depois da última briga, versão piorada entre Jack Palance e John Carradine. Cara picada pelo ressentimento e pela varíola, obtinha dormir com a mocinha sem mais aquela. Era demais. Ele vai broxar, pensei. 
Havia sol, mas estava frio e úmido e o Poeta, muito solícito, uniu duas camas gêmeas, cobriu-as com mantas, enquanto eu me despia, obedientemente, cumprindo um ritual sem escapatória, filha de Maria, sacerdotisa de Astarté, coroinha alimentado e fodido secretamente pelo padre, eu obedecia, apenas. Fiquei de bruços, fechei os olhos, pensando: o prazer puro, o prazer puro. Não poderia ver aquele rosto agora, seria insuportável, seria inconcebível, e eu acho que ele me ficou agradecido. Mesmo assim não conseguia. Estava submerso em droga e álcool, uma chaga viva de excitação que pulsava e gemia, rilhando os dentes, pobre animal sonâmbulo imaginando-se um ser humano de carne, ossos e fezes, se esvaindo entre minhas nádegas numa tortura aplicada de movimentos ineficientes; uma vez que ele não conseguia, o animal depositava-se como um pedaço morto de carne fria junto ao meu corpo. Vamos liquidar isso, pensei. Sentia-me cansada, nauseada, azeda. A excitação esticava-se como um cordão frouxo contudo sem arrebentar. Vi pela janela a manhã alta, cor de magnésia, e disse: chega, vamos dormir. às minhas costas, ele desabou, barraquinha de campanha, como se o tempo todo estivesse aguardando a ornem que o libertasse da prontidão. Segundos depois ressonava eloqüentemente. Adormeci pensando onde havia me metido, aquele apartamento de solteiro da Alameda Casabranca tinha algo a ver com um túmulo, gente adormecendo ao nascer do sol, falta só o punhal de prata, mas, por alguma razão maluca, não queria ir para casa e não queria ficar ali. O sono me colocou no lugar certo. Estaria sonhando com um jardineiro espanhol ou com tesouras, não sei, e acordei salgadamente sentindo algo vivo se mover, quente e alerta, entre minhas coxas. Pulei da cama, como se impulsionada por retrofoguetes: fugir, pensava, fugir, correr, vomitar, se vestir. E fui apanhando os destroços das roupas atiradas pelo quarto. Ao subir as meias, espiei com o canto do olho a cara atônita, amassada de Klaus, parecendo um pedaço carbonizado de casca de árvore na brancura de areia dos lençóis. A boca entreaberta não ousava protestar, articular nenhum som, com aquele ar de bagre estúpido, aquele ar de fóssil humano: a qualquer palavra minha, viria a réplica de bernardo-eremita na voz de fariseu sufocado e eu não queria deixar nada claro. A coisa, naquele pé, já parecia suficientemente ridícula, uma pornochanchada sinistra: ele, de pau duro debaixo das cobertas, cara de idiota, observando a mocinha se vestir num desespero vertiginoso, como se perseguida por Jack, o Estripador. Faltava vestir o casaco e me lancei para fora do quarto. Uma empregada velhíssima e cheia de varizes abriu-me a porta da rua. Desci pelas escadas. Nem cogitei estar no 152 andar. Alcançando finalmente a rua, parei ofegante. Porra, estava livre. Leve. Livre. Comecei a rir sozinha: até que fora bem gozado. Cambaleante e feliz, ri por dois quarteirões. As pessoas se voltavam, espantadas. Um perfume de pãezinhos frescos me atraiu para uma padaria cheia de colegiais e empregadinhas. Mastigando um enorme sanduíche de presunto, pedi ao vendedor a lista telefônica. Forrando página por página com lascas de pão fresco, procurei o número do Belo Fascista. Não sabia por quê, mas precisava salvar a noite. Alô, uma vozinha sonada gemeu do outro lado. Reconheci Brinquedinho. Escute, princesa, falei, diga ao seu marido que preciso fazer uma substituição (era necessário ir direto ao assunto, nada de formalismos idiotas com a família e os cachorros. Tratamento de choque). O quê? A voz prosseguia estremunhando. Uma outra, de homem, metralhava abafadamente qualquer coisa. Era seca e urgente, falando aos soquinhos parecia martelar ordens. Brinquedinho explicava confusamente algo sobre a namorada de Klaus e uma substituição. Afinal, era uma objetiva formada pelo Objetivo. O que está havendo? Belo Fascista pegara o aparelho. Parecia um bocado irritado. Expliquei da melhor forma. Por fim, convidei-o para tomar café da manhã comigo, ali, na Padaria Flor de Lys, que ficava na rua... Pedi para esperar na linha enquanto ia ver. Quando retomei o fone, apenas o ruído de discar respondeu melancolicamente ao meu apelo. Belo Fascista não tinha mesmo nenhum senso de humor. Tão bonitinho, murmurei cheia de pena. 
O pão terminara e enquanto esperava o troco, espiei meu rosto no espelho da balança. Borrado de rímel preto, o rouge coloria mais a face esquerda, olheiras azuladas. Igualzinha Branca de Neve. Esfregar o dedo acentuou a palidez, mas servia. Ainda não dava para espantar as crianças. Na saída, resolvi 
comprar outro sanduíche para ir comendo no caminho. Esquentara e eu amarrei o casaco na cintura - um casaco lindo, de veludo caramelo - e o pessoal continuou me encarando. Sempre comendo o pão, fui subindo a rua cheia de árvores verdinhas e rendilhada de sol. Lembrei de uma passagem de Faulkner no Som e a Fúria. Afinal, alcancei a Avenida Paulista suando e arrotando salame. Em frente a Casa Vogue - que não é mais a Casa Vogue 
- tentei pegar um táxi. Nada. Decidi ir andando. Até o Paraíso são quatro quilômetros, mas no plano. Achei razoável. Entrei no Jardim do Trianon. 
Um pouco de ar puro, pensei, ecologia, patos, marrecos, galinhas, desocupados. 
Ecologia. Comprei um saquinho de pipoca. Um garoto de seus 17 
anos atirava farelo aos perus - detesto esse ar superiormente abestalhado que têm as aves em geral - e perguntei a ele se valia atirar pipoca. Lógico, disse, e enfiando a mão no meu saquinho, retirou um punhado e atirou-o aos bichos. Era um encanto de garoto, um ninfeto dos bosques, cabelos alourados de sol e piscina de clube, a camisa xadrez aberta exibia o peito liso, moreno e uma medalhinha de San Genaro. Perguntei se era italiano. Meu pai, respondeu sorrindo. Falava com simplicidade e delicadeza. Como se fosse a coisa mais natural do mundo topar num domingo com uma garota, às onze da manhã, cara toda borrada de pintura, casaco de veludo amarrado nos quadris, um pão semicomido na mão, um saco de pipoca na outra. Ele era a própria manhã: jovem, fresco, belo, puro. Me senti mal. Queria lavar o rosto, tomar um banho, convidá-lo a passear comigo no Ibirapuera, que é o maior parque que eu conheço, sei lá onde. Melhor ir andando. Ele ficou olhando eu me afastar com simpatia, assim, também sem perguntar nada. 
Uma névoa de cansaço descia sobre o jardim. Senti-me longe, minha casa longíssima, o apartamento de Klaus ainda mais longe, em outro país, outro tempo. Ajeitei-me num banco de pedra limosa e dormi. Um segundo depois acordei: alguém me cutucava as costas com um objeto duro e pontudo. Outra vez, pensei. Mas era só uma vassoura e o homem devia ser o zelador do parque. Percebi vagamente que anoitecia. 
- Levaram sua bolsa e seu casaco, dona, é bom dar parte na polícia, falava com uma voz monótona, anasalada, repetindo sempre sobre o roubo e a polícia. 
- Pra que a vassoura?, murmurei idiotamente, ainda aturdida pelo sono. O corpo dolorido. Meu casaco e a bolsa? 
- Você tá mal, hein? Deu moleza, já viu, nego passa a mão mesmo, acho bom dar parte na... 
-Já vou, já vou. Como fazê-lo calar? Estiquei as pernas. Intactas ainda minha calça de veludo e a camisa de seda. Bem, foi-se, pensei. No que deu o vampirismo poético. Judas, o obscuro, estaria agora em seu lindo apezinho ouvindo Beethoven e jantando carneiro ensopado com legumes, preparado por Lady Varizes, a copeira. Aquela cara amassada, descomposta, mastigando a sobremesa, aqueles olhos duros, machucados, e o animal adormeceria tranqüilamente entre seus panfletos comunistas, fumando cigarros mentolados. Era demais. Vomitei espasmodicamente num canteiro de hortênsias. 
Resolvi voltar para casa. Lá pagariam o táxi. Então lembrei: estavam todos viajando. Todos os amigos, todos os sujeitos, todas as amigas etc. Eu estava sem a bolsa, sem as chaves, com frio, fome e precisando de um banho. No táxi, suspirando, dei o endereço de Klaus.